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O Que o Cerebro Tem Para Contar - V.s. Ramachandran

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Published by São Braz, 2017-05-16 15:54:28

O Que o Cerebro Tem Para Contar

O Que o Cerebro Tem Para Contar - V.s. Ramachandran

estudados por Peter Brugger do Hospital Universitário de Zurique. Eles nos lembram de que
até a congruência entre diferentes aspectos de nossa mente, como “ego” subjetivo e imagem
corporal, podem ser desarranjados em doenças cerebrais. Deve haver um mecanismo cerebral
específico (ou uma sequência encadeada de mecanismos) que comumente preserva essa
congruência; se não houvesse, ela não poderia ter sido seletivamente afetada em Patrick,
deixando ao mesmo tempo outros aspectos de sua mente intactos – pois, de fato, ele era
emocionalmente normal, introspectivo, inteligente e amável.10

Movido pela curiosidade, irriguei seu canal auditivo esquerdo com água gelada. Sabe-se
que esse procedimento ativa o sistema vestibular, podendo dar certo solavanco na imagem
corporal; ele pode, por exemplo, restaurar transitoriamente a consciência da paralisia do
corpo num paciente com anosognosia decorrente de um acidente vascular cerebral parietal.
Quando fiz isso para Patrick, ele ficou pasmo ao perceber o gêmeo encolhendo em tamanho,
movendo-se e mudando de postura. Ah, como sabemos pouco sobre o cérebro!

Experiências extracorpóreas são vistas com frequência em neurologia, mas elas se
mesclam de maneira imperceptível com o que chamamos de estados dissociativos, que em
geral são vistos por psiquiatras. A expressão designa uma condição em que a pessoa se
dissocia mentalmente do que quer que esteja se passando em seu corpo durante uma
experiência extremamente traumática. (Advogados de defesa costumam usar o diagnóstico de
estado dissociativo: afirmam que o acusado estava em tal estado, e que portanto observou seu
corpo “perpetrando” o assassinato sem envolvimento pessoal.)

O estado dissociativo envolve o uso de algumas das mesmas estruturas neurais já
discutidas, mas também de duas outras estruturas: o hipotálamo e o cingulado anterior.11 Via de
regra, quando somos confrontados com uma ameaça, dois outputs fluem do hipotálamo: um
deles comportamental, como fugir ou lutar; e outro emocional, como medo ou agressão. (Já
mencionamos o terceiro output: excitação autônoma levando à RGP de suor, pressão
sanguínea e ritmo cardíaco aumentado.) O cingulado anterior está simultaneamente ativo; ele
nos permite permanecer excitados e sempre vigilantes para novas ameaças e novas
oportunidades de fuga. Mas o nível de ameaça determina o grau em que cada um desses três
subsistemas é envolvido. Quando somos confrontados com uma ameaça extrema, por vezes é
melhor ficar imóvel e não fazer absolutamente nada. Isso poderia ser visto com uma forma de
“bancar o possum”,g interrompendo todo output comportamental. O possum fica
completamente imóvel quando um predador está tão próximo que a fuga não é mais uma
opção, e de fato qualquer tentativa iria apenas ativar o instinto do carnívoro de perseguir a
presa em fuga. Apesar disso, o cingulado anterior continua poderosamente envolvido o tempo
todo para preservar a vigilância, para o caso de o predador não se deixar enganar ou de uma
fuga rápida tornar-se viável.

Um vestígio desse “reflexo de possum”, ou uma exaptação dele, pode se manifestar na
forma de estados dissociativos em emergências humanas extremas. A pessoa interrompe tanto
comportamentos manifestos quanto emoções e se vê com indiferença objetiva em relação à sua
própria dor ou pânico. Isso ocorre por vezes em estupro, por exemplo, em que a mulher fica
num estado paradoxal: “Fiquei vendo a mim mesma sendo estuprada como se fosse um
observador externo indiferente – sentindo a dor, mas não a angústia. E não havia nenhum
pânico.” A mesma coisa deve ter ocorrido quando o explorador David Livingstone foi atacado
por um leão que lhe arrancou o braço fora a dentadas; não sentiu dor nem medo.

A razão de ativação entre esses circuitos e interações entre eles pode também dar origem a
formas menos extremas de dissociação em que a ação não é inibida, mas as emoções são.
Apelidamos isso de “reflexo de James Bond”: seus nervos de aço lhe permitem permanecer
inafetado por emoções perturbadoras enquanto persegue e enfrenta o vilão (ou faz sexo com
uma mulher sem pagar a “penalidade” do amor).

Inserção social

O self se define em relação a seu ambiente social. Quando esse ambiente se torna
incompreensível – por exemplo, quando pessoas conhecidas parecem desconhecidas ou vice-
versa –, o self pode experimentar extremo sofrimento ou mesmo sentir-se ameaçado.

A síndrome de erro de identificação: Doutor, essa não é a minha mãe

O cérebro de uma pessoa cria uma imagem unificada, internamente consistente de seu mundo
social – um palco ocupado por diferentes selves como você e eu. Essa parece uma afirmação
banal, mas quando o self está perturbado começamos a compreender que há mecanismos
cerebrais específicos em ação para vestir o self com um corpo e uma identidade.

No capítulo 2, ofereci uma explicação para a síndrome de Capgras em termos das vias
visuais 2 e 3 quando elas divergem do giro fusiforme (figuras 9.1 e 9.2). Se a via 3 (o fluxo “e
daí”, que evoca emoções) estiver comprometida enquanto a via 2 (o fluxo “o quê”, que
permite a identificação) permanece intacto, o paciente pode evocar fatos e lembranças sobre
as pessoas que lhe são mais próximas e queridas – numa palavra, pode reconhecê-las – mas,
de forma perturbadora, aflitiva, não sente os cálidos sentimentos vagos que “deveria”. Como a
discrepância é ou penosa demais ou desconcertante demais para ser aceita, ele abraça a ilusão
de um impostor idêntico. Indo mais adiante no caminho do delírio, ele pode dizer coisas como
“minha outra mãe”, ou até afirmar que há vários seres maternais. Isso é chamado de
duplicação, ou reduplicação.

Agora pense no que acontece quando o cenário da síndrome de Capgras está invertido: via
3 intacta, via 2 comprometida. O paciente perde a capacidade de reconhecer rostos. Torna-se
cego para rostos, um distúrbio chamado prosopagnosia. No entanto, sua discriminação
inconsciente de rostos de pessoas continua a ser levada a cabo por seu giro fusiforme intacto,
que ainda pode enviar sinais por seu fluxo “e daí” intacto (via 3) para sua amígdala. Como
resultado, ele ainda responde emocionalmente a rostos familiares – dá um belo e grande sinal
de RGP ao ver sua mãe, por exemplo, muito embora não faça a menor ideia de quem seja a
pessoa para quem está olhando. Estranhamente, seu cérebro – e sua pele – “sabe” alguma
coisa que sua mente ignora conscientemente. (Isso foi demonstrado por António Damásio numa
elegante série de experimentos.) Você pode pensar, portanto, nos distúrbios de Capgras e na
prosopagnosia como imagens especulares um do outro, tanto estruturalmente quanto em termos
de sintomas clínicos.12

Para a maioria de nós sem danos cerebrais, a ideia de que a identidade (fatos conhecidos
sobre uma pessoa) deveria estar segregada da familiaridade (reações emocionais a uma

pessoa) parece contrária ao senso comum. Como podemos reconhecer uma pessoa e não a
reconhecer ao mesmo tempo? Você poderia fazer uma ligeira ideia de como é isso se pensasse
numa ocasião passada em que topou com um conhecido em algum lugar completamente fora de
contexto, como um aeroporto num país estrangeiro e não conseguiu de maneira alguma se
lembrar de quem ele era. Você experimentou familiaridade com falta de identidade. O fato de
uma dissociação como essa poder ocorrer de alguma maneira é prova de que mecanismos
separados estão envolvidos, e nesses momentos de “aeroporto” você experimenta,
passageiramente, uma síndrome em miniatura que é o oposto da de Capgras. Se você não
experimenta essa discrepância cognitiva como desagradável (exceto brevemente, ganhando
tempo com uma conversa trivial enquanto se compõe) é porque esses episódios não duram
muito. Se esse conhecido continuasse a parecer estranho o tempo todo, independentemente do
contexto e da frequência com que você conversasse com ele, é possível que ele começasse a
parecer sinistro e você poderia de fato desenvolver uma forte aversão ou paranoia.

FIGURA 9.1 Diagrama extremamente esquemático das vias visuais e outras áreas invocadas para explicar sintomas de doenças
mentais: o sulco temporal superior (STS) e o giro supramarginal (SM) são provavelmente ricos em neurônios-espelho. As vias 1

(“como”) e 2 (“o quê”) são vias anatômicas identificadas. A divisão da via “o quê” em dois fluxos – “o quê” (via 2) e “e daí”
(via 3) baseia-se principalmente em considerações funcionais e neurologia. O lobo parietal superior (LPS) está envolvido na
construção da imagem corporal do espaço visual. O lobo parietal inferior (LPI) está também envolvido com a imagem corporal,
mas além disso com preensão em macacos e (provavelmente) símios. Só os seres humanos possuem o giro supramarginal

(SM). Durante o desenvolvimento do hominíneo, ele se separou do LPI e tornou-se especializado em movimentos
especializados e semiespecializados como o uso de ferramentas. A pressão seletiva para sua separação veio da necessidade de
usar as mãos para fazer ferramentas, manejar armas, arremessar mísseis, bem como para manipulação fina com as mãos e os

dedos. Provavelmente só nós possuímos um outro giro, o giro angular (GA). Ele se separou do LPI e originalmente serviu às
capacidades de abstração transmodais, como trepar em árvores, e emparelhar tamanho e orientação visual com feedback de
músculos e articulação. Em seres humanos, o GA foi exaptado para formas mais complexas de abstração: leitura, escrita, léxico

e aritmética. A área de Wernicke (W) lida com linguagem (semântica). O STS também tem conexões com a ínsula (não
mostradas). O complexo amigdaloide (A, incluindo a amígdala) lida com emoções. O núcleo geniculado lateral (NGL) do tálamo

retransmite informação da retina para a área 17 (também conhecida como V1, o córtex visual primário). O colículo superior

(CS) recebe e processa sinais vindos da retina que são enviados pela via antiga para o LPS (após uma retransmissão através do
pulvinar, não mostrada). O giro fusiforme (F) está envolvido no reconhecimento de faces e objetos.

FIGURA 9.2 Versão abreviada da figura 9.1, mostrando a distinção entre emoções e semântica (significado).

Autoduplicação: Doutor, onde está o outro David?

Assombrosamente, descobrimos que a reduplicação vista na síndrome de Capgras pode
envolver até o próprio self do paciente. Como foi observado anteriormente, a atividade
recursiva de neurônios-espelho pode resultar numa representação não só das mentes de outras
pessoas, como também da nossa.13 Alguma trapalhada nesse mecanismo poderia explicar por
que nosso paciente apontava para uma foto de perfil de si mesmo e dizia: “Esse é um outro
David.” Em outras ocasiões ele se referia ao “outro David” em conversas casuais, chegando a
perguntar, de maneira comovente: “Doutor, se o outro David voltar, será que meus pais vão me
renegar?” É claro que todos nós nos entregamos a um faz de conta de vez em quando, mas não
a tal ponto que o metafórico (“Eu estou em duas mentes”, “Eu não sou o rapaz que fui
outrora”) se torne literal. Mais uma vez, tenha em mente que, apesar dessas interpretações
errôneas da realidade de tipo onírico, David era perfeitamente normal em outros aspectos.

Eu poderia acrescentar que a rainha da Inglaterra também se refere a si mesma na terceira
pessoa, mas hesitaria em atribuir isso a uma patologia.

Síndrome de Fregoli: Doutor, todo mundo se parece com a tia Cindy

Na síndrome de Fregoli, o paciente afirma que todo mundo se parece com uma pessoa
prototípica que ele conhece. Por exemplo, certa vez conheci um homem que dizia que todas as
pessoas se pareciam com sua tia Cindy. Talvez isso surja porque a via emocional 3 (bem como
ligações da via 2 com a amígdala) foi reforçada por doença. Isso poderia acontecer porque

repetidas saraivadas de sinais estão ativando acidentalmente a via 3, como na epilepsia; às
vezes isso é chamado de hiperexcitabilidade neural. O resultado é que todas as pessoas
parecem estranhamente familiares em vez de desconhecidas. Não está claro por que o paciente
deveria se prender a um único protótipo, mas talvez isso decorra do fato de que
“familiaridade difusa” não faz sentido. Por analogia, a ansiedade difusa do hipocondríaco
raramente flutua livremente por muito tempo, tendendo a se prender a um órgão ou doença
específica.

Autoconsciência

Antes, neste capítulo, escrevi que um self não consciente de si mesmo é um oximoro. Há, no
entanto, certos distúrbios que podem distorcer seriamente a autoconsciência de uma pessoa,
sejam levando pacientes a acreditar que estão mortos ou lhes inspirando a ilusão de que se
tornaram uma só coisa com Deus.

Síndrome de Cotard: Doutor, eu não existo

Se você fizer um levantamento e perguntar a pessoas – sejam elas neurocientistas ou místicos
orientais – qual é o aspecto mais intrigante do self, a resposta mais comum será
provavelmente a consciência que o self tem de si mesmo; ele pode contemplar sua própria
existência e (ai!) sua mortalidade. Nenhuma criatura não humana é capaz disso.

Com frequência visito Chennai, na Índia, durante o verão para dar conferências e ver
pacientes no Instituto de Neurologia em Mount Road. Um colega meu, dr. A.V. Santhanam,
costuma me convidar para dar conferências ali e chama minha atenção para casos
interessantes. Em uma noite especial, depois de dar uma conferência, encontrei o dr.
Santhanam à minha espera em minha sala com um paciente, um rapaz desgrenhado, de barba
por fazer, de trinta anos chamado Yusof Ali. Ele sofria de epilepsia desde os últimos anos da
adolescência. Tinha acessos periódicos de depressão, mas era difícil saber se isso estava
relacionado com suas crises epilépticas ou à excessiva leitura de Sartre e Heidegger, tão
comum entre adolescentes inteligentes. Ali me falou de seu profundo interesse por filosofia.

A estranheza do comportamento de Ali era óbvia para praticamente qualquer pessoa que o
tivesse conhecido muito antes de sua epilepsia ter sido diagnosticada. Sua mãe notara que
umas duas vezes por semana havia breves períodos em que ele ficava um tanto dissociado do
mundo, parecia experimentar um obscurecimento da consciência e começava a estalar os
lábios incessantemente e a assumir posturas contorcidas. Essa história clínica, junto com seu
EEG (eletroencefalograma, um registro de suas ondas cerebrais), nos levou a diagnosticar as
minicrises como uma forma de epilepsia chamada crises convulsivas parciais complexas.
Essas crises convulsivas, ao contrário das crises dramáticas do grande mal (que afetam o
corpo inteiro) que a maioria das pessoas associa à epilepsia, atingem sobretudo os lobos
temporais e produzem mudanças emocionais. Durante seus longos intervalos livres de crises,
Ali era perfeitamente lúcido e inteligente.

“O que o traz ao hospital?”, perguntei-lhe.

Ali continuou em silêncio, olhando-me atentamente por quase um minuto. Depois ele
cochichou lentamente: “Não há muita coisa que possa ser feita: sou um cadáver.”

“Ali, onde você está?”

“No Madras Medical College, acho eu. Antes eu era um paciente no Kilpauk.” (Kilpauk
era o único hospital psiquiátrico em Chennai.)

“Você está dizendo que está morto?”

“Sim. Eu não existo. Você poderia dizer que sou uma casca vazia. Às vezes me sinto como
um fantasma que existe num outro mundo.”

“Sr. Ali, você é obviamente um homem inteligente. Não é mentalmente insano. Você tem
descargas elétricas anormais em certas partes de seu cérebro que podem afetar a maneira
como pensa. Foi por isso que o transferiram do hospital psiquiátrico para cá. Há certas drogas
que são muito eficazes para controlar crises convulsivas.”

“Não sei o que você está dizendo. Você sabe que o mundo é ilusório, como diz o hindu. É
tudo maya [a palavra sânscrita para “ilusão”]. E se o mundo não existe, em que sentido eu
existo? Damos tudo por certo, mas isso simplesmente não é verdade.”

“Ali, o que você está dizendo? Está dizendo que pode não existir? Como explica que
esteja falando comigo neste exato momento?”

Ali pareceu confuso e uma lágrima começou a se formar em seu olho. “Bem, eu estou
morto e sou imortal ao mesmo tempo.”

Na mente de Ali, como nas mentes de muitos místicos “normais” sob os demais aspectos,
não há contradição essencial nessa afirmação. Por vezes me pergunto se esses pacientes com
epilepsia do lobo temporal têm acesso a outra dimensão da realidade, e entram num universo
paralelo por uma espécie de buraco de minhoca. Mas em geral não digo isso a meus colegas,
temendo que duvidem de minha sanidade.

Ali tinha um dos mais estranhos distúrbios em neuropsiquiatria: a síndrome de Cotard.
Seria muito fácil tirar a conclusão precipitada de que sua ilusão era resultado de extrema
depressão. Com muita frequência a depressão acompanha a síndrome de Cotard. No entanto, a
depressão sozinha não pode ser a causa do distúrbio. Por um lado, formas menos extremas de
despersonalização – em que o paciente se sente como uma “casca vazia”, mas, diferentemente
de um paciente de Cotard, conserva uma compreensão de sua doença – podem ocorrer na
completa ausência de depressão. Ao contrário, a maioria dos pacientes gravemente
deprimidos não sai por aí proclamando estar morta. Portanto, mais alguma coisa deve
acontecer na síndrome de Cotard.

O dr. Santhanam submeteu Ali a um regime da droga anticonvulsivante lamotrigine.

“Isto deve ajudá-lo a melhorar”, disse ele. “Vamos começar com uma dose pequena,
porque em alguns casos raros pacientes podem desenvolver uma erupção de pele muito
severa. Se você desenvolver essa erupção, pare o remédio imediatamente e venha nos ver.”

Ao longo dos meses seguintes, as crises de Ali desapareceram, e como um bônus, suas
oscilações de humor desapareceram e ele ficou menos deprimido. Apesar disso, mesmo três
anos depois ele continuava a sustentar que estava morto.14

O que estaria causando esse distúrbio kafkiano? Como observei antes, as vias 1 (incluindo
partes do lobo parietal inferior) e 3 são ambas ricas em neurônios-espelho. A primeira está

envolvida na inferência de intenções, e a última, em combinação com a ínsula, está envolvida
na empatia emocional. Você viu também como neurônios-espelho poderiam não só estar
envolvidos na modelagem do comportamento de outras pessoas – a visão convencional –, mas
também se voltar “para dentro” para inspecionar seus próprios estados mentais. Isso poderia
enriquecer a introspecção e a autoconsciência.

A explicação que proponho é pensar na síndrome de Cotard como uma forma extrema e
mais geral de síndrome de Capgras. Pessoas com síndrome de Cotard frequentemente perdem
o interesse por ver arte e ouvir música, talvez porque esses estímulos também deixam de
evocar emoções. Isso é o que poderíamos esperar se todas as vias sensoriais para a amígdala,
ou a maioria delas, estivessem totalmente cortadas (em contraposição à síndrome de Capgras,
em que apenas a área da “face” no giro fusiforme está desconectada da amígdala). Assim, para
um paciente de Cotard, todo o mundo sensorial, não apenas mamãe e papai, pareceriam
esvaziados de realidade – irreais, como num sonho. Se acrescentássemos a esse coquetel um
desarranjo das conexões recíprocas entre os neurônios-espelho e o sistema do lobo frontal, o
senso de identidade seria perdido também. Perca a si mesmo e perca o mundo – isso é o mais
perto de uma morte em vida que se pode conseguir. Não admira que depressão severa muitas
vezes, embora não sempre, acompanhe a síndrome de Cotard.

Observe que nesse quadro é fácil ver como uma forma menos extrema de síndrome de
Cotard poderia estar subjacente aos estados peculiares de perda de realidade (“O mundo
parece irreal como num sonho”) e despersonalização (“Não me sinto real”) vistos com
frequência na depressão clínica. Se pacientes deprimidos têm danos seletivos nos circuitos
que medeiam a empatia e a saliência de objetos externos, mas circuitos intactos para a
autorrepresentação, o resultado poderia ser a perda de realidade e um sentimento de alienação
do mundo. De maneira inversa, se o principal prejuízo for da autorrepresentação, com reações
normais ao mundo exterior e às pessoas, o resultado seria o sentimento de vacuidade interior
que caracteriza a despersonalização. Em suma, o sentimento de irrealidade é atribuído ou a si
mesmo ou ao mundo, dependendo do dano diferencial a essas funções estreitamente
associadas.

A extrema desconexão sensório-emocional e diminuição do self que estou propondo como
explicação para a síndrome de Cotard explicaria também a curiosa indiferença desses
pacientes à dor. Eles sentem dor como uma sensação, mas, como Mikhey (que conhecemos no
capítulo 1), não há nenhuma agonia. Como uma tentativa desesperada de restaurar a
capacidade de sentir alguma coisa – qualquer coisa! –, esses pacientes podem tentar infligir
dor a si mesmos para se sentir mais “ancorados” em seus corpos.

Isso explicaria também o achado paradoxal (não provado, mas sugestivo) de que alguns
pacientes severamente deprimidos cometem suicídio assim que começam a tomar
antidepressivos como o Prozac. Pode-se sustentar que em casos extremos de Cotard, o
suicídio seria redundante, já que o self já está “morto”; não há ninguém ali que possa ou deva
ser livrado de seu sofrimento. Por outro lado, uma droga antidepressiva pode restaurar apenas
o grau de autoconsciência suficiente para que o paciente reconheça que sua vida e seu mundo
são sem sentido; agora que importa que o mundo seja sem sentido, o suicídio pode parecer o
único meio de escape. Nesse esquema, a síndrome de Cotard é apotemnofilia em relação a
todo o self da pessoa, não apenas para um braço ou perna, e o suicídio é uma amputação bem-
sucedida.15










































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