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Na passagem dos 100 sobre o início da I Guerra Mundial

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Published by madroal, 2019-08-16 13:53:30

I Grande Guerra

Na passagem dos 100 sobre o início da I Guerra Mundial

Grande Guerra • Grandes Reportagens

em Metarica. “São petulantemente comodistas, estes alemães! Em tão
pouco tempo que aqui estiveram, fizeram verdadeiros arruamentos, com
palhotas-Palaces, pequenos bungalows construídos em bambu e capim,
com segurança e conforto como nós nunca sonháramos. Estas palhotas
são amplas, práticas, higiénicas, bem arejadas, com uns três metros de
altura, e comportando duas divisões”, onde não faltava um lavatório e até
cabides para pendurar a roupa, espantar-se-ia Cardoso Mirão.

Em Metarica era já possível para a maioria acreditar que a saga da
coluna estava perto do fim. A contabilidade das mortes entre soldados
brancos ou indígenas não parava de aumentar. No pequeno forte perdido
na selva foi preciso enterrar o sargento Freire de Artilharia e o cabo
sipaio João. Mas a coluna podia, ao menos, ter um primeiro contacto
com o mundo. Sacos de correio e de jornais chegaram para os soldados,
depois de cumprirem uma interminável viagem desde Lisboa via
Lourenço Marques, Beira, Mocímboa, Chinde, Chíndio, Luchenza, Fort
Johnston, Zomba e Blantyre. Na hora de responder a tempo de aproveitar
um correio que ia para o Estado-maior, “o pessoal deu-se pressa em
esquecer por momentos a guerra, a selva, a fadiga e as privações, para
pensar afincadamente nas páginas de recomendações, beijos e saudades
a mandar à família com a afirmação, quantas vezes falsa, duma saúde
que não existia”, recordaria Cardoso Mirão. Nesses momentos fugazes,
notava o sargento, “deixávamos o ar selvagem e brutal que a selva
nos emprestava para nos tornarmos de novo homens, enternecidos e
sentimentais, revendo a casa, a terra, os amigos, emocionados pelas
recordações da família e mais que nunca saudosos da pátria e do lar”.

O princípio do fim da coluna

Aquela massa errante de soldados e de carregadores estava prestes a
cumprir a sua última etapa. Em Metarica, as companhias indígenas da
Beira sabem que vão ter destinos separados. A Coluna do Lago desfazia-

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se, cumprindo assim exemplarmente a sua inutilidade e demonstrando
com crueza o erro que tinha sido a sua criação e, ainda mais, a sua
missão. Ordens do quartel-general, agora instalado em Chomba, a sul da
actual Mueda, mais perto da linha da frente, mandavam a 4ª Companhia,
com quatro oficiais, quatro sargentos, quatro cabos, 250 soldados
indígenas e 300 carregadores caminhar para Muemba. Um dia depois é
a vez de partir a 3ª Companhia em direcção a Maziúa, o posto remoto na
margem do Rovuma que os alemães tinham assaltado e incendiado a 24
de Agosto de 1914. As forças restantes caminhariam até Nanguar, a 160 km
de distância, onde se reuniriam com uma coluna proveniente de Porto
Amélia ou da Ilha de Moçambique.

Em marchas duras, a fila de tropas e carregadores que resta da outrora
imponente Coluna do Lago tem de cumprir etapas de 25 quilómetros por
dia por serras pedregosas, debaixo de um calor extremo que torna o ar
irrespirável, onde a exuberância da natureza se suspende para dar lugar a
uma paisagem ardente e inóspita. Ao chegarem a Nanguar as dificuldades
com a comida aumentam. “Em Nanguar não há absolutamente nada,
a região é pobre e tudo se encontrava raziado pelo inimigo e apenas o
rio dava carne de hipopótamo”, recordaria José Teixeira Jacinto. “Era
o fim. Chegáramos ao auge do desespero”, notaria Cardoso Mirão. O
comandante tinha ataques de delírio, mandava tocar a fogo, gritando
contra os alemães. Regina, o caçador italiano, queixava-se: “Nada.
Região árida, região maldita, sem um preto nem um bago. Sem a mais
insignificante peça de caça ou indício de fera”.

No dia seguinte, porém, chegou com a coluna avançada das forças
do major José Feio Quaresma o 1º cabo indígena Tiar, que sabia onde
tinham sido escondidos mantimentos na floresta. Estavam enterrados
desde Maio, quando os alemães entraram pelo território da então
colónia de Moçambique. Foram desenterradas então 10 caixas de latas
de sardinha, duas de atum, duas latas de petróleo, 2 caixas de sabão,
6 garrafões de vinho, 2 caixas de vinho do Porto, entre outros bens. Os

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cereais tinham apodrecido. “Naquele dia tivemos rancho melhorado e
vinho ao almoço”, lembraria Cardoso Mirão.

Nas encostas desoladoras de Nanguar, o destino final da força que
entretanto reunira mais de 1000 soldados e um número incalculável de
carregadores começava a concretizar-se. As companhias que estavam
em Nanguar iriam ser dissolvidas num destacamento comandado pelo
major Feio Quaresma. Tinham feito em vão quase 900 km de marchas
entre a selva, ao longo de quase quatro meses. Se não tivesse havido um
superior em delírio ou um gabinete inconsciente a mandar aquela força
pelo Zambeze acima para chegar ao Niassa, se a coluna tivesse seguido
a mesma rota das tropas que tinham acabado de chegar a Nanguar,
Henrique de Melo, José Teixeira Jacinto e os seus soldados teriam
partido de Mocímboa da Praia, teriam seguido os trilhos do planalto dos
macondes e percorrido uns 250km. Caminhariam quase quatro vezes
mais, por territórios mais inóspitos, desabitados e desconhecidos.

Se não fossem condenados a essa longa e vã travessia da selva, teriam
evitado a morte do sargento Carvalho ou do sargento Freire, o ataque
de formigas que por pouco não matou o sargento Leão, o massacre em
Maúta e as fomes terríveis de Amaramba, Metarica e Nanguar. Os soldados
que ali chegaram deram conta dessas incongruências, mas engoliram em
seco antes de partirem de novo, agora para a guerra. O capitão Henrique
de Melo era agora um símbolo do destino cruel a que ele e os seus homens
tinham sido votados. “Hoje não é um homem, não é um soldado; é um
vencido, um doente, um velho. Venceu-o a selva, a vida, a ingratidão
dos homens. Não fez a guerra, marchou apenas. E o mato também
envelhece”, escreveria Cardoso Mirão.

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Tudo se desmoronou
em Negomano

Trincheiras junto ao Rovuma

ManuelCarvalho (texto)eManuelRoberto(fotografia), em Negomano

Na manhã do dia 25 de Novembro de 1917 as tropas alemãs
passaram o Rovuma, cruzaram o leito seco do Lugenda
e apanharam desprevenidas as forças portuguesas que,
placidamente, estavam estacionadas em Negomano. Para os
alemães, a conquista permitiu-lhes acumular as armas, munições

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e víveres que lhes bastariam para alimentar um passeio de dez
meses por Moçambique. Para os portugueses, Negomano foi o
primeiro passo de um golpe que acabaria de vez com os devaneios
dos militares na Primeira Grande Guerra em África.

Atravessa-se o centro de Negomano, com a sua esquadra da polícia
e o seu posto administrativo a recordarem a persistência da
arquitectura colonial portuguesa, caminha-se em direcção às areias
do Rovuma e, à esquerda, um extenso campo aberto até onde o
rio Lugenda acaba o seu curso desafia-nos a imaginar o que ali aconteceu
entre as 10 da manhã e as três da tarde do dia 25 de Novembro de 1917.
Na pequena aldeia de muitas palhotas e poucas casas de alvenaria, as
memórias da guerra estão ainda presentes, mas não vão para lá de 1960,
quando Negomano se tornou a sede de um destacamento no qual umas
centenas de soldados do exército colonial resistiram a anos e anos de
ataques da Frelimo. Só Santos Salimo Mundogwan, de 61 anos, sabe que
ali, naquele triângulo plano formado pelo encontro de dois rios, teve
lugar uma das batalhas mais terríveis da Primeira Guerra Mundial no
Norte de Moçambique. Porque ele é o chefe de posto da aldeia e é o fiel
depositário das memórias do seu avô, o régulo Malunda, que há cem
anos sentiu na pele as agruras desses dias violentos que acabaram de vez
com qualquer possibilidade de os portugueses saírem de África com um
mínimo de dignidade.

Para a posteridade, Negomano seria para Portugal o que Alésia foi para
os gauleses de Astérix. Um lugar maldito, que convinha a todo o custo
esquecer. No campo aberto que Santos Salino Mundogwan nos mostra
houve em tempos uma placa a indicar que ali tinham sido sepultados os
oficiais e soldados portugueses que foram cercados e dizimados pelos
alemães até que alguém (não se sabe bem quem) decidisse acabar com o
martírio tocando o cornetim do cessar-fogo. Todos esses corpos seriam

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exumados em 1954 ou 1955 e transladados para o mausoléu de Mocímboa
da Praia que hoje está em estado avançado de ruína. Em Negomano ficou
uma placa, apenas, a deixar à posteridade o registo dessa batalha decisiva
para a sorte das armas portuguesas em Moçambique. Mas, mais tarde,
“essa placa foi arrancada e levada para Mueda”, diz Santos, a localidade
emblemática do nacionalismo moçambicano.

Após uma viagem de 180 km pela selva até Mueda, por uma estrada
esburacada e poeirenta, onde são frequentes as descidas aos leitos
dos rios secos para suprir a inexistência das pontes que desabaram
no último Inverno, com a presença frequente de hienas, babuínos e
macacos na orla, descobre-se esse monumento, que o chefe de posto de
Negomano diz ter sido arrancado do seu lugar original por volta de 1963.
A inscrição há muito que ficou ilegível pela combinação do tempo, das
intempéries e da vandalização. Mas lá sê lê Negomano, percebe-se uma
data, entende-se que é uma homenagem a combatentes valorosos que
perderam a vida ao serviço da Pátria. Não deixa de ser estranho que esse
desejo de perpetuação da memória dos soldados portugueses resista na
orla de uma praça onde todos os anos o governo da Frelimo comemora
“o massacre de Mueda”, o acontecimento de 1962 que serviria de
rastilho à guerra colonial.

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Santos Mundogwan ainda consegue apontar as linhas das trincheiras que o seu pai lhe revelou em criança

No campo de batalha de Negomano, com uma extensão de uns quatro
ou cinco hectares, é possível perceber o que aconteceu naquele dia
fatídico. A densa cortina de capim onde os askaris (soldados indígenas
do exército comandado por Paul Emil von Lettow-Vorbeck) instalaram as
suas espingardas e metralhadoras não seria muito diferente da que existia
em 1917. A vala onde, à pressa, se instalou o comando dos portugueses e o
hospital de campanha para se furtarem às rajadas que varriam o campo de
batalha continua lá. O lugar é plano, aprazível, a dois passos da aldeia e das
águas do Rovuma. Algumas árvores emprestam-lhes a sombra indispensável
para amenizar o sol abrasador do Niassa. Um bom lugar para passar uma
temporada. Nunca para se instalar um exército em posição defensiva.

Para isso havia bem acima da aldeia um pequeno fortim. Apesar de
ficar num terreno que mais tarde seria agricultado, Santos Mundogwan

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ainda consegue apontar as linhas das trincheiras que o seu pai lhe revelou
em criança. Deste ponto, a curta distância da ponte que surge como uma
miragem entre duas estradas de terra batida para ligar Moçambique e a
Tanzânia (chama-se, simbolicamente Ponte da Unidade e foi construída
pelos chineses), não era difícil observar os movimentos das tropas
inimigas, na outra margem. Ali, não haveria qualquer possibilidade
de os portugueses serem apanhados sob o intenso fogo cruzado que
em escassas horas arrasou todas as tentativas de defesa da linha do
Rovuma. O efeito de tenaz, que os ingleses em perseguição dos alemães
acreditavam poder acontecer se essa linha defensiva resistisse, não
passaria de desenhos vagos nos mapas de campanha. Sob todos os pontos
de vista, Negomano foi apenas mais um exemplo de impreparação e
incompetência. Mas foi um exemplo que, do ponto de vista militar, teve
a mesma consequência que a saga-fuga de Nevala, em Novembro do ano
anterior: arrasou todas as expectativas de sucesso da quarta expedição de
tropas portuguesas para a Primeira Guerra no Norte de Moçambique.

Um alerta que ninguém quis ouvir

Às primeiras horas do dia da batalha, as sentinelas repararam no pavor
com que alguns habitantes de Negomano fugiam das margens do rio.
Tinham levado o gado a beber e avistaram alemães do outro lado. No
forte, riram-se com a notícia. Os ingleses tinham informado que os
alemães fugiam em debandada de Masasi, a uns 80 quilómetros da
fronteira, e estavam cercados em Nevala. Dias antes, o comando britânico
admitira que poderiam entrar em Moçambique para atacar a praça de
Negomano, mas logo a seguir desfizeram essa informação e anunciaram
que agora o eixo da sua fuga acabaria para os levar até Chomba, onde
estava o quartel-general. As tentativas para tirar a limpo essas informaões
tinham-se gorado. A missão do sargento Cardoso Mirão ao Unde, um
posto combinado para se encontrar com um mensageiro britânico,

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A memória dos soldados portugueses resiste na orla de uma praça onde todos os anos o governo da Frelimo
comemora “o massacre de Mueda”, o acontecimento de 1962 que serviria de rastilho à guerra colonial

não foi além de uma viagem inútil de três dias e de um susto perante a
proximidade de um leão que quase o surpreendeu. Mas nem a falta de
garantias absolutas sobre a veracidade dos rumores britânicos levou o
comando do major Feio Quaresma a tomar precauções. Pelo contrário.
Negomano era um campo de lazer.

Entretanto, os alemães estavam em marcha. Desgastada pelos
britânicos a Norte, a força comandada por von Lettow-Vorbeck tinha
decidido a 19 de Outubro mudar de estratégia, transferindo o teatro
operações para o território colonial português. A 20 Novembro descera
de Masasi e está em Nevala, a uns 100 km de Negomano. A 21 de
Novembro avança de Nevala para sul com as forças que restavam
dos seus corpos originais após o desgaste de dois anos de guerra
– restavam-lhes 300 europeus, 1700 soldados indígenas e 3000

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carregadores. A Schutztruppe era, nesta

Deste ponto, a curta fase do conflito, um exército acossado,
distância da ponte com falta de mantimentos e munições,
que surge como uma incapaz de retomar o protagonismo dos
miragem entre duas dois anos anteriores

Pouco depois do primeiro aviso, um

estradas de terra grupo de sargentos decide finalmente
batida para ligar passar os olhos pelo Rovuma. E confirma
Moçambique e a o pavor dos habitantes da aldeia. Os
Tanzânia (chama- alemães atravessavam o rio, a vau ou
servindo-se de pedras para permitir a

se, simbolicamente marcha dos cavalos. Com tanta calma
Ponte da Unidade e e displicência que von Lettow-Vorbeck
foi construída pelos registaria nas suas memórias que
chineses), não era alguns aproveitaram até para tomar
banho. Tentando gerir o pânico, o

difícil observar os comando manda formar as companhias,
movimentos das determina as suas posições à volta do
tropas inimigas, na acampamento, decide abrir à pressa
outra margem abrigos individuais com os sabres das
baionetas por falta de ferramentas

mais apropriadas. “Só então se reparou

que os muros do forte ficavam lá acima distantes, ao sol, e a água, os

depósitos, os géneros, as munições, todo o acampamento enfim se

achava ali entaipado, à sombra da floresta e entre o capim, escondido no

mato sem um campo de tiro, sem uma trincheira, sem uma banal defesa

qualquer. Só então repararam que estavam encurralados num vale”,

notaria nas suas memórias o sargento Cardoso Mirão.

Por volta das nove da manhã, o dispositivo alemão continuava a

atravessar o Rovuma e o Lugenda e, calmamente, ultimava o cerco ao

acampamento português. Lettow não sabia se ali estavam portugueses

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A Ponte da Unidade, construída pelos chineses, ao fundo

O ponto onde os rios Lugenda e Rovuma se encontram em Negomano

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ou ingleses à sua espera, mas não era isso que mais o preocupava –

o comando de von Taffel andava perdido e perdera a ligação à sua

coluna havia dias. Cardoso Mirão, entretanto, estava prestes a chegar

a Negomano, após a sua missão inútil ao Unde. A alguns quilómetros,

a correria de nativos a que assiste alerta-o para o pior. Ao chegar ao

Lugenda, ouve tiros ao longe e vê negros

A bala perdera- em fuga em direcção a sul. “Kimbia
se no espaço e o Vitá” (fugir à guerra), dizem, em pânico,
“seminus, encostados ao grosso cajado

alferes, desvairado, de bambu, as mulheres mal cobertas
de olhar esgazeado, com uma rude serapilheira, de casca de
mergulhava os dedos árvore à volta da cintura, ajoujadas sob
crispados nos seus o peso dos seus poucos haveres, os filhos
enrolados às costas, a manquejar sobre

cabelos negros e as duras de areia do leito descoberto
arrancava-os aos do Lugenda, todos em direcção a sul,
punhados, à procura pelo território do Niassa a dentro”. Logo
dos seus soldados, depois, já nas imediações de Negomano,
é parado por “oito, 10, 15 askaris altos

da sua honra, da sua como barrotes e negros como carvões”,
vida. Estava louco que “surgiram das entranhas do mato,
com os olhos a chamejarem ódio e os
Memórias de Cardoso Mirão gestos a proclamarem guerra”. Foi

desarmado. Estava preso.

Os primeiros tiros tinham surgido da frente sul por volta das dez da

manhã. Camuflados da cabeça aos pés com camadas de capim, os askaris

eram uma força invisível. Os primeiros sinais de pânico são coincidentes

com as primeiras balas. “Acachaparam-se os cozinheiros, abandonando

as ‘mess’ e as cozinhas, e logo por todo o acampamento se espalhou o

cheiro acre e desagradável a refogado queimado”, recordaria Cardoso

Mirão. O major Teixeira Pinto tenta rumar contra a desorientação, chega-

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Após cinco horas de combate, o ameno campo que regista o cruzamento das águas do Lugenda com
as do Rovuma, tornara-se um desolador cenário de sofrimento e morte

se à primeira linha de tiro, descobre o lugar mais pressionado e começa a
ordenar fogo por descargas. Acabaria por ser atingido mortalmente. Nos
minutos que se seguiram o mesmo acontece ao cabo Alberto. O tenente
Ponces Leão cairia logo a seguir. O Alferes Leão tenta suicidar-se, encosta a
pistola à cabeça e só com um salto o sargento Ernesto Moreira dos Santos
consegue evitar a sua morte. “A bala perdera-se no espaço e o alferes,
desvairado, de olhar esgazeado, mergulhava os dedos crispados nos seus
cabelos negros e arrancava-os aos punhados, à procura dos seus soldados,
da sua honra, da sua vida. Estava louco”, relataria Cardoso Mirão.

Os oficiais, instalados a monte na ravina que os poupava às balas
alemãs, não sabem o que fazer. “Só uma Companhia se conservou calma
e com sangue frio, enfrentando heroicamente o inimigo: a Companhia
Mista de Landins, comandada pelo tenente Pais Gomes e já duramente

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experimentada nos duros combates de Maziúa, Mahuta e Nevala”,
recordaria Cardoso Mirão. A derrota era iminente. Seria consumada
quando soou o toque de cessar-fogo. Eram três da tarde. Após cinco
horas de combate, o ameno campo que regista o cruzamento das águas
do Lugenda com as do Rovuma, tornara-se um desolador cenário de
sofrimento e morte. “Há de tudo! Uma perna esfacelada, um braço
retalhado, olhares vítreos, esgares diabólicos”, registaria Cardoso Mirão.
Os alemães entram no acampamento e num ápice os askaris iniciam o
seu assalto final aos bens dos derrotados. À frente seguia o general Taft
Otto von Lebel, logo depois era o próprio von Lettow-Vorbek a avaliar no
terreno as consequências de uma vitória estratégica de incomensurável
valor. Agora seria possível voltar as costas aos britânicos, ganhar fôlego e
recompor as suas tropas em território português.

Lettow tenta travar o saque que se segue. Nas suas memórias da
campanha na África oriental alemã notaria: “Vergastei pelo menos sete
vezes um carregador que conhecia, mas de todas as vezes ele escapou
e imediatamente se juntou ao saque noutro local”. A orgia de violência
dá origem a uma orgia de roubos. Cardoso Mirão perdeu tudo. “Malas,
roupas, relógios, lembranças, cartas, tudo, tudo”. No campo de batalha
espalham-se “cartas enlameadas, fotografias ultrajadas, trapos sujos
dispersos, cartas de família, desabafos de mães, segredos de noivas,
castelos de amor derrubados pela brutalidade dos negros depois de nos
terem despojado de todos os haveres”, escreveria o sargento.

Os despojos de Negomano

Estava na hora de fechar o capítulo Negomano. Os alemães e os
seus askaris entretinham-se agora a partir uma a uma as armas dos
portugueses que não lhes interessavam ou não podiam transportar. Von
Lettow regozijava-se entretanto com o produto da conquista e com os
bens que encontrara no depósito de Negomano. “Capturámos algumas

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Negomano é uma pequena aldeia de muitas palhotas e poucas casas de alvenaria

centenas de askaris [soldados indígenas que seriam forçados à condição
de carregadores], grande quantidade de medicamentos de valor que tão
necessários eram, todos de excelente qualidade, o que era de esperar
pela experiência de séculos dos portugueses em campanhas coloniais,
e ainda alguns milhares de quilos de víveres europeus, grande número
de espingardas, seis metralhadoras e cerca de trinta cavalos”, registou o
comandante alemão. Com estes bens e com os que arrebanharia sete dias
depois no depósito de Nanguar, von Lettow poderia encarar com algum
optimismo mais alguns meses de resistência. Tinha valido a pena apostar
no assalto à frente portuguesa.

Entre os sobreviventes do exército nacional, o estado de espírito era
devastador. “Oficiais, sargentos, soldados, num abatimento incrível,
desprovidos de tudo, sem malas, roupas nem haveres, aglomeravam-se

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

numa multidão indisciplinada e miserável, sentados uns, deitados outros

sobre a terra pelo capim disperso e que lhes servia de cama. Envolvia-

os a todos o círculo de arame e guardavam-nos duas sentinelas negras”,

recordaria Cardoso Mirão. Alguns tinham conseguido fugir e sobreviver

depois de estabelecerem contacto

Capturámos algumas com o quartel-general de Chomba ou
centenas de askaris, com os postos de serra Mecula. Outros
grande quantidade pereceriam na selva. O sargento Pratas
nunca mais se soube dele. O sargento

de medicamentos Carvalho acabaria por ser encontrado
de valor que tão por indígenas tempos depois. Morrera
necessários eram, “desvairado, louco, perdido, aos
todos de excelente encontrões pela selva, a boca cheia de
areia e o cérebro vazio de toda a razão”,

qualidade, o que contaria Cardoso Mirão.
era de esperar pela Para os soldados e sargentos
experiência de séculos
dos portugueses em que permaneciam no perímetro da
batalha, a sorte estava traçada. Seriam
libertados. É assim que 63 afortunados

campanhas coloniais, recebem ordem de marcha com um
e ainda alguns salvo-conduto. Os alemães dispõem-
milhares de quilos se a conceder o mesmo tratamento
de víveres europeus, aos oficiais, desde que jurem não mais
combater os invasores. A ideia podia ser

grande número de atractiva, mas alguém lembra o artigo
espingardas, seis 102 do Código de Justiça Militar que
metralhadoras e cerca diz: “O oficial prisioneiro de guerra que
de trinta cavalos aceitar a sua liberdade sob a promessa
de não tomar armas contra o inimigo

O comandante será condenado a presídio militar de
Von Lettow-Vorbeck seis anos e um dia a nove anos”. É então

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Metralhadora das tropas portuguesas junto ao rio Rovuma
Paul von Lettow-Vorbeck DR

que, resignados, os oficiais ficam ali
retidos, “em magote, embrulhados no
próprio invólucro do seu infortúnio e
atados pelo fio dilacerado do arame
farpado, com sentinelas negras à vista”.
Todos acabariam mais tarde por ser
libertados. Para um exército que fez a
sua glória através do ataque surpresa e
da rapidez de movimentos, interessavam
carregadores negros. Prisioneiros
brancos eram um obstáculo.

Para fechar o capítulo, havia ainda
que enterrar os mortos. Pelo menos 14

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

soldados e 8 oficiais europeus, na contabilidade duvidosa do exército.
Fazem-se três filas de covas e os soldados abatidos ali ficam. Alguém se
lembra de escrever os seus nomes nos troncos das árvores. O general
von Label vai arrancar a um arbusto próximo um ramo de folhas verdes
que deixa cair no túmulo de Teixeira Pinto. Em breve, a maioria dos que
assistiam às cerimónias fúnebres estariam em marcha. Para trás ficariam,
abandonados às hienas e aos abutres, os cadáveres dos negros. Fontes do
exército falam na morte de 28 indígenas. Uma visão que os testemunhos,
dos soldados portugueses ou do comando alemão, desmentem. Cardoso
Mirão recordaria: “Só os negros – e eles são cerca de 500 - continuam
dispersos pelo acampamento, em atitudes patéticas, corpos sangrentos
colados ao chão, estendidos para sempre, sem dois palmos de terra a
cobri-los, corpos sem dono, à espera que os corvos, os abutres e as hienas
os venham disputar em grunhidos de ferocidade e prazer, festim macabro
de podridão e gangrena”.

A selva, outra vez

Os sobreviventes libertados deixam Negomano com a morte na alma e
os montículos das sepulturas dos que lá morreram na memória. Cardoso
Mirão e Ernesto Moreira dos Santos faziam o balanço de oito meses em
Moçambique, desde que desembarcaram na Beira para instruir soldados
indígenas e foram obrigados a percorrer 900 km na odisseia vã e fútil
da Coluna do Lago. “Fora para ali que se caminhara durante oito meses
intermináveis, de posto em posto, de serra em serra, sofrendo sede e
provações, desgostos e privações, desgostos e injustiças”, notava Mirão.
Nada havia a fazer: “Nesta coisa da guerra, os alemães eram melhores
do que nós”. Ou, seguramente, menos caóticos, imprevidentes e
incompetentes.

De regresso às caminhadas, os sobreviventes tentam encontrar ajuda
em algum posto português das imediações. Em vão. Em Nazombe

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

encontram de novo alemães. Mostram-lhes os seus salvo-condutos e

pedem água. Cardoso Mirão, que falava inglês, é levado a uma tenda,

ao fundo do acampamento, onde encontra von Lettow, “sentado num

caixote, diante de uma mesa portátil”. O general invencível era afinal

a “figura modesta e simples de um

Só os negros – e eles homem, de estatura regular, olhar
são cerca de 500 - sereno e firme, uma barba loira, em
continuam dispersos bico, a apagar a suavidade de dois vincos
desenhados aos cantos dos lábios”.

pelo acampamento, Com maior ou menor dificuldade, esta
em atitudes patéticas, coluna errante de derrotados acabaria
corpos sangrentos por contar na primeira pessoa o que
colados ao chão, acontecera em Negomano. O aviso de
pouco serviu. A velocidade do ataque

estendidos para alemão, que no dia 2 de Dezembro,
sempre, sem dois sete dias depois de Negomano, está
palmos de terra a em Nanguar e no dia 3 inicia o assalto
cobri-los às fortificações da Serra Mecula, não
daria grande tempo ao comando-geral

Memórias de Cardoso Mirão de Sousa Rosa para reflectir sobre o

que acontecera. Entre os que tinham

desfilado no famoso Destacamento de Nanguar, porém, a explicação

parecia fácil: além da negligência que levara o comando a acreditar no fim

próximo dos alemães, a divisão das forças por vários postos ao longo da

fronteira tornara mais fácil a sua investida fulminante. A responsabilidade

por essa decisão desastrosa coube ao comando do coronel Sousa Rosa,

que, por este erro e pelos fracassos no combate à invasão alemã de 1918,

seria alvo de um inquérito. Mas, quando as conclusões foram publicadas,

em 1926, já ninguém queria vasculhar as dolorosas memórias da

Primeira Guerra. “Nas condições em que o coronel Sousa Rosa assumiu

o comando da expedição, já não seria fácil evitar que erros e deficiências

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

anteriores viessem a ter uma perniciosa influência no prosseguimento das
operações”, lia-se no apaziguador relatório da Comissão.

Mas, apesar do branqueamento póstumo, a decisão de dividir as forças
por Nanguar, Negomano, serra Mecula, Montes Oizulo e Montes Mocolos
persistiria na memória dos combatentes como um erro indesculpável.
O capitão Francisco Curado, um dos poucos oficiais portugueses que
regressou da Primeira Guerra em Moçambique com a aura de competente
e corajoso, recordaria o “grande desânimo e a surpresa de todos ao
termos conhecimento da ordem que mandou marchar para Negomano
o major Quaresma, com parte das forças do seu comando, a reforçar
o destacamento de Teixeira Pinto, e a distribuição das restantes em
pequenos núcleos isolados ao longo da fronteira (Mecula, Oizulos e
Macolos) e distanciados mais de 150 km uns dos outros” (a citação lê-se na
obra Fantasmas do Rovuma, do jornalista Ricardo Marques). Curado terá
chegado a dizer ao major Quaresma que, se fosse ele o comandante, “não
cumpriria a ordem recebida”.

Dias mais tarde, Quaresma poderá ter recebido uma contra-ordem do
comando, recomendando-lhe que se mantivesse em Puxa-Puxa, no sopé
da serra Mecula, onde nos últimos meses os soldados portugueses se
haviam dedicado a construir trincheiras e outras posições defensivas. Não
se sabe se isto é verdade. Nenhum inquérito foi aberto para determinar o
que aconteceu. O que é facto é que o major manteve o sentido da marcha
para Negomano, onde chegou um ou dois dias antes do assalto alemão.
Com as forças dispersas e incapazes de suster a eficiência germânica,
o que aconteceu em Negomano não passou do primeiro episódio de
uma clamorosa derrota cujos efeitos persistiriam até ao final da guerra.
Novembro de 1917 seria, como Novembro de 1916, um momento fatídico
para a campanha militar dos portugueses no Norte de Moçambique.
Nos meses que se seguiram os alemães entretiveram-se a passear pelo
território nacional. O comando do que restava das tropas portugueses foi
cedido aos ingleses.

170

Grande Guerra • Grandes Reportagens

Negomano seria para a posteridade uma data negra para um exército
com ambições coloniais. Santos Mundogwan aprendeu com o avô
e com o pai a ler nos sulcos que restam das trincheiras do fortim ou
no descampado bucólico na margem do Rovuma os sinais de uma
batalha que inscreveu o nome da aldeia na história da Primeira Guerra
Mundial em África. Os soldados portugueses que por lá passaram na
guerra colonial, pelo menos os que o PÚBLICO contactou, não sabiam
da existência do forte nem do campo de batalha. Nunca ninguém
lhes dissera. Nessa nova frente de guerra no Rovuma era conveniente
desconhecer uma derrota assim.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

A última derrocada

ManuelCarvalho (texto)eManuelRoberto(fotografia), em Negomano

Depois de Negomano, os alemães assaltam Nanguar, daqui
saltam para a serra Mecula e num ápice toda a linha defensiva
construída em 1917 caiu como um castelo. Desbaratado o
exército português, as tropas do mestre guerrilheiro von
Lettow entram em Moçambique, onde passariam dez meses.
Agora, a defesa da colónia estava nas mãos dos ingleses.
De regresso a Lisboa, o alto comando dedicava-se a tentar
perceber o nexo de tantas derrotas. E a preparar golpes contra
os culpados da República.

172

Grande Guerra • Grandes Reportagens

Ameio da tarde de 20 de Abril de 1918, um grupo de homens e
mulheres exaustos e andrajosos aproximou-se da linha de defesa do
comando militar português de Muirite, no Norte de Moçambique. À
cabeça da caravana que por esse momento integrava um impedido,
um cabo, 17 indígenas armados, três refugiados, as respectivas mulheres
e um guia estava o alferes José Teixeira Jacinto. Todos ficaram reféns.
Só o oficial seria autorizado a avançar até ao comandante do posto.
Para provar a sua qualidade de soldado da quarta expedição tinha uma
narrativa extraordinária para contar.

E começou: desde que as tropas alemãs começaram a desbaratar as
linhas defensivas portuguesas em Negomano, a 25 de Novembro de 1917,
nunca mais tivera contacto com os seus comandantes; que fora o único
oficial português a escapar incólume à razia alemã; que tinha conseguido
transferir a companhia que comandava nos Montes Macolos, na frente
ocidental, quase junto ao lago Niassa, para a base segura de Unango; que
se juntou às forças britânicas do coronel Clayton com as quais combateu
os alemães; que aí, semanas antes, soubera que as tropas portuguesas
estariam em Muirite; que, depois de entregar a sua companhia a outro
oficial, passou “19 dias pela floresta lutando pela vida” até ao limite, até se
poder apresentar aos seus superiores.

A vida errante de José Teixeira Jacinto pela selva do Niassa, pelas
escarpas de Nanguar, no caminho para os montes Macolos e no regresso
até ao conforto de uma base portuguesa durou dez meses e fez-se ao
longo de mais de 2000 quilómetros a pé. Quando chegou a Muirite, já as
tropas portuguesas se tinham transformado num apêndice das manobras
do exército inglês, que agora liderava o combate aos alemães instalados
bem no coração da colónia portuguesa. O que restava da expedição de
1917, a quarta que Lisboa enviou para a frente do Rovuma, acumulava-
se nos quartéis à espera do final das suas comissões de serviço. A
imprevidência, incapacidade e incompetência que soldados e oficiais
tinham mostrado transformaram-nos em mais do que num peso morto

173

Grande Guerra • Grandes Reportagens

A epopeia do alferes Jacinto, PÚBLICO

para a guerra em África: tinham sido até preciosos aliados dos alemães,
que com delícia se apropriaram de toneladas de armas, munições,
víveres, medicamentos e carregadores que os portugueses deixavam nos
campos de batalha onde foram derrotados.

Para José Teixeira Jacinto, o regresso a uma base portuguesa era
redentor. O que passara nos últimos meses raiava o limite da capacidade
de resistência. Nas suas viagens vira e vivera um pouco de tudo: penou
com a morte de companheiros, estarreceu-se com os corpos esventrados
após ataques de leões, passou fome e sede, assistiu e obedeceu a ordens
e contra-ordens de um comando desnorteado e incompetente, caçou
hipopótamos para comer e uma jibóia de seis metros e meio para lhe
guardar a pele, mandou pilhar comida aos indígenas, cavou trincheiras,
enterrou e desenterrou alimentos escondidos aos alemães e, no final,
manteve uma luta renhida com o Estado para reclamar o Colar da Ordem
da Torre e Espada pelo seu heroísmo em Moçambique que, por engano,

174

Grande Guerra • Grandes Reportagens

fora entregue

a outro oficial.

Porque afinal ele

comandou a única

companhia que se

salvou da razia do

ataque alemão de

Novembro de 1917

e foi até capaz de

a guiar até uma

base inglesa onde

permaneceria em

campanha.

Quando a

Coluna do Lago

chegou a Nanguar,

em Outubro de

1917, Teixeira

Jacinto teve razões

para suspeitar

que o calvário

das caminhadas

pela selva iria

continuar.

Aí soube que

O Monumento aos Mortos de Negomano em Mueda passaria a ser o

comandante da 2.ª

Companhia Indígena da Beira, que treinara. E soube também que tudo

aquilo por que passara não entrava nos planos do seu novo comandante.

Na primeira reunião formal com os seus oficiais, o major Feio Quaresma

que acabara chegar do litoral a Nanguar, deixara um aviso sério e grave:

175

Grande Guerra • Grandes Reportagens

“A ordem e a disciplina serão a divisa deste comando e não admitirei
que elas se discutam, mas apenas que se cumpram (…) Para aqueles que
ousem retroceder, ou no momento de perigo tentem voltar as costas
ao inimigo, eu tenho esta pistola para os obrigar a retomar a frente
ou para os abater como se abatem os cães traidores”. Entre os oficiais
gera-se uma vaga de indignação e de fúria. Feio Quaresma sugeria que
aquela coluna de maltrapilhos precisava mais de um chefe duro do que
fardas e alimentos. Fazia-o desprezando o capitão Henrique de Melo, o
comandante da Coluna do Lago, que estava gravemente doente.

Como se a falta de apoio a uma multidão de homens que acabara de
vaguear 900 km pela selva não bastasse, Quaresma acrescentaria que,
doravante, a própria Coluna do Lago deixaria de existir. Iria ser fundida
com as tropas que vinham com Quaresma no Destacamento de Nanguar
que, 15 dias depois de ser criado, estava pronto para marchar para a
frente. Era composto por 36 oficiais, 63 sargentos, cabos e soldados
europeus, 1167 soldados indígenas, 250 soldados irregulares, 50 sipaios
e guias, três caçadores e 1500 carregadores. Eram ao todo 3069 homens,
uma força considerável, capaz de combater de igual por igual com as
temíveis forças do general alemão Paul Emil von Lettow-Vorbeck, que se
suspeitava estarem a caminho do território colonial português.

Mas, numa decisão incompreensível, logo a seguir o quartel-general
decide repetir os erros da Primavera de 1916. Em vez de apostar em
núcleos defensivos fortes, decide-se pela multiplicação de pequenos
destacamentos isolados ao longo de uma fronteira enorme. As
trincheiras que a 2.ª Companhia Indígena comandada pelo alferes
Jacinto tinha cavado em Puxa-Puxa, na zona da serra Mecula, não seriam
ocupadas pelos seus homens. Eles teriam de regressar ao caminho,
de fazer mais uns 450 quilómetros por território desconhecido até
os Montes Macolos, que os indígenas conheciam por Guala-Guala, no
extremo ocidental do Niassa. Levariam comida para 30 dias de marcha
e 46 mil cartuchos de reserva. Teriam de construir aí uma fortificação

176

Grande Guerra • Grandes Reportagens

e vigiar a margem direita do Rovuma numa extensão de dois dias de
marcha para cada lado do seu posto.

“O novo comandante”, seguindo “uma política muito sua, segundo uns,
cedendo às exigências de uma política partidária, segundo outros, ou a
uma política internacional imposta pelos nossos aliados ingleses, segundo
muitos, distribuira uma série de telegramas, ordens e contra-ordens,
esfacelando todo o nosso dispositivo, disseminando-o em pequenos
núcleos dispersos por toda a província, mas sem autonomia, sem ligações
nem condições de defesa possíveis”, criticaria o sargento Cardoso Mirão
nas suas memórias da guerra. Se Jacinto foi para os Macolos, a 4ª Indígena
da Beira, as metralhadoras, com os tenentes Viriato de Lacerda e Benard
Guedes e o médico Valadares, ficariam na serra Mecula; o capitão Curado
e alguns dos seus sipaios regressaram por breves dias a Nanguar, onde

Em Setembro, dez meses depois de Negomano, os alemães atravessam de novo o Rovuma

177

Grande Guerra • Grandes Reportagens

ficariam a guardar 200 mil cartuchos e 150 toneladas de géneros; e o

major Quaresma, com todo o seu estado-maior, a 3ª Companhia da

Beira e a 21ª indígena partiram para reforçar Negomano. Era a guerra

nos trópicos a ser feita com “a táctica de gabinete exportada pela nossa

burocracia das ‘Arcadas’”, criticaria Cardoso Mirão.

Dia 7 de Novembro de 1917, José Teixeira Jacinto está novamente em

marcha. Não levava panos nem dinheiro para negociar com os indígenas.

Não tinha sequer um mapa rudimentar que lhe indicasse o caminho. Até

atravessar a serra Mecula levaria como guia o filho do régulo de Puxa-

Puxa. Depois ficaria entregue à sua sorte.

A ordem e a disciplina Em Maziúa, onde chega após seis dias de
serão a divisa deste marcha, visita o posto onde os alemães
comando e não abateram o 2.º sargento enfermeiro
Costa, em Agosto de 1914. A caminho

admitirei que elas se para Mecaloge, as tropas regozijam-se
discutam, mas apenas com um banho retemperador no rio
que se cumpram Lichiringo e excitam-se com o abate
de uma jibóia com seis metros e meio

Major Feio Quaresma de comprimento. Nas terras do régulo

Missé, Jacinto notaria o regresso das

febres que atacam com força os soldados brancos da expedição. Um deles

pedia-lhe: “Meu alferes, puxe da pistola e dê-nos um tiro ou abandone-

nos que lhe perdoamos a morte”. Já não havia quinino. Os doentes

seguiriam em machilas transportadas por carregadores negros.

Dia 24 de Novembro, Jacinto chega à sua “encantada posição”. Estava

a 700 km de selva do quartel-general em Chomba, a 500 de Negomano,

a 400 da serra Mecula, a 70 dos montes Oizulo. Estava, portanto,

isolado do mundo e da frente. Para enviar uma mensagem para o chefe

do Destacamento de Nanguar, em Negomano, seriam necessários

15 dias de viagem em cada sentido. As más notícias, porém, correm

céleres e a que dava conta da devastação alemã em Negomano, a 25

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

de Novembro, chegara menos de dez dias depois. Nem duas semanas
após a sua instalação nos Macolos, Jacinto pressente que toda a linha
defensiva do Rovuma, na qual a sua companhia ocupava a posição mais
ocidental, entrara em colapso.

O princípio do fim

Depois de Negomano, os alemães correram para Nanguar, onde entram
de surpresa – supostamente o chefe do posto, alferes Salgado, e o do
depósito, tenente Mesquita, estavam a dormir, embora as memórias do
general alemão Lettow-Vorbeck refiram que o capitão Stermmermann
teve de cercar os depósitos “durante dias” e que o seu perímetro foi
“valente e vigorosamente defendido”, acabando por sucumbir apenas
depois de acabar a água aos sitiados. É para lá que o comandante alemão
marcha em ritmo acelerado desde Negomano, chegando a Nanguar
“a tempo de superintender na divisão das provisões capturadas”. Os
alemães voltam a deliciar-se com uma dádiva preciosa para a sua
capacidade de manter a guerra em África. “Rearmámos quase metade
das nossas tropas com espingardas portuguesas, e fez-se uma lauta
distribuição de munições. Apoderámo-nos de cerca de 250.000
carregadores, número que se elevou a um milhão durante o mês de
Dezembro”, notaria nas suas memórias o general Lettow-Vorbeck após o
assalto ao depósito de Nanguar.

Daqui, o próximo objectivo dos alemães era a serra Mecula, onde, de
acordo com os planos iniciais do quartel-general português, se deveria
criar uma força suficientemente sólida para travar uma invasão alemã
cada vez mais provável após a derrota que os britânicos lhes impuseram
em Masasi, no final de Outubro. Desde esse momento crucial que os
soldados portugueses ali se tinham concentrado na missão de construir
uma barreira inexpugnável. O local não podia ser melhor. Havia o declive
da serra na qual “a água brotava espontânea por entre as fragas onde nós

179

Grande Guerra • Grandes Reportagens

Uma picada em Negomano

alcandorávamos”, na descrição de Cardoso Mirão. E a escassa distância,
na povoação do régulo Puxa-Puxa, junto a um pequeno rio, os soldados
puderam abrir um extenso campo de tiro e construir abrigos e trincheiras
de ligação. Um trabalho que deixou os soldados embevecidos. “É digno
de nós, e podemos afirmar que estamos apostados em fazer frente ao
inimigo, com todas as vantagens a nosso favor”, notava Cardoso Mirão.

No vaivém das ordens e contra-ordens que denunciava falta de
planeamento e insegurança, Mecula e Puxa-Puxa ficariam relativamente
desprotegidas quando as suas forças foram encaminhadas para
o atoleiro de Negomano e para os postos estabelecidos à pressa a
ocidente. Nada faria por isso prever que, depois das facilidades de
Negomano e do assalto a Nanguar, Mecula se transformasse num
dos raros momentos de relativa glória do exército português. A 3 de

180

Grande Guerra • Grandes Reportagens

Dezembro de 1917, um destacamento alemão comandado pelo general
Kurt Wahle lança as primeiras tentativas para conquistar as posições
portuguesas na serra. Encontra uma tenaz resistência. Para Cardoso
Mirão, ali se escreveria “a página mais brilhante de nossa acção em
África”. A guarnição portuguesa, mesmo estando em inferioridade
numérica, resistiria ao assalto dos alemães durante quatro intermináveis
dias. A 8 de Dezembro, por volta do meio-dia, as munições dos
sitiados estavam a acabar. Os alemães começam a usar a artilharia que
entretanto fora desviada para o local. A resistência duraria apenas mais
alguns momentos.

O que aconteceu na serra Mecula, dizem-no todas as memórias e
relatórios oficiais, explica-se pelo facto de, por uma rara vez, as tropas
portuguesas terem manifestado vontade de combater. Mais, combateram
com método e organização. O que só se explica pelo perfil e currículo do
seu comandante, o capitão Francisco Curado, um oficial experimentado
das campanhas de 1916 na travessia no Rovuma ou da conquista/fuga do
forte alemão de Nevala. Ou de por lá andar o tenente Viriato de Lacerda,
um oficial já com dois anos de guerra que se recusara terminar a sua
comissão de serviço em Moçambique. Viriato de Lacerda seria abatido
por soldados alemães do destacamento Wahle quando tentava destruir
uma metralhadora para evitar que caísse nas mãos dos alemães. O seu
funeral nas faldas de Mecula mereceu honras militares dos alemães. O
governador da África Oriental Alemã, Heinrich Schnee, esteve presente.
Postumamente, Viriato de Lacerda seria promovido e agraciado com
uma Cruz de Guerra “pela sua grande valentia, sangue frio, desprezo
pela vida e acrisolado patriotismo”, lê-se numa Ordem do Exército
datada de 27 de Agosto de 1920.

A partir da conquista da serra Mecula, já não havia salvação possível
para o exército português. Perdera todas as condições de se recompor
e de retomar a sua organização defensiva. A surpresa e eficácia do
ataque alemão transformaram as suas companhias numa multidão em

181

Grande Guerra • Grandes Reportagens

Uma travessia no rio Rovuma

debandada. O capitão Francisco Curado apercebe-se da gravidade da
situação e, a 6 de Dezembro, em pleno assalto a Mecula, envia um ofício
para José Teixeira Jacinto no qual o avisa que “o inimigo tomou Negomano
apoderando-se de grande quantidade de víveres e material de guerra
e fazendo prisioneira toda a guarnição”. Em consequência, Francisco
Curado ordena-lhe que retirasse “para um lugar que julgue conveniente,
mandando destruir todos os depósitos de géneros que possua”. Enquanto
a ordem era cumprida, os refugiados da ofensiva alemã iam chegando
às posições ocupadas pela 2.ª Companhia Indígena da Beira, nos Montes
Macolos. A 15 de Dezembro, eram já 350, “quase todos com aspecto
esquelético, devido à fome que tinham passado”.

Dois dias depois, a 17, calmamente, o grosso da coluna comandada
por von Lettow avança para o interior do Niassa e instala-se em

182

Grande Guerra • Grandes Reportagens

Metarica. A estação das chuvas estava a chegar e uma missão enviada

pelo general bóer Jacob Van Deventer, que o convida a uma rendição

honrosa, era a melhor prova das dificuldades dos seus inimigos. A

instalação do grosso das suas tropas em território português (só a coluna

do capitão Taffel se tinha rendido depois de andar perdida a Norte

do Rovuma), colapsara a estratégia

Rearmámos britânica e portuguesa. A lama que em
quase metade breve alagaria as estradas e os trilhos, a
das nossas tropas água que impediria a travessia dos rios
e a circulação nas ravinas, jogava agora

com espingardas a seu favor – no ano anterior tinha salvo
portuguesas, e a vulnerável base portuguesa em Palma
fez-se uma lauta de um ataque que seria tão fácil como
distribuição fatal. Para o perseguirem de novo com
forças capazes, ingleses e portugueses

de munições. teriam de investir em meses de
Apoderámo-nos de preparação.
cerca de 250.000
carregadores, número Em Metarica, Lettow cura as sequelas
de um ataque de matacanha, um insecto
que na descrição do alferes médico Pires

que se elevou a um de Lima, um dos integrantes da terceira
milhão durante o mês expedição, “tem o péssimo hábito de,
de Dezembro quando fecundada, perfurar a pele e
introduzir-se, de preferência, debaixo das

Memóriasd o general unhas dos pés” onde “o seu ventre cheio
Lettow-Vorbeck de ovos incha até atingir as proporções de

uma ervilha, o que dá sempre incómodos

e, por vezes, complicações graves”. Tem todo o tempo do mundo para

recuperar e preparar uma nova fase da sua campanha. Organiza uma

linha de produção de salsichas para fazer esquecer o consumo de carne

de hipopótamo. Teve até possibilidade de semear algum cereal. De resto,

183

Grande Guerra • Grandes Reportagens

os ajauas que viviam na região, notou o historiador francês René Pélissier
com base nas memórias alemãs da guerra, acolheram os alemães como
salvadores da crueldade e violência dos portugueses.

Durante este período de relaxamento alemão, José Teixeira Jacinto
trabalhava sob as ordens dos ingleses. Até Março de 1918, ele e os seus os
soldados participam em missões de reconhecimento ou em operações
logísticas. Havia três meses que deixara os Montes Macolos, arrastando-
se e arrastado a sua companhia e a horda de fugitivos que acolhera até
à base de Unango. Uma pequena força avançada dos ingleses tinha-se
entretanto aí instalado e assistiu à sua chegada. “O aspecto da força mais
os fugitivos era desolador, pelo que fomos apelidados de ‘Companhia
Pirata’, todos com o cabelo e barba de mais de dois meses por cortar,
idem os fatos e o calçado dos europeus a cair aos pedaços, e os soldados
indígenas quase todos seminus, sendo os casacos tristes farrapos em
cima do dorso. O oficial inglês ficou espantado”, escreveu o alferes
em 18 de Dezembro. Acedendo ao convite do chefe civil da localidade,
Jacinto instala-se no forte. No final dos anos de 1960, esse mesmo lugar
seria chefiado pelo seu neto, o coronel na reserva Armando Jacinto, na
altura capitão, sem que este imaginasse sequer a coincidência.

Nas bases portuguesas, primeiro em Chomba, depois Mocímboa da
Praia e mais tarde em Porto Amélia, o desnorte é total. Durante cinco
meses ninguém soube o que acontecera à 2.ª Companhia Indígena
da Beira nem aos sobreviventes que se lhe tinham juntado. Muitos
acreditavam que tinham morrido. Sobre eles contavam-se já lendas.
Finalmente, a 15 de Março de 1918, José Jacinto recebe um telegrama
assinado pelo comandante Sousa Rosa: “Um abraço para todos vós e
todos os camaradas. Felicito a vossa conduta”. Uma “alegre notícia”,
que provava que “as forças portuguesas não tinham sido totalmente
aniquiladas, como se dizia”, escreveu Jacinto.

Na primeira oportunidade, o alferes trata de planear o seu regresso ao
quartel-general português. Entrega o comando da 2ª Companhia a Paulo

184

Grande Guerra • Grandes Reportagens

“grande safari” dos alemães, PÚBLICO

Bernard Guedes, que tinha ficado prisioneiro dos alemães na serra Mecula
e viria a ser Governador-geral na Índia nos anos 50. No final de Março
parte para a sua última grande travessia do território do Niassa com seis
carregadores, um 2.º cabo, dois soldados indígenas e um guia. Jacinto e os
seus companheiros percorreram nessa última etapa talvez 500 quilómetros
até Muirite. Como nas anteriores deambulações, o seu relato da viagem
está repleto de referências a momentos de fome, de cansaço, de desespero.
Foi encontrando pequenos pelotões de portugueses que o abasteceram, o
alimentaram e lhe permitiram saber, via TSF, que a guerra na Europa estava
a um passo do fim. Soube também que tinha sido promovido a tenente.
O “grande safari” alemão
Enquanto Jacinto caminhava para leste, Von Letow dirigia-se para Sul.
Em Abril está de novo em Maúa, onde menos de um ano antes o alferes
Jacinto se horrorizara com o castigo imposto aos indígenas da região

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

pela sua colaboração com os alemães. Daqui começaria o que René
Pélissier designaria por “Grande Safari”. Desde o final de 1917 que os
ingleses concentravam forças em Porto Amélia. No outro extremo de
Moçambique, as tropas britânicas e africanas passam o Niassa e criam
uma nova frente a leste. Para coroar esta estratégia, os portugueses fariam
uma barreira no rio Lúrio, a sul. Entre Abril e Maio sucedem-se pequenas
escaramuças entre as colunas avançadas dos três exércitos. Quando
percebe que o cerco se aperta, von Lettow-Vorbeck inventa mais um dos
seus golpes de génio. Deixa para trás os seus feridos e tudo o que travava a
mobilidade da coluna, fura a barreira do Lúrio, atravessa o rio a vau e, em
Junho, já está pronto para atacar uma fortificação portuguesa no distrito
de Quelimane, apanhando “os oficiais a tomar café na varanda do posto”.

A notícia da presença alemã naquela zona gerou um novo alarme na
colónia. Como recordaria o general Azambuja Martins nos seus escritos
sobre a Primeira Guerra em África, uma coisa era os alemães atacarem
pequenas aldeias de palhotas no Niassa; outra, diferente, era pôr em
perigo Quelimane e ameaçar a Zambézia, um dos pilares económicos da
colónia. Era, no entanto, para aí que o que restava da Schutztruppe de
von Lettow-Vorbeck caminhava. No final de Junho, a coluna avançada dos
alemães estava já nas margens do rio Licungo, a uns 40km de Quelimane.
Na margem sul, em Namacurra, onde terminava um ramal de caminho-
de-ferro que seguia até Quelimane, cria-se uma linha defensiva com três
companhias portuguesas e duas inglesas. O comando inglês sossega as
hostes e, a 30 de Junho, avisa que “não há notícias do inimigo” e mesmo
que houvesse “o Rio Licungo não se pode atravessar a vau”. Um dia mais
tarde, os soldados da guarda avançada do capitão Müller desfazem a
convicção e atravessam-no com a água pelo pescoço.

Ainda nessa tarde os alemães começam a assaltar os três quilómetros
de trincheiras construídos à pressa em Namacurra. No primeiro dia, os
portugueses resistem durante três horas de árduos combates ao avanço
alemão, numa façanha que seria elogiada pelo general Van Deventer no

186

Grande Guerra • Grandes Reportagens

José Jacinto foi encontrando pequenos pelotões de portugueses que lhe permitiram saber, via TSF,
que a guerra na Europa estava a um passo do fim. Soube também que tinha sido promovido a tenente.
Aqui posto de TSF em Nacarute AHM

seu relatório. Dois oficiais e um sargento são abatidos. Onze oficiais são
prisioneiros. No dia seguinte, o combate, agora com von Lettow-Vorbeck
a comandar os alemães, foi mais equilibrado. Mas na madrugada do dia
3 de Julho de 1918 uma nova ofensiva desgasta as posições defensivas
dos aliados e, pela tarde, a artilharia alemã entra em acção. Gera-se o
caos. Portugueses e ingleses fogem em desordem para o rio, onde uns
100 soldados africanos e quatro europeus, entre os quais um tenente-
coronel britânico, morrem afogados. Uma vez mais, von Lettow-Vorbeck
sairia invencível. Como troféu, apreenderia em Namacurra equipamento
militar moderno, incluindo metralhadoras, umas 500 toneladas de bens
essenciais e até um vapor com abastecimentos que entretanto subira o
Licungo em socorro das tropas aliadas.

187

Grande Guerra • Grandes Reportagens

Quando a notícia chega a Quelimane, o medo instala-se. A cidade

estava indefesa, perdera a sua única barricada em Namacurra. O coronel

Sousa Rosa ordena a retirada de mulheres e crianças. Os bens existentes

nos bancos são arrolados e enviados para sul. Suspeita-se que o próprio

Sousa Rosa se terá retirado para lugar seguro, versão que este refutaria

mais tarde. Todos os homens válidos são alistados. Alimentando-se

da turbulência, os alemães sabem como instigá-la. Fazem saber que é

para Quelimane que se dirigem. Pura

Ainda assim, no dia manobra de diversão. Reabastecidas,
seguinte, no acto de as colunas de von Lettow-Vorbeck
rendição, o general recuam até Angoche. Daí, em vez de
rumarem a Nampula ou Moçambique,

alemão ofereceria inflectem para o interior e prosseguem
como prova do no território que melhor conhecem e
seu poder bois aos que, desde o início, melhor as acolheu: o
ingleses famintos sertão e a selva.

Em Setembro, dez meses depois de

Negomano, que estreou a sua viagem

pela colónia portuguesa, os alemães atravessam de novo o Rovuma junto

à foz do Luchiringo e embrenham-se nos territórios da Rodésia (actual

Zimbabwe). A cada dia que passa vão perdendo capacidade operacional.

A 18 de Outubro von Lettow-Vorbeck vê-se obrigado a deixar no caminho o

velho general Kurt Wahle, o artífice da vitória na serra Mecula, por doença.

A 2 de Novembro, a coluna ainda tem vigor para atacar um forte e roubar

400 bois aos britânicos. Mas quando a 12 de Novembro um motociclista

enviado pelas tropas inglesas apanha o comandante alemão a andar de

bicicleta e lhe comunica o fim da guerra, os alemães eram uma força

limitada a 176 europeus e 1487 soldados indígenas. Ainda assim, no dia

seguinte, no acto de rendição, o general alemão ofereceria como prova do

seu poder bois aos ingleses famintos. Rendera-se com a paz na Europa, sem

nunca ter sido derrotado com a sua reduzida força de europeus e askaris

188

Grande Guerra • Grandes Reportagens

por um conjunto de exércitos que, na avaliação que os próprios ingleses lhe
transmitiram, mobilizara 137 generais e uns 300.000 homens.

Depois de os alemães atravessarem o Rovuma, a guerra estava
acabada para os portugueses. Sousa Rosa pedira a exoneração e chegara
entretanto a Lisboa com a fama de “cobarde”, até mesmo de “traidor”.
O seu longo relatório, que os altos comandos tratariam de subscrever,
dirigiria todas as culpas por mais uma expedição que falhara do primeiro
ao último momento para o Governo e para o regime da República. Em
Muirite, José Teixeira Jacinto fora por essa altura declarado incapaz de
continuar no activo por “fraqueza geral, paludismo, bronquite e uma
hérnia inguinal direita” e fica à espera de embarque para Portugal.
Entretanto, foi convidado, e aceitou, montar um posto de etapas. Antes
do final de 1918, adia de novo o regresso para administrar o concelho
de Amaramba, junto ao Lago Niassa. O pior tinha passado. Em 23 de
Novembro desse ano passa à reserva com o posto de capitão e foi
nessa condição que se prestou à sua última grande batalha: reclamar a
condecoração de Cavaleiro da Ordem de Torre e Espada que tinha sido
entregue a um oficial que se tinha limitado a trazer a sua companhia
desde o Unango até Mocímboa da Praia. O Exército reconheceria o erro
em 1931, mas, por falta de verbas, o colar da Torre e Espada com palma só
seria entregue em 1947. Dois anos depois de ter falecido, aos 64 anos.

Quando o general Gomes da Costa chegou a Moçambique à frente de
uma nova expedição, já o armistício tinha sido assinado na Europa. Estava
na hora de voltar a “pacificar” os indígenas sobressaltados com o apoio
alemão e acertar as contas com os responsáveis por três anos de derrotas
sucessivas, o que o general fez com especial zelo no seu livro A Guerra
nas Colónias, que publicaria quatro anos antes de encabeçar o golpe de 28
de Maio de 1926 que acabaria com a Primeira República. Mas se o general
pôde dedicar-se a enumerar esse interminável rol de erros, omissões e
fraudes e a avaliar a dimensão da falta de organização, a negligência e a
incompetência, o Estado Novo trataria de evitar que outros o fizessem

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

– Kináni, Quem vive?, a memória de Cardoso Mirão, só seria publicada em
2001. Depois do surto de memórias que se se sucedeu logo após o final da
Guerra, o novo regime empenhou-se em esquecer esses dias sórdidos em
Angola e, principalmente, em Moçambique. Os cemitérios abandonados e
profanados onde os restos mortais das vítimas desses erros apodrecem ao
ar são a prova de que esse esquecimento ainda continua.

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