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Na passagem dos 100 sobre o início da I Guerra Mundial

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Published by madroal, 2019-08-16 13:53:30

I Grande Guerra

Na passagem dos 100 sobre o início da I Guerra Mundial

100 anos
GGruaenrdreaArmistício
2014

IMPRENSA

GRANDES REPORTAGENS

Manuel Carvalho e Manuel Roberto

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

ÍNDICE

A Grande Guerra que Portugal quis esquecer

Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)
Palma, Norte de Moçambique

LER ARTIGO

A guerra inevitável nas colónias portuguesas

Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)

LER ARTIGO

Os “filhos espúrios” que a República
enviou para o Niassa

Manuel Carvalho

LER ARTIGO

O convívio com a morte na baía do Tungue

Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)
Palma

LER ARTIGO

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

À procura do inimigo, do outro lado do rio

Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)
Nevala, Tanzânia

LER ARTIGO

Nevala, um forte longe de mais

Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)
Nevala, Tanzânia

LER ARTIGO

Oito “negros e amargurados”
dias durou o cerco

Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)
Nevala, Tanzânia

LER ARTIGO

Os soldados privados do eterno descanso

Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)
Mocímboa da Praia

LER ARTIGO

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

A coluna dos penitentes

Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)
Mocímboa da Praia

LER ARTIGO

Tudo se desmoronou em Negomano

Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)
Negomano

LER ARTIGO

A última derrocada

Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)
Negomano

LER ARTIGO

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

A Grande Guerra que Portugal
quis esquecer

Ponte da Unidade que liga Moçambique à Tanzânia

ManuelCarvalho (texto) e ManuelRoberto(fotografia), em Palma Norte de Moçambique

Na Grande Guerra de 1914-18, o exército português sofreu a
sua maior derrota em África desde Alcácer Quibir. No Norte de
Moçambique morreram mais soldados portugueses do que na
Flandres. Não tanto pela razia das balas alemãs. Mais pela fome,
pela sede, pela doença e pela incúria. Minada pela vergonha, a

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

I Guerra em Moçambique acabou votada ao esquecimento. Não
tinha lugar numa nação que até 1974 sonhava com um império
ultramarino. Numa viagem de mais de 2500 quilómetros, o
PÚBLICO foi à procura dessa guerra sem rosto. Os cemitérios
dos soldados foram profanados ou são lixeiras, mas o milagre da
tradição oral conservou as suas memórias até hoje.

No dia 26 de Junho o primeiro-ministro de Portugal foi ao cemitério
militar de Richebourg, no Norte da França, “prestar a nossa
homenagem colectiva” aos soldados que morreram na Primeira
Guerra Mundial. Se em vez de ter escolhido o palco europeu da
guerra e optasse pelo cemitério de Palma ou o ossário de Mocímboa
da Praia, no Norte de Moçambique, dificilmente Passos Coelho teria
condições para manifestar o “respeito e sentimento de enorme orgulho”
que o país supostamente “tem por todos aqueles que se sacrificaram
ao serviço da nação”. Porque nesses lugares remotos não encontraria
cemitérios com cruzes brancas, alinhadas e conservadas, a recortarem
o verde da paisagem. Descobriria sim lápides a emergirem entre o lixo
que alimenta galinhas e cabras, tumbas engolidas pelo avanço da selva,
túmulos profanados com os restos dos esqueletos dos combatentes
expostos ao ar, campas onde só com esforço se consegue ler o nome
dos que morreram em Quionga, em Negomano ou no território dos
Macondes, nas margens do rio Rovum.

O historiador Marco Arrifes escreveu que “o soldado desconhecido
de África é bem mais desconhecido que o da Flandres” e desde os dias
da guerra até hoje não faltam argumentos para comprovar a sua tese.
Em África combatia-se, de acordo com a ideologia e o direito da era
colonial, pela defesa do território nacional. Em África, principalmente
no norte de Moçambique, morreram mais soldados portugueses do que
nas trincheiras da Flandres, não tanto pelo efeito das balas mas mais por

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Abdel Carlos John junto ao túmulo de um soldado alemão cuja cúpula, garante, foi derrubada por um elefante

causa da impreparação, da incúria, da fome e da sede, da loucura das
febres, do paludismo e da disenteria. Mas nem isso bastou para que a
Grande Guerra em África tivesse merecido a atenção que os historiadores,
os políticos e a generalidade da opinião pública devotaram ao Corpo
Expedicionário Português na Europa. Até hoje, as campanhas em África
permanecem envolvidas numa relativa aura de esquecimento colectivo.
Só muito recentemente uma nova geração de historiadores decidiu
desenterrar o tabu e verificar a dimensão da tragédia que aconteceu em
Angola e, principalmente, em Moçambique.

Numa viagem de mais de 2500 quilómetros pelas zonas remotas da
província de Cabo Delgado, na linha de fronteira do Rovuma ou já no
outro lado do planalto dos macondes, em território da Tanzânia, o
PÚBLICO foi à procura do que resta dessa guerra. Partimos de Pemba,

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

a Porto Amélia dos tempos coloniais, subimos a Mocímboa da Praia e

a Palma, as bases das principais expedições das tropas nacionais entre

1916 e 1917; visitámos Quionga que fora ocupada pelos alemães em 1894 e

reconquistada sem um tiro em 10 de Abril de 1916; subimos a Namoto, na

margem do Rovuma; fomos a Mueda, símbolo do orgulho dos macondes

e lugar simbólico do início da Guerra

No final da guerra, Colonial, atravessámos a estrada de
Gavicho de Lacerda, quase 200 quilómetros de terra batida,
em plena selva, que a liga a Negomano,

administrador da onde as tropas portuguesas sofreram
Zambézia, dizia que uma pesada derrota em 25 de Novembro
o seu prazo tinha de 1917; cruzámos a fronteira através
fornecido 25 mil de uma ponte moderna, absurda, que
liga duas picadas entre o nada e lugar

carregadores ao nenhum e subimos ao planalto dos
exército e desses, macondes do lado da Tanzânia para
em 1919, havia visitar o velho forte alemão de Nevala,
ainda cinco mil por que os portugueses ocuparam durante
um mês; passámos em Mahuta onde

repatriar. Estavam uma emboscada a 4 de Outubro de 1916
“em tal estado que tirou a vida a 32 soldados e regressámos
fazia horrores olhar a Moçambique via Kilambo e Namoto.
para eles”
Ainda hoje as memórias da Grande
Guerra permanecem guardadas nessas

localidades pela tradição oral. Amisse

Juma, 76 anos, sabe identificar o lugar onde se instalou o quartel-geral

da quarta expedição, em Mocímboa da Praia. Martins Ibrahim Musse,

65 anos, sabe relatar as histórias dos soldados cujos restos mortais

permanecem no cemitério de Palma e lembra-se do dia em que muitos

foram desenterrados e transportados para Portugal. O mzê (senhor de

idade) Assani Abdel Remani Kimombo desconhece ao certo a sua idade

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

mas consegue detectar entre o mato as trincheiras que em 1916 as tropas
portuguesas cavaram em Namoto para se defenderem das investidas
alemãs que partiam do outro lado do Rovuma; Abdel Carlos John é capaz
de abrir caminho entre a selva com uma catana para, a alguns quilómetros
da aldeia, nos levar ao túmulo de um soldado alemão cuja cúpula, garante,
foi derrubada por um elefante. E em Negomano, na fronteira entre o
Cabo Delgado e o Niassa, Santos Salimo Mundogwan, 61 anos, conserva
as memórias que o seu avô, o régulo Malunda, lhe transmitiu do terrível
combate que em 25 de Novembro de 1917 opôs portugueses e alemães
numa das orlas da sua aldeia, no preciso lugar onde o Lugenda se funde
com o Rovuma. Santos Salimo Mundogwan recorda-se até do nome do
major Teixeira Pinto, o comandante das tropas nacionais em Negomano
que perdeu a vida com os primeiros tiros do cerco alemão.

Ponte da Unidade que liga Moçambique à Tanzânia

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

O regresso a esses lugares e a recuperação dessas memórias ajuda a

perceber o destino das expedições. Obrigadas a defender uma fronteira

com 720 quilómetros, tendo de cruzar um território muito maior do que

Portugal, num clima abrasador onde,

Há nesses relatos no Verão, a chuva potencia níveis de
humidade acima dos 90%, numa região

vontade de denunciar, sem estradas que obrigavam as colunas

mas é mais fácil a ter de abrir caminho entre a selva,
encontrar palavras sujeitos a permanentes ataques de feras
contra os hábitos dos e de enxames de mosquitos, os soldados
negros ou contra os portugueses foram sujeitos a uma missão
impossível. Sem treino específico,

monhés do que contra sem equipamento ajustado aos rigores
os oficiais ou contra os do mato africano, sem linhas de
políticos abastecimento que garantissem comida e
água, sem medicamentos nem hábitos de

higiene, tornaram-se presas fáceis de um

exército alemão com menos homens mas liderado por um génio militar,

Paul Emil von Lettow-Vorbeck, cujas tácticas de guerrilha em movimento

inspirariam todo o curso da guerra não-convencional do século XX, de Che

Guevara a Nguyen Giap, de Amílcar Cabral a Samora Machel.

A zona do conflito, entre os rios Lúrio e o Rovuma, era visitada pelos

portugueses desde os princípios da expansão, mas a sua posse efectiva

só se consumaria em Fevereiro de 1887, quando o coronel Palma Velho,

governador de Cabo Delgado, conquista a baía de Tungue ao sultão

de Zanzibar. De face voltada para a Índia, mas culturalmente próxima

da esfera do Islão, a costa era nessa época, como hoje, um mosaico de

povos que viviam da pesca e da agricultura familiar. Mais para o interior

dominavam os macuas, a sul do Lúrio, e os macondes e, já nos limites do

Lago Niassa, os ajauas. Para os soldados portugueses, na sua esmagadora

maioria provenientes das aldeias do interior, o Norte de Moçambique

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Pormenor da placa de monumento em Namoto com a inscrição: “As ossadas dos combatentes que aqui se
encontravam foram removidas em 1956 para o Ossário de Mocímboa da Praia inaugurado aquando da visita a
Palma de Sua Excia o Presidente da República General Francisco Craveiro Lopes”

aparecia-lhes como uma terra inóspita, maldita, povoada de leões que
entravam noite dentro nos acampamentos e devoravam carregadores
indígenas ou doentes dos hospitais de campanha, de formigas carnívoras,
de gente que comia ratos dos arrozais e dançava em trejeitos hedonistas
noite fora em batucadas.

Toda a área de conflito tinha sido concessionada à exploração da
Companhia do Niassa, em 1890, mas a obra colonizadora desta entidade
tinha sido nula. Os seus métodos “eram tudo o que havia de mais simples:
nem escolas, nem missões, nem hospitais, nem estradas. A sua actividade
cifrava-se na cobrança dos direitos da alfândega e no m’soco”, o imposto
de palhota, constatou o médico Américo Pires de Lima na sua memória
Na Costa de África. Poder-se-ia pensar que a experiência militar dos

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

portugueses em África, coroada com missões do tenente Valadim no
Niassa, onde morreu em combate em Janeiro de 1890, com a estratégia
baseada na violência dos “Centuriões” comandados por António Enes,
ou as façanhas de Mouzinho de Albuquerque na batalha de Marracuene,
de Chaimite, ou com a prisão de Gungunhana, em 1895, colocaria as
tropas portuguesas numa situação de vantagem face à curta vivência dos
alemães em África, que se tinham estabelecido na região dos Grandes
Lagos apenas em 1885. Puro engano.

Quando a primeira expedição comandada pelo coronel Pedro
Francisco Massano de Amorim, director militar das Colónias, chega a
Porto Amélia e desembarca do Durhan Castle, no dia 1 de Novembro de
1914, com 50 oficiais, 77 sargentos, 1400 soldados e 322 solípedes era
já possível perceber a dimensão do improviso. A falta de objectivos, a
ausência de preparação militar ou a carência de bens cruciais como
medicamentos iriam comprometer o esforço das tropas expedicionárias.
Massano de Amorim lamentaria mais tarde no seu relatório de campanha
o seu destino: “Sem caminho-de-ferro, que aqui é considerado um bluff,
sem linhas telegráficas, sem estradas, sem força militar… com ratoneiros
e bandidos em vez de polícias e sipaios, sem protecção de espécie
alguma aos indígenas… não é para admirar que à data de chegada da
expedição do meu comando aos territórios da Companhia do Niassa os
postos administrativos fossem uma vergonha, os militares uma irrisão,
a ocupação uma mistificação, a cobrança de impostos uma violência, a
subordinação do gentio uma utopia e a viação um esforço grosseiro”.

A expedição, baseada na actual Pemba, capital da província de Cabo
Delgado, passaria um ano em Moçambique dedicada a tentar suprir as
carências de mobilidade que comprometiam a acção de um exército
moderno, sujeito a deslocações de centenas de quilómetros com
toneladas de víveres e equipamentos. O seu legado para a expedição
que se lhe seguiu consistiu na instalação de uma linha telegráfica e na
construção de uma estrada que ligaria Porto Amélia a Mocímboa do

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Rovuma, com uns 450 km de extensão. Mas mesmo a permanência na
belíssima baía de Pemba, num ecossistema e num clima apesar de tudo
mais favorável que os de Palma ou de Mocímboa da Praia, não evitaram
que, de acordo com o historiador António José Telo, a expedição tenha
sofrido “21% de baixas por doença nos primeiros seis meses, sem entrar
em combate e mesmo sem sair de Porto Amélia”.

Nem esses dados alarmantes serviram de lição. Nada mudou na
preparação das expedições seguintes, que depois de Março de 1916
tinham de viver em estado de guerra declarada com os alemães. Pelo
contrário, a segunda e terceira expedições, com mais de seis mil soldados
da metrópole, acentuariam os erros da primeira. Numa das sessões
secretas da Câmara de Deputados e do Senado da República destinadas
a discutir a situação da guerra, que decorreram entre 11 e 31 de Julho de
1917, o líder do Partido Unionista, Brito Camacho, daria conta da lassidão
e negligência com que as missões eram preparadas: “Não é segredo para
ninguém que se têm mandado tropas para a África como se não mandam
reses para o matadouro”.

“A guerra dos outros”

Mais de 2000 soldados europeus mortos, uma derrota copiosa em
todas as frentes, a cedência aos ingleses do comando operacional após
o desastre do Verão austral de 1917: a linha de fronteira traçada pelo
curso do Rovuma tornou-se “o mais fantástico atoleiro da história militar
portuguesa moderna”, na opinião do historiador francês René Pélissier,
especialista no estudo do passado das ex-colónias portuguesas em África.
Cada relatório, cada fonte, militar ou civil, portuguesa ou alemã, oferece
visões desencontradas sobre os custos humanos da guerra entre os
soldados enviados da metrópole. Mas há nesta contabilidade um valor
aproximado, ao menos. O que se torna impossível em relação ao balanço
das vítimas entre a população local. Na Conferência de Paz, Portugal

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

avançou com uma estimativa de 120 mil mortos entre os habitantes do
Norte de Moçambique, mas é provável que haja aqui algum exagero
destinado a inflacionar o valor da indemnização que se estava a pedir à
Alemanha.

Mulher transporta na cabeça utensílios domésticos nas margens do rio Rovuma em Negomano, Cabo Delgado

Certo é que morreram muitas dezenas de milhar de nativos
moçambicanos. Menos os que vestiram a farda do exército português
e integraram as companhias indígenas, muitos mais os que foram
capturados nas suas aldeias natais e obrigados ao trabalho forçado
de carregador. Carlos Selvagem, um alferes que integrou a terceira
expedição, em 1916, olhava-os “com piedade, angulosos, nus, esquálidos,
tiritando de frio debaixo dos pobres farrapos da manta, aglomerados
em rebanho nos seus cercados de capim, deslocando-se lentamente,

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

em lentas filas de comboios, ajoujados sob os fardos que os esmagam,
e passivos, sonâmbulos, mecânicos, o olhar ausente, a face vaga, como
quem vaga no indefinido dum sonho remoto, duma remota visão de
palhotas e aldeias natais”.

No final da guerra, Gavicho de Lacerda, administrador da Zambézia,
dizia que o seu prazo tinha fornecido 25 mil carregadores ao exército e
desses, em 1919, havia ainda cinco mil por repatriar. Estavam “em tal estado
que fazia horrores olhar para eles”. Quantos terão morrido de fome, de
sede, de exaustão, de maus-tratos é impossível saber. Não faziam parte da
contabilidade administrativa do exército. “Não são homens porque não
têm nome; também não são soldados, porque não têm número. Não se
chamam, contam-se. Formam-se a varapau, põe-se-lhes uma carga à cabeça
e pronto”, lamentaria o sargento Cardoso Mirão, da expedição de 1917.

Ao infortúnio dos carregadores (só no ano final da campanha
foram recrutados 30 mil para apoio das tropas britânicas a operar em
Moçambique) junta-se a violência e as razias feitas por exércitos famintos
em marcha nos campos e armazéns dos aldeões. Com a presença do
exército no Norte de Moçambique, a Companhia do Niassa tratou
finalmente de cobrar impostos aos macondes, usando métodos que
arrepiavam até a sensibilidade dos soldados embrutecidos pela guerra.
“Um dia, em Mocímboa, vi chegar uma estranha procissão: à frente e
atrás, um sipaio [polícia indígena], no meio uma longa bicha de mulheres,
que foram metidas num redil de arame farpado. Surpreendido perguntei
a significação daquilo. Era a cobrança coerciva do m’soco [imposto de
palhota]. Como os pretos não pagavam, encarceravam as mulheres até
que os respectivos maridos, saudosos, as viessem resgatar pagando o
almejado m’soco”, lembraria Américo Pires de Lima, um alferes médico.
As sublevações indígenas, no Barué, perto da Beira, ou no planalto dos
macondes foram duramente reprimidas. No Norte de Moçambique, entre
Abril e Junho de 1917 foram incendiadas mais de 150 povoações maconde,
na contabilidade de René Pélissier.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Moçambique e os moçambicanos foram sem dúvida as maiores vítimas
da guerra, mas nem isso motivou qualquer interesse entre a comunidade
académica sobre o tema. António Sopa, historiador moçambicano da
época contemporânea, explica este alheamento dizendo que a I Guerra
Mundial é vista como “uma guerra dos outros”. Sem fontes escritas,
com os arquivos militares e coloniais transportados para Lisboa, resta
a memória oral como objecto de estudo. Ou a ficção, fácil de prosperar
numa guerra entre europeus errantes pela selva. O escritor João Paulo
Borges Coelho recuperou esse tempo para escrever o romance que lhe
valeria o Prémio Leya de 2009, O Olho de Hertzog. E pouco mais.

Uma guerra ainda viva

Logo após o conflito, nos anos 20, os militares e a História ainda se
dedicaram a tentar perceber as razões para o desastre na guerra do
Norte de Moçambique. Outros fizeram-no em tom de ajuste de contas.
Foi o caso do general Gomes da Costa, que em 1918 comandou a última
expedição a Moçambique e teve a oportunidade de arrolar todas as
omissões e de compilar uma síntese de todos os erros cometidos.
Escreveu o militar que encabeçaria o golpe de 28 de Maio de 1926 sobre
o estado de impreparação das missões enviadas para Moçambique:
“Não se conhecem nem os recursos militares das colónias, nem os seus
recursos económicos, nem a sua topografia; nem há cálculos feitos para
a quantidade de víveres necessários para um dado número de homens;
nem estudo da ração mais própria; nem contratos ou combinações para
os fornecimentos a fazer com regularidade; nem fixação das formas de
acondicionamento; nem estudo dos nossos navios para se conhecer
o que cada um pode transportar em homens, animais e carga; numa
palavra, nada há feito, nada se sabe, para nada serve”. As campanhas
em Moçambique desenrolaram-se “sem objectivo, sem plano, sem
nexo, até à derrota”.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Em 1926, uma Ordem do Exército que serviria de avaliação ao relatório
do comandante da terceira expedição, o general Ferreira Gil, acentuava
as responsabilidades dos políticos e desculpava os militares pelas perdas
materiais e humanas e pelas derrotas. “O estudo deste período da
campanha na África Oriental mais uma vez demonstra que as estações
superiores não puderam ou não souberam convenientemente preparar,
nem superiormente orientar a nossa intervenção militar nesse teatro
de operações. Em tudo se revela uma grande desorganização, a mais
completa ausência de previsão e de uma conveniente preparação, e
a carência de recursos em dinheiro e em material indispensável nas
campanhas coloniais, factores estes acrescidos com a falta de um plano
de guerra previamente estabelecido, onde tivessem sido fixados os
objectivos políticos e militares da nossa acção, como beligerantes, nesse

Velho forte alemão de Nevala, na Tanzânia, que os portugueses ocuparam durante um mês

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

teatro de operações. E, como se tudo isso não bastasse, foi ainda por
vezes agravado com a intervenção, nem sempre oportuna, de poderes
superiores aos Comandos das expedições na direcção das operações, e
com o fraco apoio que, também por vezes, foi dado a estes Comandos
pelo Governo central”.

Alguns dos soldados e oficiais que resistiram às agruras das campanhas
africanas elevaram o tom das críticas, publicando as suas memórias nos
anos finais da Primeira República. Na maior parte dos casos são relatos
vívidos, pungentes, mais destinados a celebrar o milagre da sobrevivência
do que em analisar as causas da incompetência do comando. São livros
que nos falam dos hábitos dos indígenas, que relatam o sofrimento das
grandes caminhadas, que descrevem os horrores da fome e da sede,
que situam as bases ou os campos de batalha, que narram detalhes do
quotidiano dos bivaques ou dos acampamentos dos indígenas. Há nesses
relatos vontade de denunciar, mas é mais fácil encontrar palavras contra
os hábitos dos negros ou contra os monhés (indianos) do que contra os
oficiais ou contra os políticos.

Ainda que o volume de obras memorialísticas da guerra em
Moçambique seja muito inferior às que se escreveram a partir da
experiência na Flandres, as suas narrativas são cruciais para se perceber o
que aconteceu aos cerca de 20 mil soldados que o Governo da República
enviou para travar os alemães (em Angola, onde os conflitos duraram
apenas entre 19 de Outubro e 18 de Dezembro de 1914, o número de
praças europeias ascendeu a 13 mil). Américo Pires de Lima, um médico
do Porto que se viria a destacar como professor universitário e como
criador do Jardim Botânico que ainda hoje existe na Rua do Campo
Alegre, deixou-nos uma ideia brutal do efeito que as doenças tropicais
provocaram nas expedições baseadas em Palma e em Mocímboa da Praia,
entre 1916 e 1917. Carlos Selvagem e António de Cértima relataram com
detalhes a marcha pela actual Tanzânia que culminou com a conquista e
abandono do forte alemão de Nevala. Cardoso Mirão, Ernesto Moreira dos

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Santos e José Teixeira Jacinto guardaram em texto a inenarrável odisseia
da Coluna do Lago, uma viagem desnecessária de 900 km pelo interior
da selva que acabou com as derrotas de Negomano e de Serra Mecula, em
Novembro de 1917.

A maior parte dessas memórias foi publicada na década que se seguiu à
guerra e, com excepção do livro Epopeia Maldita de António de Cértima,
ainda hoje um objecto de culto para os bibliófilos, caiu depressa no
esquecimento. Cardoso Mirão decidiu imprimir o seu Kináni (palavra
maconde que significa “quem vem lá” ou “quem vive”) já na vigência do
Estado Novo e, como seria de esperar, a obra foi censurada por instilar o
“derrotismo” no país e por conter relatos considerados “desprestigiantes
para o Exército Português”. O livro, emocionante, misto de tragédia e
de aventura, seria publicado em 2001. A memória de Teixeira Jacinto
permaneceu 70 anos guardada num invólucro de papel grosso, atado com

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

fio do Norte, até que há três anos o seu neto Armando Jacinto, um coronel
na reserva, a descobriu num baú – seria revelada em primeira mão
pelo PÚBLICO em Outubro de 2011 e entretanto publicada pela Câmara
Municipal de Espinho.

Com o Estado Novo, o processo de apagamento da memória avançou.
As derrotas da Primeira Guerra em África seriam anotadas como um
acidente de percurso, causado pela República jacobina, impreparada e
carente de sentido patriótico. Os valores do nacionalismo ou a glória do
Império coexistiam mal com as derrotas de Namoto ou Negomano. Os
mitos africanistas de Mouzinho de Albuquerque não se podiam associar
à tragédia de Nanguar ou da Serra Mecula. Craveiro Lopes, Presidente
da República entre 1951 e 1958, foi ainda capaz de visitar alguns dos
lugares do conflito em 1956, mandando recolher os restos mortais dos
soldados dispersos por vários campos de batalha e transladando-os para
Portugal ou para um ossário construído de propósito em Mocímboa da
Praia – hoje ao abandono. Mas esse seu gesto fez-se mais por um desígnio
pessoal do que pelo imperativo de moral pública. Craveiro Lopes fora um
alferes que, aos 23 anos, fizera parte da Coluna de Massassi e participara
na conquista de Nevala, em Outubro/Novembro de 1916. A sua bravura
na defesa do fortim conquistado aos alemães pelo curto prazo de uma
semana tinha-lhe merecido uma Cruz de Guerra. Era natural que um
militar que vivera as agruras da guerra na selva africana se preocupasse
em homenagear os que nela pereceram.

A guerra colonial regressaria a muitos dos lugares por onde andaram
os soldados portugueses de há cem anos. Francisco Dinis esteve em
Negomano até 1974 mas não se recorda de ter ouvido falar da batalha que
lá se travara 57 anos antes. Muitas das localidades que serviram de bases
aos soldados das quatro expedições entre 1914 e 1918 seriam usadas pelas
tropas coloniais que combateram a Frelimo quatro décadas mais tarde.
Muitos dos eixos de penetração da guerrilha foram muito antes abertos
pelas incursões alemãs. Entre estas duas gerações há, por isso, memórias

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

em comum. Em Mecula, um lugar remoto do Niassa, onde Agostinho
Mesquita sofreu um atentado com uma mina que o tornou deficiente,
morreu o tenente Viriato de Lacerda em Dezembro de 1917 vítima dos
ataques alemães.

René Pélissier considera que o facto de a guerra de libertação da
Frelimo se ter iniciado no território dos macondes, onde se deram as
mais duras batalhas da Grande Guerra e onde a população civil sofreu
as agruras da escravidão ou da pilhagem, não é por acaso. “Não se deve
esquecer que apenas 47 anos separam a ‘submissão’ de 1917 do início da
guerrilha da Frelimo”, escreve o historiador francês. A verdade é que as
marchas forçadas entre a selva no Niassa ou no planalto dos macondes,
as razias dos bens das populações, a violência sobre as mulheres ou a
escravidão da Grande Guerra dão corpo a uma linha de acontecimentos
que esteve longe de se concluir quando os alemães depõem as armas, a
11 de Novembro de 1918. Por muito que em Portugal essa guerra distante
tenha sido estranhamente engavetada na História, os seus efeitos
perduraram no tempo. E, como o PÚBLICO pôde constatar, ainda hoje
resistem na memória dos seus habitantes.

Notícia alterada a 29/7: Craveiro Lopes recebeu
a Cruz de Guerra e não a Cruz de Ferro

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21

Grande Guerra • Grandes Reportagens

A guerra inevitável
nas colónias portuguesas

No mês de Julho, o rio Rovuma, que faz a fronteira com a actual Tanzânia,
torna-se um pequeno regato fácil de cruzar

ManuelCarvalho (texto)eManuelRoberto(fotografia)

Maziúa, um posto remoto com uma pequena guarnição situado
nos confins do Niassa, foi atacado pelos alemães muito antes de
Portugal e Alemanha entrarem em guerra, em Março de 1916. O
incidente estava condenado a ficar esquecido com um pedido
de desculpas se não indiciasse um perigo maior. Depois de 30

22

Grande Guerra • Grandes Reportagens

anos de cobiça das grandes potências, a Grande Guerra tornou-
se uma ameaça real para o império colonial português. A sua
defesa tornou-se o único ponto de consenso nacional sobre a
participação na Guerra.

Quando a seca se acentua no Norte de Moçambique, lá para o mês
de Julho, o rio Rovuma que faz a fronteira com a actual Tanzânia
torna-se um pequeno regato fácil de cruzar e foi esse detalhe da
natureza que ditou a tragédia que se abateu sobre Maziúa naquela
noite de 24 de Agosto de 1914.

Maziúa era um pequeno posto administrativo esquecido nos confins
da selva do Niassa, e assim permaneceria, distante e ignorado, se numa
decisão inesperada os alemães não o tivessem arrasado sem aviso prévio.
Formalmente, Portugal e Alemanha não estavam em guerra (o que
viria a acontecer em Março de 1916); que se saiba, não houve nenhum
acto de provação da pequena guarnição do posto, comandada por um
sargento enfermeiro; seguramente, a existência de meia dúzia de homens
perdidos no mato, mal alimentados e desligados de qualquer estrutura
operacional, estava longe de ser uma ameaça fosse para quem fosse.

Ainda assim, nessa noite, um destacamento militar baseado na colónia
alemã da África Oriental atravessou o rio a vau e, num ataque surpresa,
massacrou a pequena guarnição de um sargento e meia dúzia de polícias
indígenas e incendiou as precárias instalações de Maziúa – há relatos que
apontam apenas para a morte do sargento. Documentos revelados no
pós-guerra dão conta de que a operação foi pensada e autorizada pelo
governador alemão da África Oriental Alemã, Heinrich Schnee.

Quando a notícia chegou a Lisboa, o país indignou-se. Ouviram-
se os protestos do costume, o Governo pediu explicações, os ardores
nacionalistas da ideologia republicana exercitaram-se. Semanas depois, o
país acalmou com pedidos de desculpa e esqueceu o incidente no meio de

23

Grande Guerra • Grandes Reportagens

um quotidiano feito de permanente crise política, de instabilidade social e
de radicalismo ideológico. Mas o aviso ficaria para sempre. Maziúa tornar-
se-ia a prova real de que a Alemanha estava atenta, que não perderia a
oportunidade para cumprir o velho desejo de se apropriar dos territórios
coloniais portugueses que faziam fronteira com as suas possessões – o
Norte de Moçambique e o Sul de Angola.

A equação colonial não foi o factor exclusivo que levaria Portugal
a entrar na Grande Guerra de 1914-18. Mas foi o factor crucial. A
legitimidade da jovem República já tinha sido reconhecida pelas potências
europeias mais recalcitrantes, onde se incluía a Inglaterra, em 11 de
Setembro de 1911. Mas o radicalismo do seu programa, a sua intolerância
religiosa, a precariedade do regime, acentuada pelas incursões militares
dos monárquicos de Outubro de 1911 e Julho de 1912 (houve sete governos
entre o 5 de Outubro de 1910 e Agosto de 1914) ou as severas condições
impostas aos presos políticos tornavam por esse tempo Portugal num
estado pária no concerto europeu. Para agravar o cenário, de Madrid
chegavam notícias que o rei Afonso XIII de Espanha fazia diligências em
Paris e Londres para obter o seu consentimento numa intervenção militar
em Portugal destinada a “pôr fim à anarquia”. Mas se estes factores
mobilizavam o desejo pela guerra entre as hostes republicanas reunidas
no Partido Democrático de Afonso Costa, a questão colonial estaria
sempre na primeira linha das preocupações nacionais.

O assalto a Maziúa, que aconteceu apenas três semanas depois de
a guerra ter sido declarada na Europa, era a prova de que a perda das
colónias era uma possibilidade real, fosse pela simples ocupação dos
alemães ou ingleses, fosse pela redacção de um posterior tratado de paz
na qual os territórios ultramarinos portugueses fossem usados como
compensação para as potências vencedoras. Não admira, por isso, que
“a defesa do território colonial e a entrada em guerra no teatro africano”
fossem “os únicos pontos no consenso nacional, tanto a nível das forças
politicas como da opinião pública”, escreve Nuno Severiano Teixeira no

24

Grande Guerra • Grandes Reportagens

seu fundamental ensaio sobre as causas da entrada de Portugal na Guerra.

Depois das grandes viagens de exploração no coração do continente

africano da década de 1880, a vulnerabilidade das pretensões portuguesas

ficara cruelmente exposta quando o velho aliado inglês entrega um

ultimato ao Governo na monarquia,

Devemos conquistar em 11 de Janeiro de 1890, exigindo o
novos territórios abandono dos territórios situados entre
fora da Europa, mau Angola e Moçambique que tinham
sido traçados a cor-de-rosa no mapa

grado os esforços das ambições coloniais de Lisboa. O
das nações menos ultraje, rapidamente capitalizado pelo
poderosas, como republicanismo, serviu de lastro para
Portugal ou espanha, a criação de uma nova consciência
nacional. “Desde o projecto do Mapa

para conservar as Cor-de-Rosa e, fundamentalmente,
suas colónias do ultimato inglês de 1890 que o
imaginário político português se revelava
Revista alemã em 1898 fortemente investido pelo sonho de

um império colonial”, escreve Nuno

Severiano Teixeira. Como escrevia Oliveira Martins ainda na ressaca do

Ultimato: “Só como país marítimo e colonial Portugal pôde afirmar a sua

autonomia: só assim poderá conservá-la”.

A defesa das colónias tornou-se um imperativo, por muito que aqui e ali

houvesse quem fizesse contas, registasse os prejuízos crónicos do Estado

nos negócios de Angola e Moçambique e recomendasse a sua venda

pura e simples. Apesar da pequenez demográfica e da penúria financeira

exacerbada pela bancarrota de 1892, Portugal não deixou de prosseguir

com as suas viagens de exploração nas zonas mais remotas de Angola

e Moçambique nem deixou de se aplicar em sucessivas campanhas de

pacificação das revoltas indígenas. Desses dois movimentos simultâneos

e complementares nasceu uma nova gesta de heróis que se desdobraram

25

Grande Guerra • Grandes Reportagens

em estátuas ou na toponímia
das cidades. Serpa Pinto,
Pereira de Andrada, Victor
Córdon, António Maria
Cardoso, João Azevedo
Coutinho, Caldas Xavier,
Alves Roçadas, António Enes
e, acima de todos, Mouzinho
de Albuquerque tornaram-
se os novos símbolos de uma
gesta que sublimaria em
África o drama de uma nação
falida e descrente.

O continente fatiado

A pacificação de Gaza com

a vitória de Chaimite e a

O conflito na fronteira do Rovuma eclodiu ainda antes prisão de Gungunhana, a 28
de as tropas comandadas por Francisco Massano de Dezembro de 1895, ou
de Amorim terem desembarcado em Porto Amélia, a presença de colonos no
actual Pemba, a 1 de Novembro, DR

coração da Zambézia capazes de controlar áreas (prazos) equivalentes

a metade de Portugal, como era o caso de António Maria Pereira,

pareciam criar condições para os amplos e ricos territórios da África

austral permanecessem sob a égide de Lisboa. Com as chancelarias

diplomáticas em modo de repouso, o problema maior estava na

ambição desse colono aventureiro que foi Cecil Rhodes, o fundador

da De Beers, ainda hoje a maior empresa diamantífera do mundo, que

lamentava não ter meios para “anexar os planetas” que via no céu

austral. Rhodes foi um permanente instigador de revoltas indígenas

contra os portugueses. E, na sua tarefa de “ajudar Deus” a tornar o

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Documentos revelados no pós-guerra dão conta de que a operação foi pensada e autorizada pelo governador
alemão da África Oriental Alemã, Heinrich Scnee, DR

mundo “mais inglês”, foi um dos maiores adversários da ambição
portuguesa no sul do continente africano.

Motivos não faltavam para Rhodes avançar com a sua estratégia. Uma
década após a Conferência de Berlim, realizada entre Novembro de
1884 a Fevereiro de 1885, quando a agitada partilha de África parecia ter
atingido os seus limites, havia ainda quem se declarasse insatisfeito. A
França joga os seus últimos trunfos com a ocupação de Madagáscar em
1895; a Inglaterra, que com o Ultimato a Portugal e o tratado de 1891 que
fixaria as fronteiras coloniais e imporia o direito de decidir sobre uma
eventual venda das possessões nacionais, garantira o projecto de unir
por caminho-de-ferro o Cabo ao Cairo, preparava-se para disputar as
prósperas repúblicas do Transval aos bóeres; e a Alemanha, empurrada
pela ambição da Weltpolitik do chanceler Bismark, não escondia a sua

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

insatisfação por ser o parente pobre do “scramble for Africa”, ao qual
chegara tarde e sem condições. É neste contexto de domínio imperialista
que se começa a avolumar um interesse pela partilha dos territórios
coloniais das potências mais frágeis, como a Bélgica, a Espanha e,
principalmente, Portugal.

Em 1898, uma revista alemã escrevia: “Nós devemos conquistar novos
territórios fora da Europa, sempre que a ocasião se apresentar, sem
renunciar a nada, mau grado os esforços das nações menos poderosas,
como Portugal ou Espanha, para conservar as suas colónias”. Faltava,
no entanto, uma oportunidade para consumar a “conquista” e a grave
crise financeira do Estado português criá-la-ia nesse mesmo ano. Londres
empenha-se em facilitar um empréstimo de 8 milhões de libras a um
juro de 3%. Como contrapartida, ficaria com as receitas das alfândegas
coloniais. Quando as primeiras notícias desta manobra de envolvimento
dos britânicos se torna conhecida, os alemães dispõem-se a participar
no negócio. No dia 30 de Agosto de 1898, Arthur James Balfour, ministro
dos Estrangeiros de Inglaterra, e o embaixador alemão em Londres
Melchior Hatzfeld assinam uma convenção secreta em que se acertam
os detalhes desse empréstimo. A Inglaterra ficaria com as cobranças do
Norte de Angola e do Sul de Moçambique, enquanto os alemães ficariam
com o controlo das áreas alfandegárias do Norte de Moçambique, o Sul
de Angola e Timor. Em caso de incumprimento, essas zonas alfandegárias
passariam automaticamente para a esfera de influência desses dois países.

O governo de José Luciano de Castro percebeu o perigo. Recusaria o
empréstimo alegando “perda de soberania”. Com o apoio tácito de uma
França hostil ao reforço das possessões dos seus rivais europeus, Lisboa
procura uma alternativa junto dos banqueiros Rothschild. De acordo
com os documentos analisados por Nuno Severiano Teixeira, os alemães
ainda pressionam os britânicos para obrigar Portugal a assinar o acordo
do empréstimo, usando “a força se necessário fosse”. Os ingleses, porém,
começam a tergiversar. A sua maior preocupação era já a guerra iminente

28

Grande Guerra • Grandes Reportagens

contra a república do Transval, dominada pelos bóeres, para a qual tanto

precisavam da neutralidade alemã como da cooperação portuguesa.

O apoio alemão aos bóeres, explícito e cimentado através de fortes

investimentos germânicos nas minas de ouro do Transval, era um

incómodo que, através do tratado, os britânicos tentaram mitigar. Mas

o sul de Moçambique, principalmente a zona de Lourenço Marques, à

qual, numa terminologia própria de

Quando num protectorado, os britânicos chamavam
acto imprevisto Delagoa Bay, era fundamental para
a logística militar da campanha no

de provocação os Transval. Era daí que partia uma linha
alemães cruzam de caminho-de-ferro, que Lisboa
a fronteira Norte nacionalizara em 1889, em direcção
de Moçambique e à mais importante cidade africana do
tempo, Joanesburgo. Em Agosto de

devastam o pequeno 1899, a passagem via Lourenço Marques
posto de Maziúa, de 500 toneladas de munições para a
tinha-se já percebido República da África do Sul tinha deixado
que, tarde ou cedo, Londres irritada e atenta ao perigo de
uma neutralidade efectiva de Portugal.

Portugal teria de se Em 1899 britânicos e alemães entram
envolver na defesa das em disputa sobre as Ilhas Samoa,
suas colónias Londres esquece a convenção sobre a
partilha das colónias nacionais e volta

a aproximar-se de Portugal, assinando,

sob a forma de declaração secreta, o Tratado de Windsor a 14 de Outubro

de 1899. De acordo com esse tratado, Portugal comprometia-se a proibir a

importação de material de guerra para o Transval via Lourenço Marques

no caso de uma guerra anglo-bóer (que eclodiria ainda nesse mês) e

autorizava o abastecimento dos navios britânicos nos portos da colónia.

Como compensação, Londres voltava a assumir os termos do tratado

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

de 1661, cujo artigo final obrigava a Inglaterra a “defender as colónias
portuguesas contra todos os seus inimigos presentes e futuros”.

O que a seguir se verificou parece justificar o regresso do espírito
de aliança entre os dois países, que ficara fortemente abalado com o
Ultimato de 1890. Em Dezembro de 1900 a esquadra britânica passa
por Lisboa. O rei D. Carlos visita a Inglaterra em Novembro-Dezembro
de 1902. Em Abril de 1903 é a vez do monarca britânico, Eduardo VII,
retribuir o gesto com uma visita à capital portuguesa. D. Carlos irá uma
vez mais a Londres em Novembro-Dezembro de 1904. Nesse ano, o
segundo tratado de Windsor é assinado. Em Portugal podia respirar-se
de alívio. O património colonial estava de novo a salvo, sob a protecção
por escrito da maior potência económica e marítima da época. A cobiça
das grandes potências tinha protegido o império. “O que se passou
na década de 90 em relação a África pode ser resumido da seguinte
maneira: Portugal dispunha de um bem que muita gente ambicionava
e que se pensava não tinha posses para manter; mas aqueles que
cobiçavam esse bem não se podiam verdadeiramente entender sobre
a maneira de o partilhar e, por isso, cada um deles tentava sobretudo
que não seriam os outros a aproveitar-se dele”, escreveu a propósito o
historiador Rui Ramos.

A turbulência na República

A instauração da República em 5 de Outubro de 1910 e o exílio do rei D.
Manuel II em Londres voltam a alterar o pano de fundo sobre o qual se tecia
o futuro do sonho colonial português. As dúvidas sobre o poder de Portugal
administrar territórios longínquos, várias vezes mais vastos do que o da
metrópole, multiplicaram-se. As críticas sobre a contratação de mão-de-
obra indígena em Angola ou o envio de força de trabalho de Moçambique
para as minas sul-africanas ganharam fôlego. O trabalho escravo em São
Tomé teve amplo eco na imprensa internacional, em boa parte fomentado

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

pelos interesses da poderosa Cadbury, uma produtora de chocolate
britânica. Pouco antes do eclodir da Grande Guerra, a exibição da cobiça
pelo património colonial português voltaria à actualidade.

Nas suas memórias escritas em 1925, o Primeiro Lorde do Almirantado
Winston Churchill haveria de confessar que “se ajudar a Alemanha
no domínio colonial era um meio para estabilizar a situação, esse era
um preço que nós estávamos dispostos a pagar”. Uma vez mais, os
britânicos moldavam o seu jogo de alianças em função da urgência dos
seus interesses. Paradoxalmente, e até ao dia em que o conflito mundial
eclodiu, nada prenunciava que os primos Guilherme II, o kaiser alemão,
e Jorge V, o rei inglês, pudessem entrar em guerra. É neste contexto que,
em 1912 e 1913, as chancelarias dos dois países recuperaram os termos
da convenção secreta de 1898. Sob o pretexto de possíveis agravamentos
e de contágio da instabilidade do regime republicano, Londres e Berlim
rubricam a 13 de Agosto de 1913 um novo acordo que rearranja o mapa
da partilha de 1898 e alarga o campo de possibilidades para poderem
partilhar Angola e Moçambique – Timor ficaria de fora, mas São Tomé
passaria para o controlo alemão.

Desta vez, com excepção do Niassa e de Cabinda, todo o território de
Moçambique e de Angola passariam para a influência, respectivamente da
Inglaterra e da Alemanha. E para que esse passo fosse dado, não estavam
em causa apenas incumprimentos financeiros: os dois países arrogavam-
se, por exemplo, ao direito de anexar os territórios coloniais portugueses
sempre que as autoridades nacionais não pudessem garantir a segurança
dos ingleses ou alemães que neles habitavam – “um critério vago e
essencialmente político”, como sublinha Nuno Severiano Teixeira.

Uma vez mais, seria a França a servir de amparo ao desagrado de Lisboa.
Paris protesta em Londres, alegando que esta aproximação à Alemanha
contrariava o espírito da Entente Cordiale que os dois países tinham
celebrado em 1904. O Presidente Poincaré consideraria os acordos como
“um triste exemplo de imoralidade diplomática”. Portugal, por seu lado,

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

pouco pode fazer. Consegue apenas ganhar tempo, convencendo Londres
a assinar o acordo apenas após a sua publicação. As pressões francesas
e portuguesas e a obrigação de tornar igualmente públicos os termos do
Tratado de Windsor, que em cerca medida contrariavam o espírito do
acordo anglo-alemão, criam um impasse. Quando a Alemanha, que preferia
manter o secretismo sobre o acordo, acede finalmente à exigência britânica
de assinar o tratado após a sua revelação pública, estávamos já em Junho de
1914. Um mês mais tarde a guerra eclodiria na Europa.

Em força para as colónias, parte I

Quando num acto imprevisto de provocação os alemães cruzam a fronteira
Norte de Moçambique e devastam o pequeno posto de Maziúa, tinha-se já
percebido que, tarde ou cedo, Portugal teria de se envolver na defesa das
suas colónias. Dias depois do princípio da guerra na Europa, a 18 de Agosto
de 1914, o Governo da República ordena o envio das primeiras expedições
para Angola e para Moçambique. O conflito na fronteira do Rovuma eclodiu
ainda antes de as tropas comandadas por Francisco Massano de Amorim
terem desembarcado em Porto Amélia, actual Pemba, a 1 de Novembro;
em Angola, as forças enviadas da metrópole, comandadas pelo experiente
Alves Roçadas, desembarcaram em Moçâmedes a 1 de Outubro e 18 dias
depois teria início a série de incidentes que acabaria no desastre de Naulila,
em 18 de Dezembro de 1914. Ambos os combates seriam, no entanto, o
prelúdio do que viria a seguir.

Derrotados pelos britânicos e pelos sul-africanos na frente da África
Ocidental, os alemães rumaram para a região dos Grandes Lagos,
no Tanganica. Seria aí que travariam entre 1916 e 1918 os mais duros
combates com as tropas portuguesas. Pressionados a Norte e a Oeste
pelos britânicos e pelos sul-africanos, que mobilizaram para o conflito
africano mais de 300 mil homens, a pequena força de 14 mil combatentes
alemães, liderada por um dos mais geniais estrategas militares da história,

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Paul Emil Von Lettow-Vorbeck, acabaria por atacar Moçambique logo
na Primavera de 1916 e centraria aí o essencial da sua ofensiva de 1917
e 1918. Os corpos expedicionários portugueses, apesar de maioritários
em termos de tropas europeias, apesar de disporem de mais e melhor
armamento, sofreram então uma série de reveses que tornam a
campanha africana da Primeira Guerra Mundial uma das páginas mais
vergonhosas da história do Exército nacional.

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Os “filhos espúrios” que a
República enviou para o Niassa

O paquete Moçambique atracado em África, local desconhecido MUSEU DA MARINHA

Manuel Carvalho

Durante os quatro anos da Grande Guerra em África milhares
de soldados portugueses habituaram-se a chorar em silêncio,
a maldizer o exílio forçado numa terra distante, a morrer
por falta de cuidados de saúde ou de preparação militar.
Muitos perceberam fazer parte de um exército à deriva mal

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

embarcaram. Outros, a maioria, nem sabiam o que era a Pátria,
nem a Guerra, nem os alemães, nem o Niassa onde tantos
acabariam por tombar.

Carlos Tavares de Andrade Afonso dos Santos ficou conhecido na
história da literatura portuguesa com o pseudónimo de Carlos
Selvagem, mas nos primeiros dias de Junho de 1916, quando era a
hora de recolher à sua camarata do vapor Moçambique que o levava
para a guerra na fronteira do Rovuma, no Norte de Moçambique, a sua
identidade literária soava a falso. Selvagem ficava perturbado e sensível.
Na escuridão do navio, na solidão do mar, rodeado por mais de mil almas
que entre a ignorância e o enjoo não tinham a mais breve ideia do que os
esperava, não conseguia fugir ao vazio, ao medo e à saudade. E chorava.
“Na escuridão, por pudor, pode livremente chorar-se, em silêncio, com
uma volúpia amarga. E chora-se, chora-se, mansamente, por muito
tempo. O que será de nós, em alguns meses?!...”

Desde tempos imemoriais que a resistência ao recrutamento e a fuga
à guerra insiste em contradizer as declarações grandiloquentes sobre
o patriotismo e a coragem. Assim foi na primeira Guerra Mundial e por
maioria de razão. A começar pelo estado do próprio exército, que era
calamitoso. Até 1910, uns 15 % de alistados eram refractários, o que
junto com as “sortes”, que poupavam uns poucos do serviço militar, e
“as remissões”, que subtraíam os filhos dos mais ricos à tropa, reduzia
o universo de recrutamento a 47% dos jovens masculinos. A República
acaba com esse modelo, quer um “exército da Pátria”, uma força
de milicianos, na qual o serviço militar seria obrigatório e onde não
haveria lugar a “remissões”. Mas, a que exército poderia aspirar um
país falido e mergulhado na convulsão de um regime revolucionário,
que ora perseguia o clero, ora “rachava” os sindicalistas que
organizavam greves?

35

Grande Guerra • Grandes Reportagens

No país em estado de sítio, era tarefa impossível conceder ao
exército condições mínimas de equipamento, disciplina e moral para o
transformar numa força credível. Entre 1914 e 1918 o governo da República
registou nove ministérios. Alguns, como os dirigidos por Bernardino
Machado ou o governo da União Sagrada, duraram meses (309 dias o de
Bernardino, um ano e 39 dias a União Sagrada). Outros duraram dias. E
João Chagas, vítima de uma tentativa de homicídio, não chegou sequer
a tomar posse como primeiro-ministro. Pelo meio houve a ditadura
de Pimenta de Castro, nos primeiros cinco meses de 1915, uma Junta
Revolucionária e uma Junta Constitucional. Pimenta de Castro sucumbiria
a um golpe de Estado. A 13 Dezembro de 1916 uma revolta de Machado
dos Santos, o herói do 5 de Outubro, mobiliza tropas em Tomar para
tentar derrubar a União Sagrada dirigida por António José de Almeida.

Produto de uma era de radicalismo, o exército estava dividido entre
monárquicos e republicanos, entre oficiais de carreira formados no

A fronteira do rio Povuma, PÚBLICO

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tempo dos reis e “jovens Turcos” contaminados pelos métodos da
Carbonária. Afonso Costa, a alma mater dos primórdios da Primeira
República, ferira ainda mais o espírito de corpo das forças armadas ao
retirar aos militares os mais elementares direitos políticos – o de votar
e de ser eleito. No princípio de 1915 o presidente Manuel Arriaga falava
abertamente do “antagonismo entre o Exército e a República”. Não era
caso para menos.

A indisciplina grassava nos quartéis e a penúria financeira atrasava
salários e minava a operacionalidade do equipamento. Em 1914, o ministro
da Marinha referia-se aos meios que geria (cinco cruzadores, um dos quais
blindado, dois contratorpedeiros, três submarinos e 13 outras embarcações)
como “um resto de marinha”. Quanto ao exército, o ministro da Guerra
confidenciaria a Brito Camacho, líder do Partido Unionista, em Janeiro de
1915: “Não digo que tem pouco; digo que não tem nada”. A guerra na era
industrial tornara-se um bem quase inacessível ao depauperado tesouro
nacional: “Uma divisão para a frente ocidental, nas contas do ministro
da Guerra, custava 35 mil contos, metade dos rendimentos anuais do
Governo”, refere o historiador Filipe Ribeiro de Menezes.

A mobilização em tempos de crise

As duras privações da Guerra foram causa de particular influência na
permanente instabilidade social que, em grande medida, contaminaria
a esfera da governação e minaria a disciplina e a moral do Exército. Os
factos mais graves relacionados com greves ou actos de insurreição social
ocorreram a 19, 20, 21 Maio de 1917, com motins e assaltos no Porto e em
Lisboa. Na capital registam-se 102 prisões numa só noite. O governador
militar da capital, Pereira da Eça, teve de decretar o estado de sítio para
controlar uma sublevação que provocou 23 mortos e 50 feridos. A 12 de
Julho o estado de sítio é novamente decretado para Lisboa por causa de
tumultos. Uma bomba provoca seis mortes e 28 feridos na capital. Neste

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período, que culmina com o golpe de Sidónio Pais, a 5 de Dezembro

de 1917, as invectivas contra a guerra tornaram-se muitas vezes meros

apêndices da hostilidade contra o regime. Um panfleto, intitulado “Alerta

Portugueses!” recordava: “A primeira

“A primeira leva de leva de 3000 homens (para África) já
3000 homens (para seguiu e em menos de um mês outras
se seguirão… Pensai nisso, Mulheres e

África) já seguiu e Mães portuguesas… Salvai da morte e da
em menos de um mês desonra vossos maridos e filhos e gritai
outras se seguirão… comigo: Abaixo a maldita República,
Pensai nisso, Mulheres morte aos traidores”.

Quando Carlos Selvagem, Cardoso

e Mães portuguesas… Mirão ou o médico Américo Pires de
Salvai da morte e Lima embarcam no Moçambique,
da desonra vossos que com as suas 6500 toneladas era o
maridos e filhos e maior navio da Companhia Nacional
de Navegação, não tiveram por isso

gritai comigo: Abaixo direito a despedidas solenes nem a
a maldita República, homenagens oficiais. Faziam parte
morte aos traidores da terceira expedição a Moçambique
e há muito que a sorte das tropas

Panfleto intitulado nacionais na guerra se tinha dissolvido
“Alerta Portugueses!” em esquecimento na luta diária pela

sobrevivência. Na expedição anterior,

que partira a 7 de Outubro de 1915, o oficial Júlio Rodrigues da Silva, na

sua Monografia do 3º Batalhão Expedicionário do R.I. nº 21 à Província

de Moçambique em 1915 , ainda se recorda de “três ou quatro pessoas” a

darem “vivas e bateram palmas ao batalhão” algures no meio da Avenida

da Liberdade. Meio ano mais tarde, o alferes médico Américo Pires de

Lima viveria uma experiência bem mais gélida: “Princípio de Junho, à

tarde, desfilou o batalhão de Campolide até ao Cais da Areia. Da parte da

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

tropa, marcha resignadas fatalista para o desconhecido. Nem entusiasmo,
nem desalento. Da parte do público, na longa travessia, a indiferença mais
completa, como se tratasse de um regimento que fosse fazer manobras
nos arredores da cidade. Nem interesse, nem sequer curiosidade; um
vácuo mais doloroso do que a própria hostilidade”.

Para os soldados, a partida para África tanto podia significar o
cumprimento de uma pena como uma porta para a salvação da miséria.
Alguns soldados foram porque tiveram de ir, apenas. Muitos integravam
regimentos que se envolveram em rebeliões contra os superiores,
contra a República ou contra a ordem pública, caso do 31 do Porto.
Muitos foram como voluntários. Um inquérito aos sargentos e praças do
Regimento de Cavalaria n.º 3, citado no livro A Primeira Guerra Mundial
na África Portuguesa, de Marco Arrifes, indica que 27 dos 74 inquiridos
se ofereceram para o ultramar por razões monetárias, 13 fizeram-no
por “motivos políticos”. Um foi por “desgosto”, outro “por ter sido
abandonado pela família”, um terceiro “por ter sido indicado por alguns
camaradas como chefe de um complot para matar oficiais e por isso
recear ser castigado”. Vinham de quarteis instalados em todo o país. De
Penacova, de Évora, mas principalmente das Beiras e do Porto.

Os primeiros contactos com a organização militar serviram para muitos
de prenúncio para o que viria a acontecer – um interminável rol de
exemplos de desorganização, irresponsabilidade, incúria e negligência.
Cardoso Mirão e quatro soldados que se ofereceram como voluntários
para formarem companhias indígenas partiram do Porto de comboio,
chegaram a Lisboa e no depósito colonial tiveram dormir no chão. Nem
capotes para o frio receberam. No Arquivo Histórico Militar conservam-
se as prescrições para o embarque, desde o numeramento de camas ao
local para os animais, a numeração de camas com giz, a localização da
pólvora, das munições e das armas (longe da humidade e da máquina), o
serviço de polícia e as brigadas de faxina tudo. Mas até entrarem no navio,
os soldados e oficiais tinham de resistir a embarques com dias de atraso,

39

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Bivaque de tropas portuguesas no norte de Moçambique AHM

onde a carne fresca chegou primeiro que as conservas de sardinha, onde
medicamentos ou equipamentos militares cruciais não foram carregados
para não atrasar ainda mais a viagem.

Pelas regras a bordo, o oficial mais graduado devia empregar todos
os esforços para proibir o jogo, para proibir o fumo fora dos locais a
isso destinados. Devia ainda providenciar para que as praças tomassem
banho. Em tese, estas exigências podem parecer simples de cumprir. Mas
era difícil conseguir aprumo, higiene e método numa legião de rapazes
recrutada no mundo rural de um país onde o analfabetismo rondava os
70% da população. “O nosso lapuz das Beiras e Alentejo – a grande massa
destas tropas – é, por natureza, por hábitos ancestrais, por desamor de
si próprio, desleixado e porcalhão”, lamentava Carlos Selvagem nas suas
memórias Tropa d’ África, Jornal de campanha de um voluntário no Niassa,
publicado em 1924”. Aquilino Ribeiro, que assistira ao eclodir da Guerra
em Paris, adivinhou logo o problema quando perguntou: “Em nome de

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

que justa, necessária causa, se podem despachar para o matadoiro os
meus pobres, ignorantes e pacíficos labregos?”. António de Cértima,
autor de uma das mais dramáticas memórias da I Guerra em Moçambique
(Epopeia Maldita) suspeitava que “às cegas, tinham trazido esta gente do
continente, como se fossem agarrados de sorrelfa pelos campos”.

Poucos dias depois do embarque, a maioria tinha já consumido o farnel
levado às docas pelas mães, mulheres ou namoradas. Os avisos sobre os
perigos dos “três ss” (saias, sol e sereno, o cacimbo que torna as noites dos
planaltos húmidas e gélidas) estavam já esquecidos. Durante o dia, a tropa
subia dos porões, fazia ginástica e tomava o banho forçado. Para evitar
o tédio e a nostalgia - até ancorarem nas baías do norte de Moçambique,
as expedições tinham de passar um mês no alto mar -, o comando da
terceira expedição organizou uma série de palestras sobre África e a guerra
moderna. Os resultados foram tão deprimentes que acabaram por ditar o
seu fim, para evitar danos maiores na moral das tropas. Os oficiais ficaram
com mais tempo para as horas de aborrecimento no spar deck, onde por
vezes Carlos Selvagem tocava piano.

Menos sorte tinham os soldados. Nas camadas inferiores dos navios, “nos
esconsos das cobertas e porões, com calor insuportável, cheiro nauseabundo
e repelente de centenas e centenas de criaturas com hábitos de porcaria
e receosas do contacto da água, nunca deixou de se jogar, principalmente
depois do recolher”, recorda o capitão Júlio Rodrigues da Silva. Ao fim de
alguns dias, “todo o navio é um rumoroso e turbulento quartel flutuante,
acoalhado de fasces tisnadas e imberbes, serapilheiras cinzentas de
uniformes, toques de clarins, restos de rancho coalhado, emporcalhando
todos os recantos dos porões e cobertas”, recordaria Carlos Selvagem.

A disciplina tornava-se ténue com o tédio, o medo e a falta de sentido
de corpo. “Alguns graduados não era sem receio que desciam aos porões,
onde a rufiagem refilava a qualquer ordem e deixava entrever as lâminas
das facas, a propósito de tudo ou nada”, continua Júlio Rodrigues da
Silva. António de Cértima teve de descer um dia a um desses porões

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e impressionou-se com os “dois centos e meio de homens que por ali
se amontoam rebolando-se sobre míseros colchões postos no chão
besuntados de gordura e vómitos”. A noite obrigava a que todas as luzes
fossem apagadas, até a das brasas dos cigarros, para evitar avistamentos
dos submarinos alemães que, entre outras vítimas, afundariam o Augusto
de Castilho, comandado por Carvalho Araújo, em Outubro de 1918. Nos
porões, na penumbra, os soldados que resistiam ao enjoo jogavam as
cartas ou recordavam o mundo que deixaram. Carlos Selvagem ouvia-
os da vigia do seu camarote a falar de saudades das “suas Marias”, do
descanso das tardes quentes de domingo, “dos alqueires de milho ou
almudes de vinho que tiravam com as colheitas”.

“Cegos, gagos, míopes, herniados…”

Para a maioria, África era uma abstracção e a defesa da pátria uma ideia
vaga. “A palavra Portugal ainda os emociona e enternece. A ideia Pátria,
porém, não lhes perturba as digestões nem o funcionamento regular do
sistema circulatório”, apontaria Carlos Selvagem. No caos da República,
não houvera tempo nem para lhes preparar a moral nem sequer para
os instruir com as armas. Na segunda expedição, as tropas aquarteladas
em Mafra, onde recebiam treino militar, rebelaram-se e como castigo a
sua partida para o ultramar foi antecipada. As consequências da falta de
educação militar foram trágicas e não passaram ao lado da atenção dos
contemporâneos. Uma parte do regimento 21 de Infantaria, punido com o
envio para África, chegou a Moçambique em Setembro de 1916, mas “em
meados de Janeiro um terço do seu efectivo estava absolutamente incapaz
de qualquer serviço”, denunciava o deputado Tamagnini Barbosa nas
sessões secretas da Câmara dos Deputados e do Congresso de Julho de
1917, dedicadas a debater a participação de Portugal na guerra.

Na expedição de 1917 “seguiram telegrafistas sem saberem ler nem
escrever. Artilheiros desconhecedores do material, infantes sem

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Princípio de Junho, instrução de tiro”, diria numa dessas
sessões o deputado Vasconcelos e Sá.

à tarde, desfilou No relatório de 1919 que deixou em sua
o batalhão de defesa, Sousa Rosa, comandante da
Campolide até ao Cais quarta expedição, confirmaria: “Para
da Areia. Da parte aqui vieram praças de engenharia
a quem só ensinaram canto coral;

da tropa, marcha praças de artilharia que nunca viram
resignadas fatalista montar e desmontar o material de
para o desconhecido. montanha nem com ele fizeram fogo,
Nem entusiasmo, tendo sido, neste clima depauperante
que se lhes tem ministrado instrução a

nem desalento. Da toda a pressa; praças de infantaria que
parte do público, mal sabiam carregar a espingarda”.
na longa travessia, Vasconcelos e Sá iria mais longe:
a indiferença mais “Tudo é possível quando vêm 1600
homens, soldados sem instrução nem

completa, como disciplina, na sua maioria rapazes de
se tratasse de um 19 a 22 anos, quando para África todos
regimento que fosse o sabem, são úteis para resistirem
fazer manobras nos devidamente ao clima homens feitos.
Quando 1000 homens do batalhão 14

arredores da cidade trazia talvez 200 dos seus soldados
que são raquíticos, tarados e outros
Américo Pires de Lima com doenças crónicas da tabela, que
Alferes médico

nem para a vida militar devem servir,

cegos de um dos olhos, gagos, míopes, herniados, etc…”, pouco havia

a fazer, lamentava Vasconcelos e Sá.

“Se há desastres em África, não provêm eles do menor valor ou de

menos competência dos nossos oficiais, ou do medo ou cobardia dos

nossos soldados, mas da insuficiência da instrução e da pobreza do

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material”, diria Brito Camacho, líder do Partido Unionista, na oposição,
falhas que atribuía à prioridade dada pelo Governo aos efectivos enviados
para os campos de batalha na Flandres. Com pouca razão no que diz
respeito à “pobreza do material”, porque, sendo, de facto, pobre e
em muitos casos antiquado, o armamento dos soldados portugueses
era bem melhor do que o dos alemães esquecidos da África Oriental,
como assinalou o historiador António José Telo. Com toda a razão
quando mencionava a “insuficiência da instrução”, que além de ter
consequências dramáticas nas manobras militares teve custos humanos
ao nível da saúde.

O problema da comida e da água

Para os doentes havia regras que lhes garantiam alimentação melhorada.
Pelo menos aos que estavam nas enfermarias, já que as fomes por
que passaram os soldados da Coluna do Lago ou as agruras dos que
se aventuraram no território da actual Tanzânia para conquistar o
forte alemão de Nevala nem sempre toleraram os comportamentos
de humanidade normalmente dispensados aos enfermos. De resto, a
qualidade dos alimentos deixava muitas vezes a desejar. “O leite, ao
serem abertas as latas, geralmente aparecia podre e exalava um cheiro
repelente. Imagine-se o espectáculo de um desgraçado, cheio de febres,
a vomitar tudo, a quem se dava, como mimo dietético, uma lata de leite
que, ao ser aberta, espalhava um perfume capaz de fazer vomitar as tripas
a um avestruz”, desafiaria Pires de Lima.

Num exército estratificado pela condição racial e pela necessidade de
recrutar milhares de carregadores que viabilizavam a logística das colunas
que se aventuravam na selva, a dieta alimentar era muito variada. As
ordens dadas aos provisores impunham normas para acondicionamento
dos víveres, o seu registo detalhado, as horas do rancho quando a
coluna estava em marcha ou estacionada, os mecanismos de requisição.

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Nas regiões remotas, o provisor, a quem competia gerir o depósito de
alimentos, “terá de lançar mão a todos os recursos da região”, prescreveu-
se. Comprará os géneros “que puder obter como: feijão, ovos, galinhas,
bois, carneiros, cabritos, porcos, sal, hortaliças e milho, o qual fará moer
à moda da região”. Procurará “informar-se se na região há comerciantes,
pagando se tiver recursos, passando requisição no caso contrário”. Para
isso, “deverá munir-se da moeda comercial da região, dinheiro ou panos”.
As taras dos géneros, como sacas, barris, caixas, “podem servir de objecto
de permuta com os indígenas”, lê-se nos regulamentos existentes no
Arquivo Histórico Militar.

Como facilmente se compreende, na maior parte das vezes, os
alimentos eram simplesmente saqueados aos indígenas – “requisitados”,
no jargão militar. Quando tal era possível, ao menos. A Coluna do Lago,
perdida na imensidão do Niassa, chegou a um ponto do território onde
nada havia para comprar nem para “requisitar”. Sobreviveu através do
recrutamento de três caçadores. Do nada, quase como mistério, chegam
à coluna Regina Pietro, o “Pitala”, italiano do Piemonte, “fino com o
vime e rijo como o aço, há muitos anos perdidos pelas florestas negras do
Niassa”, Elias, um grego, “corpo alto e mal feito, de orelhas recortadas em
renda de bilros”, e Kassan, “um indiano negro e pequenino, mas muito
vivo e inteligente”, na memória de Cardoso Mirão. Foi a sua salvação.

Quando o sistema logístico das colunas de carregadores funcionava
(ou quando havia estradas abertas e câmaras-de-ar para os camiões
Kelly), os soldados europeus alimentavam-se de rações que António José
Telo considera “ pouco apropriadas para Europeus em África, levando-
se grandes quantidades de bacalhau, sardinhas em lata e, sobretudo,
o chamado rancho confeccionado”. Gomes da Costa, o general que
comandaria a última expedição a Moçambique e que deixaria para a
posteridade um libelo acusatório arrasador para os governos da República
sobre as suas responsabilidades na derrota, considerava o rancho
confeccionado “a invenção mais infame que se conhece”.

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O momento mais comovedor da vida dos soldados era sem dúvida a

chegada do correio. Entre a anarquia administrativa, o serviço postal

parecia ser um milagre. Que se revelava até em zonas remotas como

Metarica, no Niassa. Para lá chegar, uma carta enviada de Lisboa teria

de passar por Lourenço Marques, subir à Beira e depois a Mocímboa

da Praia, subir o Zambeze, passar por Chinde, o Chíndio, Luchenza,

Fort Johnston, Zomba, Blantyre, no actual Malawi, até apanhar uma

eventual missão de carregadores em direcção ao interior. Quando

chegava o correio, “o coração

O nosso lapuz das sobressalta-se, ruborizam-se as faces,
Beiras e Alentejo e instantaneamente nos tornamos
insociáveis”, lembraria Cardoso

– a grande massa Mirão. Quanto chegava a hora de
destas tropas – é, responder, os soldados tinham “pressa
por natureza, por em esquecer por momentos a guerra,
hábitos ancestrais, a selva, a fadiga e as privações, para
pensar afincadamente nas páginas de

por desamor de si recomendações, beijos e saudades a
próprio, desleixado e mandar à família com a afirmação,
porcalhão quantas vezes falsa, duma saúde que
não existia”.

Carlos Selvagem nas suas Nesses momentos fugazes,
memórias Tropa d’ África “deixávamos o ar selvagem e brutal

que a selva nos emprestava para nos

tornarmos de novo homens, enternecidos e sentimentais, revendo a casa,

a terra, os amigos, emocionados pelas recordações da família e mais que

nunca saudosos da pátria e do lar”. Depois, quando o papel se esgotava,

“recorríamos aos livros das companhias, surripiávamos as folhas dos

cadernos da ordem, e por último, reduzidos à expressão mais simples,

aproveitávamos o papel de embrulho dos caixotes da massa e da bolacha,

cujos bordos endireitávamos à faca, a fingir de papel de carta”.

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Nas memórias que deixaram, os soldados e oficiais que foram para a
guerra em Moçambique evocam muitas vezes o dia do regresso como
um desejo impossível. A baixa por doença era sempre um caminho para
casa mais provável do que a vinda de tropas para substituição. Para
Pires de Lima esse dia chegou em Outubro de 1917, quando aportaram
a Mocímboa da Praia médicos frescos. “Após 16 meses de trabalho
intensivo e ininterrupto”, teve baixa ao hospital e foi proposto à junta
de Lourenço Marques, que a meio da guerra e perante o número
alarmante de enfermos, teve a incumbência de validar ou invalidar
as decisões dos médicos de campanha. No final de Novembro toma
o vapor Quelimane em direcção a Lisboa. Em Freetown, Serra Leoa,
juntam-se a um comboio de barcos que receberia protecção da marinha
britânica na viagem até à Europa. Um dia, pela manhã, avista finalmente o
estuário do Tejo e respira de alívio. Sobrevivera.

As primeiras notícias que recebe em Lisboa “foram profundamente
tristes”. Souberam do desastre de Negomano, a mais severa derrota das
tropas portuguesas em Moçambique. Depois, ficaram no Tejo parados
durante horas. No cais, viu “algumas mulherzinhas do povo, as únicas
mulheres portuguesas (além da família dos expedicionários) que assistiram
ao desembarque. Levantaram altos gritos de revolta e compaixão, ao verem
os soldados esqueléticos, macilentos e esfarrapados que chegavam de
Moçambique”. Como na partida, o regresso a casa decorreu num cenário
de indiferença das autoridades. “A esperar-nos, ninguém, nem a Cruz
Vermelha, na hipótese, infelizmente verdadeira, de trazermos doentes, que
careciam de ser transportados em maca”. E sentiu “mais uma vez o travor
amargo da injustiça, que pesava sobre os meus pobres soldados, assim
imerecidamente tratados como filhos espúrios”.

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O convívio com a morte
na baía do Tungue

Palma é uma pequena localidade que, entre Abril de 1916 e Junho de 1917, foi o epicentro das operações
do exército português no Norte de Moçambique

ManuelCarvalho (texto)eManuelRoberto(fotografia), em Palma

Em Março 1916, logo após a declaração de guerra da Alemanha,
as tropas portuguesas viajam para Palma, a uns escassos 20 km
da fronteira do Rovuma. A reconquista de Quionga prenunciava
uma campanha brilhante. Mas depois vieram os desastres. O
de Namaca e o da própria Palma, onde hoje um cemitério de

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soldados transformado em lixeira serve de testemunho de uma
expedição dizimada pelas doenças, pela fome e sede, pelas balas
alemãs, pela vaidade e pela incompetência.

Na entrada do cemitério de Palma há uma lápide que, por milagre,
ainda emerge entre o lixo e o mato. Indica o lugar onde foi
enterrado o tenente miliciano Francisco Luiz D’ Abreu Amorim
Pessoa, morto na manhã de 27 de Maio de 1916 quando as tropas
portuguesas tentaram pela primeira vez atravessar a fronteira do rio
Rovuma e invadir o território da África Oriental Alemã.

Naquele cenário de abandono, ingratidão e sujidade, a lápide
que atesta a “saudade eterna” da sua mulher Emília parece um acto
premeditado de resistência da memória de Palma. A pequena localidade
que, entre Abril de 1916 e Junho de 1917, foi o epicentro das operações
do exército português no Norte de Moçambique foi apagando ao longo
dos anos todos os sinais que registou Primeira Guerra. Hoje resta esse
cemitério transformado em lixeira e pasto de cabras e galinhas, rodeado
de palhotas, a dez metros de uma praia de coqueiros, no qual apenas a
sepultura do tenente miliciano que nasceu em Soure continua em pé.

Martins Ibrahimo Musse lembra-se do tempo em que o cemitério estava
cercado de um muro alto regularmente caiado e tem ainda bem presente
na memória os dias em que alguém lhe arrancou o portão de ferro e abriu
o seu interior aos despojos e aos animais. Da sua casa, mesmo em frente
à entrada do cemitério, viu a mobilização de homens e de máquinas que
em 1972, de acordo com a sua memória, removeram os restos mortais
dos soldados da Primeira Guerra e os transportaram para lugar incerto.
“Só ficaram as duas filas da frente”, diz Martins. Desde então que este ex-
combatente do exército colonial vitimado por uma mina que rebentou em
Nangade, em 1972, e o remeteu para uma cadeira de rodas partilha com
o cemitério e com os restos mortais de Francisco Luiz D’ Abreu Amorim

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Pessoa um mesmo e triste destino: o do

Desde então que esquecimento absoluto por parte do
este ex-combatente Estado português.
do exército colonial
vitimado por uma Pouco mais de meio ano antes de
morrer no Rovuma, o tenente do 3º
Batalhão de Infantaria 21, baseado

mina que rebentou em Penamacor, ouviu o discurso do
em Nangade, em presidente da Câmara local que avisava
1972, e o remeteu os soldados do “pesado sacrifício”
para uma cadeira de que iriam cumprir na sua missão. Três
dias depois, no dia 7 de Outubro de

rodas partilha com 1915, Francisco Pessoa embarca para
o cemitério e com Moçambique. Fazia parte da segunda
os restos mortais expedição, comandada pelo major
de Francisco Luiz Moura Mendes, com 1670 soldados
europeus. Um mês mais tarde, a 7 de

D’ Abreu Amorim Novembro, as tropas desembarcam em
Pessoa um mesmo Porto Amélia, actual Pemba, e por lá
e triste destino: o ficam até Portugal e Alemanha entrarem
do esquecimento formalmente em guerra, a 9 de Março
de 1916. Nesse mês, um destacamento

absoluto por parte comandado pelo major Portugal da
do Estado português Silveira embarca nos vapores Luabo e
Zambeze e dirige-se para Palma, uns 250

quilómetros a Norte, já a curta distância

da fronteira com a actual Tanzânia, na época território colonial alemão.

Os dias de preparação e da logística estavam a acabar.

Palma, no coração da baía de Tungue, é ainda hoje um bom exemplo

dos postais de praias paradisíacas. A plataforma continental entra

vagarosamente pelo mar dentro e na maré vaza é possível entrar e

caminhar pela água quente do Índico até longas distâncias da praia.

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