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O Que o Cerebro Tem Para Contar - V.s. Ramachandran

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Published by São Braz, 2017-05-16 15:54:28

O Que o Cerebro Tem Para Contar

O Que o Cerebro Tem Para Contar - V.s. Ramachandran

contrações musculares faciais. Como observei em minhas palestras na série Reith Lectures da
rádio BBC, em 2003, intituladas “The Emerging Mind”, esse tipo de tradução entre mapas é
precisamente o que se supõe que neurônios-espelho façam, e se essa habilidade for inata, isso
é verdadeiramente assombroso. Vou chamar isso de a versão “sexy” da função dos neurônios-
espelho.

Algumas pessoas afirmam que a habilidade computacional complexa para a verdadeira
imitação – baseada em neurônios-espelho – só emerge mais tarde no desenvolvimento, ao
passo que a protrusão da língua e o primeiro sorriso são apenas reflexos fisicamente
conectados em resposta a simples “gatilhos” vindos da mãe, do mesmo modo que as garras de
um gato aparecem quando ele vê um cachorro. A única maneira de distinguir a explicação sexy
da comum seria ver se um bebê pode imitar um movimento não estereotipado que
provavelmente nunca encontrará na natureza, como um sorriso assimétrico, uma piscadela ou
uma distorção curiosa da boca. Isso não poderia ser feito por um simples reflexo fisicamente
conectado. O experimento decidiria a questão de uma vez por todas.

QUER OS NEURÔNIOS-ESPELHO SEJAM inatos ou adquiridos, examinemos agora com mais atenção
o que realmente fazem. Assim que foram relatados, muitas funções foram propostas, e eu
gostaria de me basear nessas primeiras especulações.2 Vamos fazer uma lista de suas
possíveis atribuições. Tenha em mente que eles podem ter se desenvolvido originalmente para
propósitos diversos dos aqui listados. Essas funções secundárias podem ser simplesmente um
bônus, mas isso não as torna em nada menos úteis.

Primeiro, e o mais óbvio, eles nos permitem imaginar as intenções de outra pessoa.
Quando você vê a mão de seu amigo Josh mover-se em direção à bola, seus próprios
neurônios apanhadores de bola começam a se excitar. Ao executar essa simulação virtual de
ser Josh, você tem a impressão imediata de que ele pretende agarrar a bola. Essa habilidade
de desenvolver uma teoria da mente pode existir nos grandes símios de forma rudimentar, mas
nós seres humanos somos excepcionalmente bons nela.

Segundo, além de nos permitir ver o mundo do ponto de vista visual de outra pessoa, os
neurônios-espelho podem ter se desenvolvido mais, permitindo-nos adotar o ponto de vista
conceitual da outra pessoa. Talvez não seja inteiramente por coincidência que usamos
metáforas como “Vejo o que você quer dizer” ou “Tente ver o meu ponto de vista”. A maneira
como esse passo mágico do ponto de vista literal para o conceitual ocorreu na evolução – se é
que de fato ocorreu – é de fundamental importância. Mas essa não é uma proposição fácil de
testar experimentalmente.

Como corolário para a adoção do ponto de vista do outro, você pode se ver como os
outros o veem – um ingrediente essencial da autoconsciência. Isso transparece na linguagem
comum na língua inglesa: quando falamos que alguém é “self-conscious”,e queremos dizer de
fato que ele é inibido, isto é, tem consciência de que outra pessoa está consciente dele. Mais
ou menos a mesma coisa pode ser dita em relação a uma palavra como “autocomiseração”.
Retornarei a essa ideia no capítulo final a respeito de consciência e doença mental. Ali
defenderei a ideia de que a consciência do outro e a consciência de si desenvolveram-se
conjuntamente, levando à reciprocidade eu-você que caracteriza o ser humano.

Uma função menos óbvia de neurônios-espelho é abstração – mais uma vez, algo em que

os seres humanos são especialmente bons. Isso é bem iluminado pelo experimento bouba-kiki,
discutido no capítulo 3 no contexto da sinestesia. Para reiterar, mais de 95% das pessoas
identificam a forma angulosa como “kiki” e a forma curvilínea como “bouba”. A explicação
que dei é que as inflexões agudas da forma angulosa imitam a inflexão do som ki-ki, para não
mencionar a súbita deflexão da língua do palato. As curvas suaves da forma bulbosa, por
outro lado, imitam o contorno buuuuuu-baaaaaa do som e a ondulação da língua no palato.
De maneira semelhante, o som chhhhhhh (como em “xereta”) é associado a uma linha
borrada, suja, ao passo que rrrrrrrr é associado a uma linha serrilhada e um ssssssss (como
em “assistente”) a um fino fio de seda – o que mostra que não é a mera similaridade da forma
angulosa com a letra k que produz o efeito, mas genuína integração transensorial. A ligação
entre o efeito bouba-kiki e neurônios-espelho pode não ser imediatamente evidente, mas há
uma similaridade fundamental. A principal computação feita por neurônios-espelho é
transformar um mapa em uma dimensão, como a aparência visual do movimento de outra
pessoa, em outra dimensão, como os mapas motores no cérebro do observador, que contêm
programas para movimentos musculares (inclusive movimentos da língua e dos lábios).

É exatamente isso que se passa no efeito bouba-kiki: nosso cérebro executa uma
impressionante proeza de abstração ao ligar seus mapas visuais e auditivos. Os dois inputs
são inteiramente dissimilares em todos os aspectos, exceto um – as propriedades abstratas de
angulosidade ou sinuosidade – e nosso cérebro se dirige para esse denominador comum muito
rapidamente quando somos solicitados a emparelhar os sons e as imagens. Chamo esse
processo de “abstração transmodal”. Essa habilidade de computar semelhanças a despeito de
diferenças superficiais pode ter aberto caminho para tipos mais complexos de abstração que
dão grande prazer à nossa espécie. Talvez os neurônios-espelho sejam o conduto
evolucionário que permitiu que isso acontecesse.

Por que uma habilidade aparentemente esotérica como a abstração transmodal evoluiu a
princípio? Como sugeri num capítulo anterior, ela pode ter emergido em primatas arbóreos
ancestrais para lhes permitir trepar em árvores e agarrar galhos. Os inputs visuais verticais de
galhos e ramos de árvore que atingiam o olho tinham de ser emparelhados com inputs
totalmente dissimilares provenientes de articulações e músculos e a percepção sentida pelo
corpo de sua localização no espaço – habilidade que teria favorecido o desenvolvimento tanto
de neurônios canônicos quanto de neurônios-espelho. Os reajustes requeridos para estabelecer
uma congruência entre os mapas sensorial e motor podem ter se baseado de início em
feedback, tanto no nível genético da espécie quanto no nível experiencial do indivíduo. Mas,
depois que as regras de congruência foram estabelecidas, a abstração transmodal passou a
poder ocorrer para novos inputs. Por exemplo, pegar uma forma visualmente percebida como
minúscula resultaria num movimento espontâneo de polegar e dedos indicadores quase
opostos, e se isso fosse imitado pelos lábios para produzir um orifício correspondentemente
diminuto (através do qual você sopra ar), você produziria sons (palavras) que dão a
impressão de pequenez (como “pequenino”, “miúdo”, ou em francês “un peu” e assim por
diante). Esses pequenos “sons” iriam por sua vez se realimentar através dos ouvidos para se
associar a formas pequeninas. (Pode ter sido assim, como veremos no capítulo 6, que as
primeiras palavras evolveram em nossos hominíneos ancestrais.) A tríplice ressonância
resultante entre visão, tato e audição pode ter se amplificado progressivamente como numa
câmara de eco, culminando na sofisticação plenamente desenvolvida da abstração

transensorial e de outros tipos mais complexos.

Se essa formulação estiver correta, alguns aspectos da função dos neurônios-espelho
podem de fato ser adquiridos por meio de aprendizado, com base num andaime geneticamente
especificado que só os seres humanos possuem. É claro que muitos macacos e mesmo
vertebrados inferiores podem ter neurônios-espelho, mas eles precisam desenvolver um
mínimo de sofisticação e de número de conexões com outras áreas cerebrais antes de poderem
se envolver nos tipos de abstração em que os seres humanos são bons.

Que partes do cérebro estão envolvidas nessas abstrações? Já insinuei (sobre a linguagem)
que o lobo parietal inferior (LPI) pode ter desempenhado um papel crucial, mas façamos um
exame mais atento. Em mamíferos inferiores o LPI não é muito grande, mas torna-se mais
visível em primatas. Mesmo entre eles é enorme de maneira desproporcional nos grandes
símios, chegando ao clímax em seres humanos. Por fim, somente nas pessoas vemos uma
maior porção desse lobo subdividir-se adicionalmente em dois, o giro angular e o giro
supramarginal, sugerindo que algo importante estava se passando nessa região do cérebro
durante a evolução humana. Situado na encruzilhada entre visão (lobos occipitais), tato (lobos
parietais) e audição (lobos temporais), o LPI está estrategicamente localizado para receber
informação de todas as modalidades sensoriais. Num nível fundamental, a abstração
transmodal envolve a dissolução de barreiras para criar representações livres de modalidade
(como exemplificado pelo efeito bouba-kiki). Tivemos uma evidência disso quando, ao testar
três pacientes que haviam sofrido danos no giro angular esquerdo, constatamos um
desempenho fraco no teste bouba-kiki. Como já observei, essa habilidade para mapear uma
dimensão em outra é uma das coisas que supomos pertencer aos neurônios-espelho, e não por
coincidência esses neurônios são abundantes nos locais ao redor do LPI. O fato de essa região
em seres humanos ser desproporcionalmente grande e diferenciada sugere um salto
evolucionário.

A parte superior do LPI, o giro supramarginal, é mais uma estrutura que só os seres
humanos possuem. Um dano na área leva ao distúrbio chamado apraxia ideomotora: uma
incapacidade de efetuar ações especializadas em resposta às ordens do médico. Solicitado a
fingir que está penteando o cabelo, um apráxico levantará o braço, olhará para ele e o deixará
cair em volta da cabeça. Solicitado a imitar a ação de martelar um prego, ele fechará o punho
e o baterá sobre a mesa. Isso acontece mesmo que sua mão não esteja paralisada (ele se
coçará espontaneamente) e ele saiba o que significa “pentear” (“Significa que estou usando um
pente para arrumar meu cabelo, doutor”). O que lhe falta é a capacidade de evocar uma
imagem mental da ação requerida – nesse caso, pentear-se –, o que deve preceder e orquestrar
a execução real da ação. Essas são funções que associaríamos normalmente a neurônios-
espelho, e de fato eles estão presentes no giro supramarginal. Se nossas especulações
estiverem na pista certa, seria de esperar que pacientes com apraxia fossem muito ruins para
compreender e imitar os movimentos de outras pessoas. Embora tenhamos visto alguns
indícios disso, a matéria exige investigação cuidadosa.

Perguntamo-nos também sobre a origem das metáforas. Depois que o mecanismo de
abstração transmodal foi estabelecido entre visão e tato no LPI (originalmente para agarrar
galhos), esse mecanismo pode ter aberto caminho para as metáforas transensoriais (“crítica
cortante”, “camisa berrante”) e por fim para metáforas em geral. Isso é corroborado por
nossas recentes observações de que pacientes com lesões no giro angular têm dificuldade não

só com bouba-kiki, mas também para compreender provérbios simples, interpretando-os de
maneira literal, em vez de metafórica. Obviamente essas observações precisam ser
confirmadas numa amostra maior de pacientes. É fácil imaginar como a abstração transmodal
poderia funcionar para bouba-kiki, mas como podemos explicar metáforas que combinam
conceitos muito abstratos como “É o oriente, e Julieta é o sol”, dado o número aparentemente
infinito desses conceitos no cérebro? A resposta surpreendente a essa questão é que o número
de conceitos não é infinito, como tampouco o número de palavras que os representam. Para
todos os efeitos, a maioria dos falantes da língua inglesa tem um vocabulário de cerca de 10
mil palavras (embora você possa se virar com muito menos se for um surfista). Pode haver
somente alguns mapeamentos que fazem sentido. Como salientou para mim o eminente cientista
cognitivo e polímata Jaron Lanier, Julieta pode ser o sol, mas faz pouco sentido dizer que ela é
uma pedra ou uma caixa de suco de laranja. Tenha em mente que as metáforas que são
repetidas e se tornam imortais são aquelas apropriadas, evocativas. Em poesia de má
qualidade as metáforas comicamente ruins abundam.

Os neurônios-espelho desempenham mais um papel importante na singularidade da
condição humana: permitem-nos imitar. Você já sabe da imitação da protrusão da língua em
bebês, mas depois que atingimos certa idade, podemos imitar habilidades motoras muito
complexas, como o movimento de mão no beisebol ou um gesto de positivo com o polegar.
Nenhum macaco pode se equiparar a nossos talentos imitativos. No entanto, vale registrar que
o símio que mais se aproxima de nós nesse aspecto não é nosso primo mais próximo, o
chimpanzé, mas o orangotango. Os orangotangos podem até destrancar portas ou usar um remo
para impelir um barco, depois de ter visto uma pessoa fazê-lo. Como também são os mais
arbóreos e preênseis dos grandes símios, é possível que tenham o cérebro repleto de
neurônios-espelho para permitir a seus bebês observar a mamãe para aprender como trepar
em árvores sem os castigos do ensaio e erro. Se por algum milagre um bolsão isolado de
orangotangos em Bornéu sobreviver à destruição ambiental que o Homo Sapiens parece
determinado a promover, é bem possível que esses dóceis macacos venham a herdar a terra.

Imitar pode não parecer uma habilidade importante – afinal, “macaquear” alguém é um
termo depreciativo, o que é irônico uma vez que em sua maioria os macacos não são de fato
muito bons em imitação. Mas, como argumentei anteriormente, é possível que a imitação tenha
sido o passo-chave na evolução hominínea, resultando em nossa capacidade de transmitir
conhecimento por meio de exemplo. Uma vez dado esse passo, nossa espécie fez subitamente
a transição da evolução darwiniana, baseada em genes através de seleção natural – que pode
demandar milhões de anos –, para a evolução cultural. Uma habilidade complexa inicialmente
adquirida por meio de tentativa e erro (ou por acidente, como quando algum ancestral
hominídeo viu pela primeira vez um arbusto pegar fogo por causa de lava) poderia ser
rapidamente transmitida a todos os membros de uma tribo, jovens e velhos. Outros
pesquisadores, entre os quais Merlin Donald, defenderam a mesma ideia, embora não em
relação a neurônios-espelho.3

ESSA LIBERTAÇÃO DAS RESTRIÇÕES de uma evolução darwiniana estritamente baseada em genes
foi um salto gigantesco na evolução humana, cujo um dos grandes enigmas reside no que
chamamos antes de “grande salto adiante”, a emergência relativamente súbita, entre 60 mil e

100 mil anos atrás, de vários traços que consideramos unicamente humanos: fogo, arte,
habitações construídas, adornos corporais, ferramentas com vários componentes e um uso
mais complexo da linguagem. Os antropólogos muitas vezes supõem que esse desenvolvimento
explosivo de sofisticação cultural deve ter resultado de um conjunto de novas mutações que
teriam afetado o cérebro de maneiras igualmente complexas, mas isso não explica por que
todas essas maravilhosas habilidades deveriam ter aparecido mais ou menos ao mesmo tempo.

Uma possível explicação é que o chamado grande salto é só uma ilusão estatística. A
chegada desses traços pode de fato ter se espalhado por um período de tempo muito mais
longo do que as evidências físicas indicam. Certamente, porém, os traços não têm de emergir
exatamente ao mesmo tempo para a questão ainda ser válida. Mesmo espalhados, 30 mil anos
são só um piscar de olhos, comparados aos milhões de anos das pequenas e graduais
mudanças comportamentais que ocorreram antes disso. Uma segunda possibilidade é que as
novas mutações cerebrais tenham simplesmente aumentado nossa inteligência geral, a
capacidade de raciocínio abstrato tal como medida por testes de QI. Essa ideia está na pista
certa, mas não nos diz muito – mesmo deixando de lado a crítica muito legítima de que a
inteligência é uma habilidade complexa, multifacetada, que não pode ser significativamente
reduzida a uma única habilidade geral.

Isso deixa uma terceira possibilidade, a qual nos leva de volta aos neurônios-espelho.
Sugiro que houve uma mudança genética no cérebro, mas ironicamente essa mudança nos
libertou da genética, aumentando nossa capacidade de aprender uns com os outros. Essa
habilidade única liberou nosso cérebro de seus grilhões darwinianos, permitindo a rápida
difusão de invenções singulares – como fazer colares com conchas de cauri, usar fogo,
construir ferramentas e abrigo, ou de fato até inventar palavras novas. Após 6 bilhões de anos
de evolução, a cultura finalmente decolou, e com ela as sementes da civilização foram
plantadas. A vantagem desse argumento é que não precisamos postular mutações separadas
ocorrendo quase simultaneamente para explicar a coemergência de nossas muitas e únicas
habilidades mentais. Em vez disso, a maior sofisticação de um único mecanismo – como a
imitação e a dedução de intenções – poderia explicar a enorme discrepância comportamental
entre nós e os macacos.

Vou ilustrar isso com uma analogia. Imagine um naturalista marciano observando a
evolução humana ao longo dos últimos 500 mil anos. Sem dúvida ele ficaria intrigado com o
grande salto adiante ocorrido há 50 mil anos, mas ficaria ainda mais intrigado com um
segundo grande salto ocorrido entre 500 a.C. e o presente. Graças a certas inovações, como
aquelas feitas na matemática – em particular, o zero, valor posicional e símbolos numéricos
(na Índia no primeiro milênio a.C.) – e na geometria (na Grécia durante o mesmo período), e,
mais recentemente, na ciência experimental (por Galileu), o comportamento de uma pessoa
civilizada moderna é vastamente mais complexo que o de seres humanos 10 mil a 50 mil anos
atrás.

Esse segundo salto adiante na cultura foi ainda mais espetacular que o primeiro. Há uma
maior discrepância comportamental entre pré- e pós- 500 a.C. que entre, digamos, Homo
erectus e Homo sapiens primitivo. Nosso cientista marciano poderia concluir que um novo
conjunto de mutações tornou isso possível. No entanto, dada a escala de tempo, isso
simplesmente não é possível. A revolução originou-se de um conjunto de fatores puramente
ambientais que ocorreram de maneira fortuita ao mesmo tempo. (Não esqueçamos a invenção

































































incorporam significado é um dos maiores mistérios não resolvidos da neurociência. Mas se
você admitir que a abstração é um passo importante na gênese do significado, nosso exemplo
bouba-kiki talvez possa mais uma vez fornecer a pista. Como já foi observado, o som kiki e o
desenho anguloso parecem nada ter em comum. Um é um padrão unidimensional, que varia no
tempo sobre os receptores de som em nosso ouvido, ao passo que o outro é um padrão
bidimensional de luz que chega à nossa retina num só instante. No entanto, nosso cérebro não
tem dificuldade em abstrair a propriedade da angulosidade de ambos os sinais. Como vimos,
há fortes indícios de que o giro angular está envolvido nessa notável capacidade que
chamamos de abstração transmodal.

FIGURA 6.2 Representação esquemática da ressonância entre áreas cerebrais que podem ter acelerado a evolução da
protolinguagem. Abreviações: B, área de Broca (para fala e estrutura sintática). A, córtex auditivo (audição). W, área de
Wernicke, para compreensão da linguagem (semântica). GA, giro angular para abstração transmodal. M, área da mão do córtex
motor, que envia comandos motores para a mão (compare com o mapa cortical sensorial de Penfield na figura 1.2). F, área da
face do córtex motor (que envia mensagens de comando para os músculos faciais, inclusive lábios e língua). IT, córtex
inferotemporal/área fusiforme, que representa formas visuais. As setas representam interações nos dois sentidos que podem ter
emergido na evolução humana: 1, conexões entre a área fusiforme (processamento visual) e córtex auditivo medeiam o efeito
bouba-kiki. A abstração transmodal exigida para isso provavelmente requer passagem inicial pelo giro angular. 2, interações
entre áreas da linguagem posteriores (inclusive a área de Wernicke) e áreas motoras na área de Broca ou perto dela. Essas
conexões (o fascículo arqueado) estão envolvidas no mapeamento através de domínios entre contornos sonoros e mapas
motores (mediados em parte por neurônios com propriedades semelhantes às dos neurônios-espelho) na área de Broca. 3,
mapeamentos corticais motor-para-motor (sincinesia) causados por ligações entre gestos manuais e movimentos de língua, lábio
e boca no mapa motor de Penfield. Por exemplo, os gestos orais para “pequenino”, “pouco”, “miúdo” e a expressão francesa

“un peu” imitam sincineticamente o pequeno gesto de pinça feito com a oposição do polegar e do dedo indicador (em
contraposição a “grande”, ou “enorme). De maneira semelhante, a projeção de nossos lábios num beiço para dizer “you” ou

(em francês) “vous” imita o apontar para fora.

Houve um desenvolvimento acelerado no LPI esquerdo na evolução primata, culminando
nos seres humanos. Além disso, nas pessoas (e somente nelas), a parte da frente do lobo
dividiu-se em dois giros chamados giro supramarginal e giro angular. Não é preciso ter uma
profunda acuidade para sugerir, portanto, que o LPI e sua subsequente divisão devem ter

desempenhado um papel decisivo na emergência de funções exclusivamente humanas. Essas
funções, sugiro, incluem tipos de abstração de alto nível.

O LPI (incluindo o giro angular) – localizado de modo estratégico entre as partes do
cérebro associadas ao tato, à visão e à audição – evoluiu originalmente para abstração
transmodal. Depois que isso aconteceu, porém, esse tipo de abstração serviu como uma
exaptação para abstração de nível mais elevado do tipo de que nós, seres humanos, nos
orgulhamos. E como temos dois giros angulares (um em cada hemisfério), eles podem ter
desenvolvido diferentes estilos de abstração: o direito para metáforas visoespaciais e
baseadas no corpo, o esquerdo para metáforas mais baseadas na linguagem, inclusive
trocadilhos. Essa estrutura evolucionária pode dar à neurociência uma nítida vantagem sobre a
psicologia cognitiva clássica e a linguística porque nos permite iniciar um programa
inteiramente novo de pesquisa em relação à representação da linguagem e ao pensamento no
cérebro.

A parte superior do LPI, o giro supramarginal, também presente apenas nos seres humanos,
está diretamente envolvida na produção, compreensão e imitação de habilidades complexas.
Mais uma vez, essas habilidades estão especialmente bem desenvolvidas em nós, comparados
aos grandes símios. Quando o giro supramarginal esquerdo é danificado, o resultado é
apraxia, que é um distúrbio fascinante. Um paciente com apraxia é mentalmente normal na
maioria dos aspectos, inclusive na capacidade de compreender e produzir linguagem. No
entanto, quando lhe pedimos para imitar uma ação simples – “finja que você está martelando
um prego” – ele fechará a mão em punho e a baterá na mesa, em vez de fingir que segura um
cabo, como você ou eu faríamos. Se lhe pedem para fingir que está penteando o cabelo, pode
bater no cabelo com a palma da mão ou sacudir os dedos no cabelo, em vez de “segurar” e
mover um pente imaginário ao longo dos fios. Se solicitado a fingir que está dando adeus,
pode ficar olhando para a própria mão atentamente, tentando descobrir o que fazer ou agitá-la
de um lado para outro perto do rosto. Mas se lhe perguntarem “Que significa ‘dar adeus’?” ele
pode responder, “Bem, é o que você faz quando está se despedindo de alguém”, deixando
óbvio que compreende com clareza, num nível conceitual, o que se espera dele. Além disso,
suas mãos não estão paralisadas nem são desajeitadas: ele pode mover os dedos individuais
de maneira tão graciosa e independente quanto qualquer um de nós. O que lhe falta é a
capacidade de evocar uma imagem interna dinâmica, vibrante, da ação requerida, que possa
ser usada para guiar a orquestração de contrações musculares para imitar a ação. Como não é
de surpreender, pôr um martelo real em suas mãos pode (como faz em alguns pacientes) levar
à performance exata, pois ela não requer que ele se baseie numa imagem interna do martelo.

Três pontos adicionais a respeito desses pacientes. Primeiro, eles não são capazes de
julgar se uma terceira pessoa está executando a ação requerida de maneira correta ou não,
lembrando-nos que seu problema não reside nem habilidade motora nem na percepção, mas na
ligação das duas coisas. Segundo, alguns pacientes com apraxia têm dificuldade em imitar
gestos novos, realizados pelo médico que os examina. Terceiro, e o mais surpreendente, eles
não se dão conta de maneira alguma de que eles próprios estão imitando incorretamente; não
há nenhum sinal de frustração. Todas essas capacidades ausentes parecem lembrar de maneira
irresistível as capacidades tradicionalmente atribuídas a neurônios-espelho. É certo que não
pode ser uma coincidência que o LPI em macacos seja rico em neurônios-espelho. Baseado
nesse raciocínio, meu colega de pós-doutorado Paul McGeoch e eu sugerimos em 2007 que a


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