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Published by rogersimoes44, 2023-07-10 11:55:30

Florilégio 2

Literatura Brasileira

Keywords: Florilégio 2

201 Sônia Maria Teixeira Menezes nasceu na Fazenda do Buritizinho, município de Buenópolis – MG, em 01 de julho de 1959. Primeira fi lha de José Menezes Machado e Carmelita Teixeira Menezes. Aprendeu a ler e escrever muito cedo com as professoras rurais que eram acolhidas pela família. Sua única irmã, Solange Márcia Teixeira Menezes Guedes, professora, bancária aposentada e grande apreciadora das artes em geral. Desde muito pequena comecei a pintar as grandes paredes caiadas de cal da fazenda preparando as tintas com variadas cores de terra, carvão, cinza e fl ores. Os pincéis eram amarradinhos de crina de cavalo. Com meu avô paterno aprendi o gosto poético e musical sempre o vendo tocar sanfona com meu pai e outros familiares e amigos. Com avós, tias e mãe aprendi a costurar, modelar, bordar, crochetar, cozinhar, entre outras coisas. Aos sete anos veio para Corinto com a avó paterna Nair Magalhães Menezes para estudar no Educandário Frei Luiz onde as irmãs Clarissas Franciscanas descobriram seus dons artísticos passando a incentivá-los. SÔNIA MARIA MENEZES DE ALMEIDA sócia Efetiva Cadeira nº 15 patrono: Fausto Octaviano de Alvarenga


202 No Instituto Dom Serafim passou quase toda sua vida escolar se formando em Magistério Integrado em 1977. O ano de 1975 estudou em Brasília no Colégio de Base e Centro Línguas Elefante Branco. Os anos escolares foram os mais proveitosos em aprendizado, criatividade e participações em diversos eventos onde representou o Dom Serafim com muito gosto e dedicação, destacando o I Salão de Arte Jovem com a obra “A Seca”, medalha de Prata. Enfim, foram muitos festivais onde mostrou o nome da nossa cidade e da escola. Sim, adotou Corinto como sua terra. No período de 1979 a 1981 foi professora de Educação Artística em três turnos na Escola Estadual José Brígido Pereira Pedras, onde juntamente com os alunos organizou exposições de seus trabalhos. Depois optou por ensinar arte em aulas particulares. Em 1986 casou-se com Antônio Eder de Almeida onde passou a assinar Sônia Maria Menezes de Almeida. Tendo como frutos: o primogênito Antônio Eder de Almeida Júnior, falecido em seu 1º ano da Faculdade de Administração aos 18 anos em 19 de agosto de 2006. A única filha Sonale Menezes de Almeida hoje administradora de empresa e casada com o engenheiro cível e policial: Bruno Vítor Moreira: sendo suportes de Sônia e Antônio em tudo. Sempre trabalhando com arte em seu ateliê situado em sua residência em Corinto, faz restaurações, decorações, cenografia, figurinos para apresentações, caligrafia artística, artesanatos, desenho, pinturas variadas. Participou de alguns programas de televisão mostrando seu trabalho. 1967 - Primário: Educandário Frei Luiz – descoberta de um dom 1976 – Representação do Instituto Dom Serafim no I Salão de Arte Jovem – Arca de Educação e Cultura – Medalha de Prata – obra em 4 cenas em papel. Título: A Seca. _Primeiros quadros em tela e óleo – ao vivo. 1977 – Magistério Integrado – Instituto Dom Serafim 1979/1980/1981 – Professora de Educação Artística de 5ª a 8ª série – Escola Estadual José Brígido Pereira Pedras; _Iniciação à Crítica de Arte – FUNARTE – Ministério da Educação e Cultura – Brasília/DF 1980 – Participação na criação do Grupo Teatral “Palavra” _Direção Artística da Semana Santa 1981 – Curso de Educação Artística – C.T.E/BH 1982 – Aulas Particulares de pintura em tela 1984 – Criação e pintura do painel para o V FECOR – direção artística: _Desenho da capa do disco “Corinto em Serenata III 60 anos de Corinto. _Criação e exposição na 1ª Feira de Artesanato na Praça da Matriz; _Direção artística da FUCART – Fundação Corintense de Arte 1985 – Concurso Arte e Vinho/SP 1988 – Exposição Inaugural da Casa da Cultura de Corinto 1990 – Diploma – Melhor do Ano – Artista Plástica 1991 – Certificado Destaque do Ano – Artista Plástica 1996 – Medalha Honra ao Mérito – 50 anos do Colégio Dom Serafim: _Exposição Festiva; 1997 – Criação da Capa do livro: “Adolescente” do escritor Padre Antônio Carlos Vargas _Exposição Individual no Espaço Banco do Brasil – BH 1998 – Participação como figurinista no filme curta metragem feito em Corinto – Terra Encantada 1999 – Personalidade do Ano – Lions Clube _Conselho Municipal de Patrimônio Histórico-cultural de Corinto 2000 – Diploma Destaque do Ano


203 _Participação na criação da FEIRART com Vera Pimenta _Saída do Grupo da Semana Santa 2004 – Participação na criação do Estatuto da Associação de Artesãos e Produtores Caseiros de Corinto _1º Encontro do Artesanato de Curvelo e região 2005 – Diploma de Consagração Pública _Medalha Orminda N. Aires Bezerra – “Mulher Corintiana que se destaca 2005” 2006 – Diploma de Consagração Pública – artista plástica 2008 – Diploma de Consagração Pública – Destaque profissional 2009 – Diploma de Consagração Pública – Destaque profissional -Exposição de Arte no VII Salão Literário “Maria Vera Pimenta” 2014 – Capa do Livro “Verso e Reverso” _Exposição de Arte em comemoração dos 90 anos de Corinto 2015 – Posse de Presidente de Honra na Academia Corintiana de Letras Biênio 2015/2017 2017 – Painel em comemoração dos 70 anos do Colégio Dom Serafim _Sagração na Academia Corintiana de Letras (11/08/2017) 2018 – Elegia à Cadeira nº15 Patrono Dr. Fausto Octaviano de Alvarenga Discurso como Presidente de Honra Primeiramente, agradeço à Academia Corintiana de Letras, através de sua presidente D. Mercêdes Antônia de Paula Alonso do Carmo e Jorge Patrício de Medeiros Almeida, que carinhosamente convidou-me a fazer parte desta entidade. Sendo a Academia de Letras uma entidade que congrega pessoas com objetivos e interesses únicos de promover o desenvolvimento cultural de Corinto, não tem o único propósito de apreciar só as letras, mas todo segmento artístico. Dedicar-se a este setor vai muito além de bagagem cultural, pois o poder transformador da arte inclui a capacidade de convivência, já que lidar com esse universo permite amplo conhecimento sobre como lidar com diversas pessoas e consigo o mesmo. A cultura é a expressão dos relacionamentos sociais e emotivos, já que toda obra de arte é uma das formas de relacionar-se com nossa essência os dons que Deus nos confiou. Hoje, quero deixar para a arte, a poesia e o poder do sonho palpável. Esta que ensina a cada dia que uma nova ideia ou um novo olhar pode ser o começo de tudo e se reiniciar a todo instante, galopando nas asas da inspiração e criatividade. É preciso sim, ser artista ou apenas ter alma de artista, para oferecer por meio de formas, cores, letras, sons, etc., as impressões de um


204 sentimento. Assim sendo, onde houver vontade, dedicação e trabalhos, grandes tesouros serão revelados. Acredito ser este o grande desafio da Academia: descobrir, incentivar e mostrar valores. E é este o ideal que me traz aqui, agradecendo a confiança e amizade de todos, com certeza da soma na defesa da nossa cultura em seus vários segmentos. As sementes estão sempre sendo lançadas! ... Com certeza dos bons frutos virão! .... Obrigada a todos. Sônia Menezes – 10/08/2015


205 Carmelita Teixeira Menezes, minha mãe. Pessoa simples e de muito bom gosto. Estudou apenas o primário, o que não a impediu de fazer com sucesso tudo o que se propôs. Muito inteligente, esposa e mãe dedicada, muito austera e exigente. Grande modelista, bordadeira, artesã, cozinheira. Sempre venceu as difi culdades da vida com determinação, muito trabalho e pitadas de arte no dia a dia, sendo minha grande inspiração. Homenagem a minha mãe Carmelita Teixeira Menezes


206 Geraldo Francisco de Assis “O Cipreste poeta louco de Corinto – Pezão” Assim se referia Escrevia seus belos versos vindos de seu dom nato com a simplicidade do pouco estudo. Ser humano encantador, gostava de contar “causos”, muito engraçados onde usava sua arte para realçar os detalhes. Andava com seus grandes passos nas ruas a cantarolar com seu sorriso largo. Os bolsos cheios de ferramentas usadas no seu trabalho, cumprimentava a todos.


207 Aqui faço uma simples homenagem ao grande amigo para que seja conhecido e nunca esquecido. Gosto muito da sua bela caligrafia em momentos que presenciei sua alma poética a se manifestar com maestria e espontaneidade. “A simplicidade é a maior sofisticação” Leonardo da Vinci


208 Alguns trabalhos e homenagens


209 “Tudo que você imaginfi é real” Pablo Picasso


210 - Pfi a você que sente, sff ha e age, os votos de que a vida lhe desafie sempre pfi a que seu instinto ffl iativo nunca pfi alise. Todos sffi os e precisamos sfl ffl iativos, p s Deus nos cff fi esta missão...


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213 Natural de Corinto/MG; residente em Vitória/ES. Poetisa, escritora e Arteterapeuta. Servidora pública federal recém-aposentada. É graduada em Artes Plásticas-UFMG e pós-graduada em Arteterapia-UFES. Premiada em vários concursos literários. Filha de pai poeta e fi lósofo e de mãe escritora, faz poesia desde a tenra idade. Ganhou o título de Mini – Escritora 1970, com apenas 10 anos de idade, em sua cidade natal. Autora dos livros: “A Viagem da Gotinha”, infantojuvenil, premiado pela Secretaria de Cultura do Estado do ES – Lei Rubem Braga/ES, em 2ª edição pela Ed. Scortecci (2021); e “Voando em Busca da Aurora”, poesias, Ed. Arte Impressa (2022). Participa de mais de 45 Antologias entre 2020/23. Participa de vários saraus, recitais, festivais de poesias, feiras nacionais e internacionais do livro, etc. Participou da Bienal Internacional do Livro, em SP/2022, apresentando seus dois livros. Recebeu, em 2013, a Comenda Ruth Cardoso pela Câmara Municipal de Vitória/ES pelo “Projeto Pequeno Cidadão” - de sua autoria e coordenação - onde desenvolveu o trabalho de inclusão social, cidadania, autoestima e consciência ambiental por meio da Arteterapia, com crianças e pré-adolescentes em situação de abrigamento. CONSUELO PAGANI VIEIRA MACHADO sócia correspondente


214 QUE EU SEJA LUZ NA PANDEMIA Que eu seja brilho de estrelas Seja raio de luar Que eu seja gotas de orvalho Para a dor aliviar Dos que estão machucados Neste instante de penar... Que eu busque o melhor de mim E possa então, ajudar A colorir esse mundo De todo irmão, a chorar... E em meio à melancolia Desta triste pandemia Eu encontre o meu sonhar... Que eu busque o som da minh’alma Com meu simples poetar Seja pássaro canoro E os corações, afagar Dos que estão solitários...! Que eu busque sonhos, abraços Mesmo sem tocar os braços Mas crie profundos laços E a todos, acalentar!... Idealizou e coordenou o Trabalho de Arteterapia com Deficientes Visuais em Vitória/ES, com os quais trabalhou a percepção das cores por meio do estímulo sensorial, tátil e cinestésico, além da consciência corporal e espacial, autoestima e inclusão social. Membra de diversas Academias Literárias. Instagram: @consuelo.pagani


215 CORINTO, MEU DOCE SERTÃO MINEIRO Corinto, meu doce sertão mineiro Cidade de céu estrelado Árvores retorcidas, ar adocicado Terra vermelha, cor de tijolo Pessoas em festa, sorriso a espalhar Amigões eternos, abraço sincero Um cheiro orvalhado Perfume no ar E no chão molhado Após chuva sertaneja Pequi no mato, íamos buscar Depois comer com arroz Aquele fruto do cerrado E com bons amigos, Rir e degustar Alma lavada, chuva benfazeja Corações ao vento, livres a sonhar Peito bem aberto, sorriso iluminado Com as bicicletas, mundo a desbravar Íamos descobrindo nosso árido cerrado... Porém, rico e doce, frutas a fartar Pequi, goiaba, pinha, jatobá Cagaita, murici, carambola e panã Sertão perfumado, florido, exuberante Bem ornamentado com ricos flamboyants Lindas cachoeiras, e nós fazendo a festa De trem ou bicicleta, aproveitando à beça Contria, Buenópolis, Três Marias, Beltrão, Pirapora, Diamantina, Salobo, Manoelzão Sim, aquele personagem Do famoso livro, o “Grande Sertão”!


216 É lá das nossas bandas De Corinto, “cê” sabia não? Um cheiro adocicado, De lenha no fogão Mandioca com melado E nós com o pé no chão Minha pequena e frágil Corinto do coração! Terra adorada onde nasci Tanta aventura ali eu vivi Cachoeira dos Porcos, Joaquim Felício Augusto de Lima, Curumataí E o sol forte e bem dourado Queimando os corpos suados... Sorriso maroto bem lindo Tímido, me olhando de lado E até o beijo não dado Na chuva após futebol Tinha gosto de delícia Gosto de céu e de sol Do primeiro amor que a gente Não se esquece, e de repente Passa a sonhar, em arrebol Corinto das noites de lua Claras, alvas, com poesia No Salobo, na Folia De Reis, em 6 de Janeiro Na fazenda da Bebel Goiabada, queijo fresco Garapa e rapadura Lá na roça do “Seu” Zé E o lindo doce de “estrelas” De carambolas colhidas


217 Fresquinhas, direto do pé Ouço os sons dos passarinhos Do meu cerrado querido Que em revoada, do ninho Alegram meu coração E o som das cachoeiras Nos chamando, altaneiras Para o banho, refrescar E nossos corpos, felizes, Nos poços, a mergulhar Ou então, em águas tranquilas De rios da cor de âmbar Eu e irmão Paulo, juntinhos, De mãos dadas, a boiar E com toda a calma do mundo, Pelo rio, a deslizar... Bucólica Morro da Garça Rio das Velhas, Contria E a nossa Tomaz Gonzaga Cheia de graça e poesia Com seus casarões antigos Do tempo da Sesmaria É lá que a amizade brinda, Se renova e se refaz Em encontros bem felizes Com os amigos, anuais Porto da Manga, me lembro Na Fazenda do tio Olinto A turma toda festeira Tomando banho no rio O Pardo e o Rio das Velhas Se encontram, em união... E a areia alva e macia


218 Formam praia rente ao chão A Caraíba querida De amidos do coração Rico encontro, grande festa Praia, riso e o violão Tesouro que guardo no peito São as Gatinhas Amigas E as risadas mais gostosas Até dar dor de barriga São momentos valiosos Que nunca serão esquecidos Passear na Rua do “Fúti” Sapo seco e carnaval Catar pau doce no pé Comer fruta no quintal Oh Corinto, nossa vida Passa, volta e modifica... O Primeiro Amor retorna No peito, encontra guarida! És passado, és presente Oh Corinto, eternamente Profunda e, ternamente, Em minh’alma, és acolhida! SONETO PARA O SILÊNCIO Quero o silêncio do meu eu profundo Quero ouvir a todos, sua alegria ou pranto E que este silêncio que eu quero tanto Cubra-me de paz e de um sabor fecundo Quero silenciar meus lábios ao amanhecer P’ra que meus dias, dadivosos, venham ser Enxergar a face de meus semelhantes


219 E sentir-me plena como nunca d’antes!... Regozijar-me com cada encontro mágico Que o “olhar nos olhos” venha me bastar, inteira Afastando angústia ou sentimento trágico Que eu não precise expressar uma só palavra Mas que o Silêncio me complete, tenaz e altaneira Como vem ser fértil a terra, quando o arado a lavra! SOU TERRA DO AGRESTE Sou terra, sou gruta; profunda caverna... Bem seca, vermelha, da cor de canela Sou lá do cerrado, do sertão mineiro Orvalho-me à noite, exalando o meu cheiro Sou terra do solo das Minas Gerais Do centro, do norte, bem lá no Sertão! Aprendi a lidar com as durezas da vida Mas trago a leveza de um doce rincão Sou perene, sou firmeza, sou agreste, sou rudeza Resisto à seca, ao sol forte, causticante Sou poeira que esparge ao crepúsculo que tange O meu solo... e no meu colo, a noite desce em singeleza Sou matuta, sou astuta, sou chão duro, furacão Mas trago em mim a leveza e as cores do rupião Se a noite me empresta seu canto, seu encanto e pureza Eu me envolvo em canduras, doçura, sonho e beleza Sou terra batida, socada; rachada, sedimentada Nascida da lava quente, do magma de um vulcão Sou sertão que agoniza, querendo a água e a vida Sou o silêncio das grutas; formações de dolomitas Estalactites que brotam no interior das cavernas Com paciência, e força, sabedoria de mil eras


220 Eu me destroço, me quebro, abro fendas e crateras Mas recomponho-me, sagaz, valente como o gavião Com tenacidade refaço-me e remendo o meu chão Sou o âmago da terra, mistério ardente, paixão SOU PEDRA DO CERRADO Sou pedra, cascalho, sou rochedo agreste Enfrento a seca, o Sol do Nordeste Embora em dor, sou firme, resoluta Em minhas angústias, incontáveis lutas! Abraço a enxada, a lida, o vento... E se tortuosos, insanos momentos Me abalam, atormentam, no chão me desmontam Se em prantos desabo, em tocante lamento, Sagaz sigo em frente, minh’alma aos tropeços Meu corpo em frangalhos, mas não me esmoreço Abraço o meu Deus e, com fé, firme, eu venço! QUANDO TUDO ACABAR... Quando tudo acabar... Vou me lambuzar de areia, Sentir-me como sereia Nas águas verdes do mar Quando tudo acabar... Quero brincar c’ as estrelas Rodopiar com o vento Tomar banho de luar Quando tudo acabar... Quero ver crianças livres Correndo em disparada A gargalhada no ar


221 Quero os parquinhos abertos Os pequenos nos balanços Casinha, escorregador Ouvir gritos bem felizes Meninada saltitando Poder cheirar uma flor Quando tudo acabar... Vou ver escolas abertas Os ideais renascendo Felicidade no ar Ver sorriso de criança A pular, fazer lambança Até o suor pingar... Quero me roçar na relva Refrescar na madrugada Acordar com a passarada Mil fragrâncias aspirar Quero sentir no meu corpo Gotas suaves de orvalho E a floresta a farfalhar Quando tudo acabar... Quero um abraço apertado Sorriso profundo e largo E o amor a borbulhar Quero os amigos do peito Bem por perto, a me afagar O egoísmo acabando E o mundo inteiro a se amar A Poesia voltando Os corações se encontrando Novas flores, ver brotando Tempo para o pôr do sol...


222 Tempo para coisas nobres P’ra sentir a Natureza No olhar, mais singeleza E a Humanidade, uma só... Quando tudo acabar... Quero ver vida pulsando Quero ver gente cantando Quero ver gente feliz Quero ir para o cinema Teatro, praia, ou mesmo Conhecer o meu país Ver abertos os restaurantes Lojas, bares, fervilhantes E quero até turistar... Mas... quando tudo acabar Nesta mesma caminhada Muitos irmãos de jornada Não vão mais poder sonhar... Então... antes de tudo acabar Peço a Deus que a Humanidade Aprenda a dura lição Para muitos, bem sofrida: Precisamos de amor Precisamos de união Nova conscientização Pra preservarmos a Vida!


223 A experiência da releitura “É um caderno grosso, com espiral de arame e a foto de uma mulher na capa” – eu descrevia por telefone, enquanto minha mãe, distante quase quinhentos quilômetros, revirava as pilhas de papéis velhos que ainda guardo na casa dela e respondia pela enésima vez que aquele objeto não estava lá. Para desencargo de consciência, meses mais tarde obriguei meu irmão mais novo a fazer uma chamada de vídeo diretamente Douglas Lima é doutorando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, instituição onde também cursou graduação e mestrado. Suas pesquisas abrangem os temas escravidão, alforrias e Brasil colonial. Também tem experiência em projetos de promoção do patrimônio histórico e cultural, atuando na pesquisa e/ou organização de acervos documentais e no levantamento de potencialidades culturais. Gosta de escrever refl exões sobre fatos que viveu ao longo da vida e situações que observa no cotidiano. DOUGLAS LIMA sócio correspondente


224 do quarto onde está a papelada. Usando de uma das mágicas do nosso tempo, por uns bons minutos verifiquei digitalmente pedaços aleatórios de meu passado. Ao fim das contas, nenhum era o que eu buscava e acabei convencido de que realmente o caderno se perdera. Aquele era um dos repositórios arqueológicos da minha formação como leitor. Um caderno de português da quinta série, provavelmente o período em que a leitura e a escrita chutaram a porta da minha vida e entraram para nunca mais saírem. O caderno está perdido, mas eu me lembro bem do que gostaria de recuperar nele. Desde o início do ano letivo – estávamos em 2000, e enquanto escrevo no pandêmico 2020 tenho a impressão de que aquilo ocorreu em outra vida – a professora Tininha incentivava a leitura entre seus alunos. Eu estudava em uma escola pública, não tinha televisão em casa e mal saía da minha cidade, Capelinha, no Vale do Jequitinhonha. Uma vez por semana, a professora nos liberava da sala de aula por alguns minutos e íamos à biblioteca escolher um livro. Com o tempo, passei a ler muito mais de um por semana e comecei a burlar o sistema com a anuência da Geralda, a bibliotecária. Assim que encerrava o turno, eu corria até a biblioteca e a Geralda permitia que eu trocasse o livro. Eu ainda não sabia, mas muito da pessoa que eu estava me tornando devia-se às dezenas de livros que lia a cada ano na passagem da infância para a adolescência. Além da leitura, a professora Tininha também incentivava a escrita a respeito do que líamos. Havia uma ficha no caderno de português, que devia ser preenchida com os dados de identificação e uma opinião acerca de cada livro lido. Em geral, minhas avaliações eram positivas. Lembro que naquele ano li alguns volumes da série Sítio do Pica-pau Amarelo, de Monteiro Lobato, e pelo menos um do inglês Roald Dahl, autor de Os Minpins. Até que tive nas mãos uma coletânea de tirinhas da personagem Mafalda, do qual infelizmente não me recordo o título. A professora selecionava e lia em voz alta algumas das resenhas que produzíamos. Tenho viva a lembrança do momento em que ela leu para toda a turma as minhas palavras acerca da obra do cartunista Quino. Do alto dos meus onze anos de idade, decretei o veredito: as “histórias em quadrinhos” eram extremamente curtas, muitas não tinham sentido algum, ao que parecia o objetivo era fazer rir, mas poucas eram realmente engraçadas. Em resumo, um péssimo livro, com conteúdo questionável, que eu não recomendava aos colegas. A professora Tininha não entrou no mérito da minha resenha. Ela usou as palavras que escrevi como exemplo de uma avaliação literária


225 negativa, para mostrar que nem todo livro agrada a todo mundo. Mas se ela foi elegante ao evitar dizer que fiz um juízo errado sobre Mafalda, o tempo foi implacável ao jogar isso na minha cara. Com o passar dos anos, percebi as camadas de complexidade da obra do cartunista Quino, das personagens que ele criou e da potência humana condensada na menina Mafalda. E por quais motivos não percebi isso quando li as tirinhas pela primeira vez? Hoje, depois de duas décadas, penso que minha versão do ano 2000: 1) talvez acreditasse que a leitura de quadrinhos fosse óbvia e exigisse pouca interpretação; 2) não entendia o contexto em que a obra foi produzida e as questões que ela mobilizava. Acho que a professora Tininha certamente se divertiu ao pensar no choque que eu teria anos mais tarde, quando fosse um leitor mais maduro e relesse o livro que resenhei. Sempre rememoro este episódio quando assisto debates relacionados à formação de leitores. Além de aspectos técnicos e da adequação do material à faixa etária, há elementos sutis envolvidos na interpretação e fruição de um produto artístico ou literário. Nessa dinâmica, a compreensão de mundo e o repertório de experiências por parte do leitor/fruidor desempenham papéis relevantes. Na minha inocência, eu comparei as tirinhas da Mafalda com as histórias em quadrinhos da Disney. Na casa dos meus avós maternos, haviam caixas e caixas de desgastadas revistinhas publicadas nos anos 1980, “espólio” que meus tios largaram por lá. As narrativas que combinavam imagem e texto com as quais eu estava então habituado tinham estruturas mais fechadas e literais. Nelas, início, meio e fim eram bem delimitados e as ilustrações, em geral, complementavam ou coincidiam com as falas das personagens. As tirinhas da Mafalda, cheias de metáforas em seus traços, com muitas mensagens não ditas, mas subtendidas, não operam necessariamente na mesma lógica. Entretanto, eu as li segundo o filtro que me parecia óbvio e imediato. Por achar que a linguagem desenhada era mais fácil de compreender do que a escrita e pelo fato das principais personagens nas tirinhas serem crianças, eu posso ter acreditado que o público-alvo de Mafalda fosse o infanto-juvenil, afinal, o livro estava na seção da biblioteca direcionada à minha faixa etária. Se a mim fazia pouco sentido, logo, o conteúdo do volume só podia ser ruim. Eu também não tinha a menor ideia do contexto em que Quino concebeu o seu trabalho, nas décadas de 1960 e 1970. Não me passava pela cabeça que aquela menina e sua turma representavam e questionavam problemas políticos, econômicos e sociais que a Argentina e o mundo enfrentavam décadas atrás. Aliás, eu tinha pouca percepção dos pro-


226 blemas humanos que permaneciam presentes em 2000, e continuam atuais em 2020, também inscritos nas páginas de Mafalda: relações de poder e gêneros, democracia, autoritarismo, desigualdades. Como leitor e historiador, hoje tenho noção de que a obra de Quino não é nada óbvia. Sua compreensão mais alargada depende de maturidade e de algum conhecimento sobre o que se passava no mundo quando as tirinhas foram elaboradas. A avaliação equivocada que fiz na primeira leitura de Mafalda e a posterior reavaliação são partes de um processo pouco destacado quando se fala da experiência do leitor: a releitura. Reler é um ato que permite reexaminar não somente uma obra, mas também a nossa capacidade de entendimento da produção literária, artística ou intelectual. Em alguma medida, a releitura de um texto ou uma imagem é oportunidade de colocar em perspectiva o nosso desenvolvimento como seres humanos, quando comparamos em nós os impactos de uma mesma obra lida/ fruída em momentos distintos. São detalhes, interpretações e vieses que podem ter passado batidos no primeiro contato. Mas o tempo tem o poder de nos modificar. E o livro já lido, que permanece com o mesmo conteúdo, em outras ocasiões, pode nos guiar por caminhos inéditos e oferecer uma nova chance de ser apreendido, caso permitamo-nos voltar a ele. Assim seguimos, estes seres que não nascem prontos, nunca estão acabados e sempre buscam adicionar mais um tijolinho em suas paredes infinitas: leitores.


227 Lampejos de melancolia O viajante, de presumíveis trinta anos, parou em frente ao casarão, quase em ruínas, que um morador do pequeno lugarejo indicou ser uma pensão. Desceu do carro branco, levantou os olhos e contemplou o sombrio sobrado. O relógio da igreja próxima badalava dezoito horas. Cansado, decidiu pernoitar ali mesmo naquele isolado lugar, uma vez que a cidade mais próxima fi cava distante e de difícil acesso. Não obstante tenha nascido em Montes Claros, Fabio Teles se considera de Corinto/MG, cidade onde viveu a adolescência e juventude. Reside atualmente em Belo Horizonte/MG. Autor do livro O Estafeta, e de contos publicados nas coletâneas literárias da Editora Globo e Editora Trevo, é sócio correspondente da Academia Corintiana de Letras, e Acadêmico Imortal da Academia Internacional de Literatura e Artes Poetas Além do Tempo. Tem estilo voltado para os acontecimentos do dia a dia, às vezes com fragmentos de nostalgia, impregnados de lirismo. FÁBIO TELLES sócio correspondente


228 O sinistro casarão, pelo aparente abandono, lembrava mais os filmes de terror com suas casas “mal-assombradas”. A senhora que o atendeu era uma anciã com cara de poucos amigos que informou-lhe ser o único hospede do lugar nos últimos tempos. Mostrou-lhe o quarto perguntando se iria jantar. Diante da já percebida falta de opção do vilarejo, respondeu-lhe que sim! No quarto, uma surrada e acolhedora cama de madeira, estilo “Luís XV” prenunciava uma noite tranquila. O banheiro ficava ao lado da cozinha, inteiramente esfumaçada, com um enorme fogão à lenha vermelho no centro, onde a senhora, de ar sisudo, já providenciava o fogo para o jantar e para que o “hóspede”, pudesse tomar banho quente, através de serpentina instalada no fogão, interligando o cano até o chuveiro. Um antigo e oval, porta-retratos emoldurava a porta da mórbida sala, com pouca e arcaica mobília. Em um canto reluzia uma rústica e desgastada cristaleira com algumas louças de porcelanas antigas. O lugar só tinha o seu silêncio, eventualmente, quebrado pelo arrastar dos chinelos da proprietária nos assoalhos de madeira. Durante o solitário jantar ele percebia a sua “anfitriã”, sentada ao lado do fogão, absorta em pensamentos, acariciando instintivamente, um velho gato. A lenha, queimando no fogão, produzia uma fagueira dança das chamas. Após alguns instantes, observando aquela circunspecta matrona, desejou-lhe um afetuoso boa noite e recolheu-se ao quarto, onde aproveitou e elaborou o seu relatório de trabalho. Sonolento, apagou a luz e começou a dormir. Acordou com um vozerio na rua e, sem entender o que estava acontecendo, retirou a bucha de papel, improvisada, que havia colocado no enorme da janela do quarto, e observou: Era o murmurinho de uma extensa e solene procissão, que passava. Minutos depois... o viajante, em meio aos desconhecidos, acompanhava o cortejo da procissão, rumo a uma igrejinha, no alto da colina. Aquele ambiente reflexivo, perfumado pelos incensos e parafinas das velas, as músicas sacras de uma modesta banda e o som marcante do bater das lanças dos “soldados romanos” imprimia emoção e adoração. No desolado viajante, trouxe uma sensação de abandono e solidão, conduzindo-o nostalgicamente à sua remota família. Ao final do acompanhamento, triste e envolto nas reminiscências da infância, voltou ao quarto. Demorou a dormir. Ouvir o relógio da igreja marcar uma hora. Adormeceu...


229 Sonhou... quando menino era acordado pela saudosa mãe com mingau de fubá, queijo e amor... Muito amor! E na cinzenta manhã, quando o pêndulo do velho relógio de parede da pensão, indicava dez horas, a octogenária senhora bateu comedidamente, a porta entreaberta do quarto do “hóspede” e perguntou baixinho: _O senhor não vem tomar café? O horário é até às dez horas. Não obtendo resposta, empurrou vagarosamente a porta. Deparou, inesperadamente com o corpo do viajante, pálido e imóvel... Sem vida... Ao lado, em uma mesinha de cabeceira um pequeno abajur, tombado, se mantinha aceso. Impactada, saiu à procura de ajuda. Uma pequena e curiosa multidão se aglomerou em frente ao casarão, externando comoção e pesar! O dia estava nublado e uma chuva fina começou a cair. O velho médico do lugar, atestou: morte súbita em decorrência de infarto do miocárdio. Pela janela um aroma de flores de manacás envolveu o aposento. No rosto contraído da dona da hospedagem, piedade e lágrimas. Em sua carteira, além de documentos pessoais e algum dinheiro, um desbotado e venerado retrato da sua mãe. Promissão Primavera do ano de 1955. O dia está clareando e, na névoa do amanhecer, o menino na carroceria do caminhão, observa à distância, o irmão arreando o cavalo para ir à fazenda. No caminhão, pessoas de várias origens que, imbuídas pela fé, procuram pagar suas promessas. Vagarosamente o velho Ford “pau-de-arara” começa a andar, deixando para trás o pátio da pequena estação do isolado lugarejo, no norte de Minas. O menino se diverte, vendo o irmão acompanhar, a cavalo, o caminhão, por alguns metros. Depois, um aceno de mão e um veemente grito de... vai com Deus! Destino, Bom Jesus da Lapa, cidadezinha ribeirinha do sertão baiano, a quatrocentos quilômetros de distância. Pela frente, um dia da estrada esburacada e caminhão sacolejando.


230 A cada “légua” percorrida, exacerbam-se os laços de solidariedade entre os religiosos. A paisagem é de uma vegetação rasteira, castigada pela seca, com seus resistentes pés de mandacarus, cactos, palmas, angicos, umbuzeiros, pequizeiros, dentre outros. Nas árvores e voando baixo, carcarás, asas-brancas, araras-azuis e uma imensidão de pássaros. No solo seco, seriemas, calangos, cutias... O sol se põe, tingindo de vermelho o horizonte do agreste sertão, e o ronco do motor da emblemática condução ressoa, desbravando os obstáculos da primitiva e desafiadora estrada. Escurece, e na noite sob o luar, o mágico brilho intermitente dos vagalumes. A peregrinação dos romeiros gera esperança e dá-lhes alento para a labuta e os percalços da vida. Acostumados à vida rude, os fiéis, na carroceria, alheios ao desconforto e com a devoção “desmedida”, põem-se a rezar e a cantar, cânticos religiosos. Aproxima-se a “curva da morte” ... trecho estreito, sobre um despenhadeiro onde só passa um carro por vez. Hora de cantar mais alto para afugentar o perigo e alertar quem possa vir de lá. “A treze de maio na cova da Iria, No céu aparece a Virgem Maria, Ave, Ave, Ave Maria” ... Avistam-se as primeiras luzes da esperada Bom Jesus da Lapa. O menino emocionado com parca luminosidade, ouve ecoar, em feitio de súplica... “Bendito, Louvado seja Bendito, Louvado seja O Santíssimo Sacramento O Santíssimo Sacramento” ... O “chofer” por sua vez, saúda com sonoras e repetidas buzinadas. Na cidade, o lendário Ford F6 é estacionado em uma praça, sob os olhares curiosos dos peregrinos. No primeiro lugar, uma concentração de romeiros chegando de jardineiras, caminhões, carroças, barcos e até mesmo a pé, imprime a singela cidade, uma atmosfera de autêntica devoção. O alvoroço resume-se em romarias de peregrinos humildes, sem formação religiosa, mas que conservam uma permanente Fé, inclusive para sobreviverem.


231 O Santuário, dentro de um enorme bloco de pedra, abriga a mais genuína e inabalável demonstração de Fé e devoção. Com a sua mãe e sua madrinha, o menino segue para uma modesta pensão, onde após um reconfortante banho, se revigora com uma saudável e fumegante sopa de legumes. Também se surpreende e se diverte com o boneco Biribita, de um hóspede ventríloquo, querendo saber seu nome e contando piadas. No dia seguinte, ao acordarem, veem pela janela do quarto, o deslumbrante Rio São Francisco, com suas fascinantes embarcações populares, exibindo, nas proas, suas místicas e exóticas carrancas coloridas. Nas ruas e nas praças, baianas com seus tabuleiros, vendem em tigelas, mungunzá, cuscuz, tapiocas, cocadas e diversas iguarias típicas. Pequenos jegues (jumentos) transportam em seus lombos, rústicos carotes de madeira, com água para vender. Dentro do Santuário, se emocionam com a imensidão e a beleza natural do lugar. Todos querem tocar no Crucifixo, com a imagem do Bom Jesus. Rezam e agradecem. Cumprem ali as suas promessas. No egresso do Templo e na agitação da multidão, o garoto sente um ligeiro desmaio; é acudido e restabelecido, graças à generosidade de uma senhora próxima, com uma “memorável” xícara de um amargo e vigoroso café. Na volta para casa, de alma lavada, aquela gente devota, não sente o cansaço evidente da viagem, visto que em meio aos místicos cânticos de louvores... “levita” na enigmática magia da FÉ. O Guarda-chaves Aconteceu que um dia, o discreto roceiro Adão, acostumado com a habitual lida na roça; porém, vivendo em dificuldades para se sustentar já a algum tempo, abandonou sua acomodada vidinha no campo e foi morar na cidade. Um parente; ferroviário, conseguiu-lhe emprego. Agora, iria trabalhar na Estrada de Ferro Central do Brasil. Vendeu o cavalo, uma antiga bicicleta e uns poucos pertences que possuía; e ao amanhecer, embarcou debaixo de muita chuva na breve parada de trem do lugar. Visivelmente emocionado, não olhou para trás. Usando uma desgastada botina de couro e um surrado chapéu de feltro; o “ressabiado” Adão, desembarcou às treze horas na efervescente estação. Encantou-se com o frenesi dos embarques e desembarques das pessoas, indo e vindo nas plataformas e com os estridentes apitos dos


232 trens; contemplou: “Que movimento é esse, Sô?”. Se informou e seguiu para a casa do seu parente levando consigo uma velha mala de papelão e sonhos... muitos sonhos... No dia seguinte pela manhã; tenso, pisando em solo alheio, mas com a determinação e coragem peculiar do sertanejo, apresentou-se para a entrevista e a subsequente admissão. Iniciando de pronto, um intenso período de treinamento. Prestativo e sorridente, logo conquistou a simpatia de todos os colegas, que o achavam divertido e um tanto “matuto”. Iniciou-se na ferrovia como “guarda-chaves”, função que consistia em operar manualmente as chaves (alavancas); abrindo-as e fechando-as, liberando a circulação dos trens, conforme suas rotas. Estava feliz com o trabalho e com a sua nova vida! Até namorada arrumou em noite de luar, na animada quermesse da igreja de Santo Antônio, no alto da cidade; de onde se ouvia ao longe, no ecoar do alto-falante, o simpático locutor anunciando e oferecendo músicas aos “distintos” ouvintes. Às vezes com os mais pitorescos recados. Não raro, ouvia-se nas enluaradas noites o eclodir da oferenda em forma de música: “Quem é que não sofre por alguém? Quem é que não chora uma lágrima sentida? Quem é que não tem um grande amor? Quem é que não chora uma grande dor?” No comércio da cidade, comprou roupas, no simpático Simão, calçados. E de estilo novo, com absoluta mudança na aparência e na apresentação, o comedido Adão assistiu com a namorada no Cine Alhambra, o filme “Um Lugar ao Sol”, com Montgomery Clift e a estonteante Elizabeth Taylor. O jovem provinciano, embevecia-se vivenciando a plenitude do seu novo habitar. E na “Pensão Nova Era”, defronte aos trilhos da ferrovia, vivia então o seu novo tempo. No trabalho tudo fluía estável e sem transtorno para ele que cada vez mais se empenhava para merecer essa chance. Até que... uma noite, uma locomotiva de um trem de passageiros, que manobrava próximo à estação foi colidida de maneira violenta por uma composição de vagões de cargas. Embora, no episódio não tenha havido vítimas, o dano causado foi de grandes proporções. Assim que aconteceu a colisão, pessoas inconformadas e prejulgando-o, foram correndo até a guarita onde estava o “assustado” jovem.


233 O inquérito administrativo apurou que o acidente teria ocorrido por falha do recém-contratado “guarda-chaves”. Mal súbito, extenuado pelos pernoites... enfim, várias conjecturas foram levantadas para a compreensão do ocorrido. Diante disso, a exacerbada pressão psicológica sobre o rapaz, acabou desencadeando no jovem, um impactante transtorno mental, que o conduziu a incontáveis internações em hospitais psiquiátricos da capital, com preocupantes distúrbios psíquicos. O seu parente visitou-o em um desses hospitais e se impressionou com o seu estado físico e emocional. Em sua mente, emergiam revoadas de fantasmas. Na cidade, surgiam boatos que teria morrido. Essa exaustão emocional, desencadeou-lhe por anos uma esquizofrenia, que acabou gerando sua aposentadoria precoce. E o tempo passou... Soube-se depois que o sofrido Adão, recuperou a saúde, casou-se com a morena da quermesse do Santo Antônio e hoje mora, despreocupado e feliz em um sítio, ao lado de uma mina d’água, nos cafundós da Serra do Cabral, vivendo da aposentadoria e da pesca no deslumbrante Rio das Velhas. Às vezes, aos sábados dá as caras na feira do povoado vizinho, vendendo em seu velho Jeep Wilys, seus surubins, curimatãs, dourados... sempre acompanhado da linda trigueira que em tempos adversos, foi sua devotada e doce companheira.


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235 Geraldo Tadeu de Oliveira Santos, conhecido como Tadeu Oliveira Romão, nasceu no dia 26 de maio de 1962, em Curvelo-MG. Derradeiro fi lho de uma família de onze irmãos, foi o único a nascer em hospital. Curvelo era na época era a única cidade mais próxima de Corinto (MG) a ter um hospital. Apesar disso, Tadeu sempre se considerou corintiano legítimo e chorava, quando pequeno lhe diziam que não era natural da cidade. Filho de Antônio Romão e Dona Zefa, do seu pai herdou a têmpera, a disposição de espírito, a autodidaxia, a capacidade de exercer múltiplas tarefas, além do caráter fi lantropo e, claro, o amor pela música. Da sua mãe herdou a alma sertaneja, o amor pela simplicidade, pela culinária, pelos “causos”, pelas crendices e tantas outras peculiaridades mineiras. Frequentou o Grupo Escolar Desembargador Canedo, o Instituto Dom Serafi m, a Escola Profi ssional da RFFSA (Centro de Formação Profi ssional) e graduou-se em História pela FAFIDIA/UEMG, com pós-graduação em Música na Educação. É graduando em Música pela UNIS. Em 1980, ingressou na MinasCaixa através de concurso público, onde permaneceu até 1992. Escreveu diversos artigos e reportagens nos jornais “Porém”, “União”, “Centro das Geraes” e “O Momento de Corinto”, todos com circulação na cidade de Corinto (MG), além de crônicas para a “Revista De Fato”, da cidade de Itabira-MG. Em 1997, mudou-se para Capelinha, no Vale do Jequitinhonha, e tornou-se ativista cultural. Pouco tempo depois, GERALDO TADEU DE OLIVEIRA SANTOS sócio correspondente


236 MARIA, COMO TANTAS MARIAS “Maria... Maria... Há tantas Marias... Maria da Penha... Maria da Glória... É tudo Maria!...(...) (...) Há tantas Marias!...(...) (...) E foi só Maria, a Santa Maria, A Mãe da pureza, A Mãe da bondade, A Mãe da justiça, A Mãe das Marias!...” (POEMA DAS MARIAS, Caleidoscópio, Pérola S. Gandra) Ela estava sempre presente nas rezas de terços em igrejas ou na casa de algum devoto de Maria, mãe de Jesus, juntando suas preces com as preces de outras bocas, num bater ligeiro de lábios e num tatear de contas gastas do seu rosário, roçadas pelos dedos inábeis e rústicos. Ela era assim: não perdia missa, terços, ladainhas, procissões, batizados e velórios. Na semana santa engrossava, com sua voz desafinada e destoante, o coro formado pelas mulheres que respondiam ao canto responsorial de Verônica, em latim, na procissão do enterro do Nosso Senhor Jesus Cristo. Para falar a verdade, creio que seria uma das melhores carpideiras na cidade, se ainda houvesse. Seu entretenimento preferido era bater perna pela cidade. Os trajes eram quase sempre os mesmos: lenço na cabeça, blusa de mangas compridas ainda que o sol estivesse a pino. A saia de cor sóbria, frisada e desbotada se estendia abaixo dos joelhos. Sob os pés rotos, carcomidos nos calcanhares devido às suas andanças, um velho par de havaianas. Como complemento trazia sempre debaixo do braço, fazendo chuva atuou como regente de corais, educador popular e apoiador de artesãos em diversas cidades do Vale. Em 1998, sua crônica “O retrato de janela” foi 3° lugar no I Concurso Literário “Grandes Escritores de Minas Gerais”, promovido pela Litteris Editora – RJ. O texto foi publicado no livro de antologias do concurso. Desde 2000, produz e apresenta o programa “Canta Minas” na rádio Aranãs de Capelinha. Em 2021, passou a integrar o movimento dos poetas e escritores do Jequitinhonha. O grupo, inclusive, fundou a Associação dos Poetas e Escritores do Vale do Jequitinhonha e Tadeu Oliveira ocupa o cargo de vice-secretário.


237 ou sol, uma sombrinha e um saco plástico onde, presume-se, levava seu cabedal. Não há muito que falar das suas feições cansadas. Lembra-se daquele personagem da Escolinha do Professor Raimundo, o aluno Baltazar da Rocha? Pois bem, a verossimilhança com o tal era tamanha! Há de se ressaltar que, enquanto aquele sempre trazia uma boa piada na ponta da língua, ela trazia um afiado palavrão para quem se atrevesse a lhe mangar. E, quase sempre saía uma saraivada de impropérios impublicáveis e ao mesmo tempo contraditórios às palavras sacrossantas rogadas de sua boca. E isto era o que mais acontecia porque a molecada, e até mesmo muitos marmanjos desprovidos de autocrítica e comiseração, dirigiam-lhe incontinenti os dois pseudônimos que lhe funcionavam como ofensas mortais: “Maria Beú” ou “Maria Fubá”. Seus xingatórios explosivos e esfuziantes eram direcionados às genitoras dos caçoadores e, caso insistissem, partia para o ataque corporal. Fosse quem fosse, dava uma carreira atrás do desafeto e quando o alcançava, cobria com pancadas de sombrinha e com pedradas, nem sempre certeiras. Parece que ninguém se acostumava com ela e nem ela com ninguém. Quando pequeno sempre a via com as mesmas atitudes e com os mesmos olhos. Minha condição de moleque nunca me impediu de zombá-la, o que me custou muitas repreensões de meus pais, quando flagravam meus inocentes delitos. Porém, adulto, o amadurecimento perante as coisas do mundo não me permitia cogitar importuná-la. Vez ou outra aparecia num bar como quem não quisesse nada, só para filar uma caninha, sua bebida preferida. E ficava insolente se lhe negassem um gole. Afinal, diziam, como derramar o líquido impuro sobre a hóstia sagrada? É que ela tomava quase que diariamente a sagrada comunhão. Quando alguém mais apiedado agia com generosidade, num átimo os seus olhos ficam apertadinhos, com a voz pastosa e dicção enrolada. Curiosa, não podia ver alguém conversando numa porta de casa ou numa esquina e logo bisbilhotava a conversa. Se não, encontrava um outro assunto para contar. Numa certa ocasião estive em Corinto e não a vi pelas ruas e praças da cidade, muito menos nas igrejas ou procissões. Além de sofrer com os achaques da idade, sem família e sem ninguém, vivia às expensas do asilo quase que como indigente. Já não sofria com as pilhérias dos meninos, nem com a covardia dos adultos. Mas sim, com a solidão e angústia que são prêmios adquiridos pelos idosos neste país e mundo


238 - indiferentes aos direitos humanos, consoantes também neste torrãozinho que é Corinto. Um dia, uma Maria qualquer me disse: toda Maria é sofredora porque herdou no nome as dores de Maria Santíssima, mãe de Jesus. Embora não acredite nesse paralogismo, quero crer que não importa onde, como, quando e porque, todas as Marias estejam sob a proteção do manto sagrado da maior de todas as Marias, a lhes cobrir os desígnios da vida. Que as preces de Maria Beú continuem a ecoar no infinito em favor de todas as Marias e que sua simplicidade lhe dê, no céu, um lugar de destaque entre outras tantas Marias, pois já suportara na terra todo o tipo de zombarias. A PRIMEIRA CHUTEIRA Geraldo Pé Roda nasceu e criou-se praticamente dentro do campo do Guarany Atlético Clube. Desde pequeno já engalobava a mãe dizendo que ia catar gravetos para acender fogo e fugia para jogar bola. Foi lá que ganhou o apelido. Sempre que treinava com a turma, costumava chutar a bola de bicuda e ela saía rodopiando sobre si mesma, capotando rente ao campo de terra batida. Daí, a turma começou a chamá-lo de Pé Roda. Logo a inabilidade com a bola fez com que assumisse a titularidade do gol, no segundo quadro do alvinegro corintiano. Naquele tempo a rigorosidade dos pais era demasiada e, com dona Luíza, mãe de Geraldo, não era diferente. Família por criar, ela preferia que os filhos trabalhassem para ajudar em casa em vez de ficar correndo atrás da bola. Além disso, os times não tinham condições de ajudar os jogadores e muitos deles tinham que comprar seu próprio material, o que ela achava um desperdício. Geraldo Pé Roda trabalhava de servente de pedreiro e entregava todo o dinheiro para a mãe. Quando precisava das coisas ela passava a quantia necessária, mas tinha de saber tintim por tintim com o que gastava o dinheiro. Certa ocasião, o sapato de Geraldo furou. A mãe retirou uma quantia guardada e mandou que ele fosse lá à loja de Jair Broto comprar um calçado. O sonho de Pé Roda adquirir a sua primeira chuteira estava prestes a se realizar, bastando dobrar a senhora sua mãe para comprar um par delas no lugar de sapatos. Após muita conversa, ele conseguiu botar na cabeça dela que aquilo era um calçado moderno e poderia ser usado em


239 todas as horas, em qualquer situação, sem nenhum problema. E assim, depois de muito blábláblá, Geraldo chegou em casa com sua compra. Naquela época, ir à missa aos domingos era obrigação de toda família cristã e temente a Deus. Dona Luíza, católica fervorosa, convocou a família para a liturgia dominical e tomou o rumo da igreja Matriz tendo os filhos a acompanhá-la. Geraldo seguia mais atrás trajando roupa de linho, paletó e chuteira nos pés. Andava como se estivesse a pisar em ovos para ninguém desconfiar de nada. A dificuldade de se equilibrar nas pedras irregulares do calçamento pé de moleque, deixava o seu andar claudicante. Quando entrou na igreja imersa num sagrado silêncio sepulcral, a coisa desandou. Ao pisar os azulejos arabescos da igreja, a cada passo dado com um cuidado extremo, ouvia-se um som incomum: crap, crap, crap... Os fiéis, incomodados, viraram-se a um só tempo para verificar de onde vinha aquele barulho esquisito. À medida que Geraldo adentrava o templo religioso, percebeu que aquilo escorregava como quiabo e num átimo... buffffff!!! O menino escorregou e caiu estatelado no chão. Dona Luíza, vendo a cena, ficou possessa, mas segurou a vergonha até chegar em casa e passar um corretivo no pobre e desastroso Geraldo Pé Roda. Para amenizar sua vergonha, ordenou ao filho que cortasse imediatamente as travas da chuteira. A partir daquele dia, a primeira chuteira de Geraldo Pé Roda tornou-se o seu calçado de passeio e, também, o de jogar bola. (*) Adaptação feita sobre entrevista concedida por Geraldo Fernandes (vulgo, Geraldo Perroda) a Maurílio Xavier no Jornal O Panorama, edição 56, de novembro de 2008, Corinto MG.


240 Onde Eu Nasci Passa o Trem Se uma travessia se fecha Corre-se muito perigo E se alguém está com pressa Isso é um enorme castigo As manobras dos vagões, Até hoje eu tenho medo, São tremendas explosões Ecoando feito torpedo Não saltar no engate: (Mamãe recomendava) Beliscando como alicate Muito pé se machucava Se a gente pisar em falso E a máquina fizer manobra Engate torna-se cadafalso E nenhum dedo sobra Diz que em todo mineiro Um trem corre na veia Isso é fato alvissareiro Aceitamos a mancheia Esse trem da minha terra Tem uma eterna estação Ela está encravada Dentro do meu coração Onde eu nasci não passa rio, Mas passa uma linha de trem Seguindo em paralelas, a fio De norte a sul, num vai e vem Onde eu nasci não passa canoa, Mas passa, devagar, muito vagão Locomotiva puxando a proa Numa eterna procissão Por vários caminhos, destina: Preta Pirapora, Belo Horizonte Outrora, também Diamantina Montes Claros, passa na ponte Aquela de ferro encravada Com seu traçado em grelhas Rumo ao norte deita estrada Sobre o nobre rio das Velhas Bom era o trem passageiro Transporte de relevância A quem com parco dinheiro Cobria grande distância Gostoso é ouvir o som Do apito rumo ao norte Mi, em muito bom-tom Ecoando grave e forte As idas e vindas do trem Marcam o ritmo da vida Se atrasar, há um porém: Perde-se a hora da lida Apreciado era o momento Do footing na estação Para alguns, divertimento Para outros, paqueração


241 O BOI DA MANTA Zé Rico era apaixonado pelo carnaval de Corinto. Numa folia da década de 1970, criou o bloco da Lídia, uma boneca negra imensa e vestida com roupas de chita, bem ao estilo das bonecas calungas dos blocos carnavalescos pernambucanos. No carnaval seguinte, Zé Rico inventou outro personagem: o Cabeção, um boneco de cabeça enorme que desfilava cortejando a sua amada Lídia. A partir de então, a cidade foi contagiada de alegria a ponto de o povo aguardar com ansiedade os carnavais subsequentes para acompanhar o bloco e ver o que Zé Rico aprontaria. E assim aconteceu: mais outro ano e a Lídia e o fiel parceiro Cabeção apareceram com Cabecinha, primeiro filho do casal. Depois, foi a vez da família aumentar e nasceu a menina Lidinha. Havia no bloco também um personagem da cultura popular brasileira que funcionava como uma espécie de abre alas. Era o Boi da Manta, uma variação do Bumba-meu-boi, que investia sobre a multidão para abrir alas para o Bloco da Lídia e do Cabeção desfilar, arrastando os seus passistas ao batuque sincopado dos ritmistas. O Boi, assim como os bonecos, era feito com papel machê pintado de preto sobre uma estrutura trançada de arame e muito bem compacta. Na verdade, parecia mais um enorme touro negro. A parte debaixo era aberta, onde cabia uma pessoa de pequena estatura encarregada de conduzi-lo pela rua afora. O Boi da Manta era uma atração à parte para a molecada. O prazer dos meninos era cutucá-lo na expectativa de vê-lo investir sobre a multidão que fugia em polvorosa. Deu-se que o Bloco da Lídia, Cabeção e sua filharada se preparavam para mais um desfile. Todo mundo estava eufórico: os passistas com suas indumentárias, os ritmistas com seus instrumentos afinados e a espera do comando do seu Zé Rico. A euforia era tanta que, dado o comando, a turba cantante tomou o rumo da linha de trem e se aproximou da boca do túnel a caminho da Rua do Footing, local de aglomeração dos blocos, quando alguém avisou que o boi ficara para trás. E assim, correram no barracão do fundo da casa de Zé Rico para chamar o boi! Para sair debaixo dos bonecos era uma disputa danada, pois todos queriam animá-los, mas poucos se arriscavam a sair debaixo do Boi da Manta. Ele sempre sobrava para Mossorongo, um sujeito simples que adorava carnaval e ficava sempre responsável por empurrar os carros alegóricos das escolas de samba ou os carrinhos que transportavam os


242 tambores treme-terra, botijões de gás – utilizados como instrumento de baterias em Corinto –, entre outros instrumentos de percussão. Assim que trouxeram o boi, colocaram-no sobre Mossorongo, já a caminho da Rua do Footing. No entanto, havia cerca de um ano que o boi estava encostado e não se dispunha de tempo para limpá-lo. Arrumaram um molambo e bateram sobre ele a fim de retirar o excesso de poeira. Quando o bloco entrou na Rua do Footing, ali perto da ponte sobre a linha da estação ferroviária, o boi já estava todo espevitado, fazendo acrobacias nunca dantes imaginadas. Ao ganhar a metade da rua, dava pinotes e mais pinotes sobre a multidão que se instalara para ver o desfile passar. Nunca, nos anos anteriores, se vira o boi tão bravo. Moleque nenhum arriscou desafiá-lo. Na verdade, ninguém se aventurou ficar a menos de dez metros do boi, pois esse fazia tresloucados malabarismos. Os policiais que faziam a segurança através de um cordão de isolamento, começaram a ficar preocupados, pois nem mesmo o mais respeitado e temido soldado do pelotão corintiano, João Preto, deu jeito no Boi que, audaciosamente, chegou a desferir-lhe uma chifrada quase na altura do baixo ventre. Aí foi demais! Os foliões do bloco quedaram-se incrédulos porque Mossorongo era um sujeito pacato. Não era dado a estripulias e nem bebia a ponto de sair de si. No entanto, ele estava indócil e incontido. E ali, na esquina da Rua do Footing com a Capitão Altino, em frente à lanchonete Fátima, interromperam o desfile para verificar o que se passava com Mossorongo. Após muita peleja e safanões, enfim dominaram o boi. Houve alguma dificuldade ao tentar retirá-lo de cima de Mossorongo, tendo em vista que a armação se enganchara em sua cabeça. Quando enfim o livraram do animal, para surpresa de todos no bloco, a cabeça de Mossorongo estava num inchaço só, emendando as bochechas com as orelhas e o pescoço. Como o boi ficara quase um ano guardado lá nos fundos do barracão de Zé Rico, nesse tempo marimbondos construíram uma casa dentro do corpo do boi. Quando Mossorongo meteu a cabeça boi adentro, esmagou os marimbondos com o cocuruto. A dificuldade de se ver livre daquele boizão pesado por si só e o barulho do batuque impediram que o bloco ouvisse seus pedidos de socorro. O desespero era tão grande que Mossorongo se debatia em vão! Enfim explicava-se, portanto, tamanha animação e acrobacias do Boi da Manta.


243 JULIETA, A CIGARRA DO SERTÃO “Julieta, tá, ta, tá me chamando Julieta, tá, ta, tá me chamando” Houve um tempo em que não era raro ouvir os versos acima entoados pelas ruas de Corinto. Quem cantava era Juscelino, cuja alcunha era Julieta, justamente por causa dos referidos versos. Tinha nome de presidente, mas era pseudo-cantor. De voz estridente, entoava seu canto com todos os pulmões, sem parar mesmo quando a goela secava. Tudo começou perto da antiga loja Discobrasa, nas confluências das ruas Footing e Capitão Altino, em frente à farmácia do Butinão. Um dia esse ser excêntrico apareceu por lá, no auge da música “Julieta”, canção de Sandro Becker. Ficava na calçada oposta, disputando o volume do som com as caixas acústicas. Quando não cantava, dançava face a face com a parede da farmácia, beijando-a de quando em quando, como se fosse uma donzela. Será que ele teria tido alguma desilusão amorosa com o nome de Julieta? Ou será que, na sua ingenuidade visionária, conseguia vislumbrar a musa de seus sonhos? Uma coisa podia-se inferir: apesar de estar há anos luz dos encantos de Romeu, o personagem desta narrativa, se nunca namorou, teve o conhecimento das peças íntimas usadas pelas mulheres e talvez tenha vislumbrado as curvas e concavidades femininas. Muitas vezes foi flagrado perambulando pelas bandas do Capim Gordura, zona da boêmia local, espiando um tanto zeloso os quintais das mulheres damas. Os seus arroubos não passavam disso. Ninguém nunca teve notícia de que houvera se engraçado com alguma mulher de família ou mesmo com as de vida fácil. Seu cantar lembrava a das cigarras insistindo em chamar as chuvas nas cáusticas tardes do verão sertanejo. Ele parecia adorar a chuva, pois nesta estação perambulava pelas enxurradas esfregando os pés um no outro, as mãos e, com elas, as axilas. Mas, mesmo com tanta lavação, suas partes insistiam em emanar odores um tanto desagradáveis. Se não chovia, frequentava as diversas praças da cidade se dependurando numa torneira e praticando o seu ritual. Juscelino não chamava atenção apenas pelo seu canto repetitivo ou pelo descompasso de sua dança. Seu estereótipo de rara simploriedade compunha-se de pés descalços com calcanhares rachados e dedos


244 grossos encravados, na base esparramada, em pés de pato. Sua fisionomia destacava o rasgo da boca, que parecia estar em permanente sorriso, mostrando a gengiva lisa feita a de um recém-nascido. Sobre os lábios carnudos e revirados, cultivava um bigode ralo que os maldosos insistiam em chamar de rodapé. No queixo, uma barbicha a acompanhar toda sua extensão, feito um resto de palha de aço. Sua pele morena contrastava com a alvura dos pés e mãos, devido à mania de tanto lavá-los. Os olhos, às vezes alienados ou espevitados, combinava com movimentos da cabeça, que se comportava como a de uma galinha, girando de um lado a outro, num giro esperto e entrecortado, como a perscrutar o terreiro antevendo perigos avançando sobre sua ninhada. Desconfiança – ou seria medo? – é o que não faltava a esse indivíduo. Os seus trajes seguiam sempre o mesmo figurino e raras vezes seria encontrado usando calças compridas. Fazia mais o estilo Sérgio Malandro, com bermudas abaixo dos joelhos e uma camisa qualquer. Possuidor de moradia, nosso doidivanas preferia o abrigo da sarjeta ao aconchego de uma cama. Talvez por preguiça de voltar para casa devido à distância do centro da cidade, pernoitava no posto do Santinho, dentro da vala do lavador de carros e bem cedinho, com seu pote de margarina em punho, requeria um cafezinho quente na porta de alguém. Indagado se não se importava de dormir ao relento, respondia: “num acho rúim não, inté gostio!” (expressão que se tornou um bordão na boca dos corintianos). Certa feita fiquei sabendo que o seu passatempo predileto era ir para o asfalto dos trevos de Pirapora e Montes Claros para jogar pedras no pára-brisa de caminhões e carretas que por lá trafegavam. Fazia isso pelo simples prazer de ouvir o estrondo dos vidros ao se estilhaçarem. Por sorte, nunca ouve nada de mais grave, mas causou à família enormes dores de cabeça. Outra semelhança com aves da nossa fauna se faz necessária: os papagaios! Desculpe-me, leitor, em usar de tal recurso para descrevê-lo, não porque eu queira denegri-lo, ao contrário, quero apenas poder retratá-lo com todas as metáforas que seu ser irradia. Veja se não tenho razão! Qualquer pergunta dirigida a ele, tinha como resposta a pergunta feita. Se você perguntasse se estava com fome, respondia: “tô cum fome”. Se você afirmasse que ele não estava com fome, repetiria o mesmo enunciado. Se o encontrasse pela manhã e pedisse para dizer a frase: “toco cru pegando fogo”, de tarde provavelmente ainda a repetiria invariavelmente. Salvo-me do engano, apenas uma vez o extraordinário Julieta expressou um caso diferente dos padrões do seu vocabulário. Foi num dia em que eu e alguns amigos estávamos a prosear na Praça Raul Gorgulho,


245 a pracinha da minha infância e a preferida dos mentecaptos. Ele chegou de mansinho e integrou-se à roda. Depois de muito divagar, relatou uma de suas peripécias. Disse ele que sua mãe estava muito brava, pois havia jogado as galinhas dela no buraco da latrina, matando as coitadinhas atoladas no cocô. Mal o som das nossas hilárias gargalhadas repercutiam pela praça, arrematou: “vaca num dá pra jogar não, vaca é grande!”. Houve um tempo em que havia fugido de casa e o seu exílio nas ruas obrigou sua família a levá-lo para Belo Horizonte em busca de algum tratamento. Ao retornar, notava-se que estava grogue e mais defectível do que o comum, com um par de olhos vagos e opacos. Após um tempo, seu canto voltou a ser ouvido pelas ruas e praças. Era como se respondesse a um chamado do inconsciente coletivo da cidade a clamar pela alegria. E o povo voltou a sorrir com a sonoridade espalhada pelos bochornos nas tardes ensolaradas do eterno verão corintiano: “Julieta, tá, ta, tá me chamando...”


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247 Gustavo Adolfo de Paula Afonso do Carmo é o 4º fi lho de Adirson Alonso do Carmo e de Mercedes Antônia de Paula Alonso do Carmo. Nasceu em Corinto e aí mesmo cursou os primeiros anos de escola: Educação Infantil com Francisca Antunes; Ensino Fundamental, 1ª a 4ª série na EE. Professora Maria Amália Campos, 5ª a 8ª série e Ensino Médio no Colégio D. Serafi m. Cursou a faculdade de Letras na Facic em Curvelo. Fez a complementação em Formiga e em Batatais. Foi ferroviário, professor de Língua Portuguesa no Centro de Formação Profi ssional da RFF SA. Fez o curso de Estudos Sociais e Antropologia na UFMG. Trabalhou no Tribunal de Contas e atualmente trabalha no Tribunal Regional do Trabalho. Sempre estudioso procura estar a par da história pregressa e acompanha as atualidades do mundo contemporâneo, da política, sem deixar de vasculhar e estudar o passado, decifrando relações entre uma e outra fase. GUSTAVO ADOLFO DE PAULA ALONSO DO CARMO sócio correspondente


248 A máquina Como os super-heróis dos quadrinhos, a Máquina se esconde em um personagem comum e cativante, um menino mimado por pais, avós, irmãos, esposa, filhos, netos e bisnetos. O cavalo que monta a Máquina é querido de todos. Faz rir crianças velhas e outras criaturas com seus trocadilhos pretensamente picantes: sai rimando, orgulhoso, cabo com rabo, teta com lambreta, sempre com alguma conotação sexual mal reprimida de outros tempos. Acumulou hábitos e os preserva cotidianamente, escreve números e bichos, lê e interpreta sonhos, brinca de jogar, joga a sério. Autoproclama-se, modestamente, o melhor, o mais esperto, o mais afortunado. De uns tempos pra cá, desde que atinou para a passagem dos dias e somou 70 anos, decretou que ajeitaria as engrenagens nos finais de semana. A Máquina, então, durante a semana opera metodicamente: escreve números, desenha bichos, joga cartas, cuida de galinhas e de um gato, interpreta sonhos, hiponotiza-se diante da caixa de ilusões e dorme. No final de semana – e há semanas em que o final é duradouro – a Máquina se confunde e nem sabe se é de costurar, de lavar, de cozinhar, de cerzir, confeitar ou concretar. A valentia se avoluma e dá de relatar, lembrar, reviver. Quer fazer seu monólogo, ora elogiando a si, ora elogiando o interlocutor, sempre na iminência de – entre aspas – “mandar alguém tomar... FECHAMENTO DA RFFSA Dias após a entrega da RFFSA à concessionária Ferrovia Centro Atlântica, escrevi o texto abaixo, que, se peca por não manter a distância necessária, ao menos ajuda a vislumbrar o cenário que busco apresentar. Ele encontra-se em sua forma original e traz em si argumentos frágeis e conclusões desacertadas. 02/09/1996 a apreensão dos últimos dias dilatava as horas e fazia com que os assuntos, as conversas, voluntariamente ou não, se esbarrassem nas especulações, boatos e notificações oficiosos acerca do encampamento da RFFSA (Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima) pela FCA (Ferrovia Centro Atlântica). Mais de 80 nomes e seus sorrisos pálidos esforçavam-se para crer que, qual falavam a imprensa, os engenheiros da RFFSA e outros papagaios, a privatização traria um


249 novo vigor para a ferrovia e para as cidades, melhores salários para os ferroviários, respeito, dignidade e outros valores convidativos. Intimamente, tínhamos consciência de que os fatos após o dia 02/09/1996, na Ferrovia, tomariam rumos diferentes. No vocabulário capitalista, todas as palavras convergem para o lucro. Semanas antes, assistimos impotentes ao fechamento da Escola. Não de uma escola qualquer, mas do Centro de Formação Profissional de Corinto, que à época contava mais de 50 anos de existência. Houve lágrimas. Houve também o silêncio. Um estarrecedor silêncio povoou a cidade. Portas fechadas, uma após a outra, e o silêncio prossegue. No dia da posse da FCA, não houve foguetório, nem hino nacional, nem bandinha, nem farofa, nem campeonatos como nas comemorações de 1º de maio. Houve, como nunca em antes houvera, POLÍCIA. POLÍCIA PARA QUEM? Fomos surpreendidos, às 06h45min horas do dia 02/09/1996, pela Polícia Militar, que à porta das oficinas quedava-se imponente. A última ordem que recebemos do digníssimo senhor engenheiro foi a seguinte: “Ninguém troque as roupas. Aguardem do lado de fora das oficinas.” Em grupos de 03 ou 04, éramos chamados à sala da Gerência, onde recebíamos além de “valorosos conselhos” do senhor engenheiro, a seguinte informação: “seus serviços não mais são necessários a esta empresa...” Das cenas que se seguiram, uma merece ser narrada em breves linhas: Um ferroviário com quase duas décadas de serviços prestados à RFFSA, após ter ouvido as falas finais do engenheiro, pegou de sua caixa de ferramentas e tomou seu caminho. A cada passo, volvia o olhar para trás e, respirando sofrivelmente, corria os olhos inquietos pelo prédio, pelas árvores, pelas máquinas..., como se pudesse gravar na memória tudo que ali se passara. Num ímpeto, as lágrimas, os soluços e os tremores tomaram-lhe todo. Esvaíram-se lhe as forças. Caiu hirto próximo ao portão. Ergueu-se e seguiu sem pronunciar palavra. Só as lágrimas, os tremores e os soluços e uma mágoa recémnascida lhe fizeram companhia. Este, como a maioria dos desventurados desempregados, aceitou silentemente a batida final do martelo. Aliás, o silêncio é o que nos iguala: as autoridades, os ex-funcionários, os alunos e ex-alunos do CFP, a sociedade, todos vimos o fechar das portas em um profundo e atordoador silêncio. Talvez se berrássemos, se urrássemos, se gritássemos... Talvez... Não. Inertes e silentes, engolimos todo o ideário, que nos serviam em pratos finos, acompanhado de apetitosas promessas: “A privatização veio para modernizar nosso Brasil.” O Brasil moderno de quem? Para quem? Quem pode usufruir das modernidades desse Brasil? Que Brasil é esse que se nos apresenta?


250 O gato Quando chegou, era mais um gato. Arredio, desesperançado, era uma alma baldia e desconfiada à procura de alimento e substância para o corpo. Encontrou acolhimento, ainda que provisório e condicionado, nos moradores da casa. Repartiam co ele as sobras, que lhe era estranho e o pouco que lhe chegava, ele repelia. Amoleceu aos poucos a sua zanga e até já se aproximava das pessoas. Voltava ao seu estado de agastamento quando o reprimiam ou expulsam-no da casa. Aprendeu a comer pimenta e tudo o que se comia naquela casa. Nunca teve nome, era o gato, o gato de expressão raivosa e virulenta. Sumia, depois voltava. Voltava a sumir reaparecia. Um dia, estranhou a presença de outro gato no lugar e tratou de demarcar seu espaço. Foi repreendido, magoou-se e sumiu novamente. Ao retornar, o outro já tinha nome. Era o branquinho, o floquinho, o isso e o aquilo. Branquinho, em pouco tempo já dormia nas camas, recebia afagos que ele rejeitara. Como expressão de sua ira, passou a castigar o novato, arrancava-lhe os pelos, fazia-o sangrar enquanto ele refugiava próximo aos moradores da casa. Fez-se cruel e passou a ser conhecido como Carudo, o gato cabeçudo que assombra todos os gatos da região.


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