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Na passagem dos 100 sobre o início da I Guerra Mundial

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Published by madroal, 2019-08-16 13:53:30

I Grande Guerra

Na passagem dos 100 sobre o início da I Guerra Mundial

Grande Guerra • Grandes Reportagens

Novembro, é o próprio comandante Ferreira Gil a avisar o Ministério da
Guerra que “junta de saúde dá como incapaz de continuar ao serviço das
colónias, devendo recolher à metrópole”.

A recusa, ou incapacidade, de Lisboa em enviar novos contingentes
nesse momento em que o exército português tinha conseguido
estabelecer uma ponte no coração do território inimigo seria mais tarde
vista como um atestado de incompetência do Governo. “Foi a falta deste
reforço de homens válidos que o general Gil insistentemente pedira para
entrar em Palma nos princípios de Novembro que fez com que as forças
cercadas em Nevala não pudessem ser socorridas com força suficiente
e se desse o escorraçar de todos os postos que tínhamos em território
alemão”, protestaria meio ano mais tarde o deputado oposicionista
Vasconcelos e Sá, médico, capitão-de-mar-e-guerra e republicano

Travessia do Rovuma

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moderado. “Então para França calcula-se e convenciona-se com a
Inglaterra o envio mensal de 4000 homens para manter os efectivos
no nosso sector e para África não se manda sequer um soldado para
substituir os doentes e ordenam-se avanços loucos de profundidade de
centenas de quilómetros?”, acrescentaria em tom inquisitório o deputado
nas suas invectivas contra o Governo.

Em Palma, Gil ia gerindo a situação como podia. A 2 de Novembro sai
para Nevala um novo contingente comandado pelo capitão José Maria
Pereira. Vão de camião, por estradas entretanto abertas. Seis dias depois,
porém, ainda estavam a caminho. Chegaram a Mahuta e souberam que os
alemães rondavam o forte. O substituto do capitão Liberato Pinto tinha
entretanto sido nomeado, no que foi uma das poucas boas notícias para
os soldados e oficiais nesse interminável compasso de espera de um mês
em Nevala. Leopoldo da Silva, major, chegou ao forte e impressionou
os soldados “com o seu aspecto viril e inquieto, com o seu séquito de
artilheiros todos rútilos e altivos nas fardas vistosas”, na descrição de
António de Cértima. Era “a mais pura alma de soldado que pisara aquelas
areias hostis”, na avaliação de Carlos Selvagem.

Com o novo comandante não seguiram apenas reforços, mas um
pesado caderno de encargos. Pela moderna estação de TSF, instalada a
uns 400 metros do forte, chegavam ordens reiteradas de Palma para que
a Coluna de Masasi regressasse à ofensiva e ocupasse a cidade homónima,
a uns 70km no noroeste de Nevala. Ferreira Gil era impotente para conter
a megalomania de Lisboa. Limitava-se a pedir o que lhe exigiam, cada
vez com menos resistência – a sua saúde deteriorava-se e as más-línguas
diziam que passava os dias entretido em partidas de bridge com os seus
oficiais, em Palma. No ponto terminal da cadeia de comando, Leopoldo
da Silva era quem tinha de suportar as consequências do delírio da guerra
pensada nos gabinetes.

O capitão Francisco Curado, que na altura era já o mais respeitado oficial
de todo o exército português em Moçambique, tenta chamá-lo à razão. Dá-

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Rio Rovuma

lhe conta das dificuldades em criar uma força capaz de avançar no terreno
difícil da actual Tanzânia. Lembrou-o que o Inverno estava à porta e que,
após as chuvas, Nevala ficaria isolada, entregue à sua sorte, impossibilitada
de receber o que quer que fosse de Palma. As memórias dos que
participaram nesse dilema garantem que o major não dormiu nessa noite.
Mas as ordens são para cumprir e a 8 de Novembro, por volta das quatro
da manhã, pouco antes do nascer do sol na África tropical, a coluna parte
para Masasi. Seriam uns 23 oficiais, 347 praças europeias e 399 indígenas,
com 330 carregadores, 486 espingardas, quatro metralhadoras e duas
peças de artilharia. “Um punhado de maltrapilhos agarrados na véspera ao
acaso, sem discussão, sem recusas e, cegos pela vontade férrea do chefe,
electrizados pela sua grande alma, acompanhando-o como escravos”, na
descrição sempre cínica de António de Cértima.

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A meio da manhã estão em Lulindi, a Quivambo que figura entre

os lugares do heroísmo português na gigantesca estátua dedicada aos

soldados que morreram na Primeira Guerra Mundial em Moçambique

que ainda hoje se encontra em Maputo, mesmo em frente à velha

estação de caminhos-de-ferro. Se

O círculo fechou-se seguiram a mesma estrada que hoje
num anel de fogo, liga Nevala a Masasi tiveram de subir e
descer montes sinuosos, entre o mato

crepitante, raivoso, ou por trilhos poeirentos, nos primeiros
feroz. Enfim, quilómetros do percurso. À frente iam o
estávamos cercados capitão Melo e o alferes Craveiro Lopes,
futuro presidente da República. Lopes é

António de Cértima, nas o primeiro a detectar o inimigo. O pavor
memórias “Epopeia Maldita” de uma emboscada como a de Mahuta,

um mês antes, instala-se com a troca

dos primeiros tiros. À ordem dos comandantes, os soldados organizam-

se em posições defensivas. Como quase nunca acontecera até então,

parecem um exército moderno e competente.

Logo depois, o impensável acontece. Leopoldo da Silva tenta uma

manobra de envolvimento. As munições começam a faltar. O major chega-

se à linha da frente, acompanhado por soldados que transportavam

cunhetes de pólvora. “Duas balas certeiras atingem-no logo em cheio,

uma sobre o ventre, outra sobre o ombro”, recordaria Carlos Selvagem

- além de Leopoldo da Silva, um outro soldado português foi vítima das

balas alemãs. Sem comandante, quem deveria comandar era o oficial mais

antigo, o capitão Baptista, que recusa, “alegando sei lá que pessoalíssimas

razões”, como ironicamente assinalaria António de Cértima. Ainda

assim, os soldados resistem e ripostam com energia. Seis horas depois, o

combate prosseguia e os refrigeradores das metralhadoras tinham de ser

enchidos com urina. É então que os alemães do comando Sprockhooff se

retiram por falta de munições.

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Ao longe avistava-se Masasi. Mas faltava tudo para prosseguir. À uma
da manhã, a coluna regressa a Nevala. “Sorrateiramente, solenemente,
o bivaque levantava para Nevala, em ordem, sem deixar uma correia
ou fivela de bornal. Era a primeira retirada”, diria António de Cértima.
Quando chegaram, Carlos Selvagem viu uma fila de homens “exaustos e
trôpegos”, mas que guardavam “por consolação única a memória de uma
tarde gloriosa em que gente portuguesa soubera ainda ter a alma dos
antigos soldados, soubera ainda bater-se e morrer”.

O assalto ao forte

O consolo, porém, era pouco. Sabia-se que os alemães estavam cada vez
mais perto do forte. No mesmo dia da emboscada de Quivambo, tinham
atacado o posto de Mahuta, onde uma forte resistência lhes causou 17
baixas, entre as quais dois soldados europeus. A proximidade era prova
que o limite da missão da Coluna de Masasi tinha ficado circunscrito
a Nevala. Por enquanto, ao menos. Von Lettow-Vorbeck, o genial
comandante alemão, investe tempo a recompor as suas tropas, perdidas
em destacamentos algures no interior planáltico do Tanganica. As suas
sucessivas missões de reconhecimento traçam um retrato do poder
de fogo dos portugueses. De acordo com as memórias de guerra dos
alemães, haveria 500 homens em Mahuta, entre 300 e 400 no interior
do forte, 800 junto à ribeira de Nevala, onde havia também artilharia,
calculavam os seus espiões.  

No dia 19, o novo comandante da coluna, o major Aristides Cunha, está
em Quivambo e apercebe-se que, do lado alemão, algo de importante
está para acontecer. Regressa célere a Nevala e prepara-se para o pior.
Na madrugada do dia 22, os alemães estão nas imediações do forte. “O
círculo fechou-se num anel de fogo, crepitante, raivoso, feroz. Enfim,
estávamos cercados”, constataria António de Cértima. Para começar,
os alemães deram o mesmo passo que os portugueses um mês antes:

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Interior do forte de Nevala

atacaram a Ribeira de Nevala, o ponto estratégico que dava acesso a água
potável. Após 12 horas de combate, que chegou a envolver luta corpo-a-
corpo e assaltos com baioneta, os portugueses tiveram de retirar por falta
de munições. O alferes Pires de Matos tombou no combate. O tenente que
comandava a força foi derrubado com uma coronhada e ficou preso.

Onze soldados escapam da chacina, improvisaram uma bandeira
branca e correram até à escarpa. Foram recebidos de braços abertos,
como “pobres foragidos”, diria António de Cértima. Agora, só um milagre
vindo de Palma capaz de romper o cerco poderia salvar a coluna que
se amontoava em volta do forte e nas trincheiras do pequeno planalto
que lhe é sobranceiro, onde hoje se situa o bairro dos polícias de Nevala.
Desesperado, Ferreira Gil, que adiara o seu regresso por baixa a Lisboa,
avisa o Governo a 25 do que se estava a passar. Diz que “os alemães têm

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concentrado forças contra Nevala tendo cortado comunicações”. Pede

que digam a data do embarque da expedição de 1917, “com o fim de

reanimar tropas”. De Lisboa, uma vez mais, o silêncio.

Com o passar dos dias do cerco, a situação agrava-se. A água começa

a faltar, a estação da TSF, colocada a 400 metros do forte, estava a ser

alvo de ataques do inimigo. Por desgraça, a chuva não caía. Em Palma,

Ferreira Gil pede voluntários para uma “Coluna de Socorro a Nevala”.

Azambuja Martins e Viriato de Lacerda, outro oficial do escasso rol

de heróis da Primeira Guerra em Moçambique, que viria a morrer na

ofensiva alemã de 1917 em Mecula,

A infantaria dormia, oferecem-se. Há mais dois sargentos e
comia, vivia todas as um cabo que dão um passo em frente.
suas horas alapada No essencial, porém, Palma não passava
de um imenso hospital. Os escassos

nas trincheiras, homens preparados para combater que
sem poder quase sobravam da terceira expedição estavam
deitar a cabeça, encurralados em Nevala.
um braço, de fora
O comandante recorre então a
medidas extremas. Considera válidos

Carlos Selvagem, todos os homens em convalescença.
em “Tropa d’ África” Consegue assim formar uma força de

11 oficiais e 252 praças que correm para

Nevala. Era uma “coluna de inválidos”, diria Américo Pires de Lima,

oficial médico que assistiu a toda a angústia desse final de Novembro

em Palma. A missão de socorro ainda chegou a Mahuta, onde trava um

combate feroz com os alemães. Mas não consegue passar. Ao longe,

os sitiados ouviam as descargas. Sem esperança. “Pouca confiança

púnhamos já no resultado da luta”, recordaria António de Cértima.

Dentro do perímetro cercado, a situação chegava ao limite. A

proximidade das linhas da frente dos alemães impedia qualquer

movimento. “A infantaria dormia, comia, vivia todas as suas horas

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alapada nas trincheiras, sem poder quase deitar a cabeça, um braço,
de fora”, escreveria Carlos Selvagem. O pior, porém, era a sede. “Logo
aos primeiros dias a falta de água começou a toldar das suas tintas de
tragédia a vida da pobre gente sitiada. E esgotados os cantis, os sacos de
lona, todos os recursos, foi à água suspeita de duas cisternas da fortaleza
(em que ninguém havia tocado até então pela certeza de estarem
envenenadas) que se recorreu”, continua o alferes. Foi necessário colocar
uma sentinela nas cisternas para travar o desespero.

Exaustos, os soldados deixavam-se cair no fundo das trincheiras, e
“por mais pontapés, por mais ameaças que se lhes fizesse de pistola
em punho, os míseros a nada se moviam e acabavam por encolher
os ombros, insensíveis a tudo, numa voz já moribunda: ‘Pode o meu
alferes matar-me, porque eu já não posso mexer-me’”, lembraria Carlos
Selvagem. “Às vezes, quando era preciso ir de uma trincheira a outra,
tinha-se a impressão de caminhar entre náufragos: dezenas de mãos
fincavam-se como garras às nossas pernas, segurando-nos, detendo-
nos, enquanto um elegíaco clamor de catacumba se entornava em
lágrimas, a pedir água, suplicando água… pelo amor de Deus, pela
Santíssima paixão do Senhor! E entontecidos, com a piedade rota numa
asfixia de angústia, nós fugíamos, fugíamos, apavorados”, escreveria
António de Cértima.

Ao sétimo dia, o comando percebera que o tempo de espera e a
capacidade de resistência dos soldados tinha acabado. Uma granada tinha
destruído a estação de TSF, tornando o cerco ainda mais doloroso. “Os
negros morriam, atulhando as trincheiras da esplanada, aonde por fim se
tropeçava indiferentemente nos seus cadáveres amontoados”, lembraria
Carlos Selvagem. A falta de água, agravada pelo calor de Novembro,
propagava ataques de loucura. De noite, os que tinham alguma réstia
de energia saltavam das trincheiras para molhar os lábios com as gotas
de orvalho na folhagem das árvores. No dia 27, fica decidido que os
sobreviventes partiriam no dia seguinte.

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Para todos os efeitos, a ousadia de romper o cerco descendo a escarpa
sinuosa que fica nas traseiras do forte foi um sucesso. A maioria salvou-
se, da morte ou da prisão, mas o custo foi elevado. A viagem pela
selva de uma multidão de homens cambaleando fez-se com actos de
solidariedade, mas muitas vezes impôs-se o mais elementar sentido de
sobrevivência. Os homens tentam agarrar no dólman do que segue em
frente, para não se perderem no matagal. Na pressa da fuga, porém, nem
sempre havia lugar para a compaixão com os feridos. “Transportados
em machila por carregadores negros, lá acompanharam a coluna.
Esta, porém, por motivo da escuridão e pelas dificuldades do terreno,
desorganizou-se a breve trecho. Os carregadores, livres de vigilância dos
brancos, deram largas ao instinto da própria conservação, abandonando

Carregadores de mercadoria em Kilambo, na Tanzânia

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alguns desgraçados a uma morte lenta e horrível no meio da floresta
virgem”, escreveria Américo Pires de Lima nas suas memórias.

Alguns conseguiriam chegar às margens do Rovuma nessa
madrugada. Estavam salvos. “Foram minutos, foram sofreguidões que
não se esquecem mais”, recordaria Carlos Selvagem quando mergulhou,
“louco de alegria”, nas águas quentes do rio. Francisco Curado chega
ao Rovuma às duas da tarde. Mas António de Cértima perde-se, dá uma
volta na escuridão e de madrugada apercebe-se que tinha regressado
a Nevala. No dia 30 à noite podia finalmente matar a sede nas águas
duvidosas do rio, ainda hoje um foco permanente de disenteria que
causa vítimas entre a população ribeirinha.

O pânico em Palma

No dia seguinte à fuga, pela madrugada, os alemães começaram a
bombardear o forte com o canhão do Konigsberg e surpreenderam-se
com a ausência de reacções. Quando se apercebem da fuga, lançam a
perseguição aos foragidos. Primeiro procuram-nos nas imediações, mas
constatam que levavam várias horas de vantagem. Em Mahuta encontram
os destroços fumegantes do posto abandonado. Os portugueses tinham
regressado ao seu território. Seria lá que os destacamentos de von Lettow-
Vorbeck os iriam procurar e combater. A ousadia da invasão teria um
preço para os portugueses. Altíssimo.

Em Nangade, o posto onde a maioria dos fugitivos chegou dois dias
depois da fuga, vivia-se o caos. “Havia uma única tenda Tortoise com
uma lotação máxima de 15 camas, que teve de alojar levas de 50 a 100
homens”, lembraria ao Governo, em jeito de vexame, o deputado
Vasconcelos e Sá. É para lá que os alemães se dirigem. Durante 48 horas,
os carregadores negros arrastam pela selva o canhão do Konigsberg e no
primeiro dia de Dezembro estão em condições para cumprir a vingança.
Da outra margem, disparam com tal precisão que logo Azambuja Martins

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Picada entre Masasi e Nevala

suspeitou que “o adversário estava perto” e que “o combate iria ser
travado em desfavoráveis circunstâncias para nós, pelo esgotamento das
nossas forças e pela acção de surpresa que sofríamos”.

“Ao segundo tiro, uma granada de grosso calibre”, recordaria
Carlos Selvagem, “arrasa desde logo todo e qualquer propósito de
reorganização”. O pânico instala-se e a ordem possível no aquartelamento
só pode ser restaurada com a ameaça de armas. Muitos fogem para a
base de Alto da Serra. “Ficaram apenas, com meia dúzia de soldados
mais fiéis ou mais dignos, os oficiais, alguns médicos, um ou outro
sargento, os enfermeiros da ambulância”, recordaria Carlos Selvagem.
Nangade desfazia-se. “Pela noite dentro, moleques e carregadores macuas
trepavam as fragas do posto a cair de bêbados, numa grita de selva,
vomitando à farta a vasa infecta de vinho que horas antes não quiseram

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distribuir à tropa branca. E

nos crepes da treva estrelar,

lá em baixo, uma coluna de

fogo subia, orgíaca, para o

céu, como taça de festim que

se partisse e incendiasse no

espaço, rubra e azul… Era

Nangade a arder”, descreveria

António de Cértima.

Num ápice, o boato de

que os alemães já tinham

atravessado o rio propaga-se.

De novo em fuga, desta vez

descontrolada, o que restava

da coluna de Nevala dirige-se

agora para Matchemba, a 35

kms, por ordem de Azambuja

Martins, que descreve esse

êxodo: “Uns iam rotos,

Carlos Selvagem, em 1916, no norte de Moçambique DR outros descalços, outros
ainda com algum retalho

de saco a servir de tanga, à maneira indígena, e todos mais ou menos

com uma infinidade de objectos, colhidos nos cestos das ambulâncias,

pendendo dos equipamentos”. Chegam a 2 de Dezembro e descobrem

um campo desolado, sem defesas preparadas, sem lugar para acolher

os soldados exaustos. Ficam aí cinco dias, até que o alarme de que os

alemães estavam a sete quilómetros levam a coluna a fugir uma vez mais,

uns para Pundanhar, a única base que restava antes de Palma, outros para

Mocímboa da Praia, uns 100 quilómetros mais a sul.

Na base que albergava o comando olham-se com estupefacção os

soldados que iam chegando em grupos dispersos. Pires de Lima recebeu

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400 desses homens deprimidos pela derrota e gastos pela odisseia da

fuga. “É indescritível o estado de miséria em que chegaram; fardas

esfarrapadas, o capacete amolgado, com os pés a saírem pelos buracos

das botas, faces chupadas e macilentas, olhos brilhantes de febre,

infundiam piedade aos mais empedernidos”. Um grande número deles,

inquiridos sobre a sua doença, respondia apenas: “É só fome, senhor

doutor”. Três meses depois de saírem de

Os negros morriam, Palma, os soldados estavam de regresso
atulhando as em jeito de “turba em debandada”,
trincheiras da carregada de “andrajos e de opróbrio”,
diria Carlos Selvagem.

esplanada, aonde A chegada aflitiva do que restava do
por fim se tropeçava exército prenunciava o pior. Um ataque
indiferentemente alemão a Palma seria tão fácil como fatal.
nos seus cadáveres “Viveram-se horas amargas em Palma
nos dias que se seguiram à retirada de

amontoados Nevala. Praticamente não havia soldados
válidos, de modo que pareceu irrisório
Carlos Selvagem, cavar alguns quilómetros de trincheiras,
em “Tropa d’ África”

que pobres doentes, a tiritar de febre,

ocupavam durante a noite”, escreveu Pires de Lima. Como notaria Carlos

Selvagem, a base “encontrava-se justamente à mercê do inimigo, entregue

à mão de Deus, com os seus barracões, os seus depósitos, todo o seu

precioso recheio”. Em desespero, o comando lança mão de todos os

meios para a defender. O vapor Moçâmedes, que largara Palma carregado

de feridos e doentes rumo a Lourenço Marques, é mandado regressar.

Todos os que pudessem andar foram mobilizados para o que se esperava

ser o combate definitivo. Conseguem-se 500 soldados, entre os doentes

menos graves. Os que se tinham em pé.

Mas, onde andariam os alemães? Em Nangade, em Pundanhar, em

Matchemba? Com a rede de postos laboriosamente montada nos dois

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últimos anos destruída, ninguém sabia ao certo, ninguém podia saber.
Inventa-se então um ardil para se tirarem as dúvidas. Envia-se uma
delegação, comandada pelo capitão de artilharia Ferreira da Silva, com
bandeira branca e intérprete para “dessa forma astuta e fácil, sem se
trocar um tiro, reconhecer a situação, efectivo e intenções do boche”,
contaria Carlos Selvagem. O pretexto seria enviar roupas e medicamentos
para os feridos e prisioneiros e obter o cofre com o testamento do infeliz
major Leopoldo da Silva.

A operação parece correr bem. Mas no regresso de Sicumbiriro, já de
noite, quando o Buick da delegação cruzava o posto de Matchemba, é
alvo de um ataque alemão, dirigido pelos mesmos oficiais que a recebera.
Ferreira da Silva é abatido. Câmara Leme, o intérprete, salva-se depois de
gritar as suas credenciais aos oficiais alemães, que suspendem o fogo e o
libertam – os relatos não nos permitem saber se o ataque foi um acidente
ou uma acção deliberada.

A presença alemã em Matchemba, a menos de 100 km de Palma,
agrava o pânico no alto comando. “Na lividez da manhã, Palma acorda
mais lívida na ansiedade do que acontecerá esse dia, de como findará
esse dia”, diria Carlos Selvagem. Ferreira Gil envia um telegrama para
Lisboa no qual avisa “que pediu ao general Smuts [comandante das tropas
britânicas] algumas companhias das tropas inglesas para reforço e defesa
de Palma”. Os alemães, avisava ele, “dispunham de uma força de 1000
indígenas, ocupam os nossos postos de Nangade e Matchemba, ameaçam
atacar o de Pundanhar, manifestando ter por objectivo Palma.” Para
salvar o que fosse possível, anuncia ao Governo que tentaria embarcar
“a bordo do Chinde e do Moçâmedes a máxima quantidade de material
de guerra, víveres e munições” Repetindo a sua permanente receita,
acrescentava ainda que “o moral e saúde das nossas tropas são péssimos”.

Ernesto Vilhena, ministro das Colónias, argumentaria na sessão
secreta do Parlamento da República, a 17 de Julho de 1917, que Ferreira Gil
manifestou “incompetência e temor” porque, segundo informações do War

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Office, a força dos alemães seria constituída por “apenas 300 espingardas”.
Talvez esta previsão fosse a mais correcta. Mas, mesmo sabendo que as
forças portuguesas seriam facilmente batidas apesar do seu número, os
alemães não atacaram. Por dificuldade de recursos, mas também pela
exaustão de um exército que andava há dois anos a vaguear pelo coração
do continente, em permanente combate com belgas, ingleses, sul-africanos
e portugueses. Quando o couraçado britânico Princess e mais dois navios
de guerra fundeiam na baía de Tungue, era improvável que um exército
que que sempre preferiu a guerrilha ao embate frontal ousasse atacar.

A 17 de Janeiro de 1917, uma nota da Presidência do Ministério,
publicada no Diário do Governo, notava que “num desses fluxos e
refluxos que tem sido a característica da guerra actual”, os portugueses
foram forçados a “ceder momentaneamente algum terreno” na colónia
alemã. Mas com o mesmo tom de irrealismo e propaganda de sempre,
o ministério da União Sagrada garantia que, “em breve, as nossas tropas
recuperarão todo o terreno que tiveram de abandonar por um incidente
de campanha, e farão novos avanços, batendo completamente os alemães
no seu próprio território, e hasteando ali, definitivamente vitoriosa, a
bandeira de Portugal”.

Contrariando esta visão idílica, em Palma dão-se graças pela presença
dos ingleses e fazem-se preces pela bondade da chuva. O inverno
torrencial dos trópicos em breve tornaria o Rovuma inultrapassável e
as estradas em rios de lama intransitável. A expedição estava salva. Ou
o que restava dela. “Frangalhos de sete a oito mil homens, mil contos
de material de guerra abandonado ao inimigo, a certeza melancólica
de decisivos reveses”, na descrição de Carlos Selvagem, era tudo o que
poderia levar na memória quando chegasse a hora de partir.

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Os soldados privados
do eterno descanso

Na baía de águas azuladas, ainda hoje há dezenas de pequenos barcos de vela triangular como os que
escoltaram os navios portugueses

ManuelCarvalho (texto)eManuelRoberto(fotografia), em Mocímboa da Praia

Em 1956, o Estado Novo decide homenagear os mortos na
Primeira Guerra em Moçambique e constrói um mausoléu em
Mocímboa da Praia, onde deposita os restos mortais de soldados
tombados em Quionga ou nos territórios dos macondes. Esse
ossário foi profanado e hoje os esqueletos dos soldados estão ao

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ar, no interior de um templo corroído pelo tempo e pelo viço da
natureza tropical. Com a cumplicidade do estado e da nação,
para eles não houve lugar ao eterno descanso.

“Dulce et decorum est pro Patria mori”. O verso de Horácio que atesta
a beleza e a nobreza da morte ao serviço da pátria dificilmente
poderia soar mais vazio e mentiroso do que na porta de
entrada no mausoléu em ruínas no cemitério de Mocímboa da
Praia, erigido pelo Estado Novo para perpetuar a memória dos soldados
portugueses que tombaram na I Guerra Mundial no Norte de Moçambique.

O mausoléu conserva ainda a imponência da estátua de uma figura
feminina que segura a espada com a mão direita e ampara um escudo com
as armas nacionais com a esquerda. Mas, no seu interior devastado pelo
tempo, pelo saque, pela natureza e pelo esquecimento, as tumbas onde se
encontram depositadas as ossadas dos soldados que caíram em Mocímboa,
em Quionga ou no território dos macondes são a prova de que nada, nem a
paz eterna, fez sentido naquela guerra. As pesadas pedras de mármore que
tapavam as sepulturas no interior do mausoléu foram arrastadas e restos de
fémures, de caveiras, de cúbitos assim ficaram ao ar, como testemunho do
abandono cultivado num país desmemoriado e ingrato.

Mocímboa da Praia é hoje uma pequena cidade instalada na coroa
de uma baía cruzada por barcos com as velas triangulares típicas do
Índico que há muito esqueceu o tempo em que acolheu a base da Quarta
Expedição das tropas portuguesas em guerra com os alemães na fronteira
do rio Rovuma. Já ninguém designa o promontório do norte da baía
por “Ponta Vermelha”, com os soldados portugueses faziam há cem
anos por comparação com o relevo similar que se encontra em Maputo.
Nenhuma das instalações militares construídas à pressa para receber as
tropas em 1917 resistiu à prova do tempo. Hoje, na sua parte alta e central,
Mocímboa continua a ser a cidade que os portugueses deixaram por

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alturas da independência. Uma cidade bem desenhada, com edifícios
esbeltos e bem construídos. Só o cemitério e o ossário ficaram como
testamento de duas guerras, a mundial e a colonial. Ambos foram votados
à ruína e ao esquecimento.

Amisse Juma, 76 anos, vive desde sempre na avenida que segue o Clube
de Mocímboa, o espaço de convívio dos tempos coloniais, e acaba no
cemitério. Olhos estranhamente claros e vivos, dono de um português de
nível raro nestas paragens onde o suaíli e os dialectos locais dominam,
ele lembra-se dessa guerra distante, conhece a história do ossário e do
cemitério. “Nesse tempo, a guerra andava de um lado para o outro e não
havia tempo para enterrar os mortos um a um. Faziam uma vala e por
lá ficavam”, diz. Até que, “em 1955”, se construiu aquele mausoléu para

Em 1955, construiu-se o mausoléu para acolher os restos mortais dos soldados dispersos por Quionga e pelos
territórios dos macondes

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“Dulce et decorum est pro Patria mori”.
As pesadas pedras de mármore que tapavam as sepulturas no interior do mausoléu foram
arrastadas e restos de fémures, de caveiras, de cúbitos assim ficaram ao ar, como testemunho
do abandono cultivado num país desmemoriado e ingrato.

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acolher os restos mortais dos soldados dispersos por Quionga e pelos

territórios dos macondes, no interior, para, juntamente com os que

pereceram em Mocímboa da Praia, lhes garantir o eterno repouso. Ele

lembra-se desses dias de obras e solenidade, como se lembra de fazer

perguntas aos mais velhos sobre essa guerra estranha e antiga.

Amisse acerta nas datas, lembra-se das memórias dos antigos que falam

de uma localidade de pescadores subitamente invadida por milhares de

soldados brancos, consegue indicar o local dos aquartelamentos, mas não

se recorda que o mausoléu foi inaugurado em 1956 pelo então presidente

da República, Craveiro Lopes, ele próprio

Os ossários um dos militares que sofreu as agruras da
permanecem com guerra nos combates em torno de Nevala.
as pesadas tampas No ossário, não ficaram os restos mortais
de todos os soldados – “alguns foram para

arrastadas, com os Portugal”, diz este ancião, sentado no
esqueletos ao ar, sem chão de entrada da sua palhota, com um
que ninguém se tivesse cofió na cabeça a indicar a sua devoção
preocupado em dar ao islão, exibindo com uma ponta de
vaidade o português que aprendeu no

o mínimo sentido ao curso de tipografia tirado na escola de
verso de Horácio que artes e ofícios da Ilha de Moçambique.
glorificava a morte
pela pátria E depois? Depois, “veio a
independência e aquilo ficou para ali”,
diz Amisse, que pelo meio troca umas

palavras com Shafi Sahid em suaíli

para lubrificar as recordações. Os portões de entrada enferrujaram

e o tempo apagou as armas portuguesas que lá estavam inscritas. No

cemitério, o mato tomou conta das campas onde a custo se lêem o nome

de colonos ou de soldados que morreram em combate nas operações

militares dos anos 60 e 70. No mausoléu, as raízes das árvores entraram

pela estrutura e ameaçam engolir tarde ou cedo o edifício. As janelas

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

No cemitério, o mato tomou conta das campas onde a custo se lêem o nome de colonos
ou de soldados que morreram em combate nas operações militares dos anos 60 e 70.
E, 30 anos passados, os ossários assim permanecem, com as pesadas tampas arrastadas,
com os esqueletos ao ar

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

e as portas há muito que desapareceram. Mas o pior, o que causa

arrepios no seu interior, é verificar que alguém profanou os túmulos,

o que, na opinião de Amisse e de Shafi, terá acontecido logo depois da

independência. E, 30 anos passados, os ossários assim permanecem,

com as pesadas tampas arrastadas, com os esqueletos ao ar, sem que

ninguém se tivesse preocupado em dar o mínimo sentido ao verso de

Horácio que glorificava a morte pela pátria.

Não é difícil imaginar as razões que

Nesse tempo, a guerra levaram as autoridades do Estado Novo a
andava de um lado escolher Mocímboa da Praia para acolher
para o outro e não o principal monumento em memória das
vítimas da Primeira Grande Guerra em

havia tempo para Moçambique. Foi nas suas colinas, nos
enterrar os mortos um barracões das tropas e nos hospitais de
a um. Faziam uma campanha que a explosiva combinação
vala e por lá ficavam do clima, das doenças tropicais, da falta
de higiene e de meios sanitários provocou

Amisse Juma o maior número de mortes de toda a

campanha militar em África. Descrita

como a “Sintra do Niassa” pela beleza

da sua baía e pelo cenário verde das suas colinas, Mocímboa escondia

um perigo. Américo Pires de Lima, um alferes médico, percebeu-o pouco

depois de registar na sua memória a visão idílica da “Sintra do Niassa”.

Escreveu: “Mocímboa repousava sobre um grande pântano subterrâneo…

Daí a vegetação luxuriante, que lhe fez atribuir uma designação tão pouco

merecida. Daí o facto de as roupas e o calçado, tirados à noite, aparecerem

de manhã húmidos e bolorentos”. A existência de pântanos implicava a

proliferação de mosquitos e a proliferação de mosquitos daria nervo ao

pior inimigo das tropas portuguesas em Mocímboa: a malária.

Quando se discutiram os planos da campanha para 1917, porém,

esse perigo subterrâneo não entrou nas contas da operação. No final

122

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de 1916, a derrocada da ofensiva portuguesa em território colonial
alemão tinha trazido o inimigo até às portas de Palma, a sede da
anterior base, e ninguém queria viver de novo esses dias de pânico que
só acabaram quando o couraçado britânico Princess atracou ao largo
dos aquartelamentos e as chuvas de Dezembro imobilizaram as tropas
germânicas. O novo comando militar, que depois da partida de Ferreira
Gil para Lisboa, no Natal de 1916, seria entregue às mãos do governador
de Moçambique, Álvaro de Castro, considerou mais prudente basear a
expedição que se preparava na metrópole um pouco mais longe da linha
de fronteira. Porto Amélia (actual Pemba), a uns 300 quilómetros do
Rovuma, era distante de mais. Mocímboa, a cerca de 100, era a solução
ideal. Depois, como Palma ou como Porto Amélia, Mocímboa situa-se na
coroa de uma baía que permite a ancoragem de navios de grande porte.

Em Fevereiro de 1917 já a sede do novo comando se tinha aqui instalado
e as primeiras tropas frescas desembarcavam do vapor Portugal. Três
meses mais tarde, no dia 14 de Maio de 1917, o oficial médico Américo
Pires de Lima recebeu ordens para se deslocar de Palma para o Quartel-
general em Mocímboa e, após uma viagem de 36 horas para vencer cerca
de 80 quilómetros numa machila transportada por 16 carregadores que
se revezavam sob a vigilância de um sipaio (polícia indígena), chegou à
Ponta Vermelha, do outro lado da baía, e viu “lá ao fundo a famosa Sintra
do Niassa”. O cenário não seria muito diferente do actual. Na baía de águas
azuladas, ainda hoje há dezenas de pequenos barcos de vela triangular
como os que escoltaram os navios portugueses. No porto de pesca que
os acolhe, até o ponto onde chega a maré alta, o peixe e os frutos do mar
são preparados e vendidos num dédalo de vielas pavimentadas com
restos de marisco e conchas, onde o odor do sal se tempera como o do
peixe, das especiarias e dos detritos de incontáveis origens. A sonoridade
de diferentes dialectos, da costa e do interior, e do suaíli, a profusão de
indumentárias, de negros, hindustânicos ou islâmicos, atestam a vocação
ancestral de Mocímboa para atrair as diferentes faces da cultura do Índico.

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A morte no 31 do Porto
Nesse mês de Maio já tinham chegado os primeiros contingentes
que, desejava-se, haveriam de limpar do registo as pesadas derrotas
militares de 1916. Em Fevereiro chega o Portugal com um batalhão
de infantaria de Braga. Em meados de Março o Moçambique traz
um esquadrão e oficiais que se dedicariam a instruir companhias
indígenas. Em Abril vêm regimentos do Porto e de Bragança. Como a
maioria das tropas recrutadas para África, os soldados desconheciam
em absoluto o que os esperava. Os cerca de mil homens do regimento
31 do Porto podiam suspeitar que tinham ido para as costas do Índico
como castigo pelas sublevações em que tinham participado no Outono
de 1916. Mas era impossível sequer imaginar que, três meses depois de

O Clube de Mocímboa, o espaço de convívio dos tempos coloniais

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chegarem a Mocímboa, dissessem com naturalidade e resignação: “Sou
do 31, tenho de morrer”.

A saga do mais desafortunado corpo militar que participou na Grande
Guerra em África começa nos dias 9 e 10 de Outubro de 1916, nas ruas do
Porto. A meio da tarde de domingo, 9 de Outubro, o que parecia ser uma
rixa normal entre um soldado, José Júlio de Mascarenhas, e um polícia faz
estalar dois dias de tumultos que alastram pelas ruas e deixam a cidade
em estado de sítio. No final da tarde do dia seguinte, uma multidão de
pessoas iradas e famélicas concentra-se na Praça do Coronel Pacheco e
desafia os polícias que se haviam refugiado no interior da 13ª esquadra
(que ainda hoje se encontra ali instalada). Segue-se uma troca de tiros. Um
polícia é barbaramente assassinado com disparos à queima-roupa. Outros
quatro são feridos.

Um inquérito policial acompanhado de perto pelo Ministério do
Interior constata que as responsabilidades pela insubordinação e da
violência cabem a soldados de dois regimentos baseados na cidade. Um
deles é o 31. Um cabo e dois soldados deste corpo são presos. O Jornal
de Notícias do dia 12 daria conta que outros três militares do regimento
tinham recebido assistência hospitalar na sequência da rebelião. No
inquérito, um depoimento, de Manuel José de Catalão, confirma que o
31 foi o regimento que mais se destacou nos distúrbios, mas notava “que
o souberam fazer, pois que o comandante até elogiou os praças por se
terem portado bem quando eles foram os piores”. Ao final de dois dias de
confrontos entre a polícia e os soldados, tinham morrido duas pessoas,
60 ficaram feridas e a polícia procedeu a 177 prisões.

Minado pela indisciplina, o regimento era um viveiro de criminosos
de delito comum que se dedicavam ao roubo, dentro e fora do quartel,
e aos ataques a polícias. A incapacidade de pôr a tropa na ordem levara
à demissão do comandante da região militar do Porto, o general José
Ribeiro Júnior. Correia Barreto, que o substituiu, não conseguiu melhores
resultados. Em Abril de 1917, o regimento registava 79 desertores entre

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Amisse Juma, olhos estranhamente claros e vivos, dono de um português de nível raro nestas paragens

as suas fileiras. Nessa altura, porém, o seu destino estava traçado. Como
acontecera na terceira expedição com 432 praças do regimento de
infantaria 21 e oito sargentos, as tropas do 31 foram muito provavelmente
transferidas para as Colónias nos termos do Regulamento Disciplinar.
Sousa Rosa, que comandaria as tropas portuguesas em Moçambique
depois de Setembro de 1917, lamentaria no seu relatório que os
contingentes que tinha ao serviço “eram mais elementos de perturbação
e indisciplina do que forças a aproveitar contra o inimigo”.

Chegados a Mocímboa, os soldados do regimento começaram a morrer
em catadupa. O médico Américo Pires de Lima, também ele do Porto,
tinha vivido o flagelo das doenças tropicais em Palma, tinha cuidado
de uma multidão de soldados famintos e arrasados moral e fisicamente
após a derrota de Nevala e tinha sentido o pânico que assaltou o Quartel-

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Na baía de águas azuladas, ainda hoje há dezenas de pequenos barcos de vela triangular como os que
escoltaram os navios portugueses

general das tropas portuguesas quando, em Dezembro de 1916, os
alemães se encontravam em Matchemba, a menos de 100 quilómetros
de distância. Mas seria em Mocímboa que viveria “as horas mais trágicas
que passei em Moçambique, as quais foram derivadas da hecatombe,
que exterminou quase completamente o batalhão do 31”. Ao contrário
da expedição anterior, desta vez não tinha havido qualquer vacinação
nem preparação prévia dos soldados para os riscos das doenças tropicais.
A abundância de pântanos criava condições terríveis de salubridade.
Cedo os soldados começaram a baixar às enfermarias com paludismo,
com destaque para a forma cerebral, disenterias, incluindo a disenteria
amibiana, e anemias, entre outras doenças causadoras de mortes.

Pires de Lima vivia ao lado desse drama. Nos seus primeiros dias
de estadia em Mocímboa, o que mais o parecia preocupar eram os

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Um carregador em Mocímboa da Praia

frequentes ataques de leões ao acampamento. A noite, “entrecortada
pelos temerosos rugidos do leão e pelo ruído fantástico dos mil
carregadores espavoridos”, não o deixava dormir. Pouco depois, a
morte frequente de indígenas desprotegidos tornou-se irrelevante para
a tragédia que se avolumava nos barracões das tropas brancas. “O meu
quarto fazia parte do corpo da enfermaria, estando separado dela por
uma parede que não atingia o tecto. Lá passei atrozes noites de insónia,
provocadas pelos horríveis ruídos que constantemente ouvia – gemidos
dos doentes, estertores dos moribundos, tudo isto acompanhado por um
cheiro pestilencial, que da enfermaria fechada exalava”. Quando, lá para
o final de Maio, a estação seca se instalou, Mocímboa transformou-se num
imenso campo de morte.

“Quando morreu o primeiro soldado (era do 30)”, recorda Pires de
128

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Duas mulheres em Mocímboa da Praia

Lima, “foram ao enterro o próprio comandante, major Carneiro, vários
oficiais e um grande número de praças. Pouco depois ia apenas uma
pequena deputação de soldados com um sargento. Mas como as mortes
fossem frequentes, os enterros passaram a fazer-se de noite, para não
espalhar o alarme. Finalmente, acabou a madeira para caixões, nem havia
quem os fizesse. Foram construídas duas tumbas que, transportadas
numa carroça, lá levavam, em sucessivas viagens, os cadáveres para o
cemitério. Finalmente, todo o pudor se desvaneceu, e a sinistra carroça,
puxada por uma mula e guiada por um preto, constantemente girava
entre a casa mortuária abarrotada de cadáveres e o cemitério”.

Passados apenas três meses desde a chegada, o 31 do Porto, sem dar um
tiro nem participar em qualquer operação militar, tinha 30% de baixas. Um
mês mais tarde, a 18 de Agosto, 203 dos seus 1074 homens tinham morrido

129

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e 511 estavam hospitalizados. Até ao final da campanha, o 31 deixou em

África 445 homens. “Todas as manhãs faltavam vários soldados à chamada,

e o sargento de serviço, que ia abaná-los à cama para os despertar, ia

dar com eles mortos. Dias houve [como o dia 3 de Julho de 1917] em que

apareceram assim mortos dez soldados”, escreveria Pires de Lima.

Condenados à inactividade enquanto se curavam as feridas da derrota

da campanha anterior e se preparavam as bases para a ofensiva de

Setembro, os soldados habituaram-se a conviver de perto com a doença

e a morte. Os critérios de escolha da

Passei atrozes base, a impreparação e a negligência,
noites de insónia, tornaram-se anedóticas, deixaram de
contar. “Acampámos num cemitério.

provocadas pelos Perguntei esta manhã a um negro o
horríveis ruídos que que são estes pequenos montículos
constantemente ouvia de terra, alinhados diante da minha
– gemidos dos doentes, palhota, dentro do perímetro do nosso
acampamento. Explicou-me que cada

estertores dos pedaço de terra cobre o corpo de um
moribundos, tudo isto morto. Aqui se enterravam, antes dos
acompanhado por um brancos escolherem este acampamento,
cheiro pestilencial, os negros que morriam lá em baixo,
em Mocímboa”, contaria o alferes

que da enfermaria Cardoso Mirão, que ali passou uma
fechada exalava curta temporada antes de partir para
essa odisseia louca e inútil em que se
Pires de Lima, médico transformou a Coluna do Lago Niassa.

Os soldados derretiam ao sol,

aborreciam-se com os cânticos corânicos, entretinham-se com as

m’namukas (mulheres), esmeravam-se em denegrir os “monhés”

(moçambicanos de origem indiana), assistiam incrédulos ao tratamento

dado aos indígenas que não pagavam o m’soco (o famigerado imposto de

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palhota) e passavam o resto do dia a ver uma expedição militar a desfazer-
se em doenças. Foi ali que a maioria soube o que era o paludismo e
sentiu o efeito das suas febres: Cardoso Mirão deixou-nos a sua própria
experiência desse horror: “Anunciam-se por um ligeiro mal-estar, um
arrepio, e logo após, calafrios pelo corpo todo. Estes calafrios aumentam,
põem-nos num tremor constante, sacodem-nos da cabeça aos pés,
atirando-nos para um canto impossibilitados de todo o equilíbrio. Assalta-
nos então um frio intenso, glacial e insuportável, que nos faz tiritar
compulsivamente, sem poder ou força de vontade, incapazes de nos
dominarmos”.

Pires de Lima habituara-se a isso, mas não esconde a sua emoção e
perplexidade quando descreve o horror do embarque de doentes para os
hospitais de Lourenço Marques. “O que eu tinha presenciado em Palma,
na ocasião da retirada de Nevala, e que me parecera o máximo da miséria
orgânica que o homem podia sofrer, ficava a perder de vista, comparado
com o espectáculo daquele embarque. Faces macilentas, olhos febris,
fardas a oscilar em cabides, verdadeiros cadáveres ambulantes se
dirigiam, em trágica procissão, para a ponte de embarque”. Muitos
morriam antes de entrar no navio. Houve um dia em que ficaram pela
praia os cadáveres de três doentes. Os médicos não os quiseram privar da
“última e suprema ilusão” de estarem a caminho da pátria.

Próximo destino: Negomano

Depois de Maio, a preparação militar para a campanha que se avizinhava
acelerou. Nesse mês os oficiais que haveriam de criar quatro companhias
de soldados indígenas partiram para a Beira, com a missão de criaram a
Coluna do Lago. Outras duas colunas estavam a ser organizadas com o
que restava das tropas desembarcadas, a Coluna de Negomano e a Coluna
de Mocímboa do Rovuma. O estado sanitário das tropas, porém, não
permitia grandes veleidades ao governador Álvaro de Castro. O estado de

131

Grande Guerra • Grandes Reportagens

Hoje, na sua parte alta e central, Mocímboa continua a ser a cidade que os portugueses deixaram por alturas
da independência: bem desenhada, com edifícios esbeltos e bem construídos.

ânimo, ainda menos. A expedição de 1916 estava de regresso à metrópole,
deixando mortos em Moçambique 6% dos seus 4483 soldados e 159
oficiais. A sua substituição estava já em curso. Por essa altura, em Julho,
o ministro do Exército, Norton de Matos, afirmava ao Parlamento: “Se
juntarmos aos contingentes europeus as forças indígenas que armámos
em Angola e Moçambique e as guarnições coloniais, podemos declarar
que temos um exército nas nossas colónias de 45 mil homens”. Por essa
altura, o efectivo das tropas nacionais em Moçambique era superior ao
dos alemães, reduzidos a um máximo 1600 soldados europeus e 12 mil
indígenas (os temíveis askaris).

Além de soldados, a expedição receberia equipamento com o
qual as tropas alemãs, há muito isoladas de qualquer contacto com
a metrópole, nem sequer ousavam sonhar. Nos primeiros navios de

132

Grande Guerra • Grandes Reportagens

1917 seguiram 53 camiões, quatro postos de telegrafia sem fios e uma
esquadrilha de aviação. Nem isso fez mover o ânimo da expedição, que,
por falta “impulso e alma”, acabaria por ser “pior do que as outras” na
avaliação suspeita do coronel Azambuja Martins, chefe do Estado-maior
do contingente de 1916. Por falta de assunto, a montagem dos aviões
Farman F-40 que vieram desmontados em peças tornou-se um assunto
de enorme expectativa.

Jorge Gorgulho, na descrição de Pires de Lima um “rapaz robusto, de
olhar rectilíneo e aspecto decidido”, tinha-se formado na Aeronáutica
Militar de Vila Nova da Rainha e foi para Moçambique para ser o primeiro
português a voar em África. Um dia, conta Pires de Lima, Gorgulho
“elevou-se majestosamente no ar e todos nós sentimos orgulho em que o
céu africano fosse violado por asas portuguesas. Só um homem abanava a
cabeça, apreensivo, perante as arrojadas manobras do aviador português.
Era o mecânico. Quando lhe gabaram a coragem e a perícia do piloto, ele
limitou-se a responder: ‘On ne fait pas cela!’”. No dia seguinte, o médico
estava no hospital e ouviu um estrondo. “No início de uma ascensão
audaciosa, o aparelho viera a estatelar-se no solo, explodindo e ficando
envolto em chamas. Acorreram os assistentes, desvairados, vendo sair
cambaleante, de entre os destroços ardentes, o infeliz aviador, a arder ele
próprio como um archote. O resto foi uma lenta e atroz agonia”.

A 12 de Setembro chega a Mocímboa da Praia o novo comandante da
expedição, o coronel Sousa Rosa. Meses antes, entre Fevereiro e Maio,
os  alemães tinham entrado sucessivas vezes no território nacional,
destruíram uma vez mais o forte de Maziúa, passaram a serra Mecula,
chegaram a Metarica, ameaçaram Montepuez, bem dentro do território
de Moçambique. Acossados no norte pelos britânicos, destacamentos
alemães passeavam pacatamente por Moçambique. As ordens de von
Lettow-Vorbeck eram claras: “Devastar bem o inimigo no Rovuma e
a sul do mesmo e obter comida e equipamento. Viver tanto quanto
possível, exclusivamente, do inimigo”. Em Outubro, numa missiva

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

dirigida ao governador da colónia alemã, precisaria que, “apesar de
todas as dificuldades de abastecimento que em breve se iriam fazer
sentir na África Oriental Alemã, a guerra pode e deve continuar. Uma
das possibilidades que se oferecia era deslocar a base de operações para
território português”.

A percepção do perigo impunha decisões. Tinha chegado a hora de
deixar Mocímboa e de partir para mais perto da frente. Os ingleses
recomendaram o reforço da linha defensiva do Rovuma e Sousa Rosa
parte para Chomba à cabeça do seu Estado-maior com uma força de
“praças de engenharia a quem só ensinaram canto coral”, de “praças
de artilharia que nunca fizeram fogo” e “praças de infantaria que
mal sabiam carregar a espingarda”, como depois lamentaria. A 20 de
Novembro, o comando move-se de novo para Nacature, um pouco a
sul da actual Mueda. Cinco dias depois, numa operação fulminante,
os alemães invadem o território português em Negomano e destroem
para sempre todas as expectativas de uma saída gloriosa para o
exército no Norte de Moçambique.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

A coluna dos penitentes

ManuelCarvalho (texto)eManuelRoberto(fotografia), em Mocímboa da Praia

A Coluna do Lago partiu de Mocímboa para subir o rio
Zambeze e combater com os ingleses na zona do Niassa. Mas os
ingleses recusaram a aliança e 1000 homens em armas viram-
se esquecidos e obrigados a caminhar 900 km pela selva, em
quatro meses de uma odisseia inútil. As memórias que nos
chegaram evocam a sua luta diária de resistência à fome e à
sede, o combate contra formigas e leões ou um embate contra
indígenas que acabou num horrível festim de brutalidade.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Numa manhã de Setembro de 1917, o segundo sargento Cardoso
Mirão esquece-se por um momento dos leões e das hienas que
o atormentaram nessa noite passada no forte de Milange e, num
momento de improvável relaxamento, deslumbra-se a ler jornais
de Portugal que alguém lhe enviara por correio. Os jornais eram antigos,
muito do que lá se escrevera fora já sujeito à erosão do tempo e à vertigem
da mudança num país e numa Europa em guerra. Mas, para o sargento
Mirão, esse mundo retratado nos jornais fora das poucas oportunidades
que tivera nos últimos meses para escapar a um absurdo quotidiano de
privações e de caminhadas extenuantes. Mesmo velhos, as suas páginas
eram “como janela aberta de par em par sobre o céu azul e o jardim
florido da nossa terra”, escreveria.

Até Milange, no território do Niassa, o sargento que integrava a Coluna
do Lago tinha caminhado uns 700 quilómetros, sofrera o ataque das
febres, passara fome e sede, as suas botas estavam desfeitas e deixavam os
dedos negros do pó à mostra, percebera que toda aquela campanha que
mandou para o mato quase mil soldados carecera de estudo, de inteligência
e de sentido de utilidade, sentira na pele as desavenças no comando.
Algures entre o nada e lugar nenhum, sabia que a paragem naquele forte
era passageira, que seria necessário continuar a caminhar dias e dias em
direcção a um destino impreciso e sem sentido. A Coluna do Lago estava
condenada a ser o mais brilhante testemunho do absurdo e do fracasso
em que as campanhas militares em Moçambique na Primeira Grande
Guerra se tinham transformado. Essa odisseia chegaria até nós através
dos apontamentos que os sargentos Cardoso Mirão, o alferes José Teixeira
Jacinto e o sargento Ernesto Moreira dos Santos nos deixaram.

A sorte da Coluna do Lago começa no Porto, algures nos meses finais
de 1916. A 21 de Dezembro desse ano, o governador de Moçambique envia
um telegrama ao Governo no qual diz que, “em vista da doença das tropas
europeias, julga vantajoso recorrer ao emprego de tropas indígenas”, pelo
que serão necessários “quadros e material de guerra” para a criação de

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

865751Coluna apeada de reabastecimento de géneros, entre Mocímboa do Rovuma e Negomano, em 1917 AHM

20 companhias. Álvaro de Castro tem pressa e pede a Lisboa que mande
a sua encomenda “no primeiro paquete”, porque as ofensivas de 1917
poderiam começar a ser lançadas após o fim da estação das chuvas, lá
para “fins de Março”.

Por essa altura, já todos tinham percebido com os sucessos militares
dos alemães que valia mais uma força indígena bem treinada e
equipada do que muitos contingentes de soldados brancos enviados à
pressa da metrópole. A adaptação dos indígenas ao clima, à escassez
de alimentos da dieta europeia e às doenças tinha sido um dos trunfos
da enorme mobilidade germânica nos dois primeiros anos da guerra.
Fora essa mobilidade, que mais tarde haveria de figurar como caso
de estudo nos manuais de guerrilha do século XX, que permitiu
aos alemães escapar durante quatro anos à pressão dos britânicos,

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

dos belgas, dos sul-africanos e dos portugueses que as suplantavam
largamente em número.

No final do ano, o governo de Lisboa prepara então a criação de novas
companhias indígenas. Jacinto, Mirão e Moreira dos Santos partem
no Moçambique, a 15 de Fevereiro de 1917, para as instruir. Um mês e meio
mais tarde estão já na Beira, onde tinham chegado recrutas de Sofala,
Sena e Manica. O aspecto inicial dos futuros soldados da República não
gera grande entusiasmo. “Aquela gente rude, de tangas curtas entre as
pernas e carapinha suja na cabeça, eram soldados apanhados a monte
pelas machambas (plantações), gente recrutada a laço pelas roças e pelos
sertões, acorrentados pela cinta uns aos outros, em longas filas presas
por arames e conduzidos para o quartel sob a ameaça constante das
espingardas. Era gente apanhada de surpresa, como se apanham gazelas à
ratoeira ou feras ao redil”, dizia o instrutor Cardoso Mirão.

A maioria não falava uma palavra de português nem conseguia
perceber o que lhes pediam para fazer. À primeira oportunidade,
desertavam. Muito tempo teria de passar até que a avaliação do alferes
médico Américo Pires de Lima fizesse sentido: “Sendo o preto, em regra,
tímido, desde que se lhe vista um uniforme e se lhe ponha ao ombro uma
espingarda, mesmo descarregada, toda a sua timidez desaparece e é
capaz de afrontar os maiores perigos, com a maior naturalidade”. Tinham
passado apenas 15 dias de formação e o pessoal das quatro companhias
indígenas da Beira em formação teve de dar provas do seu valor na asfixia
da rebelião que estalou entre as populações do Barué, Zambézia, contra o
recrutamento forçado de trabalhadores e soldados.  

A visita de cortesia a Mocímboa

Um mês e dez dias de instrução foram considerados suficientes
pelo comando, que então dá a formação por encerrada. As quatro
companhias indígenas da Beira são embarcadas para Palma, mas

138

Grande Guerra • Grandes Reportagens

A coluna do Lago PÚBLICO

pelo caminho chegam novas ordens e o desembarque aconteceria em
Mocímboa da Praia. A indecisão que denunciava falta de planeamento
começa a provocar incómodos. Afinal, o que esperava os soldados em
Mocímboa era mais treino sob o sol escaldante e o vazio operacional. Ali
passam duas ou três semanas até que, surpreendentemente, uma nova
ordem os faz regressar ao sul, até Chindo, na foz do Zambeze, por onde
tinham passado poucos dias antes. Na nova linha defensiva traçada ao
longo do rio Rovuma, as quatro companhias indígenas da Beira iriam
ocupar a posição mais extrema, lá para as proximidades do Lago Niassa.
Só que, em vez de trilharem os caminhos já desbravados pelo planalto
dos macondes ou pelas margens do rio, o comando destinava-lhes
uma nova experiência: do Chindo subiriam o rio Zambeze num vapor,
tomariam a linha de caminho-de-ferro que sobe a Niassalândia (actual
Malawi), combinariam com os ingleses uma estratégia de actuação
conjunta e atravessariam o lago para a orla moçambicana.

139

Grande Guerra • Grandes Reportagens

O alferes José Teixeira Jacinto Memórias do alferes Jacinto

O plano, que supostamente fora negociado pelos altos comandos,
parecia aceitável, se fosse exequível. Não era. Não se sabe se por
dificuldades operacionais ou por birra dos britânicos, não haveria
viagem de comboio além de Blantyre e todas as tentativas de articular
uma estratégia com os aliados rapidamente se goraram. Após uma
negociação entre o comandante da Coluna do Lago, João Henrique de
Melo, e o general Notherly, chefe das forças britânicas estacionadas
na zona do lago, conclui-se que não haverá cooperação, que os dois
exércitos actuariam de forma separada. No compasso de espera, uns
dez dias, os soldados portugueses acomodaram-se como puderam sob a
torrente do sol, sendo alvos fáceis para “mosquitos de fraca raça que de
imediato produziram baixas por paludismo”, recordaria o alferes Jacinto.
Depois de chegarem a Blantyre de comboio, as companhias começam
a caminhar. Chegam a Luchanza, topónimo que hoje não se consegue

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Embondeiro próximo das margens do Rovuma, em Negomano

localizar no mapa, mas que ficava nas margens de um rio cavado, que
foi atravessado pelas colunas a vau ou através de uma ponte de madeira
que deixou os nervos dos soldados em estado de sítio. O sentido da
marcha, para leste, indicava ainda assim um propósito. A Coluna do Lago
regressava ao território colonial português.

Todas as memórias coincidem em notar o estado de irritação do
capitão Melo e dos seus oficiais com este episódio. Fracassadas as
negociações com os ingleses, o comandante combina com um obscuro
administrador da Companhia do Niassa, Guerra Laje, a instalação das
tropas no forte de Milange. Aqui disporiam de tempo até reunirem
condições para avançar. Destino: a frente do Rovuma. A mais de 900
quilómetros de distância. E não sabiam como a percorrer. Instala-se
o conflito e a divisão entre os oficiais. O Governador de Moçambique,

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Álvaro de Castro, diria anos depois que,

Aquela gente rude, de se o capitão Melo não se tivesse decidido
tangas curtas entre as mandar avançar para Norte a coluna de
pernas e carapinha alimentos a tempo, seria envenenado
suja na cabeça, pelos seus próprios oficiais. Longe
das guerras palacianas, os soldados e

eram soldados oficiais de baixas patentes registavam
apanhados a monte as primeiras mortes entre os soldados
pelas machambas brancos. A 19, pela manhã, morre o
(plantações), gente sargento Carvalho, que Cardoso Mirão
considerava “o melhor rapaz do grupo

recrutada a laço dos sargentos”; de tarde perece o cabo
pelas roças e pelos Raul de Almeida. A causa foi comum:
sertões, acorrentados paludismo.
pela cinta uns aos
Lá para o final do mês de Julho
chegam mais mil carregadores com

outros, em longas arroz, feijão cafreal e umas 30 “vacas
filas presas por esqueléticas e manhosas”, na apreciação
arames e conduzidos do alferes Jacinto, que entretanto fora
para o quartel sob a nomeado provisor da Coluna do Lago,
cabendo-lhe a gestão de todos os bens

ameaça constante das alimentares. Por essa altura, “todos os
espingardas dias morriam dois a três cavalos que
eram montadas dos oficiais e começa
Memórias do segundo a haver muitas deserções das praças
sargento Cardoso Mirão indígenas, fuga de carregadores e o

pessoal começa a ser atacado pelas

febres”, notaria o sempre minucioso José Teixeira Jacinto. Ainda assim,

em breve teriam de marchar. Não havia viagem de regresso pelo Zambeze.

Esperavam aquela enorme coluna com mais de 1000 soldados e uns 800

carregadores uma verdadeira odisseia pelo sertão do Niassa.

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A 15 de Julho estão em Mecanhelas e admiram-se com a beleza da
paisagem do lago Chirua. Tinham percorrido pouco mais de 150 km
e “os carregadores encontravam-se em estado deplorável, com os
ombros e a cabeça cheio de chagas produzidas pelos volumes que
transportavam”, recordaria José Teixeira Jacinto, então com 36 anos.
Joaquim Martins, um agricultor português perdido na vastidão da
região do Lago, ajuda-os a procurar caça. A cada passo chegam novos
carregadores exaustos após as longas viagens desde o Malawi. Alimentar
uma coluna em marcha com aquela dimensão não era, porém, tarefa
fácil. “A ração do pessoal indígena começou a ser reduzida a metade e
[a] dos carregadores limitava-se a um quarto de quilo de carne por dia”,
notaria o provisor da Coluna.

Até Amaramba, as longas filas da tropa em marcha seguem sempre
a orla dos lagos que antecipam o Niassa. Tinham percorrido uns 220
km, de acordo com o estudo feito pelo coronel Armando Jacinto, neto
do alferes Jacinto, que nos anos 70 desempenharia funções militares
nessa zona. A fome aperta e a extensão das linhas de abastecimento
torna-se cada vez mais longa. O comandante autoriza a tropa a tirar o
que pudesse nas machambas. Nas árvores há frutos, mas só se ingerem
depois dos indígenas confirmarem que são comestíveis. “De tudo
lançamos mão, tamarindos, acaju, mangas, bananas, frutos estranhos e
exóticos, sementes doces e adocicadas como a alfarroba, frutos grandes,
compridos como abóboras e que pendem dos largos ramos dos baobás”,
recordaria Cardoso Mirão.

O pavor com os elementos de uma natureza estranha e agressiva
aumenta. Uma noite, o sargento Leão grita por socorro. Mirão acode-o.
No delírio, o sargento agonizava, aterrado, dizendo que se estava a afogar.
Mirão julgou que fosse mais um delírio provocado pelas febres. Entra
na palhota e na escuridão consegue ver o sargento de joelhos sobre a
cama, com “dois olhos, brilhantes, febris, esbugalhados pelo terror”.
Tacteia à procura de um toco de vela, acende-a e vê um espectáculo

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Pescador em Mocímboa da Praia

que o horrorizou: “Leão tinha sido atacado por milhões de formigas
que o cobriam totalmente, que o devoravam por todos os lados, que lhe
entravam por todos os orifícios”.

Na solidão e distância do Niassa, aconteciam porém pequenos milagres.
Em Amaramba, o capitão Melo contrata três caçadores cuja biografia
merecia ser conhecida. Chegam assim à coluna Regina Pietro, o “Pitala”,
um italiano do Piemonte, “fino com o vime e rijo como o aço, há muitos
anos perdidos pelas florestas negras do Niassa”, na descrição de Cardoso
Mirão, Elias, grego, “um corpo alto e mal feito, de orelhas recortadas em
renda de bilros”, e Kassan, “um indiano negro e pequenino, mas muito
vivo e inteligente”. Nos dias que se seguiram, as caçadas destes três seres
errantes pelas savanas próximas dos lagos seriam fundamentais para a
sobrevivência da coluna.

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A barbárie em Maúa

Chegara a hora de rumar para o interior, até ao território do régulo
Maúa. Entravam agora numa zona mais remota, mais inóspita, que entre
Abril e Maio tinha sido varrida pelo destacamento alemão do capitão
von Stümmer. Esperava-os um trajecto de cerca de 200 quilómetros.
Demorariam quase 20 dias a percorrê-los.

Pelo caminho, encontrariam ao acaso uma daquelas figuras lendárias
que, como o famoso capitão Neutel de Abreu, passaram a vida a errar
pelo interior de África. O alferes Almada Negreiros, dois sargentos
europeus e um cabo seguiam à frente de uma milícia de 250 indígenas
namarrais e macuas, acompanhados das famílias e de carregadores.
Eram uma das colunas de “irregulares” que ora agiam por conta
própria, ora serviam os planos dos governos ou da Companhia do
Niassa, que desde o final do século XIX explorava todo o Norte de
Moçambique. Os métodos de Almada Negreiros perturbam até soldados
embrutecidos pela dureza do clima e das marchas. Cardoso Mirão
recordaria que o alferes “comandava a sua malta de varapau” e os
seus sargentos à bofetada e ao pontapé. Para ele, aquela multidão não
passava de uma “quadrilha do mata e rouba”.

Pela primeira vez no seu percurso, os soldados estavam prestes a
assistir a um dos seus primeiros episódios de brutalidade da guerra.
Sabia-se que o régulo Maúa era aliado dos alemães. Poucas semanas antes,
fora cúmplice no ataque ao posto administrativo português, que acabaria
incendiado. Nas imediações todos os bens foram escondidos, nada havia
para comer. Nas aldeias restavam idosos e inválidos. A proximidade
da coluna fez com que o régulo se refugiasse com a sua população nos
montes circundantes. À noite, os soldados avistavam ao longe pequenas
luzes trémulas que indicavam a existência de fogueiras. Com um pouco
mais de atenção, podiam escutar vozes. Para os intimidar, a artilharia
ensaiou um bombardeamento. Mas as granadas caíam longe do alvo e

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motivavam aos indígenas ruídos de desdém que enervaram a coluna.

João Henrique de Melo decide então punir Maúa – ou pacificá-la, no

jargão colonial da época. No dia 5 de Setembro de 1917 são presos três

supostos espiões, um velho e “três rapagões”. Organizou-se “um batuque

de guerra infernal” e as sevícias a que foram sujeitos foram tão brutais

que o alferes Jacinto se absteve de as relatar. Os espiões acabariam

enforcados em lugares visíveis, dois em cada margem do rio Maúa.

Cardoso Mirão recordaria o processo

Sendo o preto, em sumário contra um outro indígena
regra, tímido, desde suspeito de espionagem que revela sem
contemplações a brutalização acelerada

que se lhe vista um da Coluna do Lago. “Interrogámo-lo,
uniforme e se lhe nada. Emudecera. Apoquentámo-lo,
ponha ao ombro teimámos, persistimos e nada. Batemos-
uma espingarda, lhe mesmo. Era inútil. O negro cerrara
os lábios, olhava-nos com rancor e

mesmo descarregada, conservava-se teimosamente mudo”,
toda a sua timidez conta Mirão. Lançaram uma corda por um
desaparece e é embondeiro para simular a preparação do
capaz de afrontar os seu enforcamento. Nada, ainda. À volta,
“a soldadesca batia cadenciadamente o

maiores perigos, com pé na terra, em atitude hostil, ululando
a maior naturalidade insultos, rindo e gritando”. O suposto
espião acabaria por ceder. Ernesto Moreira
Américo Pires de Lima, médico dos Santos, um dos sargentos da Coluna,

explicaria porquê: após ter sido ameaçado

de que seria coberto com uma pele de porco, o que, sendo maometano,

o condenaria a vaguear pela eternidade no Inferno, o espião acabaria por

sucumbir. E falou. Que tinha ido ali por ordem do régulo Maúa, para ver os

nossos efectivos e se trazíamos artilharia. Que o Maúa estava perto, numa

povoação, à espera das suas informações, nessa mesma noite.

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O régulo continuava a desafiar as tropas. No alto de uma montanha,
gritos de provocação chegavam ao acampamento. O alferes Negreiros e as
suas tropas tomam conta da situação. “Durante três noites foi um horror
ao qual foi preciso pôr cobro, por os irregulares castrarem as vítimas e
transportarem os seus apêndices para o acampamento no qual faziam
festas em sinal de regozijo”, relataria o alferes Jacinto. Cardoso Mirão e
Ernesto Moreira dos Santos também registaram nos seus cadernos estas
noites de horror. Uma vez, a milícia de Negreiros chega à noite, à hora
de jantar, e interrompe o repasto do alferes com o comandante exibindo
“nos lábios grossos um sorriso de vitória”. Abriram então as sacas de
pele mal curtidas e “entre a ‘punga’ (arroz) e a ‘mapira’ (milho moído)
da refeição, misturados com galinhas mortas do ‘capiango’ (roubo), os
auxiliares iam tirando e espalhando pelo chão orelhas, narizes e até…
variadas partes do aparelho sexual, ainda pingando sangue, de muitos
insurrectos maúas que eles tinham deixado pendentes nos ramos grossos
dos embondeiros”, escreveria Cardoso Mirão.

Maúa fora castigado. Desde sempre que aquela zona, habitada pelos
ajauas, era hostil aos portugueses e assim continuaria. Em Abril de 1916
um relatório enviado ao comando em Palma dava conta de um inquérito
a Asseone, uma indígena “das terras do régulo Larange”, no qual a
mulher dizia que nas terras dos alemães “a abundância é tanta que toda
a gente usa, pelo menos, dois panos e nem o próprio sal falta, além
que as brancas tratam os pretos optimamente”, enquanto no território
português “os próprios panos são cascas das árvores”. No ano seguinte,
o ódio aos portugueses facilitaria a invasão alemã até às portas de
Quelimane. Dois anos depois, os alemães passariam por ali um inverno
tranquilo sob os bons auspícios dos locais.

Em redor de Maúa, e nas etapas seguintes e direcção ao Rovuma,
o que esperava a coluna era, por isso, aldeias abandonadas, campos
agrícolas destruídos. Uma zona devastada, que levaria os soldados até
ao limite. Logo a 9 de Setembro quando a coluna se põe em marcha para

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Agricultores macondes num arrozal em Mocímboa da Praia

Metarica, uma etapa de seis dias, foi possível reparar que só com medidas
desesperadas se podia avançar. Os prisioneiros no posto de Maúa, 50
mulheres e 30 idosos, foram obrigados a servir como carregadores.
Algumas mulheres estavam grávidas e quando davam à luz ficavam
ao abandono. Os velhos, “verdadeiros esqueletos”, eram amarrados
à cintura em grupos de cinco e forçados a marchar por um soldado
irregular que os fustigava com um chicote de pele de hipopótamo.
Caminhavam até ao limite, acabando por ser deixados no caminho
quando se esgotavam. Quando a coluna indigente e esfarrapada chegou
a Metarica podemos imaginá-los com a visão que Carlos Selvagem teve
deles na missão do ano anterior: “Olho-os com piedade, angulosos, nus,
esquálidos, tiritando de frio debaixo dos pobres farrapos da manta,
aglomerados em rebanho nos seus cercados de capim, deslocando-se

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lentamente, em lentas filas de comboios,

Misturados com ajoujados sob os fardos que os esmagam,
galinhas mortas do e passivos, sonâmbulos, mecânicos, o
‘capiango’ (roubo), olhar ausente, a face vaga, como quem
os auxiliares iam vaga no indefinido dum sonho remoto,
duma remota visão de palhotas e aldeias

tirando e espalhando natais”.
pelo chão orelhas, Metarica, margem esquerda do rio
narizes e até…
variadas partes do Lugenda, Niassa, quatro e meia da
tarde de 16 Setembro. A vanguarda
da coluna chega ao forte. O resto das

aparelho sexual, tropas, que se arrasta, vai chegando.
ainda pingando Uns pelo ocaso, outros pelo jantar, ainda
sangue, de muitos outros já era noite escura. Pelas duas da
insurrectos maúas manhã “apareceram no acampamento
alguns soldados indígenas e irregulares

que eles tinham espavoridos, contando o que estava
deixado pendentes a passar na rectaguarda”, recordaria
nos ramos grossos José Teixeira Jacinto. Uma matilha de
dos embondeiros leões tinha atacado o gado e os guardas.
Quando uma equipa de socorro chegou

Memórias do segundo sargento ao local, já de madrugada, assistiu
Cardoso Mirão então a “um sinistro macabro”: “Alguns

soldados e irregulares que protegiam

o gado e o comboio apareceram

esquartejados em várias direcções”. As margens do Lugenda tanto

forneciam água a uma multidão de sôfregos como um perigo que tirava o

sono aos soldados: as proximidade das feras. Em Metarica, os ruídos dos

leões ressuscitaram os pesadelos de Mocímboa da Praia. Não se dormia

de noite. Quando o comandante da coluna ordena o regresso a casa dos

carregadores menos válidos, estes recusaram. Preferiam ficar, “com

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Pescador em Mocímboa da Praia

medo das feras e também de receio de passar pela região de Maúa em que
seriam mortos pelos seus habitantes como represália dos factos que se
haviam passado com as forças da Coluna”.

No caminho para Metarica a coluna perdera toda a aura de uma força
militar. O cansaço apoderara-se dos corpos, minara a organização,
desfizera a disciplina. A coluna espraiava-se por quilómetros de
extensão, numa marcha arrastada. “Mais do que vergonhosa, a minha
indumentária é ridícula”, registaria Cardoso Mirão. “Trago o chapéu
num bolo, a farda rota, os joelhos nus e as botas, o meu último par de
botas, de bocarras enormes, escancaradas, sem solas, sem palmilhas,
a mostrarem desalmadamente os dedos negros e sujos do pó”. Neste
estado de penúria, os soldados surpreenderam-se quando viram o que
os alemães haviam deixando para trás após a sua curta permanência

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