51 É corpo Corpo a sorrir, corpo a desejar, corpo a envolver Avoluma-se na maternidade Supera-se nas sombras Entorpe-se nas alegrias Desenha-se num fio de pura luz Dentre desses olhares tantos que o amor exige Como uma escritura sagrada As letras dispersas são reunidas Sem artifícios Como o alfa e o ômega Como bálsamo celeste Uma enormidade Uma saudade enganosa Que mantém as amarras frouxas Na performance de um ninho de proteção E de continuidade Cura para o monocromático que quer pousar na alma É a casa que cresceu e cresceu tanto que se tornou mundo Sempre deixando a porta entreaberta Sob a luz que não é luz, mas que se esparrama E transborda E preenche! Costurar, a forma de sustentar nossa verdadeira inteireza Meu corpo: a sequência angelical de minha humanidade A cintilar no movimento do tempo Somos e estamos Não há imprecisão verbal Transpassa Um arroubo do avesso! Este avesso tão cheio de remendos que permitem que a chuva mansa lave o telhado E inunde todos os cômodos fetais Nas mãos que garimpam a gente Relembrando o paraíso farto do sabor de doce de leite Boca sempre cheia de utopias O sonho nunca está terminado E é por isso que a vida real arde Como estrela que se queima por completo, para brilhar! É só assim que a genética brilha para além dos limites de tempo e espaço
52 Dilúvio dentro de mim, tempestade que não se acalma. O tempo menino Agora, já crescido transforma todo o amor Colorindo todas as páginas ocupando as mínimas lacunas sem fim! Entre Talvez, viver seja encantavelmente isto. - O quê? - Estar entre infinitos. Estar sempre e constantemente no “entre” de tantas coisas, formas, estações. Este lugar inquietante, que comporta todo o porvir do universo. O entre da imensidão do infinito azul. O degradê que se (de)compõe e se consubstancia ao olhar atento de quem distraidamente busca se ler no próprio mundo. O entre ... Entre azuis ... O azul do céu O azul do mar O azul dos seus olhos O azul do seu cabelo O azul da minha pele O elo Para além de todo o sal e de todo sol Sendo sempre um muito mais O entre ... Entre o beijo na face de todo dia Que espera pela noite Não como a sua morte Mas como a chance reiterada de permanecer entre.
53 Crivar... Um barco à deriva daqueles que se julgam capazes de julgar Humanos, animais irracionais imprevisíveis mesmo no ato de amar Ilusão, uma roupagem imputada ao se permitir cativar Distanciar, resistir e continuar a sonhar Sonhar que em todo e qualquer canto cabe sempre um tanto mais de acreditar Acreditar tanto até vivenciar Sorvendo nos dias que minutar não é só rascunho do que se pretende falar é também o deleite, o prolongar, o se permitir demorar como a arte e o poema, uma licenciatura plena de quem não se cansa de caminhar Perpetuando um vir a ser que pretende humanizar Somente passados os dias, é que sentimos como estamos a nos apressar E entendemos que ligeireza não é qualidade quando sabemos que tudo num segundo pode acabar Virtude é quando de nada precisamos saber para conseguir (ad)mirar Acolher a diversidade e saber respeitar Encontrar no outro, estranho e desconhecido, um lugar para se morar (Co)habitando infinitos que não sabemos ponderar Entre a razão e o sentimento, nada se pode menosprezar A riqueza tão humilde de um olhar O esperançar de luz crepuscular Fazendo do existir um verbo que se escolhe como conjugar Perceber que é no imo de cada coração que está a resposta que estamos a buscar A mesma que principia, funda e conclui o voo que almejamos alcançar Lembre-se: passarinho para sair da gaiola sempre conta com uma mão para o soltar A mesma mão alheia, que é parte de nossa alteridade, alimento vivo a nos banhar Dialética a nos atravessar Um lugar de escuta, de hospitalidade, um lar A trama da vida é intensidade que se expande ao se desvelar Somos mais que gêneros, classes ou rótulos, que tendem a nos igualar Somos unos e distintos, não ousem nos hierarquizar A epifania do universo é a humanidade a se amar Quebrando correntes, sendo conscientes
54 Lançando ao solo fértil novas sementes Somos gigantes, não se aprisionem em suas próprias mentes! Estátuas de uma tal liberdade (sem) expressão Cortaram as veias de nossos corações como se cabos fossem. Usando da justificativa de impedir uma explosão, um fogo intenso, um algo avassalador. Implodimos! Cortaram os cabos-veias de nossos corações-úteros, de nossos corações -mundo. Mas não cortaram as veias que bombeiam “o sentimento do mundo”. Deste, continuamos inundados. (E ainda bem). Bebemos todos os dias, sorvendo gota a gota, a dor e a delícia de sermos justamente o que somos. Que não nos baste o “como” somos. Que não nos bastemos, nem a nós todos, nem a nós mesmos. Nada raso e limitante nos cabe, porque aprisiona. Desejamos o voo, somos todos juntos, o próprio voo. Cortaram-nos as veias, sejam elas artérias, ventrículos, carótidas, aorta, caules, caldas ou cabos. A nomenclatura é indiferente. Fato é: cortaram! Mas não nos podaram as asas, não amordaçaram nossas almas, não hierarquizaram nossas consciências, muito menos imputaram-na alguma superioridade de cor. Cortaram-nos as veias, isto sim. Nos deram próteses identitárias, as defensivas máscaras faciais. Ceifaram ilustrativa e literalmente nossa liberdade, de qualquer tipo de expressão, até de um simples sorriso. Vetaram a nossa liberdade de expressão mais natural, sorrir! Mas ainda temos nossos olhos, e eles falam, e falam alto. Cortaram-nos as veias, mas somos sangue, estamos presentes nas partículas do ar. Somos entregues, somos acima de tudo, humanos. Somos seres humanos. Não cortes, recortes, pedaços, retalhos ou carne morta, sem vida. O descarte é ato da pequenez que a brutalidade humana-homem impõe. Mas, o descarte não é de vida, não é da nossa vida. Isto não permitiremos. Haveremos de resistir! Haveremos de reexistir! Nossos olhos ainda sorriem entre tanta e tamanha desproteção. O sangue uno, incolor, quente e latente ainda pulsa. Ainda somos! Cortaram-nos as veias, mas jamais, em hipótese alguma, tiraram a vida da própria vida. E não conseguiram, nem conseguirão matar o coração. Órgão supremo, mestre acolhedor! A potência do AMOR. O coração que é a mente dilatada, que é a compreensão superior. A crença
55 na e da evolução, a fé da entrega ao melhor. Que é o ato de sensibilizar, começando por nós mesmos. Este coração que se abre, que oferta, amplia, não volta a ter o tamanho anterior, não se reduz. Só propaga, expande, engrandece. Este coraçãoforça, em si mesmo, não basta, e então emana, alcança, e a todos abraça. Um simples ato, uma singela oferta, uma mínima mudança pessoal e interior, e a transform(ação) se faz, de dentro para fora, e é assim universo. Tudo isso, sangra constantemente, faz doer, transborda pelos olhos em forma de choro. Mas neste processo, neste caminho, o seu sangue é halo de pura luz, a dor é aprendizado genuíno, e as lágrimas, ahhh ... estas são pleno refazimento. São lágrimas sol! Haverá Haverá um tempo em que eu não mais estarei aqui Restará o meu olhar Aquele que embebido em águas correntes lancei despercebidamente ao mundo Silente de mim, ausente de um nós, crente na força ainda existente Haverá um tempo em que eu não estarei mais aqui Meu toque continuará sendo sentido Preso a alma, agarrado na palma, tatuado no rosto de quem ainda ama Serei liberta e minhas asas a punho estarão abertas Haverá um dia em que não estarei mais aqui E ainda assim, permanecerei Na ponta vermelha de um nariz, como alguém que não se prestou a ser atriz Uma vida solta, a sorver do gosto de estar sempre por um triz Haverá um dia em que não estarei mais aqui E tudo se resumirá a uma viagem Com as duas passagens compradas: ida e volta, finitude e saudade Uma escolha abrupta e verticalizada desde a origem até a eternidade. Haverá um dia em que não estarei mais aqui E só assim estaremos, eu, você, todos nós, absortos do que poderia ter sido
56 Engolindo o amargo sabor de “ses” e arrependimentos tardios Destes, ouso desviar-me, entregue à queda, amante da aventura do percurso Me imaginando imensidão, infinito, sem som, sem cor, sem fim! Menina da Zona Leste Margeava! Habitar espaços fronteiriços sempre a encantou. Fossem as fronteiras humanas, geográficas, teóricas, filosóficas ou empíricas. Margeava! Assim inundava onde estava e se preenchia também, algo automático, natural e forte. O abissal se fazia nela, como seu próprio afluente, como ruas sempre cheias de sementes. Entre uma queda e outra, ela se reerguia, sorridente, nem sempre firme, mas sempre pungente. Sua avó lhe ensinara, antes de tudo a ser resiliente. E se não fosse para se alegrar, ela evitava e se mantinha rente. Caminhava sempre para a frente. Mas nunca era indiferente. Viver para ela era um constante poente. Antes da identidade da Zona Leste, não era diferente. Nasceu, enraizou-se, prendeu e aprendeu os fascínios infinitos de estar na terceira margem. Ato de coragem e/ou silêncio, ela ainda não sabia bem, era um mistério. Faz parte do seu (SER)tão, o Curralinho, que virou vila, e de gente em gente agora é bairro. Foi aí que entendeu que habitar, é quando o coração faz pouso e resolve ficar. Perpetuar e permanecer. Que morar, é o verbo onde a gente se encontra, mas principalmente onde consegue se perder, por completo, e assim se refazer, tantas vezes forem preciso. Hoje, quando vê o mapa seja do mundo ou do seu estado, mas principalmente o da sua cidade, seus olhos fixam no seu bairro, e naquelas linhas é como se ela se visse desenhada por inteiro. E com sua risada típica e costumeira, que ela diz nascer no estomago, e explodir no estrondo do ar que sai das narinas, liberta seu peculiar som/ronco, lembrando de tudo que és pelo que escolheu ser seu. Sorri porque sabe que mais uma vez os que são vítimas se condicio-
57 naram, e se delimitaram, por denominações de polos e extremidades geográficas hierarquizantes, mas principalmente feito de políticas dominantes. Podaram as asas dos homens, não as suas. Ela estava nua, nua de cobranças, limitações e regras esvaziantes. Seu lugar, era o nada, gostava de estar ali. O nada, na verdade, contém o tudo, o liberto, o radical. A margem que a identificava, o estrangeiro que logo era, o outro que somos nós. Pra ela, não há norte, sul, leste ou oeste. Somente horizontes, e estes eram sem fim. Eram imensidão. Ela então: enrubesce, faz uma prece, tece. Tece sempre a muitas mãos, e assim reconhece! Todos constataram que ela enlouquece. Segue vida segue vento segue ... Essa menina que dizem ser do leste, sempre escolhe o que veste. Desejando sempre que tudo a todo instante recomece! Meu Maluco Beleza Daqui da minha cadeira que nem é de balanço, eu te vejo desmoronar Desfazendo se a cada minuto como borracha a apagar Eu pensei que proteção fosse símbolo de eternidade e acabei por descobrir que não existe super-herói de verdade Te olho e sinto seus olhos a vagar por um vasto mundo que nem sei onde pode estar Te estico a mão, tento te acalentar é quando eu vejo tudo recomeçar De pergunta em pergunta vi seu mundo flutuar foi quando eu percebi que tudo muda num segundo e nem sempre isso significa sonhar Eu podia dizer sobre compaixão mas o que sinto é controverso e deixo o coração a escutar Lá que é lugar para tesouro eu guardar mesmo se a sua memória sempre nos quiser roubar. Era tudo algodão-doce, cor-de-rosa e emoção Quando o dono da vitrola, que compôs nossa canção lá de cima disse agora é hora de reflexão De joelhos me ponho a clamar pelo seu perdão
58 quando ouvi bem lá no fundo nem sempre se aprende sendo são Foi então que percebi que eu podia inventar “estórias” que te faziam sorrir E assim poder recolorir o que nos trouxe até aqui Feliz eu disse ao porteiro que guarda aquele paraíso inteiro que colocasse um grande letreiro e repetisse sempre que você pedisse que na vida tudo é maluquice e que essa sua sandice era porque aqui nesse mundo de imundice só se será feliz quem sentisse sem eira nem beira mesmo que fosse bobice pra mim nunca foi tolice Mesmo vivendo a sua própria leseira Fazia com certa dificuldade uma bela oração desejando que o bem sempre nos queira. O vitroleiro piscando me gritou que a lição, ele ensinou não foi ninguém que nos enfeitiçou ou se quer enganou foi só amor o que ele nos doou foi quem me encorajou a dizer que aqui sempre estou mesmo se você já vacilou porque é graças a você que sou! Esse poema não é para mim como outro qualquer aqui a menina se fez mulher as posições se inverteram não tinha nem como escolher mas por tão bem te querer pude te ver envelhecer, chorar e também vencer entreguei você ao solo, onde estão nossas raízes, e mesmo fazendo doer sei que de lá você voou liberto de dores, limitações e nunca mais vai nos esquecer!
59 Precioso amor de Mãe Preciso amor criou tudo que sou me ensinou a viver e a viver novamente Acredita em mim nos bons e maus momentos Me levanta e me faz ter e ser a própria certeza. Me faz perseverar! Não tem explicação, nem significado Tudo que existe, seria limitar, o que é infinito. Como retribuir? Retribuir por você ter fé em mim. Retribuir pela sua vida, sua rima, seu sorriso, seu abraço Todas essas coisas que são notas da nossa canção Uma canção fora do tempo, fora do espaço, fora de mim! Você ... luz intensa pr’além de qualquer horizonte Aqui, percorremos juntas, um longo caminho, eu sei! E ele se desenha ainda longínquo à nossa frente Foi essa travessia que nos fez pertença e elo forte Tudo que eu preciso é a certeza que tenho, que sempre terei para onde voltar! Sempre poderei voltar para casa, para minha casa que é você! Morada que eu habito, morada que se faz em mim! “Como poderia um peixe nadar sem água? Como poderia uma ave voar sem asas? Como poderia a flor crescer sem terra? Como poderia eu viver sem você?” Você, mão que posso segurar O que mantém meu coração a pulsar. A vida da minha própria vida! Clarão, lareira, abrigo, regaço Quem e por quem eu sigo a caminhar Como poderei retribuir algo assim Esse algo sem fim ... Como é você para mim! Amo-te com toda a minha fé que é sem medida!
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61 Amarildo Alexandre de Paula Alonso do Carmo é o segundo fi lho de Adirson Alonso do Carmo e Mercêdes Antônia de Paula Alonso do Carmo. Nasceu em Corinto/MG, estudou na Escola Estadual Professora Maria Amália Campos, 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental, 5ª a 8ª série no Colégio Cristo Rei e no Colégio Dom Serafi m e o curso Clássico no Seminário Seráfi co Santo Antônio em Santos Dumont/MG. É Mestre em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da UFMG na linha de pesquisa Arte e Experiências Interartes na Educação (2021). Especialista em Teatro e Educação pelo Instituto Federal do Norte de Minas Gerais/Diamantina (2021). Possui graduação Bacharelado em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Minas Gerais (2006), graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Sete Lagoas (2003) e Licenciatura em Letras pela Faculdade de Ciências Humanas de Curvelo (1995). É ator, professor de Língua Portuguesa e suas Literaturas. Tem experiência na área de AMARILDO ALEXANDRE DE PAULA ALONSO DO CARMO sócio Efetivo Cadeira nº 19 patrono: Maria Amália Campos
62 Ausência Talvez as badaladas sequenciais e os sinais do depósito da Central do Brasil que sinalizavam amanhecimentos, tenham se tornado apenas ruídos insignificantes para os habitantes daquela cidade grega antiga, mas, para Dolores, o tempo vivido naquela localidade fora marcado por sonoridades que vaticinavam sobre sua existência. Quando menina, gostava de sentar-se debaixo dos pequizeiros e, com um caderninho, uma espécie de diário secreto, registrava os acontecimentos e arquitetava pequenas desobediências para não ter o mesmo destino da maioria das mulheres daquele povoado. E como era difícil ser mulher naquela época. A casa, a comida, o marido, os filhos. Se pudesse, em seu breve pensamento, naquele tempo, alimentar a ideia de que aquele mundo era tão inóspito, tão distante para a mulher que um dia poderia se tornar. (e a gente vai se tornando, tornando, tornando, entornando). Dolores acordava bonita com o barulho do trem de ferro que passava na porta de sua casa. Ter o pai maquinista era uma alegria passageira, porque a moça dividia seus primeiros estímulos entre ausências e presenças. Por isso, reconhecia de imediato pela ausência a importância que cada pessoa tinha em sua breve existência. Percebera a importância da bandeja de biscoitos que sua Vó fazia, quando não tinha mais Vó nem biscoitos. Na escola, gostava de intercalar cumprimentos, um dia abraçava apertado todos os colegas da turma; no outro dia, nem um toque, só para sentir o calor dos abraços. Ritualizava assim suas faltas para ser plena em seus encontros. Acordava antes de o sol nascer, mas, no itinerário para a escola, contemplava a cidade de terra vermelha e tomava nota das coisas importantes que prestaria mais atenção naquele dia. Apesar de organizada, chegava atrasada cotidianamente e Irmã Preciosa era quem a acolhia com interrogações amáveis e a levava para a biblioteca até começar o construção de espetáculos com ênfase em processos criativos no ambiente escolar. Dirigiu, orientou e desorientou quatro espetáculos em Belo Horizonte com alunos do Ensino Médio: “Acalanta com Ternura” (2009),” Dança, Dança, Dançou ou como água para alma” (2010), “Viveiro de Estrelas” (2011) e “A Terceira margem de Deus” (2012). Atualmente desenvolve projetos com processos criativos em Teatro nas escolas.
63 segundo horário. As freiras, talvez por serem seguidoras de São Francisco, sabiam da “perfeita alegria” do poverello e sempre distribuíam bolsas de estudo para aqueles que não podiam pagar. Irmã Preciosa era de família de músicos e seresteiros, uma exímia cantora de voz aguda que gostava de cantar “Morrendo de Amor” em memória de sua falecida mãe, que gostava do cantor Moacyr Franco. A freira franciscana sempre falava com Dolores e tinha uma secreta vontade de que os estudantes lessem obras que falassem do sertão, já que a localidade era considerada o portal do sertão mineiro. Falava sobre as profundidades dos rios, as margens, o cerrado, a África, a travessia do oceano e o silêncio de Deus. Sabia de cor o canto dos escravos, interpretado por Clementina de Jesus, por influência da avó. Preciosa era cheia de preciosidades em comparação com as outras freiras que Dolores conhecera, para quem disciplinas eram mais importantes do que a vida. Quanto mais conversava com Irmã Preciosa, mais Dolores aumentava a vontade de chegar atrasada para aprender sobre coisas que não se aprende dentro da sala de aula, nem na igreja católica. As ausências tão valorizadas na infância cediam lugar ao encontro e o seu modo de ver o mundo modificava-se a cada manhã. Estranhava, aos domingos, quando ia à missa com seus pais, a posição do padre dentro da igreja em relação ao povo e questionava: “Por que o padre fica no alto do altar e o povo nos bancos abaixo?” Não concordava mais em sua casa, que só a sua mãe cuidasse da comida e da limpeza e incentivava os seus irmãozinhos a colaborarem com as tarefas e, cotidianamente, quando fazia um suco, como forma de aprendizagem, o primeiro copo era para sua mãe e o segundo para seu pai, pois aprendera com irmã Preciosa sobre privilégios masculinos e não queria que o seu pai pudesse tudo e a sua mãe não pudesse nada. Ficou muito assustada, quando a Freira lhe contou que em algumas famílias daquele curralinho, as filhas mulheres tinham que cuidar da casa, da comida e, ainda, limpavam os sapatos de lama dos irmãos, quando eles voltavam das noitadas. Não dormiu durante três dias quando soube que alguns maridos daquela época, naquele lugar tão tacanho assassinavam suas esposas por ciúmes e que as pessoas negras não podiam frequentar o mesmo clube que as pessoas brancas. Os dias estendiam-se e os atrasos se converteram em encontros de luta. Preciosa revivia seus pertencimentos e cria em São Francisco, em Jesus Cristo e Oxalá e Dolores não nascia nunca mais, tornava-se. Eram duas mulheres negras presentes no oceano atlântico colonizado de Corinto, refundando reinados africanos.
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65 A literatura sempre fez parte da minha vida e se constitui em referência preferencial para a minha escalada pedagógica nos caminhos da educação. Consciente de que a leitura enriquece e enobrece o pensamento e a maneira de viver de cada um, escolhi Letras para o início de minha formação acadêmica e hoje com mais de vinte anos na carreira no magistério, considero a educação em primeiro plano como os princípios fundamentais na organização das questões sociais e culturais de um povo. Devido à complexidade nos parâmetros da construção da educação, senti a necessidade de avançar mais nos estudos e aprendi muito nos bancos escolares e com a minha Pós-graduação em Literatura Brasileira e o Mestrado em Letras – Linguagem, cultura e discurso, desenvolvi o apreço pela expressão escrita com os meus livros para crianças, o público infantojuvenil e poesias para adultos. Hoje vejo a representação viva e plena da Literatura em minha vida. No encontro da educação com o discurso social dediquei-me à pesquisa e o estudo sobre Relações de Gênero e no meu Doutorado tive a oportunidade de analisar a escrita feminina com a sua evolução em cada tempo na história ANTÔNIA ROSA DE ALMEIDA sócia Efetiva Cadeira nº 24 patrono: Antônio Martha Pertence
66 Formação 1) 1980 – 1982: Graduação em Licenciatura Curta Português / Inglês pela PUC Minas, Belo Horizonte-MG; 2) 1997 – 1998: Graduação em Licenciatura Plena Português / Inglês pela FAFÍDIA, Diamantina-MG; 3) 1999 – 2001: Especialização em Literatura Brasileira pela PUC Minas, Belo Horizonte-MG; 4) 2005 – 2007: Mestrado em Letras – Linguagem, Cultura, Discurso pela UNINCOR – Três Corações-MG; 5) 2013- 2017: Doutorado em Ciências da Educação, pela UTAD, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real – Portugal. Carreira Profissional 1- Atualmente, sou Professora no Ensino Médio e Fundamental com Língua Portuguesa e Língua Inglesa, na Escola Estadual José Brígido Pereira Pedras, Corinto-MG; 2- Fui Professora no curso de Letras nas áreas: Estrutura e Funcionamento do Ensino Fundamental e Médio; Leitura e Produção de Textos; Literatura; Metodologia da Pesquisa Científica, na Fundação Educacional de Curvelo e Associação Educativa do Brasil, Curvelo-MG; 3- Fui Diretora Escolar na Escola Municipal Professora Laura Martins em Augusto de Lima-MG; 4- Fui vice-diretora escolar na Escola Estadual Desembargador Canedo, em CorintoMG; 5- Fui coordenadora do Curso de Letras na Fundação Educacional de Curvelo e Associação Educativa do Brasil, Curvelo-MG. Livros publicados 1) Poesias: Arenga Candonga Banzo 2) Infantis: Dia de Pato, Pato é das mulheres. Em minhas pesquisas observei que os estudos culturais têm como referência também a Literatura e os questionamentos são capazes de compreender os fatores sociais. Através da Literatura procuro todos os dias articular a dialética do texto e o mistério que a ele se prende.
67 Já vai o Javali O doido da ponte Um saci, quase o Pererê 3) Infanto-juvenil: Coração Mambembe Amém por nós 4) Memória: Maromba no Agreste 5) Bento Rodrigues, até que aconteça saudade... Vida Literária Antonia Rosa, natural de Corinto-MG, filha de Raymundo Rosa e Teresa Rosa. Professora formada em Letras e Pós-Graduada em Literatura Brasileira, Mestre em Letras – Linguagem, Cultura e Discurso, Doutora em Ciências da Educação. Sempre demonstrou interesse pelas histórias. Com o seu jeito meigo, simples e discreto encontrou um ritmo marcante, bem natural para usar a língua e a escrita dentro dos padrões modernos. Apresenta de maneira calorosa temas profundos, envolventes que retratam o cotidiano e a sensibilidade das coisas simples. Seu nascimento para a Literatura veio cadenciado, porém de forma explosiva que resultou numa crítica bastante positiva na alta roda de autores mineiros consagrados. A leitura e a escrita são hoje o seu principal objetivo de vida. Numa realização da Armazém de Ideias, publica o seu primeiro livro em 1998, “CANDONGA”, um livro de poesias com temas emotivos, novas formas de expressão, versos livres, que valorizam os símbolos registrando os sentimentos, sonhos e a realidade do nosso bem viver. Nesse mesmo ano, participa de uma Antologia Literária na cidade de São Paulo, pela Litteris Editora com o conto “O BRILHO DE CANOPUS” e na cidade de Alfenas, MG, foi laureada com o Diploma de Honra ao Mérito pela qualidade da obra “MAROMBA NO AGRESTE”, um conto de grande expressão sensorial, tipicamente popular. O grande desempenho na arte de escrever leva Antonia Rosa a marcar presença na 3ª Semana de Estudos Linguísticos, Leitura e Escrita entre 05 e 09 de abril de 1999, na Faculdade de Filosofia e Letras de Diamantina, MG. Em sua cidade, Corinto-MG, esteve no Momento Cultural realizado pelo Colégio Dom Serafim, coordenado pelo educador Roberto Gravito, no dia 30 de junho de 1999.
68 Absorvida pelo suave e envolvente espírito poético escreve os poemas “PIRRAÇA”, “BANZO”, E “CANOEIRO” para a Antologia Poética do 2º Festival de Inverno de Educação de Itajubá, MG, em julho de 1999. A partir de então abraça os temas infantis com cinco livros: “Coração Mambembe”, “Já vai o Javali”, “Um Saci, quase o Pererê”, “Dia de Pato, Pato é”, “O Doido da Ponte”, pela Armazém de Ideias. O ano 2000 inicia-se com tristezas e alegrias para Antonia Rosa. No dia 5 de maio perde sua mãe, D. Teresa Rosa. Durante as comemorações dos 50 anos da Escola Estadual “Professora Maria Amália Campos”, em Corinto, ainda no mês de maio, recebe homenagem do “Grêmio Literário” da Escola, coordenado pela professora Nair Rodrigues. E na 6ª Semana da Poesia Viva, no período de 27 de maio a 03 de junho, a Fundação Educacional de Curvelo contou com a presença significativa de Antonia Rosa, no dia 29 de maio. Em Belo Horizonte, no 1º Salão do Livro de Minas Gerais, realizado entre 12 e 20 de agosto de 2000, na Serraria Souza Pinto, Antonia Rosa autografou seus livros infantis no estande da Armazém de Ideias, no dia 20 de agosto. Banzo é o seu sétimo livro e foi lançado no 2º Salão do Livro de Minas Gerais, na Serraria Souza Pinto, em Belo Horizonte, no mês de agosto de 2001. No dia 14 de novembro de 2001, Antonia Rosa recebeu do Governador de Minas Gerais, Itamar Franco, a Grande Medalha do Mérito Educacional 2001, pelos relevantes serviços prestados à Educação. Escreve em 2003 o livro Amém por Nós, uma obra que aborda as reflexões do nosso próprio eu, em função do bem-estar social, lançado na Serraria Souza Pinto. Em 2005, faz um projeto de participação ativa dos jovens na Leitura e Produção de Textos e, então lança Arenga, um livro de poesias, em parceria com Jean Carvalho, um jovem iniciante na Literatura do estado do Piauí. Outro fato triste na vida de Antonia Rosa, em 2007 falece seu pai Raymundo Rosa e sua vida volta a ser exclusiva para a escrita e produção de textos. Trabalha como professora de educação básica na Escola Estadual José Brígido Pereira Pedras. Dedica exclusivamente, aos trabalhos literários na área da educação onde trabalhou como vice-diretora na Escola Estadual Desembargador Canedo, em Corinto-MG e como Diretora na Escola Municipal Professora Laura Martins, em Augusto de Lima, MG, trabalhou também como
69 professora e coordenadora do Curso de Letras na Fundação Educacional de Curvelo e Associação Educativa do Brasil, Curvelo-MG. Em 2015, Antonia Rosa escreve Maromba no Agreste, mostrando a alegria de se confidenciar no sertão. Para Antonia Rosa demonstrar as razões da vida na poesia é uma paz de espírito, é acreditar no sonho e um conhecer de si mesmo. Viver a poesia significa estar aberto aos interesses de toda a forma de amar e as histórias nos permite uma nova visão do mundo. Em 2018, escreve Bento Rodrigues, até que aconteça saudade..., uma obra que retrata a tragédia em Mariana, no município de Bento Rodrigues, MG As Obras de Antonia Rosa Candonga (poesias) Você sabe o que é Candonga? Candongar? Bem mineiramente, é fazer mexericos, falar da vida, a maior parte das vezes, sem maldade. Pois é exatamente esta temática do livro “Candonga”, onde, com um texto forte, bonito e conciso. Antonia Rosa mostra o universo feminino retratando o cotidiano e sensibilidade das coisas simples. Coração Mambembe (infanto-juvenil) O mundo mágico do circo, um palhaço encantado e encantador, que faz do riso sua arma de sobrevivência. Um menino sensível que achou pistas de uma tristeza enorme, escondida nos olhos de quem só dava alegria. A amizade entre esse menino esperto e o palhaço tristonho. Um texto para ser sentido. Literatura infantil: Já vai o Javali, Um Saci, quase o Pererê, Dia de Pato, Pato é, O Doido da Ponte dão início a uma série que pretende transmitir ao leitor lições de cidadania e melhorar a sua relação com o meio ambiente em uma linguagem fácil, sem moralismos e frases feitas. É uma leitura recomendável para todas as crianças que têm de conviver diariamente com um mundo cada vez mais hostil e agressivo. Em Banzo (poesias), o mundo poético deste livro nos permite uma renovação a cada instante; já Amém por Nós (infanto-juvenil) revela numa linguagem totalmente poética, sonhos, intenções, imagens, o mundo, a vida - uma visão realista do nosso cotidiano ao lado da potencialidade
70 da alma infantil, enquanto Arenga (poesias), traz todo o sentimento humano dentro de uma magia tropical e do seu fazer no dia a dia, com consciência do mundo e da sociedade. Maromba no Agreste Histórias de vida, traz memórias autobiográficas com uma linguagem poética, mostrando a alegria de se confidenciar no sertão, com uma história de memórias, de uma vida junta, de quem vive no sertão. Já o livro Bento Rodrigues , até que aconteça saudade... dialoga com todos nós numa corrente solidária para encontrar a história de Bento Rodrigues, que procura um novo amanhecer, uma nova esperança, com dignidade e sentimento de liberdade. Religião e religiosidade presente na escrita feminina Analisar a religiosidade na escrita feminina nos leva a pensar e refletir nas lutas das mulheres para a inserção na sociedade, quando ao longo de muitos anos permaneceram no anonimato. Sem dúvida, vamos relembrar o século XIX, através de Francisca Senhorinha da Motta Diniz que, em sua obra A Judia Rachel, um romance histórico, de 1886, retrata usos e costumes orientais, situando as ações femininas, com fatores ligados à própria existência cuja voz do sujeito prende-se na possibilidade apontada na voz do outro e, que a religiosidade caracteriza a mulher numa reflexão substancial e humanística, colocando Deus, como salvação de sua própria sorte, o seu destino. Portanto, a literatura feminina e a religião de certa forma encontram vários pontos em comum e que, consequentemente, as unem, no sentido que a literatura é a alma do povo, pois realiza de maneira intensa a continuidade na formação de um povo, com sua cultura, crenças, usos e costumes. Neste sentido, a religião envolve toda a criação da humanidade dentro do que é mais sublime na vida de cada um, que é a fé e o cuidado com a própria vida. É necessário perceber que há um espírito maior, que nos envolve para o sentido da vida. A religião neste caso, utiliza a representação e a arte a intuição. A literatura faz uma representação que nasce da crença intuitiva e sempre questiona sobre o sentido da existência, ou seja, está sempre fazendo indagações. A literatura e a religião marcam os primeiros passos do Brasil a partir da carta de Pero Vaz de Caminha, com pregação cristã, no discurso dos jesuítas, um discurso cristão.
71 O caminho da vida de cada ser humano é traçado buscando as possibilidades de toda a integração na vida e viver a religiosidade envolve uma grande reflexão nos pilares que sustentam a vida para todo o desenvolvimento humano, que são a fé, a crença e a busca. A religião interage nas escolhas, nas buscas que o indivíduo faz perante o destino de cada um. A religião, sem dúvidas é nosso instrumento de fé, que nos torna fortes para o segmento da vida e desenvolvimento da nossa própria identidade e nos leva ao diálogo social, mostrando um caminho cheio de possibilidades no que diz respeito à construção da cidadania. A escritora Adélia Prado, busca a totalidade da vida através de suas poesias e o reencontro do indivíduo com suas lembranças, cuja religião católica está sempre presente, fazendo uma reflexão entre o sagrado e o profano e a experiência com Deus. No seu livro Bagagem, mostra a sua religião, fazendo uma analogia, colocando tudo em uma mala, para se reconstruir num caminho novo, cheio de reflexões existenciais e um longo diálogo com a bíblia, há uma aproximação muito grande com Deus. Adélia Prado escreve “Deus é mais belo que eu. E não é jovem. Isto sim, é consolo “. A escritora Clarice Lispector mostra em suas obras traços marcantes da religiosidade, através da epifania de personagens. Para Clarice, escrever é uma indagação. A escritora mostra um diálogo intenso com Deus e aborda a morte, como uma procura de Deus. Clarice afirma “Eu não sou senão um estado potencial, sentindo o que há em mim água fresca, mas sem descobrir onde é a sua fonte. A fonte é Deus’’. Seu conto perdoando Deus, mostra um diálogo intenso entre religião e Deus. Antônia Rosa reflete em suas obras um discurso social e um diálogo com sua própria existência humana e as relações com o divino, em tom de encontrar respostas para a existência humana e o encontro com Deus. A sua obra Coração Mambembe, retrata a morte buscando uma fé viva, e, em Bento Rodrigues, até que aconteça saudade, reflete através da sabedoria divina um sentido maior para a vida. Com a poesia Alforria mostra um diálogo entre o corpo e a alma, Antônia Rosa escreve “Do meu corpo desprendeu - se minha alma para ficar frente a frente com meu próprio corpo e policiar o meu destino. Sou um corpo sem alma ou uma alma sem corpo. Minha alma ofusca os desejos que meu corpo sente. Eu não consigo sorrir porque minha alma chora’’ Então, a religião e a religiosidade presente na escrita feminina, faz uma integração com a sociedade e sempre esteve presente como fator inspirador.
72 Literatura e arte: uma forma de inclusão A arte renova a vida das pessoas e contribui para o desenvolvimento da criatividade, mostrando várias possibilidades de enxergar o mundo de maneira diferente através do sentimento e da emoção. De certa forma, podemos observar a interação de crianças e adolescentes em sala de aula com trabalhos ligados à arte num desenvolvimento maior, ativando a capacidade intelectual e levando – os a adquirirem uma maneira de sobrevivência através da arte, capacitando – os de forma participativa na sociedade. O livro da jornalista Gabriela Bandeira, Singularidades – Um olhar sobre o Autismo, aborda fatos reais e relatos de mães de crianças diagnosticadas com autismo, revelando uma maneira mais reflexiva de encarar a situação e mostra um mundo mais inclusivo, para fazer uma conexão entre família, espaço, educação, criança e a importância de lidar com as diferenças. A literatura faz parte do crescimento intelectual na vida de um povo e é capaz de recriar um mundo cheio de possibilidades através da educação. Isso porque a educação sempre foi o elo entre a capacidade de aprender e o próprio ser humano, diante dos desafios para que o indivíduo se torne criativo e participativo na sociedade. E o que é literatura e arte: uma forma de inclusão? É a própria consciência de todos na luta pela inclusão social, através dos direitos de cada um, voltados para supremacia de uma sociedade igualitária, com mais espaços diferenciados, que envolvam a cultura e o acesso a todos. Neste sentido, tanto a pintura, o teatro, o cinema, a literatura, a música, etc., estão e estarão sempre presentes no contexto social, fornecendo mais conhecimento para todos, construindo uma educação de qualidade, com novos valores e maior expressão do conceito de cidadania. O que é inclusão social? É um conjunto de medidas que busca maior aproximação de todos na sociedade, visualizando os direitos e os deveres de cada um no seu dia a dia e acrescentando condições de possibilidades de desenvolver o talento de cada indivíduo. A banda, Titãs, aqui no Brasil, tem uma música cujo título Comida, mostra a importância dos valores culturais em nossa vida, porque não queremos somente comida, mais também diversão e arte e faz uma pergunta: Você tem sede de quê? A música é essa: “Bebida é água! Comida é pasto! Você tem sede de quê? Você tem fome de quê? A gente não quer só comida. A gente quer comida diversão e arte. A gente quer
73 saída para qualquer parte, a gente quer bebida, diversão, balé, a gente quer a vida, como a vida quer... etc. É necessário dar oportunidade a todos para irem ao teatro, a conhecerem melhor a arte, dar condições aos menos favorecidos de apreciarem a arte. Neste sentido, podemos observar que a necessidade de estar presente na sociedade, no mundo no seu viés ideológico, as pessoas de um modo geral querem fazer a sua história, participar como atores no cenário histórico e serem também protagonistas de suas próprias histórias. Portanto, é fundamental uma organização maior nas políticas públicas para garantir uma educação de qualidade, a valorização da Literatura e Arte, para que haja uma inclusão social mais fomentada nas emoções, sensibilidades que todo ser humano é capaz de transmitir, através da pintura, do teatro, da música, da poesia, dos livros e poder também encontrar esses talentos que de alguma forma apresentam alguma dificuldade na aprendizagem, porém podem sobressair muito bem através da literatura e da arte, mostrando trabalhos valiosos, que certamente demonstram também outra forma de aprendizagem, com um empoderamento significativo na vida social de cada um. Biografia de negrete Personalidade ilustre na cidade de Corinto, Minas Gerais e nos arredores das Minas dos sonhos, dos morros, quiçá do Brasil, Geraldo Cardoso da Silva nasceu em Corinto, no dia 18 de setembro de 1930, filho de Francisco Cardoso da Silva e Raimunda Cardoso dos Santos, casado com Maria Amélia Prado, já falecida. Tiveram 12 filhos, sendo 3 hoje na companhia do Pai Celestial. Para todos e amados por todos é conhecido por Negrete. Foi desde cedo um deslumbrado pela arte e principalmente pela música, cuja raiz corre em suas veias trazendo encantamento de todos que admiram a sua voz e, que de certa forma está contida em toda a sua família, com grandes representantes na arte musical, com seus filhos e netos. Desde os primeiros passos foi um garoto feliz, amoroso e um pouco travesso, que ainda de calças curtas e sorriso no rosto embalava com alegria toda a gente do seu lugar, despertando simpatia nas pessoas que o conhecia. Nas brincadeiras com os amigos, apaixonou –se pela bola e por tanto apego, tornou –se um grande goleiro em gramados ou campos de terra batida, fazendo defesas fabulosas, que o levou ao clube de futebol de Corinto, o então famoso Guarani e consagrou – se pelo enorme sucesso e pelos títulos, como um dos melhores goleiros da região. Com sentimento de fidelidade pelas crenças e valores culturais,
74 esteve sempre envolvido nas apresentações artísticas da cidade, cuja referência veio através de seu pai, o senhor Francisco Cardoso da Silva, idealizador das apresentações da folia de Reis em Corinto. Passaram – se os anos e, além do futebol, Negrete também se deliciava com os acordes musicais nas majestosas tardes ou nas manhãs de um domingo festivo. Portador de uma inigualável voz, ainda rapazinho, junto com seu irmão Oliveira, formou uma dupla caipira, conhecida por Pimentinha e Castanheira, respeitada por todos, com muito sucesso. A cada dia, a música envolvia mais a sua vida, que o fez procurar uma madre religiosa para estudar canto lírico. Com bastante propriedade, teve como registro vocal tenor, a mais aguda das vozes masculinas. O gosto pela arte o levou ao teatro onde as apresentações aconteciam no salão paroquial, que era Cine Rex, mais tarde o Cine Mônica. A sua vida escolar aconteceu no tão conhecido Ginásio Cristo Rei, marcando a sua trajetória intelectual e cultural, consagrando – o como diretor artístico da escola, revelando para a cidade como o grande seresteiro e galante cantor em vários casamentos em toda região, que mais tarde se tornava a voz mais expressiva do grupo de seresta Raimundo Lima e gravou 3 CDs. Trabalhou e aposentou –se na Rede Ferroviária como pedreiro e mestre de obras. Foi agraciado como presidente de honra da ACADEMIA CORINTIANA DE LETRAS. Representou Corinto em festivais de serestas, apresentando como cantor lírico na extinta TV Itacolomi, canal 4. Rodeado de amigos e familiares, vive tranquilo aos 91 anos, com respeito e simpatia de todos, na rua Ursulino Lima em Corinto, revivendo e vivendo a alegria de estar em paz com Deus. Geraldo Cardoso, o nosso Negrete é um dos grandes nomes da representação da arte e cultura em Corinto, esta terra de grandes talentos.
75 1. FRASES Às vezes fecho os olhos e me pego caminhando no passado. Não confundir Saramago com sábado amargo. Fotografi a é história, momento e sentimento. Marcolino é igual café frio e canjica muito doce, diferente e ruim demais. Everaldo Carlos Cruz – Tenente da Polícia Militar de Minas Gerais. Nascido em Augusto de Lima/MG em 05/07/1942. Filho de João da Cruz Caldeira e Risoleta Leão Caldeira. Casado com Cleuza da Conceição Oliveira Cruz (in memoriam). Possui dois fi lhos: Ulisses Oliveira Cruz e Jerusa Oliveira Cruz de Abreu, esta, casada com Bernardo de Abreu que deste matrimônio lhe deu o neto Matheus Oliveira Cruz de Abreu. EVERALDO CARLOS CRUZ sócio Efetivo Cadeira nº. 21 patrono: Arlete Vieira Machado Rocha EVERALDO CARLOS CRUZ
76 Que o crudelíssimo bandido esteja na prisão e que esta prisão não seja crudelíssima. Um revolucionário nato traz consigo enormes sentimentos de amor. 2. PENSAMENTOS Por um instante aquele idoso volta a pensar que a terra gira... e ele continua andando por onde tantas vezes pisou. Realmente tudo é passado, a noite vai chegar. A vida é como uma gota de orvalho que vem do alto, se alegra nas folhas, na terra onde se mistura e volta para o alto. Eu vim de terras distantes, onde nasce o rio e crescem os pequizeiros e jatobás... lá as aves sobrevoavam meus ouvidos com seus cantos e me faziam dormir. 3. QUADRAS Você vai para Augusto de Lima? Vamos até o cafundó; Você leva seu vestido Que eu levo meu cachecol. Sábado vou a Santo Hipólito Ver as belezas da cidade; Abraçar o meu amor Estou cheio de saudade. Para arrumar uma namorada Eu rezei com muito zelo; Com menos de uma semana Já estava noivo em Curvelo. Sou mesmo entusiasmado Gosto do sol e de chuva; Vou arrumar moça bonita
77 Na festa de Bocaiuva. Moça dos olhos negros Que mora lá em Contria; É por você que eu choro Muitas lágrimas todo dia. Nasceu minha menina Toda bela e risonha; Ela é tão brejeirinha Vai se chamar Jequitinhonha. Chovia muito em Corinto A rua Celestina Andrade era fragrância; Nos meus folguedos, ali vivi Meus tantos anos de infância. 4. POESIAS QUERER O dinheiro Enche Avoluma Dá poder. Sem reta, Sem rumo Engana... O sábio diz Ordenadamente, Calmamente; És um doente, Vá para cama.
78 AMANTE Eu quero Na tua saliva Quente, Morder teu dente. Me perco Nesta boca, Neste céu tão infinito... Você é mar revolto Onde me envolvo. Cobre-me Afoga-me; Nada conta Amedronta-me. Não divides, Multiplicar é esperança, Diminuir é medo; Ainda é pouco Para somar, Mar E amar. CLAREZA Chora quem vive, quem vive, chora; de tristeza, de alegria, de dor e de desilusão; chora o rico e o pobre. As lágrimas vêm, as lágrimas vão… Hoje chora ao nascer, amanhã no viver,
79 depois de te ver, ir sem que eu saiba por quê. As lágrimas vêm, as lágrimas vão… A estrada é pequena, tem estrelas luminosas, ouro e prata. Sinta o agora, o aroma e verá transbordar no seu coração. As lágrimas vêm, as lágrimas vão… 5. CRÔNICAS TRÊS REIS MAGROS Eles passam abeirando as grades da minha casa justamente quando coloco a lata de lixo na calçada, a pontualidade é inglesa. Descem a avenida Getúlio Vargas às 8 horas da manhã. Vê-se que descobriram a receita do emagrecimento. O da direita tem um sapato torto, corroído, pisada para dentro, veste calça branca rota. Um negro de razoável estatura. O do meio arrasta os restos de um chinelo e vai alisando a terra com o calcanhar, deixando o tendão assustado. A pele é branca encruada pelo sol; parece uma telha mal queimada. Veste uma camisa azul que estampa o rosto de um deputado, agora senador. Este último, o mais velho, segura na cintura a bermuda amarela que ameaça cair e fala um dialeto ininteligível. Ontem resolvi abordá-los para uma conversa. O odor da bebida se misturava com o lixo. Os ossos dentro do plástico lembravam aquelas criaturas. Risadas seguidas, tristes, desabafos mudos e tons amigáveis. Estavam desempregados há dois anos, procuraram o senhor Cristóvão da caminhonete pedindo trabalho e receberam como resposta: -Vocês não aguentam as caixas de tomate… estou conseguindo um
80 local para vocês se tratarem. Terminei a conversa. Os mazelentos continuaram descendo a avenida e entraram no bar para a segunda estação da via sacra. Terão famílias? Qual o nome deles? Para quê? Isto é poaia, coisa sem importância... Apenas passam à frente das nossas casas. O assunto com o senhor Cristóvão envergonhou-me, alertou-me, alegrou-me. Era a única cor que faltava, a cor da esperança. LÁGRIMA Abril de 1968 – O céu estava brilhante, as nuvens desenhavam inúmeras imaginações. Deram-se treze horas, quatorze horas... a partir das quinze horas, o sol começou a se distanciar da metrópole. Já não se via um horizonte belo na cidade de Belo Horizonte. Centenas de estudantes, sindicalistas e civis foram chegando. Apinhavam-se entre a Praça Sete e a rua Tamoios. A polícia foi acionada fazendo-se presente no espaço de doze a quinze minutos, tempo necessário para se deparar com lojas apedrejadas, quebradeiras e estabelecimentos fechados. Carros com alto-falantes informavam e inflamavam aquela turba. O barulho e as atitudes agressivas se generalizam. Entre as muitas faixas lia-se: abaixo os tiranos militares, nada de liberdade condicional. Em altos sons ouviam-se músicas de protesto, músicas de Geraldo Vandré. Da zona oeste da capital vieram quatro caminhões abertos. Os soldados desceram a rua Curitiba, esquina com Avenida Afonso Pena, se posicionaram em cunha e logo atrás em linha reta. É a tática de demonstração de força e investida. Foram avançando e empurrando aquela multidão no intuito de que se dispersassem nas ruas de confluência. A polícia recebeu a primeira bomba molotov e outras vieram acompanhadas de pedras e paus. Caiu ferido um soldado, depois outro e outro. Os cassetetes zuniram no ar e pessoas foram pisoteadas. O oficial pede reforço com urgência e chegam mais três caminhões do 1º batalhão. A Avenida Afonso Pena já é uma praça de guerra. A igreja São José é cercada, a multidão sobe as escadarias, lota a igreja e todo o pátio. Soldados e civis eram levados nas ambulâncias para os hospitais e pronto socorro, homens feridos nos corpos e nas consciências. A polícia começou a subir as escadarias e recuou. Face às agressividades, lançou as bombas lacrimejantes e as bailarinas. Os capacetes rolaram, as sirenes alardeavam.
81 Uma neve invadiu portas, janelas e ocupou o templo. Aquela neve não era natural, não tinha beleza, eram gazes vomitivos, irritantes da pele e lacrimejantes. São José amparava aquele povo. Os fiéis, infiéis do regime, estavam machucados com dor maior nas suas forças ideológicas. No interior da igreja, deparava-se com pessoas sufocadas e desmaiadas. Quatro irmãs de caridade corriam de um lado para outro acudindo aquela gente. O padre Mathias foi de encontro aos policiais que continuavam avançando. A polícia só se afastará após a retirada de todos os manifestantes. O padre voltou, por cinco minutos rezou com as irmãs e pediu para que aquele povo retornasse para suas casas, no que é obedecido. Silenciouse tudo. Não se sentia mais clima de hostilidade, eram dois lados: povo inconformado e força para conter, mas todos queriam apenas viver dignamente em liberdade. Outro dia amanheceu com céu limpo e brilhante, depois não se sabia... Iniciava-se um período triste, aflitivo e medonho que se estendeu por dezoito anos, tempo em que víamos no rosto de cada jovem e idoso “uma lágrima no canto do olho”. POR QUE EU? Belo Horizonte estava frio, o vento desordenado topava nas esquinas, parecia esconder segredos desta madrugada de 16 de agosto de 1968. Eu acabava de chegar em casa e preparava para deitar-me; cansado, viera a pé do serviço. No centro da capital mineira havia papéis picados coloridos deixados pelos estudantes em um confronto com a polícia militar. Liam-se duras críticas ao governo militar e coisas sobre um tal Capitão Lamarca. No meu quarto a cama desarrumada e o livro Meu Pé de Laranja Lima, por terminar de ler, estava tombado no chão. Na mesa improvisada, alguns retratos, o despertador e uma garrafa de café; ainda os livros: As Minas de Prata, Ana Terra, Inocência. O braço do pick-up continuava inerte sobre o disco de Jackson do Pandeiro. Na cama, algumas folhas de caderno soltas onde eu escrevia uma carta para minha mãe no Piauí. Perguntava se ela havia recebido os dois panos para os vestidos e a compoteira de colocar doces, tudo comprado na Mesbla. A minha vida estava em alinhamento. Eu ganhava um salário, algumas gorjetas e muitas esperanças.
82 Poucos minutos se passaram e como sempre acontecia, a corrente elétrica havia caído. Quem estivesse do lado de fora veria duas brasas acesas tentando iluminar aquele quarto... Agora sim, puxei a coberta sobre o rosto; de repente aconteceu! Três pancadas fortes deram na porta e uma voz de mulher. Rodei a maçaneta e logo deu-se um tremendo esbarro, entrando três pessoas armadas. Um parecia ter a minha idade; o outro, bem alto, exibia um terno acentuado; ainda, uma mulher trajava uma saia azul, roupa comum e moderna. Tudo foi acontecendo com rapidez, encostaram-me na parede e com um braço protegi meu rosto. O rapaz da minha idade vigiava-me e os demais vasculhavam tudo. Aquele espaço ficou desastroso. Lá estava eu olhando para a parede. Meu Deus, o que era aquilo? O que queriam? Eu não bebo, não fumo, não pego nada alheio! Sempre vou à igreja São José, não esqueço dos ensinamentos dos meus pais que diziam: - Filho, trabalhe! Se nada tiver para comer, peça; se não ganhar, ajoelhe, reze a Deus e você se fartará. Aquelas presenças continuaram. A mulher abriu a gaveta do armário, encontrando algumas moedas recolocou-as no lugar. Pararam as buscas. Eu pensava até em sequestro, estava na onda. Aquela mulher me ameaçava e perguntava: - Onde estavam as armas e os escritos? Eu nada tinha e tampouco sabia o que eles queriam… interpelavamme: - E esta fotografia de Fidel Castro? Eu respondi: - Esta é a foto do meu tio Juca Cabeludo, tomador de conta das canoas em Porto Seguro. E esta barba? Respondi que era promessa que ele fizera para parar de beber. Em meio de tudo aquilo, eu estava amarrado na cadeira e a mulher fazia mais ameaças. Criei coragem e falei: - Não sei quem são vocês, não devo nada a ninguém. Meu nome é Josué de Arruda, trabalho na portaria e limpeza da Pensão Comércio. Houve um silêncio... O medo me dominava. Aquelas pessoas trouxeram do armário a minha carteira profissional assinada, afrouxaram as minhas cordas e saíram. Na rua não havia ninguém. Antes de saírem, a mulher disse: - Desculpe-me, amigo, nos enganamos... Os passos foram rápidos e gateados. Ouviram-se o motor de um carro e as rodas gritando no asfalto. Ainda vi as luzes vermelhas e azuis do giroflex colorindo aquela noite fria.
83 Não mais foi possível dormir o resto da noite. Hoje, se batem à minha porta, penso duas vezes, falta-me o ar e me vem à lembrança: “- Desculpe-me, amigo, nos enganamos...” SATISFAÇÃO O sol engolido pela robusta mangueira reluz nos últimos melzinhos de sua fruta madura. Bem à frente da mangueira está uma casa branca de portas e janelas azuis que destila aromas e suscita cidades históricas de Minas. Está fechada. Meus olhos queriam alcançar tudo e sempre voltava para aquela casa. Quantos anos terá? Quantas histórias os proprietários contariam? O mato a envolve, a cerca tem partes deitadas, em si está cuidada. Tive vontade de conhecê-la por dentro. Naquele vaguear, sem olhar o tempo, lembrei-me do bravo e temido Antônio Dó e do escritor Dr. João Guimarães Rosa. Teriam os dois ali aportado a fim de dar água aos animais e um pouco de prosa? Ali estavam o homem das armas e o homem das letras. Este panorama se deu em Contria, distrito de Corinto (de onde saímos). Estávamos no bar do Sr. Walter: eu (Everaldo), Juliana, Jorge Patrício e seu neto João Victor. Todos procurávamos um passeio, uma tarde para descanso. O Sr. Walter serviu-nos sucos de umbu e de tamarindo na calçada do bar, onde nos acomodamos e fomos saboreando deliciosos pastéis. O prato esperado era o peixe, que em uma contingência o pescador não trouxera. O carro de Jorge Patrício, uma DKVEMAG/1967, estacionado à nossa frente, chamava a atenção; pessoas faziam perguntas e tiravam fotos. Ouvíamos jazz, blues, orquestras dos anos 60/70 e outras. O carro antigo e a tecnologia nova, o pendrive. Rosilda, uma moradora e nossa conhecida, nos cumprimentou e continuou em direção à Igreja. Era 08/12/2016, dia de Nossa Senhora da Conceição. Não demorou a vermos o sino badalando e Rosilda puxando a corda. A sonoridade se ouvia em todo o distrito. Moças e rapazes passavam conversando e gesticulando. Famílias carregavam as crianças no colo e puxavam outras pela mão; um cheiro de colônia obedecia ao vento.
84 Todos estavam preparados para a missa e receber o Senhor. A música foi desligada, retornando ao término da missa. No bar permanecemos até os últimos raios de sol desta nossa galáxia. Eu contemplava a casa de janelas azuis. Estávamos alegres e nem precisou de irmos longe. Na volta da nossa estada em Contria, estive pensando: para se ter bons momentos, basta um coração aberto, respeito ao meio ambiente e uma pitada de saudosidade. Na certa, encontraremos outro dia que não será igual. Seguiremos trabalhando em busca do bem viver e concorrendo pela paz deste nosso planeta Terra.
85 Sou Fátima Lopes da Silva nascida no dia 24 de dezembro de 1960, na Fazenda Lagoinha, zona rural de Corinto. Sou fi lha de Levindo Lopes da Silva e Maria Terezinha da Silva e tenho cinco irmãos: Vera Lúcia, Sueli, Geraldo Rogério, Ronaldo e Ricardo. Tenho um fi lho Pedro Henrique da Silva Fonseca que é um ser humano maravilhoso, amigo dedicado e um homem honrado, honesto e de muito caráter. Estudei as séries iniciais na zona rural, as demais em Corinto e conclui o Ensino Médio em Belo Horizonte. Trabalhei como doméstica, balconista, secretária, auxiliar administrativo, locutora, assessora de comunicação da Câmara de Corinto, Diretora de Convênios e Chefe de Gabinete na Prefeitura de Corinto. Estou no terceiro mandato de Conselheira Tutelar, cargo este de grande importância, pois me confere a responsabilidade de ser tutora dos direitos das crianças e adolescentes de Corinto. Sempre fui atuante na sociedade e tenho participação na fundação e/ou gestão de várias entidades como: Sociedade Musical de Corinto, APAE, Pastoral da Criança, Comitê da Cidadania, Associação Comunitária do Bairro Alvarenga, FÁTIMA LOPES DA SILVA sócia Fundadora Cadeira nº 1 patrono: José Raimundo de Araújo
86 Guarda Mirim, Academia Corintiana de Letras, Comissão da Semana Santa e vários movimentos. Estou aposentada desde dezembro de 2019, mas continuo no mercado de trabalho. Nas horas vagas, se é que elas existem, vendo pães de mel e estou me aventurando no artesanato com cimento e gesso. Exerço a minha cidadania com paixão. Sou atuante na política e nos conselhos de direito. Atualmente sou presidente do Conselho de Assistência social e membro do Conselho do Patrimônio Histórico. RECORDAR O QUE FOMOS, SABER ONDE ESTAMOS E DECIDIR PARA ONDE VAMOS Ao avaliar sobre o que publicar nesta edição, foi mais forte o desejo de expressar os meus sentimentos pela minha Corinto. Atualmente sou tomada pela nostalgia quando penso em tudo o que tivemos e vivemos. Passo a avaliar as perdas irreparáveis ocorridas ao logo dos anos, especialmente das pessoas que foram os pilares firmes de nossa sociedade. Começando pela economia, tivemos perdas imensas nesta área, que mudaram o nosso cotidiano, como por exemplo: a Rede Ferroviária Federal, que trouxe para Curralinho o progresso e pessoas de outros lugares, através dos trilhos de ferro. A Cooperativa Agropecuária que movimentava e incentivava a produção agropecuária, promovia a integração produtor/consumidor, gerando emprego e renda para milhares de pessoas no campo e na cidade. A sua extinção com certeza, enfraqueceu muito a nossa zona rural, provocando a vinda da população para as cidades. Não posso deixar de falar da extinção da Escola Agrícola Milton Campos. Abro um parêntese para saudar o Dr. Marco Aurélio de Morais Maia, o único prefeito que resgatou o seu objetivo que era a educação e a formação técnicos agrícolas, limpando a mancha deixada pela catastrófica FEBEM e suas violações dos direitos humanos de crianças e adolescentes. Infelizmente o seu sucessor prefeito Raimundo Lima fechou a escola de maneira abrupta, sem pensar nos 70 alunos vindos da zona rural que ali moram e estudaram por três anos. A produção de verduras e legumes, carne bovina, suína e de aves, leite, milho, feijão serviam para alimentar os alunos, e a sobra abastecia escolas e creches. Maquinário, móveis, ferramentas, animais e todo patrimônio desapareceu. Se o projeto inicial da Fazenda Aliança que era voltado para a educação, tivesse sido respeitado, abraçado e ampliado por todos os gestores, nosso município hoje, poderia ter se tornado um polo universitário voltado para a agropecuária, nossa tradição.
87 Na indústria quero ressaltar a importância da parceria público-privado como alavanca do progresso. Assim aconteceu no mandato do saudoso Prefeito Jacy Santos Magalhães, quando foi instalada a Red Point em Corinto. Orgulho do nosso povo e que gerou ao longo de décadas, centenas de empregos e a formação de mão de obra especializada na área de confecção de roupas. Foi um grande exemplo que lamentavelmente não seguido pelas administrações seguintes. O poder público deve incentivar a criação de empregos na iniciativa privada como fez neste caso, construindo galpões, dando isenção tributária, suporte técnico e financeiro para pequenas e médias empresas. Assim, movimenta a economia com a produção de bens e serviços, aumenta a arrecadação de impostos, diminui os gastos públicos e a pobreza. Ao empresário Paulo Afonso Pereira Pedras, corintiano autêntico e altruísta, nossos agradecimentos, pois ainda hoje, uma grande parcela de pessoas sobrevive do que aprenderam na sua fábrica. Nas últimas três décadas quanta perda tivemos em nossa Corinto! Que tristeza ver o Clube Ferroviário e Corinto Clube, Área de Lazer, FUNAPEC e Casa da Cultura sem atividades. A Praça de Esportes que por décadas foi o local de lazer, práticas esportivas, festas e de orgulho para nós, lamentavelmente foi destruída por gestores públicos que não respeitaram a relevância daquele lugar e a sua história. Há quase dez anos se tornou um canteiro de obras inacabadas e uma vergonha para o poder público (Executivo e Legislativo), atestado de incompetência e descaso com o dinheiro público. Em meados dos anos 90 veio a nefasta privatização da Rede Ferroviária, feita de forma questionável, pois não cuidou da preservação do patrimônio material (casario, estações, móveis, documentos, fotos, ferramentas, vagões, etc.). Não valorizou o mais importante da Rede Ferroviária, os valorosos ferroviários com sua capacidade profissional e experiência acumulada durante vários anos. Corinto assim como outras cidades, ficou mais pobre na economia, na sua história, na autoestima e na dignidade do seu povo. Tudo foi tão absurdo, que a população, autoridades e toda sociedade se mantiveram estáticos, anestesiados no papel de telespectador. Apenas assistindo a destruição e sem saber a quem recorrer. Em poucos meses descaracterizaram os galpões das oficinas, levando embora tudo o que tinha valor. Leiloaram os belos móveis de madeira de lei, fabricados por talentosos marceneiros de Corinto. Não sabemos quem e para onde foi tanta riqueza. A pior imagem que tive nesta ocasião, foi quando numa manhã estava
88 indo para a Rádio Cidade onde trabalhava. Passava sempre em frente da Ferraria, até então, o local estava preservado com suas fornalhas, ferramentas e demais artefatos utilizados pelos ferreiros. As duas mangueiras frondosas continuavam guardando a entrada. Fiquei estarrecida ao me deparar com uma retroescavadeira destruindo as paredes, retirando tudo o que era de ferro e colocando em um caminhão. Fizemos várias denúncias através do meu Programa Fatos do Dia, pedindo providências ao Ministério Público, vereadores, prefeito, mas foi tudo em vão. Tivemos sim uma resposta, por incrível que pareça de um corintiano que trabalhava na RFFSA em Belo Horizonte. Encaminhou um fax redigido do próprio punho, poucas palavras, dizendo que aquelas pessoas tinham autorização para retirar o material. Pasmem! Um dos homens que estava trabalhando (destruindo) aquele local era irmão de quem nos deu esta resposta evasiva e pouco convincente. O que aconteceu em Corinto no desmanche da Rede Ferroviária, foi um absurdo com o patrimônio público. Outro momento de indignação foi o desmonte da Escola Profissional. Ali se formaram os melhores torneiros do nosso Estado. Por várias vezes, questionamos o prefeito da época para municipalizar a escola, pois ainda estava toda equipada. A Prefeitura teria que arcar apenas com o pagamento dos professores. Nada foi feito e tudo foi embora para sempre. Onde estão os políticos (presidentes, senadores, deputados, vereadores, prefeitos), demais autoridades, personalidades e a população que ao logo destes mais de 25 anos, continuam como telespectadores, assistindo a destruição do nosso patrimônio ferroviário? Corinto tem um patrimônio histórico material e imaterial imenso, formado pelo Complexo Ferroviário, fazendas, capelas e prédios de valor histórico e arquitetônico, festas tradicionais, Quadros Vivos da Semana Santa, gastronomia e saberes. Lamentavelmente muitos estão abandonados, mal conservados e até destruídos. Tudo por falta de conscientização da população e de uma política de restauração e preservação. Até o símbolo mais importante do nosso patrimônio histórico, a Locomotiva 526, está sendo depredada. É necessária a sua recuperação e a construção de uma praça com área coberta à altura de sua importância. Mesmo diante de tanto descaso e destruição, temos a esperança de mudanças. Atualmente o Conselho do Patrimônio Histórico e Cultural atuante e através do presidente José Eustáquio Machado de Paiva e demais conselheiros, está trabalhando com o apoio da atual gestão e Secretaria de Cultura, para que a recuperação e preservação do nosso patrimônio histórico-cultural se torne realidade.
89 Às vezes me pego viajando até os anos 70, 80, 90 e passo a comparar Corinto desta época com os dias atuais. Sinto-me triste, pois do recálculo mental que faço, sobra muito pouco de tudo que foi tão importante, bonito, alegre e bom de viver. Fico indignada ao pensar! Por que destruíram a Igreja Matriz Imaculada Conceição original? Quando penso nela, tentando lembrar como era, me vem à mente, a lembrança de uma criança da roça, com não mais do que seis anos de idade, que vinha a cidade raramente. Era eu que por duas ou três vezes entrei naquela igreja para o casamento de minhas tias. Eu ficava encantada com a pintura de Nossa Senhora rodeada de anjos. Sinto até o cheiro da madeira, abundante em sua estrutura interna. No esporte como é triste avaliar as nossas perdas. Os campos de futebol que diariamente eram ocupados por crianças, jovens e adultos, não existem mais ou estão em péssimas condições. Não há incentivo do poder público e iniciativa privada, para manutenção destes espaços. Os que ainda sobrevivem, contam com pessoas determinadas que tiram leite de pedra para promover o futebol corintiano, tão respeitado e talentoso no passado. Que saudade das tardes de domingo, quando o programa favorito da maioria, era os jogos de futebol nos campos do Ferroviário, Siderúrgica, Vila Maciel, Guarani, Corinto Clube, Tecobol, Casas Populares e Copa Rural nos distritos e fazendas da região. Corinto era destaque no esporte especializado, e realizava vários torneios estudantis em muitas modalidades. Ressalto alguns nomes que me vem na mente quando penso no esporte como João Batista do Guarani, Daniel Martins, Edipson Luiz, Jeferson Pereira, Landa, Necão, Gereba, Adilson Penteado, Mário Hayden e Moacyr Luiz Siqueira que foi o animador, o esteio, a alegria e o otimismo do esporte corintiano de todas as modalidades. O esporte integra, anima, gera emprego e renda, promove bem-estar e saúde, inclusão e a união de todas as classes sociais. Precisamos de uma política pública forte para resgatar o esporte em Corinto. Que falta nos faz o Festival da Canção, os bailes da saudade, debutantes e tantos outros animados pelo talento dos Corinthians Boys, Sam Remo, Toque de Classe, Banda Brasil Exportação, Conexão WR e tantos outros conjuntos musicais. Que saudade de ouvir o toque da Banda de Música de Corinto nos bailes de carnaval, nas tocatas em dias festivos acordando a população bem cedinho. Esta Banda de Zé Raimundo que desde 1963 alegra nosso povo, até hoje não tem sequer uma sede e está fadada a deixar de existir tamanha falta de apoio. Nos finais de semana a cidade parecia uma grande festa. A população
90 se concentrava na Rua do Footing. Tínhamos que chegar cedo para ocupar uma mesa nos bares mais badalados. Churrascaria Rancho Grande, Aranhas Bar, Tia Bela, Restaurante Veredas, Bar do Valdoca, Chico Gato, Bar do Peixe, Lanchonete Fátima, Xodó Doce e por aí vai diversão, lazer, boa comida, paquera, encontros e desencontros. Que saudade da Seresta de Negrete, do canto de Valério Melo, Odimar Souto, Geraldinho Olegário, Ailton Alonso, Luiz Mandraca, Welton do Teclado e tantos outros. Como faz falta a Cor Morena, Bocas Brancas, Magnatas da Vila, Urubu Malandro, Sapo Seco, Cor do Samba, Cansadas de Guerra e Neidy Santana com seu canto encantado. Como era gostoso sentir o coração bater forte quando iniciava os desfiles das escolas no dia 7 de setembro. Carros alegóricos imponentes, balizas com suas acrobacias, fanfarras e muito respeito à pátria. Como era saudável a disputa para saber qual a melhor fanfarra, o uniforme mais bonito e a marcha mais perfeita. Os jovens de agora, estão desmotivados, sem acesso à cultura, ao esporte e uma educação motivadora, alegre, participativa e criativa. A minha narrativa pode parecer para muitos, apenas saudosismo. Mas eu digo que é um alerta. Relembrar o que tivemos de bom e perdemos, pode nos motivar a buscar novos caminhos e mudar comportamentos. Podemos ter a coragem de admitir que erramos, fomos omissos ou cúmplices, mas ainda dá tempo de tentar fazer diferente. A destruição de nossos valores culturais, históricos, materiais e tradições resultou em tantas e irreparáveis perdas. Corinto só vai progredir, quando resgatar a sua origem, recuperar a sua história e promover a união de todos os segmentos e pessoas em torno de um grande projeto social, cultural e econômico. Não podemos mais nos manter alienados e atrelados a projetos políticos partidários, como tem acontecido nas últimas décadas. O resultado tem sido o pior possível, pois apenas grupinhos são beneficiados em detrimento de toda a sociedade. Corinto precisa de um projeto de modernização em todas as áreas. Estamos há décadas de atraso na política, economia, educação, cultura, organização da sociedade civil e principalmente na gestão pública. Para que haja progresso e crescimento, é preciso valorizar e priorizar as pessoas. Investir na qualificação, promoção humana, garantia dos direitos à vida, habitação, trabalho, saúde, esportes, cultura, lazer e principalmente, na educação que educa, qualifica e prepara os jovens para a profissão e a vida. A aplicação correta dos recursos públicos é fundamental, pois cada
91 centavo desperdiçado ou desviado, causa danos irreparáveis na vida das pessoas. Nossos governantes estão esquecendo de que o dinheiro é do povo e deve ser usado em benefício do povo. Vamos juntos Corintianos, com força, coragem e vontade resgatar nossa amada terra, recolocá-la nos trilhos da modernidade e do desenvolvimento econômico, social e humano.
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93 Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Professor de Ciências Criminais e Direito Tributário em renomadas Faculdades de Direito do Estado de Minas Gerais, participante do programa Problemas Fundamentais de Direito Penal e Processo Penal na Georg-August-Universität Göttingen - Alemanha, Advogado e autor do livro “Funcionalismo Teleológico Normativo Constitucional em Sentido Forte: contribuições para reestruturação prático-intelectual do Direito Penal no Brasil”. JORGE PATRÍCIO DE MEDEIROS ALMEIDA FILHO sócio Efetivo Cadeira nº 3 patrono: Olga de Abreu Nery de Alvarenga JORGE PATRÍCIO DE Alice1 é a fi gura literária de uma criança com idade de 7 anos, baseada na garotinha inglesa alice PleaSance liddell. 2 Prof. Jorge Patrício de Medeiros Almeida Dr. Prof. Me. Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho o munDo DE ALICE E o munDo DE SoFIA: HumPtY DumPtY, ALBERto Knux E AS LEtRAS EntRE DoIS munDoS
94 Sofia3 é a figura literária de uma garota norueguesa prestes a completar a idade de 15 anos e representa uma idealização da persona psicológica de Hilde Møller Knag. 4 Alice e Sofia são, portanto, as representações de dois modelos psicológicos muito distintos. O modelo psicológico de Alice, se tomado criticamente enquanto tal, é algo próximo de um quadro esquizofrênico, ou seja, ele é desconectado com a realidade (psicótico), cercado de vozes (alucinações), apegado a falsas convicções (delírios), apresenta uma função cognitiva diminuta (acrítico) e possui um baixo estímulo ao contato intersubjetivo humano (solipsista). O modelo psicológico de Sofia, se tomado criticamente, é algo próximo de um quadro virtuoso, ou seja, ele é definido por uma prática contínua de aprimoramento das faculdades intelectuais e morais, expressas no empenho despendido para tornar claras e destacadas as linhas que distinguem o bem e o mau, o certo e o errado, o justo e o injusto, a verdade e a mentira, o real e o irreal (as fantasias), o que somos e o que não somos e, por fim, o conhecimento e a ignorância. Uma figura é muito importante para que o sentido da vida de Alice e da vida de Sofia sejam percebidos claramente como distintos: o Coelho Branco, símbolo do Grande Universo. As aventuras de Alice se iniciam quando ela tem uma visão do Coelho Branco correndo com o tempo em suas mãos e o romance de Sofia também se inicia quando ela descobre que está fortemente ligada a este Coelho Branco. Diante do Coelho Branco (metáfora do universo e do tempo), Alice caiu em um buraco de fantasias, onde suas Aventuras no País das Maravilhas representavam diálogos mentais travados consigo mesma, modelados pelas imagens que tinha de seus animais e objetos: gatos, ovos, árvores, lagartos, rainhas, espelhos, etc. Diante do Coelho Branco, Sofia deu início a um Romance, subindo até as pontas de seus finos pelos, para ver O Grande Criador/Mágico que o havia tirado da sua cartola. Sofia abandonou sua solidão para se 1 CARROLL, Lewis. Alice’s Adventures in Wonderland. United Kingdom, 1865, Publisher Macmillan. 2 ALICE PLEASANCE LIDDELL, natural de Westminster, Londres, Inglaterra, nasceu em 4 de julho de 1852. Seus pais eram Henry Liddell e Lorina Hanna Liddell. 3 GAARDER, Jostein. Título original: Sofies Verden: roman om filosofiens historie. Noruega, 1991. 4 SOFIA AMUNDSEN, natural da Noruega, é filha de Helene Amundsen e do Capitão de navio petroleiro, Sr. Amundsen. Sofia é uma versão metafórica da psique de Hilde Møller Knag, garota norueguesa prestes a completar seus 15 anos, filha de Albert Knag, major de uma unidade das forças de manutenção da paz da ONU no Líbano.
95 encontrar com Demócrito, Sócrates, Platão, Aristóteles, Descartes, Spinoza, Hume, Kant, Bjerkely, Kierkegaard, entre outros tantos, e também com aquele de quem se fala desde a gênesis, O Grande Jardim. Alice aponta para um mundo paralelo onde o perdimento e a infantilidade são os dois destinos (maldições/prisões) que O País das Maravilhas e das Imaginações Lúdicas reservam para todos os seus cidadãos. Sofia aponta para a dura, mas verdadeira, realidade que há por detrás das cortinas das sociedades políticas. Ainda mesmo no início de sua jornada, Sofia, sem ser poupada, foi levada por Alberto Knox até a antiga cidade de Atenas para ver o homem mais inteligente de seu tempo, Sócrates, ser condenado à morte, simplesmente, por querer que os homens pensassem corretamente e pensassem por si mesmos. Com doídas lágrimas nos olhos, Sofia precisou ouvir Sócrates, após ser acusado e condenado à morte, proferir as seguintes palavras: Me matar danificaria mais Atenas do que a mim mesmo, mas, mesmo que me matem não poderão matar o pensamento crítico. É mais nobre sofrer uma injustiça do que cometê-la. Quem comete injustiças faz mal a si mesmo e mostra que sua alma está confusa. Não é difícil escapar da morte, todo soldado sabe disso, basta fugir. É muito mais difícil escapar da maldade..., porque é mais veloz que nós.5 Exposta desde cedo à realidade, Sofia não se perdeu em fantasias e maravilhas, Sofia desenvolveu o conhecimento que a capacitou discernir entre os caminhos e os descaminhos colocados à sua frente pelos “maldosos roteiristas de Alice”. Alice não sabe se a vida é mais que um sonho. Sofia viu que atrás do nevoeiro dos sonhos existe um mundo real onde estão mantidas em segurança a justiça, a razão, o amor e, sobretudo, a Verdade. Por fim, diante da dificílima e perigosa travessia do profundo e escuro lago da ignorância da mente e da alma humana, Alice é um bote amarrado, ao passo que Sofia é um bote destemido e sem amarras. Alice e Sofia representam dois mundos diferentes. A missão de Alice e de Sofia neste texto é deixar claro que as Letras e os letrados se colocam a serviço de objetivos e fins absolutamente diferentes em seus respectivos mundos. No País das Maravilhas de Alice, as 5 GAARDER, Jostein. O Mundo de Sofia: romance da história da filosofia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 78.
96 Letras e os letrados assumem uma postura aventureira, irresponsável e fantasiosa. No Mundo de Sofia, as Letras e os letrados se comprometem em um Romance com a história da inteligência humana. As Letras, ou seja, as palavras, os textos, os fonemas, as imagens, os sentidos, os significados e tudo que se põe entre dois interlocutores que de algum modo pretendem estabelecer uma ação comunicativa, carregam cravadas em si o DNA de um destes dois mundos, apenas de um. As Letras, como será exposto neste texto, sempre serão, invariavelmente, ou instrumentos do Mundo de Alice, ou ferramentas do Mundo de Sofia. Às Letras não foi dado servir a dois senhores ao mesmo tempo; ou elas são luzes, ou elas são trevas, ou elas ascendem, ou elas apagam. O Mundo de Alice Em uma a tarde comum de primavera no mês de maio, Alice vê um coelho branco andado rápido, atrasado. Atraída por esta visão, surreal, Alice se põe a seguir o coelho, o que a faz cair em um buraco que a leva para outro (sub) mundo, completamente incrível e fantástico, iniciando assim “As Aventuras de Alice no País das Maravilhas”. Após sua primeira aventura e seis meses mais velha, agora com sete anos e meio, na virada do outono para o inverno, Alice se vê atraída pela imagem da sua casa refletida no espelho. - Será que a casa no espelho era exatamente igual a sua? Alice subiu na lareira, se apoiou no espelho e fantasiou mentalmente que ele estava amolecendo e se transformando em uma névoa, possibilitando que ela o atravessasse. Em um instante o espelho se transformou em uma névoa prata brilhante e Alice o atravessou, saltando para o chão da sala, na casa do espelho. Deste momento em diante, Alice Através do Espelho, inicia sua peregrinação, movendo-se por um jogo de xadrez, onde inicia como na condição de peão e avança até se tornar uma rainha. Em suas duas experiências, As Aventuras de Alice no País das Maravilhas6 e Alice Através do Espelho7 , a pequena Alice é levada pelo impulso da curiosidade e pelo desejo de conhecer lugares que ela apenas espiava pela fechadura, lugares que ela apenas visitava com a imaginação, respectivamente, o jardim e a casa no espelho.8 Neste mundo paralelo, “O País das Maravilhas”, as lógicas, as ordens, as regras, as disciplinas, os saberes e as estruturas do mundo real, simplesmente não funcionavam.
97 O tempo, o espaço, a justiça, a verdade, o correto e o lógico não são no País das Maravilhas variáveis com que Alice pudesse contar, sobretudo, quando tentava considerá-las conforme se davam no mundo real. O País das Maravilhas de Alice é um mundo onde não é possível saber o que é verdade e o que é mentira, onde os dados da realidade são embaralhados de forma a não assumirem suas formas originais, onde a própria identidade de Alice é perdida, desintegrada. Neste mundo desprovido de ordem e sentido, habitado por chapeleiros loucos, gatos risonhos, rainhas, cartas de baralho, ovos falantes e muitos enigmas, Alice precisa descobrir-se a si mesma, para neste ato, descobrir seu caminho de fuga. Isso porque, como disse o gato risonho a Alice: Para quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve.9 Em suma, O Mundo de Alice é um mundo paralelo, fabricado com fantasias, possibilidades ilógicas, ilusões e abstrações, onde a matemática, o tempo, o espaço, a justiça e a verdade não encontram espaço. As Letras no País das Maravilhas são como botes amarrados, impossibilitados de se lançarem na travessia do vasto lago que conecta as consciências e de levarem consigo punhados precisos de verdades reais garimpadas com a existência concreta de vidas humanas. O Mundo de Sofia Sofia Amundsen é uma garota norueguesa de 14 anos, filha de um viajante, Capitão de petroleiro e de uma professora de linguística. Ao voltar da escola em um dia comum, Sofia conversava com sua amiga Jorunn. Ela falava que o cérebro humano é uma máquina, uma espécie de computador. Sofia não estava convencida disso e acreditava que o ser humano seria algo mais que uma simples máquina. Ao chegar em casa e abrir a caixa do correio encontrou uma carta em seu nome, o que era inédito. Apenas seus pais recebiam cartas. Dentro havia uma pequena folha com apenas três palavras: 6 CARROLL, Lewis. Título original: Adventures of Alice in Wonderland. 1865. 7 CARROLL, Lewis. Título original: Through the Looking Glass and What Alice Found There. 1871. 8 O intelectual e matemático britânico CHARLES LUTWIDGE DODGSON, popularmente conhecido pelo seu pseudônimo LEWIS CARROLL, escreveu duas das obras mais significativas e profícuas da literatura popular, As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, de 1865, e sua continuação, Alice Através do Espelho, de 1871. 9 CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. São Paulo: Mojo.org, 2019. p. 62.
98 “Quem é você”?10 Sófia teve os dias seguintes de sua vida tomados por estas três palavras, paras as quais não tinha uma resposta que sinceramente considerasse verdadeira. Em meio seus incansáveis esforços mentais uma segunda carta chegou em seu nome, contendo uma nova indagação. “De onde vem o mundo”?11 Já tomada por dúvidas e desconfianças, recebeu uma terceira correspondência em que o remetente apresentou a Sofia o sentido das perguntas. Nesta carta havia uma nova pergunta, contudo, acompanhada de sua resposta. “Qual é a coisa mais importante da vida”?12 A resposta. Querida Sofia, uma pessoa assolada pela fome responderá que a comida é a coisa mais importante, uma pessoa morrendo de frio responderá que é o calor, alguém sozinho e solitário responderá que a companhia de outras pessoas e o amor são as coisas importantes da vida. Mas, Sofia, uma vez satisfeitas todas essas necessidades, ainda restaria uma coisa de que todos nós precisamos. Nós temos a necessidade de descobrir quem somos e por que vivemos.13 Deste momento em diante, Sofia inicia uma jornada pelo processo histórico de construção do pensamento humano. Sofia voltou aos tempos do pensamento mitológico, quando os relâmpagos eram produzidos pela ira de Thor, para compreender onde e como a humanidade estava quando iniciou o ascender das luzes e a percepção da silhueta do grande Coelho Branco. Ao gosto de Emmanuel Kant, assim se expressa este iluminar-se: 10 GAARDER, Jostein. O Mundo de Sofia: romance da história da filosofia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 14. 11 GAARDER, Jostein. O Mundo de Sofia: romance da história da filosofia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 17. 12 GAARDER, Jostein. O Mundo de Sofia: romance da história da filosofia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 24.
99 “...o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim...”14 O Mundo de Sofia é definido por uma postura frente ao que verdadeiro, frente ao que é real. Sofia assume a posição de anseio pelo conhecimento sobre o sentido da vida e das coisas que lhes são mais importantes. Neste mundo o verdadeiro se distingue do falso e o uso inteligente da razão humana revela a ordem coerente do mundo em que vivemos, devolvendo aos homens sua identidade perdida. No Mundo de Sofia as ordens estruturais da matemática, do tempo, do espaço, da moral, da linguagem, da justiça e da verdade, estão ansiosas, à nossa espera. Humpty Dumpty Em sua jornada pelo País das Maravilhas, Alice, “Através do espelho”15, encontra Humpty Dumpty, um ovo com membros e traços humanos que vive sentado sobre um muro alta e muito estreito, se equilibrando, jogando com as palavras e vangloriando-se de ser amigo e protegido do rei. Humpty era orgulhoso, desdenho, sem empatia, egoísta, vaidoso, irritadiço, mas, sobretudo, frágil, vulnerável e sensível a realidade. O real não era algo sempre relevante para ele, era algo considerado apenas de forma seletiva, ora sim, ora não. O ovo, Humpty, não gostava de ser chamado de ovo. “– É muito irritante – Humpty Dumpty disse, depois de um longo silêncio e sem olhar para Alice enquanto falava – ser chamado de ovo... Muito!”16 Alice tentou aconselha-lo de que dada sua constituição física, seria perigoso ficar sobre um muro tão alto correndo o risco de cair. Alice estava preocupada, já que a lógica dos materiais a levaram a imaginar que ele se quebraria todo, obviamente. Contudo, no País das Maravilhas, o que vale não é o real, é a fantasia. Humpty tentava, sem sucesso, 13 GAARDER, Jostein. O Mundo de Sofia: romance da história da filosofia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 24. 14 GAARDER, Jostein. O Mundo de Sofia: romance da história da filosofia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 344. 15 CARROLL, Lewis. Título original: Through the Looking Glass and What Alice Found There. 1871.
100 cobrir sua extrema fragilidade com um ainda mais frágil ar de orgulho, soberba e importância. “Ora, se alguma vez, eu caísse... O que não tem nenhuma chance de acontecer... Mas se eu caísse... – nesse ponto, ele franziu os lábios e fez uma expressão tão solene e majestosa que Alice quase não conseguiu conter o riso. – Se eu realmente caísse – continuou –, o Rei me prometeu... Ah, pode ficar pálida, se quiser! Não pensou que eu diria isso, pensou? O Rei me prometeu... pessoalmente, com sua própria boca... que... que... – Que mandaria todos os seus cavalos e todos os seus homens – Alice interrompeu, um tanto imprudente.”17 Contudo, mesmo com tamanha imprudência, confiando sua vida a uma promessa, impossível de ser cumprida no mundo real, a maior expressão dos devaneios de Humpty Dumpty no País das Maravilhas é sua forma monológica e arbitrária de usar a linguagem. Sua profunda fragilidade, seu elevado orgulho e sua extrema soberba, são ardilosamente e habilidosamente costuradas com jogos e tramas de linguagem. “– Quando eu uso uma palavra – Humpty Dumpty falou, mais uma vez num tom desdenhoso –, ela significa o que eu quero que ela signifique... nem mais nem menos. – A questão é – Alice falou – se o senhor pode fazer as palavras significarem coisas tão diferentes. – A questão é – disse Humpty Dumpty – quem é que manda... e isso é tudo.”18 No Mundo paralelo de Alice, determinado pelas fantasias, possibilidades ilógicas, ilusões e abstrações, onde a matemática, o tempo, o espaço, a justiça e a verdade não encontram espaço, manter a imprecisão sobre o sentido da linguagem e possuir com exclusividade o poder de determinar o que as palavras significam e o que elas não significam, é uma forma de dominar, para além do sentido das frases, o próprio sentido de todo o País das Maravilhas. Humpty Dumpty não é apenas uma das figuras no Mundo de Alice, ele é o próprio espírito fundamental do modo de existir daquele mundo. 16 CARROLL, Lewis. Alice Através do Espelho. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017, p. 81. 17 CARROLL, Lewis. Alice Através do Espelho. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017, p. 82.