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Na passagem dos 100 sobre o início da I Guerra Mundial

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Published by madroal, 2019-08-16 13:53:30

I Grande Guerra

Na passagem dos 100 sobre o início da I Guerra Mundial

Grande Guerra • Grandes Reportagens

Ao longe, nas coroas da baía, extensos areais brilhantes servem de
cenário a palmares que se recortam entre o azul-turquesa do mar.
Conquistada em Fevereiro de 1887 pelo coronel Palma Velho ao sultão
de Zanzibar, ainda hoje, e ao contrário da maioria dos topónimos de
origem portuguesa, conserva o nome do herói colonial. Quando a
segunda expedição lá chegou era uma pequena aldeia de pescadores
que viviam nos terrenos arenosos, debaixo de coqueiros, onde ainda
hoje resistem as ruínas do cemitério militar.

As primeiras ofensivas

A primeira missão dos homens de Moura Mendes era resgatar para a
soberania nacional o triângulo de Quionga, uma área de 450 quilómetros
quadrados de machambas pobres e palmares junto à embocadura
do Rovuma. Os alemães haviam ocupado esse território sem aviso
prévio nem explicações em 1894, e para o Governo da República a sua
recuperação era a primeira de todas as prioridades. As tropas de Moura
Mendes tiveram por isso menos de um mês para se instalarem em Palma
e para prepararem a ofensiva. No dia 10 de Abril de 1916, às quatro e meia
da madrugada, um destacamento com três homens a cavalo e 350 a pé
deixa a baía do Tungue e faz-se ao caminho para vencer os cerca de 25
quilómetros de um planalto sobranceiro ao mar até Quionga, Às onze e
meia, a bandeira portuguesa era hasteada na pequena localidade.

Quionga caíra sem um tiro – um “pequeno cãozito foi a única
resistência” que as tropas nacionais encontraram, como mais tarde
recordaria o capitão Júlio Rodrigues da Silva, citado no livro de Ricardo
Marques, Os Fantasmas do Rovuma. Mas em Lisboa a primeira façanha do
exército no palco de Moçambique foi exaltada com a mesma solenidade
dos feitos militares de Mouzinho de Albuquerque ou das aventuras
exploradoras de Serpa Pinto. Portugal daria aos “heróis de Quionga”
o nome de ruas, o parlamento enviou felicitações, emitiu-se um selo

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O lugar onde foi enterrado o tenente miliciano Francisco Luiz D’ Abreu Amorim Pessoa

comemorativo e logo a 11 de Abril o jornal A Capital exultava: “Para as
afrontas que da imperial nação de bandidos recebemos, soou finalmente
a hora do desagravo. Há uma justiça imanente que se manifesta,
tardiamente embora, perante a qual têm de curvar-se os altivos exércitos
do kaiser e são inúteis as suas tremendas máquinas de guerra”.

Quionga, hoje como há um século, é uma aldeia remota, pobre e
pacata. O médico militar Américo Pires de Lima visitou-a um ano depois
da reconquista. Saiu de madrugada de Palma, num camião Kelly. “A certa
altura a paisagem mudou de repente. Para lá de uma trincheira aberta
no solo, o aspecto era totalmente diverso. Em lugar do matagal virgem
e bravio, era um terreno cultivado, como se tratasse de um jardim. Um
pouco para o lado do mar, não se via, mas informaram-me, era uma
plantação de 500 mil coqueiros”. Para ele, Quionga era “um mimo,

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comparada com Palma”. Apreciou as “casas confortáveis, com largas
varandas coloniais”, a ladearem “a rua principal, bem arborizada”.
Sublinhou a existência de “uma casa de dois andares, de alvenaria”, que
“dava uma nota europeia se não estivesse coberta de folgas de palmeira”.
A casa ainda existe, em ruínas. A avenida larga conserva as suas árvores
enormes. No centro, ainda se podem ver os vestígios de um monumento
aos combatentes de Quionga, do qual resta apenas o esboço de uma cruz
de Cristo na sua base.

As trincheiras entre a selva

A facilidade com que Quionga regressou à soberania nacional
entusiasmou o comando militar e ainda mais os responsáveis da
República em Lisboa. Recomposto o mapa da colónia, estava na hora
de o ampliar com conquistas. Do outro lado do rio Rovuma estava o que
restava do império colonial alemão, que nessa altura tinha já cedido aos
franceses e aos britânicos os seus domínios no Sudoeste Africano e nos
Camarões. No mês seguinte, colunas portuguesas partem de Quionga e
seguem as margens do Rovuma à procura de pontos de travessia. Uns 15
quilómetros a montante, em Namoto, onde hoje existe um dos dois postos
fronteiriços entre Moçambique e a Tanzânia, descobrem um pequeno
planalto sobranceiro ao rio onde se constroem fortificações.

Nos anos que se seguiram, o pequeno forte foi sendo sucessivamente
ocupado e perdido entre portugueses e alemães. Assani Abdel Remani
Kimombo, o chefe da aldeia de Namoto, que diz ter “talvez mais de 90
anos”, leva-nos ao que resta de umas trincheiras mesmo por detrás do
posto alfandegário. “Era aqui o quartel dos alemães”, diz, embora o tenha
sido, pelo menos originalmente, dos portugueses. Ao seu lado, o chefe
de Quionga, Sahid Momad Agostinho, que nos acompanhou até Namoto,
aponta os limites das fortificações e garante que, “há muitos anos os
muros de terra eram mais altos”. Ainda assim é possível distinguir entre

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Casa em frente ao cemitário de Palma. o mato o fosso do fortim e os
Assani Abdel Remani Kimombo, o chefe da aldeia de Namoto muros de protecção onde os
soldados se albergavam do
fogo inimigo.

Namoto, onde se chega
depois de 40 quilómetros de
terra batida desde Palma, é
um lugar cheio de memórias
da Grande Guerra. Assani
Abdel Remani Kimombo ou
Sahid Momad Agostinho,
cujo pai trabalhou para os
alemães, são capazes ainda
hoje de as identificar. Com
erros e lacunas, próprios do
desgaste a que a tradição oral
sujeita os factos, mas com
conhecimento do essencial.
Numa caminhada de dois
quilómetros por um trilho
ameaçado pelo avanço da
selva, onde elefantes, leões
e várias espécies de macacos
vivem livremente, foi possível
encontrar um sepulcro
atribuído a um oficial alemão.
Abdel Carlos John, que fala
razoavelmente português
e vive há anos em Namoto,
levou lá há dois anos uma
alemã que andara à procura

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de um seu antepassado. O pináculo da sepultura foi derrubado por um
elefante, diz Abdel. Não há nenhum relato nem nenhuma inscrição capaz
de justificar a estranha aparição daquele túmulo no meio da selva.

Na zona circundante de Namoto, as tropas portuguesas foram fixando
posições, sempre ao longo do rio, até uma distância de 50 quilómetros da
foz. Hoje é difícil saber onde fica Namaca ou Namiranga ou Nachinamoca.
Nhica, o outro ponto da rede, permanece na toponímia. Não há dúvidas
porém que, nesta linha defensiva, Namoto seria o ponto mais importante.
Por isso é alvo de um primeiro ataque por parte dos alemães logo a 23
de Abril de 1916, domingo de Páscoa, levando à debandada dos oficiais
e dos soldados indígenas que o ocupavam. A ousadia alemã suscita
receios. Ao contrário da pressa habitual, de Lisboa chegam telegramas
recomendando prudência. Era melhor esperar pelas tropas da nova
Expedição, que se preparava na metrópole, ou pela vinda da infantaria
montada da Guarda Republicana de Lourenço Marques antes de assumir
riscos com novas ofensivas.

Os conselhos, porém, não produziram efeito. Nada parecia capaz
de travar o plano de travessia do Rovuma, que por esta altura do ano
apresenta um baixo caudal e deixa a enorme extensão do seu leito de
cheia entregue à areia ou a ilhotas onde crocodilos e hipopótamos se
recolhem. No final do mês, estava já determinado que a passagem para
a margem Norte do Rovuma se faria em duas colunas, separadas por
uma distância de 1500 metros, que partiriam em simultâneo de Namaca
e Namiranga. Para que não faltasse solenidade ao acto, o Governador
de Moçambique, o influente Álvaro de Castro que em público gostava
de se apresentar como pessoa de um “acrisolado amor pela República”,
chegara a Quionga a 20 de Maio a bordo do Moçâmedes.

Um dia depois, começam as hostilidades. O cruzador Adamastor e a
canhoeira Chaimite subiram o rio, em reconhecimento, e impuseram
a sua presença com uma operação de bombardeamento. Duas lanchas
aportam na margem alemã, junto a um posto designado Fábrica, e

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incendeiam palhotas e paliçadas. A 23 a ousadia repete-se, mas, desta

vez, a resposta alemã é enérgica. Morrem três soldados portugueses

e seis ficam feridos. A 24, tropas desembarcam na ilhota de Namaca,

a 150 metros da outra margem e preparam-se para o assalto. Mas

ao contrário das mais elementares

Palma, no coração recomendações de prudência, em vez
da baía de Tungue, do silêncio furtivo que antecipa as
é ainda hoje um bom operações militares, durante essa noite
os soldados transformam a ilhota num

exemplo dos postais de arraial: “Os pretos acendiam fogueiras
praias paradisíacas. e os brancos gritavam, produzindo-
A plataforma se o rumor característico dos grandes
continental entra ajuntamentos”, recordaria o capitão
Júlio Rodrigues da Silva. A 26, um novo

vagarosamente pelo bombardeamento naval encontra como
mar dentro e na maré resposta o silêncio da outra margem.
vaza é possível entrar Chegara a hora da invasão.
e caminhar pela água
Álvaro de Castro está na balaustrada
do Adamastor nesse dia 27 de Maio de

quente do Índico 1916. Às nove da manhã começa a assistir
até longas distâncias ao desastre. Pelotões dos regimentos
da praia 20 e do 21 lançam-se para a outra
margem em pequenos botes. “Quando

estavam talvez a cem metros da margem

esquerda rompe sobre eles um verdadeiro dilúvio de balas enviadas pelas

metralhadoras que os alemães possuem”, nota a memória de António

Eduardo Silva, citado por Ricardo Marques. Américo Pires de Lima,

que não viveu a tragédia em directo, corrobora a falta de prudência, o

aventureirismo e o desprezo dos comandos pela vida dos soldados. “Os

nossos, no meio do rio, completamente a descoberto e sem defesa, foram

literalmente trucidados e, em poucos minutos, daquela tropa confiante

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Quionga, hoje como há um século, é uma aldeia remota, pobre e pacata

só restavam montões de cadáveres nos barcos que derivavam pelo rio
abaixo, ao sabor da corrente”, recorda.

Às 15h30, o combate estava acabado. Os alemães não tiveram baixas.
Do lado português contaram-se três mortes de oficiais e de 30 praças.
Quatro oficiais e 24 praças ficaram feridos. Seis soldados acabaram
prisioneiros ao tentarem a salvação na outra margem. O corpo de
Francisco Luiz D’ Abreu Amorim Pessoa seria transportado para
Palma, onde foi sepultado e onde ainda hoje se encontra. Outros foram
enterrados em Quionga ou no cemitério que ainda hoje persiste no
planalto de Namoto. Em tempos, havia neste local, a um quilómetro do
centro da pequena aldeia de Namoto, uma machamba da família do mzê
(ancião, em suaíli) Assani Abdel Remani Kimombo. Hoje a selva tomou
conta do cemitério.

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Chega-se lá com dificuldade. À frente, Abdel Carlos John tem de
desbravar o caminho com uma catana. A experiência ajuda a perceber
a dureza da vida dos soldados naquele local distante. A cada passo há
que evitar as micaias, uma planta com espinhos infecciosos, o feijão
macaco, que causa uma urticária irritante, e principalmente os tapetes de
formigas que pintam de preto vários metros do trilho. Por muito que se
corra é impossível evitar que se colem aos sapatos e subam pelas pernas,
assinalando o seu trajecto com dolorosas mordeduras. Por fim, algures
entre um trilho recente de elefantes, um singelo monumento indica o
lugar onde um número indeterminado de soldados que pereceram na
tentativa de travessia ou nos combates posteriores foi sepultado. Uma
placa informa que “as ossadas dos combatentes da Guerra de 1914-1918
que aqui se encontravam foram removidas em 1956 para o ossário de
Mocímboa da Praia inaugurado a quando da visita de S. Ex.ª o Presidente
da República General Craveiro Lopes”. Sob o zumbido dos insectos, com
a vista do enorme leito do Rovuma pela frente, o lugar impressiona pela
sua dramática beleza.

Depois dessa data fatídica de 27 de Maio, restava à segunda expedição
e ao seu comandante, o major Moura Mendes, esperar pelo final da
comissão de serviço. Os danos causados pela derrota de Namaca foram
devastadores. Nos dias que se seguiram à derrota, Quionga recebeu
os “espectros” vindos da margem do rio. “Os que não ficavam para
sempre no caminho, chegavam num estado lastimoso: faces macilentas e
encovadas, olhos brilhantes de febre, expressão parada de imbecilidade,
barba e cabelo crescidos, maltratados, capacetes amarrotados e sujos,
fatos desabotoados, nojentas botas desatacadas, com as calças metidas
dentro, arrimados a um bordão, quase famintos, pedintes desprezíveis,
abandonados, assim eles entravam em Quionga”, recordaria o capitão
Júlio Rodrigues da Silva.

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Reforços a caminho
Por essa altura estavam já a caminho as primeiras tropas da maior
expedição enviada de Portugal para África até então. Os soldados, o
equipamento e 750 equídeos começaram a embarcar a 28 de Maio
(um dia depois da derrota de Namaca) no vapor Portugal. A 5 de Junho
larga de Lisboa o Moçambique, o maior navio a navegar sob o pavilhão
português, que transportava 1500 soldados. Seguem-se o Zaire e, a 8 de
Julho, o Amarante. A expedição era comandada pelo general Ferreira
Gil, depois de o Governo da República ter anulado a nomeação de Garcia
Rosado, ex-governador geral de Moçambique e militar experimentado nas
campanhas africanas. Dispunha, inicialmente, de uma força composta
por 159 oficiais e 4483 praças. Mais tarde chegariam no vapor Beira mais

Martins Ibrahimo Musse lembra-se do tempo em que o cemitério estava cercado
de um muro alto regularmente caiado

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432 praças e 8 sargentos que se haviam insubordinado em Mafra contra
os alegados privilégios no recrutamento dos filhos de famílias ricas e aos
estudantes de Coimbra. A sua pena seria cumprida nas praias do Índico.

Carlos Selvagem, pseudónimo literário de Carlos Tavares de Andrade
Afonso dos Santos, e Américo Pires de Lima foram dois dos militares
que integraram a expedição. Viajaram durante um mês desde Lisboa
até Lourenço Marques, de onde rumaram a Palma numa viagem de
mais quatro dias. Quando chegaram esperava-os o mesmo caos e
desorganização que tinham presenciado no momento do embarque, em
Lisboa. A bordo do navio, Carlos Selvagem notava no seu caderno de
campanha o primeiro vislumbre do local onde passaria três meses. “Lá
longe, aquela humilde aparência de povoado, afogada sombriamente em
arredondadas máscaras de arvoredo, dizem-nos que é Palma”. Américo
Pires de Lima parecia ter esquecido a sua formação científica e assustava-
se com profecias. Tungue, que dava o nome à baía de Palma, era um
nome agourento, “ensombrado com a alcunha sinistra de cemitério de
brancos” que enchia os soldados de “maus presságios”.

A vista da baía, com as suas areias brancas, com o povoado ao fundo,
seria durante dias e dias a única ligação possível com a terra firme para
muitos soldados. A inexistência de um porto e a falta de condições
mínimas para acolher os recém-chegados obrigaram-nos a permanecer
no barco e esperar pelas marés. Os que tinham mesmo de chegar a terra
fizeram-no em condições “grotescas”. Aos ombros de negros que os iam
buscar no ponto onde as pequenas embarcações encalhavam. “Saltamos-
lhes, um pouco intrigados, sobre os maciços ombros; passamos-lhes
fortemente as pernas por diante do peito; e é de ver a nossa pícara
cavalgada dentro de água”, recordaria Carlos Selvagem. Foram precisas
semanas a fio para que os navios pudessem desembarcar os homens, os
150 camiões Kelly, as armas, as munições ou os víveres.

“E vemo-nos de repente numa larga rua de areia – única rua de Palma
– que corre ao longo da praia, toda revolvida por fundos sulcos de rodas,

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Resto das trincheiras mesmo por detrás do posto alfandegário de Namoto

entre as suas filas de moradas humildes, sob os vagos novelos de sombra
dos coqueiros altos e outras árvores dos trópicos”, recordaria Carlos
Selvagem, numa primeira impressão pouco positiva de povoação: “Uma
escura aldeia indígena, miserável, primitiva, que se espalha ao acaso,
por aqui, por além, na sombra das árvores copadas, em grupos de oito
a dez palhotas, mais ignóbeis que fojos de feras”. Américo Pires de Lima
indignou-se com a sua primeira experiência de desumanidade da guerra,
quando viu, na praia, no meio de um bosque de mangal, “alguns cadáveres
de negros esqueléticos. Enxames de moscas banqueteavam-se naquela
carnagem a ponto de alguns cadáveres nus, de costas no areal, olharem
para o infinito azul com o olhar profundo e vago das órbitas vazias”.

Era o princípio de uma experiência traumática, da qual nem todos
sobreviveriam. O médico notou que “os recém-vindos miravam com

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quase infantil curiosidade os veteranos do sertão, muitos dos quais se
apresentavam macilentos e hirsutos. Olhavam-nos como se, num espelho
mágico, vissem a própria imagem do que viriam a ser alguns meses
passados”. Não se enganou. Por essa altura já Carlos Selvagem adivinhava
o que estava a acontecer à terceira expedição. Escreveu: “A avaliar pela
rapidez com que os homens vão tombando, uns após outros, como
estorninhos, tiritando de febres ou desfeitos em disenteria, é de crer
que, ao levantarmos os bivaques para iniciarmos, enfim, a nossa grande
ofensiva, já não haja um soldado capaz de afrontar galhardamente outros
mais negros, porventura mais trágicos dias”.

A espera na baía do Tungue

O relato da terceira expedição em Palma é feito de tédio, de sofrimento
com o calor e a humidade que até “a própria alma abolorecia”, de horror
aos mosquitos, às formigas ou aos leões que a cada passo entravam nos
acampamentos. O grosso das tropas ficaria instalado já no planalto,
longe das palhotas à beira da praia, do cemitério e do quartel-general.
Em princípio era um lugar mais arejado e saudável. Carlos Selvagem foi
o oficial que se encarregou de desbravar um terreno, queixando-se da
indolência dos negros ou da resistência da selva, onde “cada palmo de
terreno limpo absorve-nos horas sem fim”. Depois foi esperar que que
as feridas abertas em Namaca sarassem e os soldados fossem de novo
enviados ao acaso para a frente de batalha.

Foram três meses de tédio e de dificuldades. De manhã, “as abluções
fazem-se em água negra, de uma espessa cor de café puro, que
prodigamente o moleque nos traz no fundo de um balde de lona ou de uma
velha lata de gasolina. Quem deseja lavar os dentes serve-se regiamente
das águas minerais da Curia ou Vidago, das dotações semanais. Os outros
– sargentos e praças -, sem águas minerais, sem forte necessidade de
dentes lavados, abstêm-se, em regra, deste luxo”, conta Carlos Selvagem.

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Para obstar ao calor, o quartel-general ordenou um período de descanso
entre as dez e as três da tarde. “A malta do batalhão descia para a planície
logo depois do café e por lá andava a esturrar-se ao sol e a envenenar-se
na água dos charcos, a que a sede levava, até horas da primeira refeição”,
recordaria António de Cértima no seu livro Epopeia Maldita, de 1924.

A necessidade de adaptação ao novo ecossistema social exige
compromissos. O ódio aos monhés (moçambicanos de origem indiana)
é generalizado. Os negros merecem ora condescendência, ora desprezo,
ora admiração. Principalmente as mulheres, com as suas “peles de
ébano macias e tenras, a linha fugitiva das espáduas graciosamente
descaindo sobre o polido contorno dos quadris, muito esbeltas, bem
lançadas, a garganta delgada, o colo alto”, na descrição de Carlos

A inexistência de um porto e a falta de condições mínimas para acolher os recém-chegados obrigaram-nos a
permanecer no barco e esperar pelas marés

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Selvagem que, contudo, lhes deplorava a “odiosa carapinha e hediondo
focinho”. Muitos soldados envolveram-se em concubinatos assumidos,
os incidentes com o roubo das mulheres tornaram-se um problema que
escapou aos registos das campanhas.

A guerra tornara-se um lugar distante. Principalmente depois de
começarem as chegar notícias provenientes de fontes inglesas que davam
os alemães como acabados. As tropas entediam-se, esvanecem-se em
febres ou no torpor do calor húmido dos trópicos. “Todas as difíceis
ideias de Pátria, Honra e Dever parecem dissolver-se, perder a cor e o
sentido, no ambiente mole e sujo destas areias, na atmosfera moral desta
desmoralizada tropa, à torreira deste implacável sol africano”, queixava-
se Carlos Selvagem. O pior, porém, estava para vir. Lá para Setembro
chegaria a hora de partir para uma nova tentativa de invasão da África
Oriental Alemã. Só então a terceira expedição conheceria os verdadeiros
horrores da guerra e se transformaria numa multidão de indigentes,
errando pelos areais de Palma ou pelos trilhos da selva apoiados em
bengalas improvisadas. Era a “expedição do pauzinho”.

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À procura do inimigo,
do outro lado do rio

Nesta estação, na maré alta, há uma ou duas viagens por dia num ferry que transporta, no máximo,
três automóveis e um camião em cada um dos sentidos da fronteira

ManuelCarvalho (texto)eManuelRoberto(fotografia), em Nevala, Tanzânia

Depois do fracasso de Namaca, os soldados portugueses
conseguem atravessar o Rovuma para o lado alemão em
Setembro de 1916. Com tanta facilidade que acreditaram poder
bater os alemães e regressar a casa antes do final do ano.

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O governo pressionava o comando para marchar, os cuidados
com o inimigo ou com o abastecimento de água e comida
relaxaram e, já bem dentro do território alemão, aconteceu
o inevitável. A pesada derrota em Nevala destruiu a maior
expedição enviada a Moçambique na Grande Guerra.

Quem passasse pela proximidade da foz do rio Rovuma na noite de
18 de Setembro de 1916 poderia avistar um dos mais imponentes
aparatos militares que o exército português alguma vez organizou
na sua longa presença em África.
Junto a Quionga, concentravam-se nessa madrugada de maré baixa
e luar ténue 120 oficiais e 4060 homens. A sua capacidade de fogo
apoiava-se numa linha de 2682 espingardas, 10 metralhadoras, 12 peças
de artilharia de montanha e um canhão de marinha que fora arrastado a
custo pelo mato e pelo capim até ao planalto de Namoto. Uma vez mais, as
tropas portuguesas tentavam a invasão do território alemão do outro lado
do rio, depois da travessia falhada de 27 de Maio.

O comando das operações estava disposto a conquistar a outra margem,
custasse o que custasse. Agora, e ao contrário do primeiro ensaio, as
forças estavam centradas num único ponto. Não haveria dispersão de
tropas, para além das que integravam a Coluna Negra, preparada para
atravessar o rio em frente a Nhica, 40 quilómetros a montante; não haveria
o risco de ensaiar a passagem em barcos que se tornavam alvos fáceis
para as metralhadoras alemãs; não haveria arraiais nocturnos nem outras
imprevidências capazes de despertar o inimigo. O general Ferreira Gil tinha
muitas dúvidas sobre as condições de combate daquela tropa, mas no que
estava ao seu alcance tudo faria para apagar da memória da derrota de
Namaca com uma vitória como a da conquista de Quionga.

Até chegar àquele dia, a tropa da terceira expedição a Moçambique
passara dois meses de vida calma. Alguns soldados arrancados às leiras
do Minho ou às serras da Beira encontravam-se isolados em postos

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remotos instalados nas margens do rio que faz fronteira com a Tanzânia
ao longo de 730 quilómetros. A maioria, porém, aborrecia-se sob o calor
abrasador de Palma ou lutava por sobreviver aos frequentes ataques de
paludismo ou disenteria. O fracasso da tentativa de atravessamento do rio
em 27 de Maio deixara marcas no moral. Era preciso ter calma. O corpo

Picada no planalto de Namoto

expedicionário que a partir de Junho desembarcara nas praias da baía
do Tungue ganhava tempo, esturricando a pele na praia, entretendo-se
em batucadas noite fora ou apostando na razia que os leões haveriam de
causar no cercado onde os carregadores negros passavam a noite.

As prioridades do comando eram de pôr ordem num exército
indisciplinado, mal treinado e recrutado à pressa entre aldeões
da metrópole e indígenas que na maior parte dos casos nem falar

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português sabiam. Alguns documentos existentes no Arquivo Histórico

Militar dão-nos conta dessa barafunda. Em Maio de 1916 o administrador

do concelho do Lago é ameaçado com uma pena de prisão de dez anos

se não reparar as estradas do município para facilitar o movimento de

tropas. De Quionga, onde o quartel-

O Governo receava general se encontrava estacionado
que a guerra acabasse em 23 de Junho de 1916, chega uma
sem que as tropas ordem para que o chefe de concelho de
Mucoso mande fuzilar “todos os presos

portuguesas tivessem acompanhados de escolta que tentem
sido capazes de fugir” e os espiões. A 16 de Agosto 1916,
apresentar qualquer o quartel-general em Palma pergunta
conquista capaz de ao administrador do concelho de
Tungue se o segundo cabo n.º 9 Guete

garantir ao país uma e o soldado n.º32 Sahide pertencem
posição favorável nos ao corpo de Polícia Militar, ao que
futuros acordos de paz administrador responde que não está
habilitado a dar essa informação, que só

em Porto Amélia saberiam.

A devoção burocrática e a calma de Ferreira Gil tinham a seu favor

o facto de ter havido atrasos no desembarque de equipamentos.

“Só em 7 de Setembro é que principiou a desembarcar uma bateria

de montanha, a última da expedição e com ela no Amarante iam

quase todos os solípedes, arreios, lençóis impermeáveis, géneros

alimentícios, rações, condutores, tratadores, viaturas várias, etc.”,

recordaria o deputado oposicionista Vasconcelos e Sá, numa das

sessões secretas da Câmara dos Deputados e do Senado, que em

Julho de 1917 se dedicou a debater as agruras da Grande Guerra. Em

Lisboa, porém, instalara-se o nervosismo e a pressa. Em Agosto de

1916 aumenta a suspeita de que os alemães estavam a um passo de

sucumbir às ofensivas britânicas que o general sul-africano Jan Smuts

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

lançara no Norte e Leste da actual Tanzânia. O Governo receava
que a guerra acabasse sem que as tropas portuguesas tivessem sido
capazes de apresentar qualquer conquista capaz de garantir ao país
uma posição favorável nos futuros acordos de paz. Era, por isso,
“necessário iniciar ofensiva rapidamente, para não corrermos o risco
de chegar tarde ou de ser inútil a nossa acção”, sentenciava por essa
altura uma ordem assinada por António José de Almeida, Presidente
do Ministério (primeiro-ministro) e ministro das Colónias.

O prestígio da Pátria visto de Lisboa

Quando os rumores de que o exército alemão comandado por von
Lettow-Vorbeck estava no limiar da exaustão chegam à base de Palma, os
soldados começam a sonhar com o fim do suplício africano. “No jornal
da caserna dizia-se que lá para Novembro ou Dezembro todas as tropas
teriam embarcado para Portugal”, recorda o alferes Carlos Selvagem no
seu jornal de campanha, que seria publicado em 1924 sob a forma de livro
com o título Tropa d’África. O pior mesmo para os soldados era resistir ao
clima inóspito e às doenças que grassavam nos bivaques.

Dois meses apenas bastaram para que a terceira expedição sentisse
os seus efeitos. Palma tinha-se transformado num imenso hospital
onde tudo era precário. “Faltavam à expedição coisas essenciais, pois
ocasiões houve em que não existia uma gota de álcool, um grama de
quinino, ou uma seringa para infecção; mas Lisboa, solícita, enviava
pontualmente carregamentos de ferraduras”, recordaria o alferes
médico Américo Pires de Lima, sublinhando o ridículo das ferraduras,
inúteis para animais comprados na África do Sul que estavam destinados
a trilhar os solos arenosos da região.

Por essa altura, o general Ferreira Gil estava consciente do problema
que tinha em mãos e tratava de avisar Lisboa dos limites colocados pelo
estado de saúde das tropas à projecção de grandes ofensivas do outro

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Forte de Nevala

lado da fronteira do rio Rovuma. A 6 de Agosto envia um telegrama para
o Governo, prevendo que no espaço de dois meses 75% do seu efectivo
estaria arrasado pelas doenças.

Se o aviso do comandante tivesse sido levado a sério, a pressa em
mandar as tropas para o combate em território inimigo poderia ter
sido melhor ponderada. Mas não foi. O Governo insistia, o que um ano
mais tarde seria interpretado por Vasconcelos e Sá como um sinal de
“incompetência absoluta, inconsciência e indiferentismo pela vida
dos soldados”. Desesperado, Gil ensaia outros argumentos. A 15 de
Agosto informa que há “grandes dificuldades no desembarque do
material e do gado”. Acrescenta que continua à espera da chegada do
navio Amarante “com artilharia e do Beira com medicamentos”. Insiste
que “não tem camions ainda”. Sem sucesso.

70

Grande Guerra • Grandes Reportagens

O general lançava alertas, mas decide iniciar os preparativos da ofensiva.
Concebe uma estratégia ardilosa que lhe permitia apresentar serviço a
Lisboa sem ser obrigado a mobilizar grandes recursos. Em Agosto envia
destacamentos para avaliar a possibilidade de se atravessar o Rovuma
a vau. Um dos eleitos foi Viriato de Lacerda, um dos mais prestigiados
oficiais das campanhas em Moçambique, que haveria de ser morto no
combate da serra Mecula, no final de 1917. Outro foi Jorge de Castilho, que
em 1927 se tornaria um dos novos heróis da Pátria por ter sido o navegador
do avião que fez a primeira travessia nocturna do Atlântico.

Apesar de alguns os incidentes e da morte de um cabo alvejado da
margem alemã, os destacamentos encarregados de descobrir pontos
de passagem a vau no Rovuma conseguiram os seus objectivos. Duas
rotas estavam traçadas. Uma, na embocadura do rio; a segunda, menos
importante, na zona de Nhica, onde a Coluna Negra devia passar para
a outra margem. Os erros tácticos cometidos na primeira tentativa de
cruzar o rio não se repetiram. A passagem a vau, e não de barco, de uma
coluna capaz de garantir uma testa-de-ponte na margem inimiga era
bem mais segura para as tropas invasoras. Uma vez na outra margem,
os planos consistiam em seguir pelo litoral, ocupando Mikidani (actual
Mtwara) e mais acima Lindi, onde a existência de portos permitiria um
fácil abastecimento de víveres e equipamento.

A garantia de que no Rovuma havia zonas relativamente fáceis de
cruzar a pé, porém, não bastava para apaziguar os receios e ansiedades
do quartel-geral de Palma. Dia após dia Gil continuava a tergiversar
e o tom dos telegramas que chegavam de Lisboa era cada vez mais
ameaçador. A 5 Setembro, o ministro das colónias telegrafa para Palma
afirmando que “governo inglês continua insistindo pela nossa imediata
ofensiva, realmente indispensável para afirmar o nosso prestígio”. Por
ora, o “Governo confia no general, esperando e desejando rápida e
feliz acção”. Mas como nada acontecesse, o discurso agrava-se. Em 8
Setembro, um telegrama assinado por Afonso Costa, então ministro das

71

Grande Guerra • Grandes Reportagens

Na maré baixa, centenas cruzam a vau as zonas menos profundas e de bote nos curtos trechos de maior caudal

Finanças e líder do Partido Democrático, no poder, raia a acusação de
cobardia. “Governo sabe que V. Exª já tem à sua disposição meios de
transporte suficientes para avanço imediato das tropas portuguesas,
cabendo a V. Exª resolver se podem seguir já todas ou somente algumas.
É indispensável não esperar pelo desembarque dos navios nem a chegada
de mais camiões para começar a ofensiva, porque carece evitar que a
guerra acabe, estando aí parados. Seria uma vergonha para o Exército
e um desprestígio para a pátria. Em circunstâncias apertadas como as
actuais deve-se avançar em quaisquer condições. O Conselho de Ministros
confia na vossa atitude enérgica e pede comunique o que vai fazer”

Um dia depois, Ferreira Gil responde ao todo-poderoso chefe
republicano. Desculpa-se com os argumentos do costume, mas
finalmente avança datas concretas para a ofensiva. Um telegrama

72

Grande Guerra • Grandes Reportagens

Mulheres cruzam o leito seco do rio a pé pela areia branca

enviado ao Governo expõe as suas condições e o seu estado de espírito:
“Não tenho neste momento meios [para] poder avançar pois está a
desembarcar material artilharia, metralhadoras – infantaria, não se
podendo mover sem ele. Trabalho incessantemente atravessar Rovuma
várias pontes dia 17 e seguintes, seguindo depois Mikindani e Lindi.
Em 14 e 15 começa avanço tropas. Farei tudo para seguir mais rápido
possível, pois prezo muito honra exército país”. Poucos dias depois, a
13 de Setembro de 1916, o comandante da expedição dá conta de uma
inevitável mudança de planos, uma vez que “navio almirante inglês lhe
comunicou estar Mikindani ocupado pela bandeira inglesa”, pelo que
se obrigava a pedir “instruções”. No actual estado de guerrilha entre a
tropa e a política era, porém, impossível adiar o envio de tropas para as
margens do Rovuma.

73

Grande Guerra • Grandes Reportagens

Por essa altura, a Schutztruppe de

O general Ferreira Gil von Lettow-Vorbeck tinha perdido as
estava consciente do suas posições no litoral. A 4 Setembro
problema que tinha os ingleses instalaram-se em Dar-es-
em mãos e tratava Salam e daí ocuparam os portos de
Lindi e Mikidani. O que restava da força

de avisar Lisboa dos alemã encontrava-se refugiada algures
limites colocados pelo para lá do planalto dos macondes que
estado de saúde das se prolonga da margem moçambicana
tropas à projecção após o intervalo criado com o
gigantesco leito de cheia do Rovuma.

de grandes ofensivas Estava limitada uma coluna de 1620
do outro lado da europeus e 12 mil askaris (soldados
fronteira do rio indígenas), que facilmente se subdividia
Rovuma em destacamentos lendários pela sua
audácia e mobilidade, como o do alferes

Sprockhooff ou o capitão Von Stummer,

que nos primeiros meses do ano se seguinte se entreteria, com a ajuda

dos indígenas da tribo Ajaua, a fazer razias nos territórios do Niassa para

reabastecer as colunas alemãs.

Pressionados pelas tropas inglesas, que reuniam colunas sul-africanas

e indianas, pelos belgas e pelos portugueses, podia-se facilmente

esperar que os alemães estivessem condenados a uma derrota a

curto-prazo. Quando escreveu a história da conquista de Nevala, o

coronel Azambuja Martins, chefe do estado-maior do general Ferreira

Gil, admitiria até que ponto essa constatação era errada. Escreveu

Azambuja Martins: “Os alemães retiraram em boa ordem, aproximando-

se da nossa fronteira, concentrados em dois núcleos, um a sudoeste

da sua colónia e outro, mais poderoso, sob o comando de Lettow, à

rectaguarda do rio Rufiji”. As suspeitas de uma derrota iminente dos

alemães estavam longe da verdade.

74

Grande Guerra • Grandes Reportagens

A 14 de Setembro, o jornal Star de

Apesar de alguns os Joanesburgo tornava pública uma
incidentes e da morte convicção geral, considerando
de um cabo alvejado que, face às debilidades do exército
da margem alemã, português, era improvável acreditar
na tese do cerco aos alemães. “Se as

os destacamentos tropas portuguesas ao sul fossem por
encarregados de qualquer forma eficientes, ou mesmo
descobrir pontos de até efectivas, como em teoria a sua
passagem a vau no situação nos leva a imaginar, a sua
cooperação no momento actual seria

Rovuma conseguiram do máximo valor para apressar o fim da
os seus objectivos. campanha. Infelizmente não há razão
Duas rotas estavam para se depositar muita confiança nas
traçadas suas faculdades para prestar auxílio”,
lia-se no jornal. Havia ferraduras, mas

faltavam seringas, havia metralhadoras

mas faltava uma rede de etapas capazes de garantir os abastecimentos

para uma força de milhares de homens, havia espiões contratados (o

mais conhecido era Simba Ibrahimo Hadji “um homem hábil e esperto,

prestável, sujo de corpo, intrujão, ávaro e cupido” na opinião sempre

tingida de xenofobia de Carlos Selvagem), mas o comando vivia na estreita

dependência das informações, muitas vezes erradas, dos ingleses.

A passagem

Como prometido por Ferreira Gil, milhares de soldados tinham-se
concentrado no perímetro do triângulo de Quionga entre os dias 14 e
17 de Setembro. Com as conquistas britânicas de Setembro, os planos
estratégicos do comando português tinham sido alterados. Agora a nova
missão apontava para noroeste, para lá da escarpa que anuncia o planalto

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Um aspecto do quotidiano de Nevala

dos macondes do lado tanzaniano. Empurrado pela pressão política,
Ferreira Gil não tinha escolha. “A epopeia da fome” ou “epopeia maldita”,
como a designaram Carlos Selvagem e António de Cértima, estava prestes
a começar.

O plano de travessia previa duas investidas diferidas no espaço de
um dia. Uma série de manobras de diversão seriam lançadas em Unde
e Mocímboa do Rovuma, dezenas de quilómetros acima da foz do
grande rio. Na zona de Nhica, a Coluna Negra, organizada com duas
companhias indígenas, uma companhia europeia de infantaria, quatro
metralhadoras, duas peças de artilharia e um pelotão de infantaria
montada (que incluía Carlos Selvagem) trataria de passar o vau o rio às
3h30 da madrugada do dia 18 – uma série de atrasos adiaria a partida
para as 11h da manhã. No dia seguinte, o grosso das tropas, compostas

76

Grande Guerra • Grandes Reportagens

por três colunas e uma coluna de reserva, passaria o rio a vau ou,

num segundo momento, em jangadas construídas pelas equipas de

engenharia militar. Uma vez na outra margem, todas as colunas se

deveriam juntar em Migomba, em frente de Namoto.

Com a excepção de uma breve troca de tiros na zona de travessia da

Coluna Negra, tudo decorreu na mais perfeita quietude. A tão temida

travessia do Rovuma, que teve lugar no dia 19 de Setembro de 1916, não

passou de “um passeio de recrutas para experiências de heroicidade”,

como ironizaria António de Cértima.

Governo sabe que “Nem um tiro heróico, nem um boche
V. Exª já tem à sua para troféu da conquista. Apenas
meia dúzia de negros, uma peça do

disposição meios de Konigsberg [navio de guerra alemão
transporte suficientes afundado em Dar-es-Salam em Julho de
para avanço 1915], sem culatra, duas metralhadoras,
imediato das tropas mobílias, um cofre de latão, ferro-
velho, imbecilidades apreendidas nos

portuguesas, cabendo raids de exploração. De resto, belos
a V. Exª resolver se entrincheiramentos, abrigos cheios de
podem seguir já todas sabedoria, redutos originalíssimos – um
ou somente algumas curso esplêndido de táctica moderna e
oportunismo militar”, notaria Cértima.

Afonso Costa, ministro Na zona de Quionga, o Rovuma
das Finanças e líder que corre na época seca (entre Maio e
do Partido Democrático Novembro) é um rio estranho. As suas

margens de aluvião estão por esta altura

cheias de um capim alto, duro e, em alguns pontos, impenetrável. Depois,

seguem-se extensos areais recortados por pequenos braços de rio que

formam uma interminável rede de ilhotas ao longo do seu curso. Na zona

de Namoto e de Kilambo, onde existe um dos dois postos fronteiriços

entre Moçambique e a Tanzânia (o outro é o da Ponte da Unidade, em

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Negomano), pode-se hoje imaginar a aventura de milhares de soldados
portugueses nessa noite de sucesso de Setembro de 1916. Na maré baixa,
centenas cruzam o leito seco do rio a pé pela areia branca, a vau nas
zonas menos profundas e de bote nos curtos trechos de maior caudal.
Nesta estação, na maré alta, há uma ou duas viagens por dia num ferry
que transporta, no máximo, três automóveis e um camião em cada um
dos sentidos da fronteira.

Não havendo alemães do outro lado, era fácil prever uma travessia
calma. Tão calma que a crença na derrota iminente dos alemães
encontrou naquele episódio um novo e maior fundamento. Ao nascer do
sol, a bandeira portuguesa foi finalmente hasteada em território alemão, a
cavalaria dedicou-se a missões de reconhecimento nas proximidades, mas
“as tropas, nessa noite, já com dificuldade mantinham as prescrições de
segurança regulamentares, convencidas de que a campanha terminara”,
recordaria Azambuja Martins. Havia agora que estabelecer contacto com
os britânicos, instalados a uns 60 quilómetros de distância, em Mtwara,
distância que um pelotão comandado por Carlos Selvagem venceu em
dois dias a cavalo apenas para constatar que “os ingleses nada tinham que
comer” e regressar à base.

Havia que fixar com rigor que passos dar. É então que, uma vez mais,
o Governo mostra a sua total incapacidade para perceber a realidade
do terreno. Uma nova ordem vinda de Lisboa insiste “na ocupação de
território na mais larga extensão, tanto para Norte junto ao mar, como
Noroeste em direcção a Mahenge e Oeste, a abranger toda a extensão
da fronteira até encontrar força aliada”. Entre a calma e, certamente,
o desespero, Ferreira Gil esclarece que Mahenge fica a mais de 400
quilómetros de distância do Rovuma. E sublinha que “é completamente
impossível qualquer destacamento internar-se centenas de quilómetros
sem meios de conduzir víveres e munições”. Sempre bem informado
sobre tudo o que se passava na frente de Moçambique, o deputado
Vasconcelos e Sá diria mais tarde que essa era “uma ordem criminosa”.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Entalados do outro lado do rio, cedo os soldados começaram a sentir

as consequências da negligência e da impreparação da campanha militar

que protagonizavam. Os relatos de falta de água e de comida ganham um

relevo crescente nos diários dos militares que chegaram até nós. Ferreira

Gil sabia dessas dificuldades e, uma vez mais, tenta introduzir uma nota

de realismo no delírio do governo. A 3 de Outubro, comunica a Lisboa

que o general Smuts tinha “informações seguras de que o inimigo se

moverá para sul para atravessar o território português e por isso não seria

prudente mover as forças portuguesas para Norte, deixando a fronteira

aberta ao inimigo”. Dias depois, informa que os camiões Kelly, cruciais

para o abastecimento, estão sem câmaras-de-ar. Nada feito. Nos círculos

da capital começam a circular suspeitas de incompetência. Na oposição

assinala-se o facto de ser um “oficial

É completamente desconhecedor de África, que aceitou
impossível qualquer um comando tão sério e grave de coluna
principiada a organizar pelo general

destacamento Garcia Rosado, esse conhecedor da
internar-se centenas África Oriental, despedido com castigo
de quilómetros sem do comando à última hora”, notaria no
meios de conduzir Parlamento Vasconcelos e Sá.

Obrigados a prosseguir para noroeste,

víveres e munições os oficiais e soldados sabem pelo nome
dado à coluna principal que terão
General Ferreira Gil de subir ao planalto, de “combater o

inimigo aonde o encontrar”, de conquistar o forte de Nevala, a uns 200

quilómetros da foz do Rovuma, e daí prosseguir mais 70 quilómetros

até chegarem a Masasi. A dureza do caminho que aguardava a Coluna

de Masasi ficou de imediato atestada numa missão de reconhecimento

do caminho até Nevala. A 4 de Outubro de 1916, um dia de “sol

excepcionalmente ardente e de calor intensíssimo”, a coluna começava

a avistar o forte alemão quando caiu numa emboscada, em Mahuta.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Morreram 33 soldados portugueses, e um capitão, um sargento
e 12 praças ficaram feridos.

O pior, porém, estava para vir. Como diria mais tarde no Parlamento
o deputado Vasconcelos e Sá na sua violenta denúncia das condições da
guerra em Moçambique, acreditou-se “nos dizeres da imprensa da União
Sul Africana, que dava como quase terminada, a curto prazo marcado,
a campanha na colónia oriental africana alemã e que daí, em política
que chamarei de bluff, ordenaram violentamente avanços, supondo-os
fáceis, absolutamente inexequíveis para forças insuficientes como as que
dispunha o general Gil, arrasadas, doentes, incapazes de se aguentarem,
em linhas de comunicações longas, num clima inóspito”. Se a segunda
expedição conhecera um triste epílogo em Namoto, a terceira teria em
Nevala o seu ocaso.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Nevala, um forte longe de mais

A fotografia do líder nacionalista Julius Nyere gasta pelo tempo foi esquecida numa esquina

ManuelCarvalho (texto)eManuelRoberto(fotografia), em Nevala, Tanzânia

Numa madrugada de Outubro de 1916 uma coluna de 1800
soldados portugueses avista ao longe o forte de Nevala, na actual
Tanzânia. Um mês de fome, sede e marcha dolorosa entre a
selva tinha-a transformado numa legião despedaçada. O forte
seria conquistado, mas a maior expedição de tropas nacionais
para África na Grande Guerra estava desfeita e pronta para o
golpe de misericórdia. Que viria em breve

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Afotografia do líder nacionalista Julius Nyerere gasta pelo tempo foi
esquecida numa esquina. Por cima de uma porta ficaram umas
algemas. Espalhados pelo chão foram deixadas folhas soltas de
autos policiais escritos em suaíli. O espectro de ruína que ameaça
o velho forte alemão de Nevala é uma boa sugestão para se imaginar a
sensação de abandono, desesperança e agonia que mais de um milhar de
soldados portugueses ali sentiram nos dias de cerco que durou entre 22 e
28 de Novembro de 1916.

Salehe Saidi Mawazo, 84 anos, diz que o “boma” (forte) foi construído
“por volta de 1893 para defender a cidade dos portugueses”, instalados
para lá do rio Rovuma, que se avista a uns 40 quilómetros de distância.
Salehe, o sábio da pequena cidade, nunca ouviu falar da sua conquista
pelos portugueses. Na sua memória, a dominação alemã que acabaria
em 1918 começa e acaba com a “brutalidade”, os “trabalhos forçados”,
a insistência “num governo pela força”. A curta passagem de 1800
portugueses por Nevala não se incrustou na tradição oral, mas haveria
de dar origem a uma das mais exuberantes manifestações de euforia e
depressão de toda a Grande Guerra na África portuguesa.

Entre 26 de Outubro e a madrugada chuvosa de 28 de Novembro de
1916 Nevala foi um símbolo da glória, do heroísmo, do valor da gesta
portuguesa. Duas colunas de soldados tinham conseguido atravessar
o Rovuma, foram capazes de bater a resistência alemã no seu próprio
território, subiram à serra de Nevala e conquistaram o seu forte. Para
um exército desmoralizado, doente, sem equipamento adequado,
atacado pela ausência de linhas de abastecimento que lhe garantisse
água e comida, a façanha merecia as homenagens e os elogios que
se ouviram e leram nas galerias do Parlamento, nos salões da gente
culta de Lisboa e do Porto ou nas páginas dos jornais. Um mês bastou
para que essas ilusões de glória efémera se desfizessem e Nevala se
transformasse na derrota que destruiu o maior e melhor equipado
contingente português enviado para África em toda a o conflito.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Transporte de água e refrigerantes no ferry que atravessa o rio Rovuma de Kilambo, Tanzânia,
para Namoto, Moçambique

Para se perceber o que esteve na base daquela loucura é preciso
esquecer as boas práticas dos códigos militares ou o mais elementar
bom senso e procurar respostas nas prioridades dos políticos. Mal
desembarcou os seus primeiros homens na baía rasa de Palma, em
Julho de 1916, o comandante da Expedição, general Ferreira Gil,
empenhou-se em pedir a Lisboa tempo e a substituição das tropas
que tinham chegado no ano anterior. O rigor do clima, o desgaste
das febres e as sequelas dos combates infrutíferos da Primavera para
atravessar o rio Rovuma tinham transformado este contingente numa
legião de incapazes para outra coisa senão a luta pela sobrevivência.
De Lisboa, porém, a ordem era a mesma e repetiu-se entre Julho e
Setembro em crescente tom de ameaça: as tropas que existiam eram
suficientes para atacar o inimigo no seu território e, assim, ganhar

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

trunfos para garantir a preservação do império e até, quem poderia

saber, novas anexações quando o dia da paz chegasse.

A travessia do rio deu-se a 19 de Setembro de 1916, mas logo depois

houve uma mudança de planos. As colunas portuguesas não seguiriam pelo

litoral, onde seria mais fácil serem abastecidas. Os ingleses tinham chegado

mais cedo e ocupado Mikidani, actual Mtwara, e a ambição do ministério

apontava agora para o interior dos territórios da actual Tanzânia. Nevala, a

200 quilómetros da foz do Rovuma, “nas abas de um maciço de escarpadas

montanhas, em pleno interior africano, sem caminhos, nem estradas,

nem qualquer outra etapa intermédia”, como a descreveu o alferes Carlos

Selvagem, surgiu assim naturalmente num mapa de desejos que chegou a

contemplar Mahembe, a uns impossíveis

A curta passagem 400 quilómetros de distância pela selva.
de 1800 portugueses O objectivo acertado entre o Governo
por Nevala não se
e a expedição previam, no imediato,
a conquista do forte de Nevala para

incrustou na tradição se estabelecer um ponto intermédio
oral, mas haveria de de apoio na campanha que depois
dar origem a uma teria de seguir para Masasi, uns 70
das mais exuberantes quilómetros mais a noroeste. Para se lá
chegar seria melhor regressar à margem

manifestações de portuguesa e reentrar na colónia alemã
euforia e depressão de numa zona mais próxima de Nevala.
toda a Grande Guerra Sempre se estaria mais perto da base
na África portuguesa de abastecimentos. Ferreira Gil, porém,
decidiu manter as tropas em território

inimigo. “Repugnava ao general mandar

retrogradar as suas forças para Palma, para depois marcharem pela margem

portuguesa, porquanto essas contramarchas enfraqueceriam ainda mais o

já fraco moral das suas forças”, escreveu o coronel Azambuja Martins, chefe

do Estado Maior da expedição e participante activo na operação Nevala.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Firmada a decisão, os portugueses procuraram de imediato cair nas
boas graças dos macondes que habitam a zona fronteiriça, seguindo a
mesmas estratégias de sedução que os alemães usavam com sucesso
no lado moçambicano. A tarefa não era difícil de realizar. O ódio aos
alemães, que Salehe Saidi Mawazo ainda hoje recorda, era provavelmente
generalizado. Uma proclamação aos “indígenas do norte do rio Rovuma”,
estranhamente redigida em português para destinatários falantes do
suaíli, anunciava: “Novamente os portugueses, que ocuparam Quíloa em
tempos mais felizes para os naturais, como provam ainda hoje as ruínas
nessa cidade, voltam agora a expulsar um povo estranho sem tradições,
que recentemente explorava a região”. Contrariando as expectativas,
porém, os soldados nada fizeram para evitar as pilhagens a que, “sob a
nossa flácida soberania”, como notaria Carlos Selvagem, os macondes de
Moçambique se entregaram na outra margem do Rovuma.

O pesadelo em Mahuta

Além da propaganda, a hora era de espera e de preparação. Foi preciso
quase um mês até que o movimento dos soldados se iniciasse em
direcção a Nevala. Primeiro havia que vencer a crónica dificuldade de
abastecimentos. Com as câmaras-de-ar dos camiões Kelly rebentadas
pela dureza das estradas arrancadas à selva, eram necessários
milhares de carregadores para fazer o transporte de água, comida e
equipamentos desde Palma, a mais de 100 quilómetros de distância,
até aos acampamentos instalados para além do gigantesco leito de seca
do Rovuma. A engenharia militar lançou uma ponte sobre o rio, mas o
grosso da coluna teve de recuar 30 quilómetros até Nichiriro, primeiro,
e Sicumbiriro, logo a seguir (a toponímia das fontes da época nem
sempre corresponde à actual). Seria nesta povoação perdida entre o
mato e o capim que bordeja o Rovuma que as tropas se concentrariam
antes da ofensiva final.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Várias missões de reconhecimento foram lançadas para se encontrar a
melhor forma de subir ao planalto dos macondes e descobrir vias de acesso
a Nevala. Numa dessas missões, os portugueses puderam constatar que os
esperaria tudo menos um passeio triunfal. A 4 de Outubro, uma coluna saiu
da sua base às quatro da manhã e seguiu um dos trilhos dos macondes que,
“entalados pelos matos altos, são as únicas estradas que levam a Nevala”,
na percepção de Carlos Selvagem. Nas imediações de Mahuta, a uns dez
quilómetros do forte, num desfiladeiro envolto numa mata de espinheiros,
cai numa emboscada. Eram quatro da tarde. “Os primeiros momentos
foram terríveis para os nossos. A estrada de marcha, de onde não se podia
sair, além de pejada de solípedes, era enfiada pelos fogos do inimigo”,
recordaria mais tarde Francisco Curado, um dos poucos oficiais que se
destacou pela lucidez e bravura na frente moçambicana, citado por Ricardo

Um aspecto do quotidiano de Nevala

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Marques no seu livro Os

Fantasmas do Rovuma.

Surpreendida pela

armadilha, a coluna demorou

a recompor-se. Os soldados

indígenas fugiram em

desordem. Até que, uma hora

e meia depois, o comando

consegue reestabelecer a

disciplina e definir posições.

“Quando o inimigo nos

julgava aniquilados e

desmoralizados, os nossos

atiradores rompem fogo por

descargas e por tal forma

que, desmoralizando o

inimigo, fizeram calar as suas

metralhadoras, permitindo

assim a nossa retirada”,

continua Francisco Curado.

Salehe Saidi Mawazo, 84 anos, diz que o “boma” (forte) Para trás tinham ficado 33
foi construído “por volta de 1893 para defender a cidade mortos, entre os quais três
dos portugueses”, instalados para lá do rio Rovuma, soldados europeus. Um
que se avista a uns 40 quilómetros de distância

capitão, um sargento e 12 soldados ficaram feridos. Mahuta, ainda assim,

não fora uma derrota, nem uma vitória. “Por honra e glória das nossas

armas, o combate de Mahuta, que devia ter sido um dos nossos mais

trágicos desastres desta campanha, redundou apenas, mercê do valor de

alguns oficiais, numa escaramuça de avançadas, rijamente ferida de parte

a parte, com muitos mortos e dezenas de feridos”, diria Carlos Selvagem.

Constatou-se no entanto que não havia condições para seguir em

frente. “As nossas forças estavam exaustas pelo combate e sequiosas

87

Grande Guerra • Grandes Reportagens

pela falta de água, que se fez sentir

Repugnava ao general nas metralhadoras, tendo de se deitar
mandar retrogradar nos refrigeradores águas minerais da
as suas forças para ambulância e até urinas”, recordaria
Palma, para depois Azambuja Martins. A água das
metralhadoras “tinha sido levianamente

marcharem pela bebida pelos soldados indígenas”.
margem portuguesa, Cinco dias depois, em Sicumbiriro
porquanto essas
contramarchas ultima-se a concentração das forças
portuguesas. As tropas comandadas por
José Pires e por Liberato Pinto juntam-se.

enfraqueceriam ainda A 13 de Outubro, a força sob as ordens
mais o já fraco moral pelo major Gama Lobo sai de Mironga
das suas forças e chega ao final da tarde. A Coluna de
Masasi começa finalmente a ganhar

Coronel Azambuja Martins contornos. Seriam ao todo uns 1800

homens prontos para cumprir a primeira

etapa da conquista até Nevala. A sua missão seria atacar a fortaleza pelo

Leste, deixando para um destacamento liderado por Azambuja Martins

a missão de liderar a ofensiva pelo Oeste. A estratégia poderia ser ideal,

mas, uma vez mais, acabaria por se perpetuar apenas com uma simples

ordem de serviço no papel.

Com a base e os depósitos de abastecimentos longe, a Coluna de

Masasi lutava contra a falta de alimentos suficientes para se aventurar

em mais uma etapa pelo mato. Para os soldados da Coluna haveria 600

rações de reserva no dia marcado para a partida. Para os cerca de 1200

carregadores e auxiliares o pessoal das provisões apenas se poderia

garantir grão e bacalhau para cozer. Ou seja, havia comida para, no

máximo, dois dias. Junto ao rio, a água não faltaria, mas nada garantia

que a houvesse lá acima, no planalto. Foi nesta incerteza que os soldados

da coluna iniciaram a sua marcha rumo ao forte, eram três da manhã do

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Por cima de uma porta ficaram umas algemas. Espalhados pelo chão foram deixadas folhas soltas de autos
policiais escritos em suaíli. Em cima, a fotografia do líder nacionalista Julius Nyerere gasta pelo tempo
foi esquecida numa esquina

dia 18 de Outubro. “Como pedir a um homem semimorto de fome e fadiga
que se bata com galhardia ou saiba morrer com heroísmo?”, perguntaria
nos dias seguintes Carlos Selvagem.

A ordem de serviço à coluna impunha-lhe um dia de marcha até às
proximidades de Nevala. Mas para cumprir essa agenda seria necessário
tomar o caminho de Mahuta onde, num dos seus desfiladeiros, a missão
de reconhecimento tinha sido emboscada duas semanas antes. Por
precaução, o comando opta por um caminho diferente. “Em lugar
de seguir por Mahuta e chegar a Nevala numa etapa de 36 km, foi
marchando hesitante pelas pantanosas margens do rio e só passados
oito dias a Coluna de Masasi viu Nevala”, lamentaria Azambuja Martins.
Não que a distância fosse muito maior – dos altos de Nevala avista-

89

Grande Guerra • Grandes Reportagens

se ao longe o curso do Rovuma. O que atrasou a marcha foi a falta de
comida, que obrigou a várias paragens. Em Pindimbe, onde se fez
um reabastecimento, chegaria não só comida mas até uma caixa de
chocolates enviada em nome do alferes Carlos Selvagem, um capricho
improvável numa coluna faminta a vaguear pelo mato.

Seguindo por outros caminhos, Azambuja Martins cumpriu a sua
missão de forma mais expedita e tranquila. No dia em que Carlos
Selvagem se deliciava com a encomenda de chocolates, o chefe de
Estado Maior da terceira expedição a Moçambique aproximava-se de
Nevala. Nessa manhã, “a nossa pequena coluna continuou avançando, e
a situação parecia indicar que nós tínhamos todas as probabilidades de
êxito a nosso favor, porque os indígenas da região estavam do nosso lado,
e eles estão sempre do lado do mais forte”, escreveria Azambuja. Pela
tarde, lançaria um ataque surpresa com os seus 50 soldados europeus
e 30 indígenas que privaria os alemães do controlo da água da ribeira
de Nevala, um pequeno oásis a uns cinco quilómetros do forte, onde
ainda hoje a população local se abastece nos meses de seca. Depois de
colocar as suas metralhadoras em lugares estratégicos em volta da ribeira,
Azambuja obrigou os alemães a retirar. No combate morreriam três
homens e 12 ficaram feridos.

Agora restava-lhe esperar pela Coluna de Masasi, que se arrastava pelas
encostas que ligam as margens do Rovuma ao planalto de Nevala. A 24, a
coluna deixa Pindimbe e no dia seguinte está a curta distância da posição
ocupada por Azambuja Martins. Carlos Selvagem deixa-a imobilizada e
tenta fazer a ligação com o destacamento de Azambuja. Pelo caminho
impressiona-se com o cadáver de um sargento alemão, “abandonado,
insepulto, no mato, meio podre, negro de gangrena, a desfazer-se em
pus e humores que escorriam, já secos, pelos buracos das balas que o
feriram”. Nessa manhã, estremunhado, avista entre um bocejo a pressa
da sua missão. “Lá no alto, bem longe, encarapitado na esplanada duma
aguda montanha, a silhueta airosa e geométrica do fortim de Nevala, com

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as suas pardas muralhas, sua fiada de janelas, seu mastro esguio onde

arrogantemente drapejavam já na aragem matinal as cores da bandeira

alemã – vermelha, branca e negra”.

Descoberto o acampamento, o alferes procura o acampamento do

coronel Azambuja e recebe uma descompostura. “Não era por ali que nos

esperavam, mas sim pelo leste, pelos caminhos do planalto”, como rezava

a ordem do quartel-general em Palma. No dia seguinte está de regresso

com novas ordens. Pelo caminho tem de resistir a uma emboscada alemã.

O soldado José dos Santos Calhau é morto com um tiro na nuca. Prossegue

e ao chegar ao acampamento toma consciência do estado das tropas. Em

vez de uma coluna, o que ele vislumbra

Para Lisboa, a é um bando de maltrapilhos. Após mais
conquista de Nevala um dia de marcha intensa sem água nem
comida, a coluna deixara-se adormecer

seria por breves “no mais suave dos entorpecimentos”,
semanas o zénite “sem uma sentinela, sem o menor
do brilho da jovem cuidado, como se deve dormir na mão
República de Deus”. Outro dos participantes
dessa odisseia, António de Cértima

afirmou mais tarde que o comandante

da coluna, capitão Liberato Pinto, “não fazia ideia onde se encontrava,

não se preocupando por isso com a disciplina da marcha nem com as

consequências que poderiam advir desta falta de critério militar”.

Com o frio da madrugada, a tropa desperta do sono retemperador

e põe-se de novo em marcha. O outro elo da ofensiva estará perto.

Às dez da manhã chegava à Ribeira de Nevala após uma semana de

etapas. De imediato, Azambuja refaz os seus planos. Gorado o plano

de ataque em pinça, três colunas sitiariam a fortaleza, mas antes lança-

se um apelo à rendição dos alemães. A resposta é um violento ataque

de artilharia que gera o pânico entre os portugueses. Um soldado em

transe grita pela “mãezinha”. O alferes Selvagem pergunta-lhe se estava

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Vista da serra de Nevala

ferido. Ele respondeu: “ainda não, meu alferes”. A ordem é imposta a
pontapé ou sob a ameaça da baioneta dos oficiais. Infelizmente não havia
possibilidade de se responder ao ataque. Toda a equipa de artilharia tinha
ido fazer uma missão de reconhecimento de posições.
Uma conquista, finalmente
Passada a surpresa das primeiras granadas, surge uma nova surpresa.
“Observou-se uma explosão inexplicável num dos ângulos do fortim”,
relataria Azambuja Martins. Os alemães desfaziam-se dos últimos
explosivos e incendiavam os abastecimentos que não podiam levar na
fuga. A tropa pôde finalmente subir em paz os cerca de 100 metros da
escarpa até ao forte. Os alemães tinham-no abandonado.

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Para Lisboa, a conquista de Nevala seria por breves semanas o zénite
do brilho da jovem República. Um telegrama de Norton de Matos,
ministro do Exército, para Ferreira Gil dizia: “Em nome do Exército e em
meu nome saúdo e felicito V. Exª e forças do seu comando pela brilhante
ocupação de Nevala. Todos vamos acompanhando aqui com comoção
e entusiasmo o glorioso esforço, que com maior coragem e abnegação
as nossas tropas estão fazendo em África para conquistarem o mais
rapidamente possível grande porção do território inimigo, e vemos já as
etapas de Masasi e Lukuledi seguirem à de Nevala”. No terreno, porém, a
realidade era bem mais cruel.

Depois de hasteada a bandeira e de terem reconhecido o local,
os soldados caíram rapidamente na realidade. Nevala era, e é, uma
pobre localidade perdida na selva. O forte não passa de uma pequena
construção com um andar rodeado de um muro. As cisternas de água
que os alemães envenenaram com estricnina momentos antes de o
forte ser conquistado ainda se conservam. O celeiro, que entretanto
fora transformado em prisão, também. O melhor daquele lugar, ou
pelo menos certamente o mais belo, é a extraordinária paisagem que
se avista das suas traseiras. Um tapete denso de floresta e selva começa
na escarpa por onde os soldados portugueses treparam (e por onde
haveriam de fugir daí a um mês), estende-se dos pés do monte onde
o forte funciona como coroa até à outra margem do Rovuma, onde o
planalto dos macondes se reergue e prolonga para lá, até à histórica
localidade da Mueda.

Com o problema da água meio resolvido – sempre a havia na ribeira -,
os soldados entretiveram-se a vasculhar entre os despojos da ocupação
alemã à procura de comida. Mais do que festejar a vitória, importava
aplacar a fome. “Os homens, alquebrados de todo, o olhar riscado de
demências, trincavam o milho que se encontrara num casebre anexo
ao fortim, onde o alemão tinha o seu celeiro. Alguns, chorando até de
raiva, mordaçavam as folhas verdes do ananás saboreando a humidade

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vegetal. O delírio da fome causava pavor”, recordaria António de
Cértima. Um soneto criado pelos soldados dava conta do estado de
espírito após essa estranha vitória. Felizmente não houvera combate,
infelizmente não havia comida.

Sonho que sou um mísero magala
Por cacimbos, por sóis, por noite fria,
Como um teso, lá vou também um dia
À conquista da praça de Nevala
Mas já me sinto desmaiar, sem fala
Rota a farpela já, tripa vazia
Quando na sua brutal alvenaria
Lá num alto me é dado enfim cocá-la
Com muitos tiros cá de longe, brado
Eu sou um pobre diabo, um desgraçado
Entrega-te fortim! Não sejas tanso!
Abrem-se as portas, quase sem sarilho;
E dentro, encontro só, com algum milho.
Silêncio e escuridão… Foi um descanso!

Para todos os efeitos, a primeira parte da missão estava em tese
cumprida. A “mísera escolta landim roendo peixe seco das rações e
fartando a sede com água do Rovuma” que, “resignadamente”, na
avaliação de António de Cértima, avançara em território inimigo, tinha
uma bandeira para agitar. Por ora. A factura chegaria mais tarde.

O que poderia fazer um exército de homens “quase descalços,
andrajosos, os uniformes em farrapos, os capacetes de feltro
esbeiçados, sem uma chispa no olhar, um belo riso na face, todos
quebrados já das fadigas, das fomes e das febres”, perguntava-se Carlos
Selvagem, olhando à sua volta para os soldados portugueses que “se
arrastam, arrimados a um bordão, como os mendigos das suas aldeias”.

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Três meses de “lazeres” em Palma, “requentando ao sol nas areias do
Tungue, com mais um mês de marchas e bivaques, e grandes privações,
esforços inglórios, destroçaram, mais do que as balas alemãs, a fina
flor das nossas tropas europeias”, lamentava o alferes. O golpe de
misericórdia estava para breve.

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Oito “negros e amargurados”
dias durou o cerco

A floresta na escarpa em frente ao forte de Nevala

ManuelCarvalho (texto)eManuelRoberto(fotografia), em Nevala, Tanzânia

No final de Novembro de 1916, a ambição de conquistar
território colonial alemão desfez-se em pó após a dramática
fuga do forte de Nevala. Desfeita a Coluna de Masasi, os
alemães lançam uma contra-ofensiva que devasta bases
em Moçambique e chega a ameaçar Palma. Um couraçado

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britânico e as chuvas de Dezembro salvariam os destroços
da maior expedição enviada para África.

Uma ironia cruel da natureza, ou do destino, fez com que chovesse
em Nevala na noite de 29 de Novembro de 1916. Em torno do
pequeno fortim instalado no cimo de uma escarpa voltada para
a selva que segue até às margens do Rovuma, muitas centenas de
soldados portugueses resistiam há uma semana ao cerco que os alemães
haviam montado. Após “oito negros e amargurados dias”, na descrição
do alferes Carlos Selvagem, a fome e a sede começavam a entupir as
trincheiras de cadáveres. Todas as tentativas do quartel-general, a 200
quilómetros de distância, para romper o cerco tinham fracassado.
“Nada havia a esperar, pois. Nem mais uma noite na fortaleza maldita”,
desejava o alferes António de Cértima, autor da memória Epopeia
Maldita. Estava na hora de abandonar Nevala. Na noite escura de 29
de Novembro, quando os soldados se preparavam para a fuga, choveu
finalmente e os soldados puderam mitigar a sede acumulada há dias.
Mas era tarde de mais para ficar.

A saga dessa noite dava matéria suficiente para um sem número de
ensaios, de novelas e de filmes. Por horas viveu-se a angústia do medo
e a euforia da libertação, o desejo de abandonar o forte e a ansiedade
sobre o que se esconderia pelo caminho, a necessidade de matar a fome
e o risco de entrar num território desconhecido onde nada houvesse
para comer. Do forte de Nevala avista-se, ao longe, o vale do rio Rovuma,
onde haveria água e, na margem sul, bases do exército português onde
se poderia sobreviver. Mas para os soldados habituados a três meses de
caminhadas pela selva esse cenário estava longe de ser uma garantia e
ainda menos um conforto. O manto verde e impenetrável que se estende
por detrás do forte, a selva dura de África, é tão belo como enigmático,
tão exuberantemente colorido como ameaçador.

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A Quivambo figura entre os lugares do heroísmo português na gigantesca estátua dedicada aos soldados
que morreram na Primeira Guerra Mundial em Moçambique que ainda hoje se encontra em Maputo, mesmo
em frente à velha estação de caminhos-de-ferro

Para o que restava da Coluna de Masasi, porém, não havia escolha
possível. Há oito dias que estava isolada, com a primeira linha de
trincheiras alemãs a apenas 200 metros do posto avançado. Pelo lado do
ligeiro declive que fica em frente ao forte, a fuga teria de romper essas
linhas, uma missão irrealizável por uma tropa desmoralizada e faminta.
Restava a descida da escarpa íngreme voltada para o sul, a primeira
escada de um caminho que levaria até à selva e, com sorte, ao Rovuma.
Os sitiantes, que faziam parte dos destacamentos Heinrichs, Sprockhooff
e Rothe seriam uns 500, cerca de metade da força portuguesa, e tinham
deixado os rijos combates no Norte contra os britânicos e sul-africanos
para acabar com as veleidades portuguesas. Mas podiam ser abastecidos.
E por volta do dia 27 soube-se que tinham instalado a cinco quilómetros

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o temível canhão do Konigsberg, um

Saltando à escarpa couraçado afundado em Julho de 1915
da vertente a coluna em Dar-es-Salam, após cinco horas de
de retirada por aí se bombardeamento inglês, e entretanto
arrastado pelo mato por milhares

esgueirou, na treva da de carregadores indígenas, capaz de
noite, esfarrapando- efectuar disparos até 13 km de distância.
se nos galhos agudos
do mato, rasgando as Quando a noite caiu sobre o forte,
começaram os preparativos. Tudo
o que não pudesse ser transportado

carnes, as mãos e as seria destruído. Atónitos, os soldados
faces, caminhando famintos vêem entrar no rol vinho,
agachada, sem norte, latas de conserva, leite em pó ou tabaco
sem bússola, ao acaso, francês, que tinham estado reservados
aos oficiais, apesar da fome devastar

em demanda das a tropa. “Enquanto, sob seu mando,
areias claras do rio um arsenal cerrado de comestíveis
especiais e colunas de Milk das melhores
Carlos Selvagem, firmas da Holanda dormiam nas pilhas
em “Tropa d’ África” soberbas dos depósitos, os miseráveis

que no frio lamacento das trincheiras

velavam pelo nome e glória da pátria emborcavam copos de urina salgada

e mastigavam, aflitos, folhas tisnadas de vegetais”, lamentaria, revoltado,

António de Cértima, um dos alferes sitiados em Nevala.

Às dez da noite de 29, colocam-se mantas em paus nas balaustradas

do forte para simular a presença de sentinelas. A grande fuga estava

para começar. Em silêncio, cerca de mil homens reúnem o que podem,

amparam-se e embrenham-se na noite escura. “Saltando à escarpa da

vertente a coluna de retirada por aí se esgueirou, na treva da noite,

esfarrapando-se nos galhos agudos do mato, rasgando as carnes, as mãos

e as faces, caminhando agachada, sem norte, sem bússola, ao acaso, em

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demanda das areias claras do rio”, recordaria Carlos Selvagem na sua
memória Tropa d’ África. Poucas horas mais tarde, uma companhia do
Regimento 21, comandada por Francisco Curado, é a última a deixar
o forte. Portugal tinha perdido o seu mais valioso troféu da campanha
africana. E, com ele, ficaria esgotada a fina flor da sua mais importante
expedição a Moçambique.

Objectivo: Masasi

Quem visse esses homens poucas semanas antes não teria dificuldades
em imaginar o que os esperava. Um mês de marchas forçadas pela selva
desde que, a 19 de Setembro, tinham atravessado o Rovuma e pisado
o solo da colónia alemã da África Oriental, que na altura abrangia a
região dos Grandes Lagos e o Tanganica, tinham arrasado as tropas.
Uma semana depois de terem dominado o forte, que tacticamente
fora abandonado pelos alemães, as baixas por doença assumiram uma
proporção assustadora. Sete dias bastaram para que todos os oficiais do
Estado-Maior tivessem de retirar para a base, em Palma, com problemas
de saúde, deixando o comando temporariamente entregue a Torre do
Vale. António de Cértima notava que “os contingentes tinham-se reduzido
assombrosamente. A infantaria branca apresentava um efectivo de 22
espingardas; a negra de 300, aproximadamente”.

A 4 Novembro, o general Ferreira Gil, comandante da expedição, envia
um telegrama para Lisboa avisando que “o estado de saúde das tropas
é péssimo”, pelo que as “operações terão de interromper-se em fins de
Novembro”. Em Lisboa, porém, as prioridades militares do momento
colocavam a frente do Rovuma numa linha remota de prioridades. A
preparação dos primeiros embarques do Corpo Expedicionário Português
para as trincheiras da Flandres, que aconteceriam daí a dois meses (a 30
de Janeiro de 1917), era nesse momento o foco das atenções do Governo
e das altas patentes de Lisboa. Não haveria reforços tão cedo. A 15 de

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