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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Expropriação e resistência:
produção de cultura em condições de acumulação
primitiva
Larissa Costa Murad
2011
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LARISSA COSTA MURAD
Expropriação e resistência:
produção de cultura em condições de acumulação
primitiva
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação da Escola de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em Serviço Social
Orientador: Marildo Menegat
RIO DE JANEIRO
Junho de 2011
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Agradecimentos
À minha mãe Helena Murad, verdadeira flor de aço que ilumina minha vida.
Ao meu companheiro Bruno Franco, pelo amor, carinho, amizade e pela
paciência com a qual me acompanhou no período de produção dessa dissertação.
Ao amigo querido e orientador Marildo Menegat, por tudo que me ensinou,
pela pessoa maravilhosa que você é, pela atenção e pela disponibilidade em sempre
me auxiliar...
À minha madrinha Rosana Turlão, pelo apoio e pela força. À minha sogra
Wanda Suely e minha cunhada Claudia que me recebem em suas casas e me
ajudam sempre, dentro de suas possibilidades.
Aos meus amigos “de moradia”: Camilas, Daiana, Monique, Marina, Natalia,
Eliana, Federico, Juan Pablo, Maria Helena... Pelas inúmeras conversas noturnas,
pelos comes e bebes e por dividirem suas vidas e seus computadores...
À Patrícia, Naiara, Luciana e ao Rodrigo Barbosa, amigos de sempre.
À Juju, Sil, Sabrina, Julia, Mariela, Javier, Claudia, Inês, Gustavo, Ricardo,
Sheilinha, Manu, Paula, Nikita, Celeste e todas as amizades sinceras feitas na
graduação e na pós-graduação.
Aos meus estagiários dos últimos dois anos, com os quais aprendi muito.
Aos professores Maria das Dores, Fátima Cabral, Andréa Moraes, Patricia
Farias e José Maria Gómez, em especial.
Aos companheiros do MST por terem cedido material indispensável à
confecção desse trabalho e pelo prazer da convivência.
Aos funcionários da Escola de Serviço Social que facilitam nossas vidas,
principalmente Luiza e Ercyr. Ao Henrique, por ter facilitado minha formação ao
“pendurar” minhas contas.
Ao CNPq, por ter me concedido uma bolsa de estudos sem a qual minha
formação não seria possível. E a todos os que contribuíram, mesmo que
indiretamente, para minha formação e para a realização dessa dissertação.
Sem vocês o mundo não teria cor. Sintam-se abraçados...
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Cidadão não é aquele que vive em sociedade é aquele que a transforma!
(Augusto Boal)
A morada do homem é o horizonte.
(Ditado árabe)
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Resumo
O presente trabalho versa sobre a produção de cultura e a necessidade de
resistência a partir da análise da formação social brasileira. Partimos do pressuposto
de que a acumulação primitiva tem sido estruturante na constituição do Brasil
enquanto país de capitalismo periférico. Nesse sentido, o processo de colonização
possui um sentido fundante, o qual aponta para nossas origens em sua relação com
o desenvolvimento do capitalismo mundial. Analisamos o sentido da colonização e o
conceito de acumulação primitiva a partir da dinâmica da expropriação e dos sujeitos
forjados nesse processo. Observamos as transformações na produção de cultura no
bojo do processo de urbanização e modernização do país e como o elemento de
resistência se coloca nesse momento a partir da impossibilidade do Estado controlar
e normatizar por completo as manifestações culturais populares. Com o
recrudescimento da indústria cultural no contexto da modernização conservadora a
produção da vida pelas classes pobres começa a perder espaço enquanto cultura
espontânea para a cultura industrializada. Indicamos então que a ditadura civil-militar
revela a atualidade do sentido da colonização, além de colocar as bases para a
consolidação da indústria cultural. Por fim, observamos a experiência do Coletivo de
Cultura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e apontamos a
potencialidade contida nas lutas sociais que colocam a recuperação da possibilidade
de produzir cultura em consonância com a necessidade de produção da vida para
além dos limites de valorização do capital, no contexto da redemocratização seguida
pelo agravamento das formas de regressão social.
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Abstract
The present work deals with the production of culture and the need for resistance
from the analysis of social formation brasileira. Based on the supposition that the
primitive accumulation has been structuring the constitution of Brazil as a country of
peripheral capitalism. In this sense, the process of colonization has a sense
foundational, which points to our origins in their relationship with the development of
world capitalism. We Look at the direction of the colonization and the concept of
primitive accumulation from the dynamic of expropriation and the subjects forged in
this process. We observed the changes in the production of culture in the bulge of
the process of urbanization and modernization of the country and as an element of
resistance arises in that time from the impossibility of the State control and
standardize the cultural manifestations popular. With the resurgence of the cultural
industry in the context of the modernisation conservative to the production of life by
poor classes begins to lose space while culture spontaneously for culture
industrialized. We have identified so that the dictatorship civil-military shows the
relevance of the sense of the colonization, in addition to putting the bases for the
consolidation of the cultural industry. Finally, we look at the experience of the
Collective Culture of the Movement of Landless Rural Workers and we have
indicated the potential contained in social struggles that put the recovery of the
possibility of producing culture in line with the need for the production of life beyond
the limits of recovery of the capital, in the context of democratization followed by
worsening of the kinds of social regression.
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Sumário
1 INTRODUÇÃO............................................................................................................8
2 FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA: CONTINGÊNCIAS E PERMANÊNCIAS...........................14
2.1 ACUMULAÇÃO PRIMITIVA COMO “SENTIDO DA COLONIZAÇÃO”.....................................14
2.1.1 Caráter estrutural da acumulação primitiva no Brasil......................................19
2.1.2 Legados da colonização..................................................................................25
2.2 O INVÓLUCRO CIVILIZADOR QUE CONTÉM A BARBÁRIE...............................................37
2.3 EXPROPRIAÇÃO ORIGINÁRIA E PRODUÇÃO DE CULTURA............................................48
2.4 INDEPENDENTES E LIVRES, PORÉM NEM TANTO........................................................59
3 CONSIDERAÇÕES SOBRE OS ATROPELOS DA MODERNIZAÇÃO.....................................74
3.1 DA UNIDADE DOS OPOSTOS...................................................................................74
3.2 DA INDUSTRIALIZAÇÃO DA CULTURA.......................................................................88
3.3 DA PERSISTÊNCIA DAS RUÍNAS EM UM PAÍS EM CONSTRUÇÃO..................................99
3.3.1 Alguns precedentes no campo.....................................................................103
3.3.2 Sobreveio o golpe.........................................................................................108
4 CULTURA EM MOVIMENTO: A EXPERIÊNCIA DO MST................................................117
4.1 SOCIABILIDADE E PRODUÇÃO DE CULTURA............................................................122
4.2 CULTURA NA PERSPECTIVA DO MATERIALISMO HISTÓRICO......................................127
4.3 O COLETIVO NACIONAL DE CULTURA DO MST......................................................139
4.3.1CULTURA E FORMAÇÃO.....................................................................................147
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................161
REFERÊNCIAS..........................................................................................................164
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1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho se constitui em um desdobramento do trabalho
monográfico intitulado “Centros Populares de Cultura: uma experiência na
contramão da mercantilização da vida”, apresentado em 2008 na Escola de Serviço
Social da UFRJ como conclusão do curso de graduação. Neste, abordamos
questões referentes à relação cultura e movimentos sociais no Brasil na década de
1960 a partir da experiência dos CPC’s da UNE, bem como a interrupção dos
mesmos pela Ditadura Civil-Militar, além de uma breve digressão acerca da indústria
cultural.
Ao produzir a monografia, abordei os CPC’s como expressão artístico-cultural
de um projeto popular para o Brasil, o qual se delineava no período anterior ao
Golpe de 1964. Nesse sentido, a ditadura civil-militar foi analisada como uma brusca
interrupção do processo que se gestava, o qual colocava no horizonte do país a
possibilidade de uma revolução popular democrática.
Os vinte anos de ditadura realizaram a modernização conservadora, criando
condições inclusive para a consolidação da indústria cultural. Nesta lógica, a
mercantilização da cultura se impõe, representando a negação dos princípios que
pautavam a produção de cultura no momento anterior a 1964, quando se iniciava a
construção de uma “ponte” entre intelectuais de esquerda e as massas.
Ao longo do processo de produção da monografia, questões pertinentes à
temática adotada (movimentos sociais e cultura) ficaram pendentes, visto que a
própria forma do trabalho de conclusão de curso não permite esgotá-las; dentre
estas a conceituação de cultura popular e a análise do cenário do Brasil
contemporâneo no que tange a movimentos sociais e produção de cultura. Limitamo-
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nos a estudar a relação movimentos sociais e cultura no Brasil na década de 1960 e
a conceituar a indústria cultural enquanto parte fundamental do processo de
mercantilização da vida.
Inicialmente, meu intento era retomar na dissertação algumas das questões
que ficaram pendentes visando analisar a relação movimentos sociais e cultura no
Brasil contemporâneo, no contexto de afirmação da indústria cultural, a partir da
leitura do Coletivo de Cultura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST). Porém, ao longo da pesquisa acabei pegando um “desvio de rota” ao
perceber a relevância da dinâmica da acumulação primitiva como permanente para
pensar a produção de cultura no Brasil.
Durante esse percurso, mudei o foco inicial, optando enfim por deter minhas
forças na análise da colonização do Brasil como parte da acumulação primitiva. O
sentido da colonização (PRADO JR., 1957) como chave analítica; a leitura da
barbárie como elemento constitutivo da civilização burguesa (MENEGAT, 2010;
2008; 2006); bem como o entendimento da continuidade da expropriação e da
dominação em novas formas (ARANTES, 2007), constituem alguns elementos que
pavimentaram nosso caminho, possibilitando a apreensão da acumulação primitiva
como processo contínuo e estruturante na formação do Brasil enquanto país de
capitalismo periférico, logo, também de sua cultura.
A produção da cultura popular neste cenário, entendida em relação direta com
a produção da vida (WILLIAMS, 1979; 1992; 2007), se coloca historicamente
enquanto necessidade de resistência dos povos oprimidos à dominação e à
sociabilidade dominante, ao mesmo tempo em que as condições desfavoráveis para
a organização de uma resistência consciente limitam esta necessidade, por vezes, a
reação espontânea e a formas diversas de ressentimento. A potencialidade contida
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na reação popular, enquanto forma de produzir uma cultura que negue a
sociabilidade dominante, ao ser frustrada, impedida de se realizar, recoloca a
afirmação segundo a qual a cultura dominante é a cultura da classe dominante.
Objetivando examinar essas questões iniciamos a dissertação com um
capítulo sobre a formação social brasileira, onde abordamos o sentido da
colonização delineado por Caio Prado Jr. (1957), o qual aponta para as nossas
origens em sua relação com o desenvolvimento do capitalismo mundial.
Trabalhamos então o conceito de acumulação primitiva a partir da dinâmica da
expropriação e dos sujeitos forjados nesse processo, no contexto do
desenvolvimento do Brasil enquanto periferia do capitalismo.
Ainda no capítulo 1, traçamos nosso entendimento do conceito de barbárie
tendo em vista a pertinência de elaborar a acumulação primitiva em sua forma mais
palpável. Analisamos então a barbárie como elemento constitutivo da sociabilidade
produzida nos marcos da civilização burguesa; na periferia do capitalismo, a barbárie
perpetrada pelo colonizador expõe o caráter regressivo vicejante na sociedade
burguesa, na qual o capital se autonomiza e subjuga os homens a partir de suas
necessidades.
Finalizamos o capítulo apontando para a ausência da participação política das
massas geradas pelo processo de expropriação originário em momentos como a
independência e a abolição da escravidão; ausência que nos caracteriza em nossa
construção política como nação, além de expressar a importância da produção da
cultura popular, não oficial, como forma de representação dessas massas
expropriadas, em um contexto no qual o cenário cultural e político era ressignificado
devido a “influências externas”.
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No segundo capítulo consideramos os atropelos da modernização e os
processos que a acompanham de industrialização e urbanização. Principalmente a
partir da década de 1930, a produção de cultura acompanha tendencialmente as
transformações consequentes da urbanização, corroborando a afirmação que coloca
a necessidade de novas formas perante novos conteúdos (TINHORÃO, 2001). O
elemento de resistência se coloca nesse momento como impossibilidade do Estado
controlar e normatizar por completo as manifestações culturais populares, não
institucionalizadas.
Porém nessa época, mesmo com a indústria cultural sendo ainda
extremamente incipiente, já se inicia a tendência à industrialização da cultura. Com o
aprofundamento da divisão do trabalho e da industrialização da cultura, possuir o
domínio da tecnologia passa a ser relevante também na produção de cultura,
restringindo a cultura popular como expressão criativa a partir da necessidade de
domínio da técnica e dos meios de produção da mesma.
A caracterização apresentada no capítulo 2 sinaliza então a passagem do
país ao momento de industrialização da cultura decorrente da forma assumida pelo
processo de modernização. Nessa dinâmica a produção da vida pelas classes
pobres começa a perder espaço enquanto cultura espontânea para a cultura
industrializada. O recrudescimento do domínio da mercadoria começa a se espraiar
para o tempo livre dos trabalhadores, tornando o espaço de arbítrio criativo cada vez
menor. As próprias manifestações consideradas populares, ou seja, não
institucionais, são crescentemente reproduzidas e vendidas por uma indústria que
explora o caráter popular como forma de atingir a uma massa cada vez maior de
consumidores.
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Encerramos o segundo capítulo com a caracterização da ditadura civil-militar
enquanto momento no qual houve o recrudescimento da indústria cultural no país e
a interrupção brusca do germinal cenário cultural e político progressista que então se
desenhava. As possibilidades então colocadas de organização consciente das
massas e de produção de arte e cultura para além das necessidades mercantis –
expressas nas Ligas Camponesas e nos CPC’s, dentre outros movimentos – são
inviabilizadas perante as condições de desenvolvimento e modernização postas pelo
Golpe.
O momento do Golpe Militar revela a atualidade do sentido da colonização,
tendo em vista seu caráter de atender aos interesses externos e de segmentos da
classe dominante nacional, os quais se forjaram no próprio processo que vai da
colonização ao auge da industrialização/ modernização. Com a modernização
conservadora, as marcas periféricas continuaram gritantes enquanto constitutivas da
nação e a participação popular nos processos decisórios (que estava sendo
vingada) foi silenciada.
Por fim, no capítulo 3 observamos a experiência do MST, especificamente do
Coletivo de Cultura. A partir da noção de cultura desenvolvida na perspectiva do
materialismo histórico por Raymond Williams, apontamos a potencialidade contida
nas lutas sociais que colocam a recuperação da possibilidade de produzir cultura em
consonância com a necessidade de produção da vida para além dos limites de
valorização do capital, no contexto da redemocratização seguida pelo agravamento
das formas de regressão social.
No nosso entendimento, o MST recoloca o questionamento do processo de
construção do Brasil como nação em sua práxis, recuperando a necessidade de
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resistência que pautou diversas lutas históricas e marcou a cultura popular brasileira
em suas expressões mais originais.
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2 FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA: CONTINGÊNCIAS E PERMANÊNCIAS
2.1 ACUMULAÇÃO PRIMITIVA COMO “SENTIDO DA COLONIZAÇÃO”
Arcaísmos como a permanência e o recrudescimento da questão agrária
podem ser remetidos à forma pela qual o Brasil foi construído enquanto nação de
capitalismo moderno-periférico. Essa construção tem na colonização seu momento
germinal. Segundo Caio Prado Jr. (1957), há na colonização um sentido que precisa
ser apreendido, tendo em vista ser este um elemento constitutivo da nossa formação
social. Esse sentido apontado pelo autor é o que faz com que surja nos trópicos “um
tipo de sociedade inteiramente original” (PRADO JR., 1957:25).
Caio Prado Jr. trabalha o sentido da colonização a partir da proposição de
que a colonização e principalmente o povoamento do Brasil foram frutos de
contingências surgidas com o advento das grandes navegações e das próprias
condições nas quais se encontravam alguns países europeus. Nesse sentido, a
construção do Brasil carrega como marca de origem o caráter de empresa comercial
complexa, voltada para as necessidades externas, ou seja, explorada em função do
comércio europeu. Em outras palavras, nossas origens estiveram desde então
ligadas umbilicalmente ao capitalismo.
Tendo como pressuposto que o Brasil é uma das resultantes desse processo,
o qual envolve os trópicos, o autor entende que esse sentido da colonização, esse
caráter mercantil-externo, marca toda a evolução colonial como um precedente que
dita nossa peculiar formação econômica e social:
se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos
constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais
tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o
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comércio europeu. Nada mais que isto. É com tal objetivo, objetivo exterior,
voltado para fora do país e sem atenção e considerações que não fossem o
interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia
brasileiras (PRADO JR., 1957:25, 26).
Podemos entender a proposição do autor de analisarmos a colonização como
instrumento no processo de acumulação primitiva europeu. Marcado pelo uso de
mão-de-obra escrava desenvolve-se no Brasil uma formação essencialmente
mercantil, porém, voltada para interesses e necessidades externos. E controlada
politicamente pelos colonos brancos, os quais se tornaram grandes proprietários de
terra durante o processo de expropriação característico da acumulação primitiva.
O capitalismo europeu se locupletou historicamente à custa da rapinagem e
da espoliação de outros povos, principalmente pela instituição da propriedade
privada como regra, a qual se originou a partir de um violento processo interno de
expropriação. Processo analisado por Marx no capítulo XXIV d’O Capital intitulado “A
assim chamada acumulação primitiva”, onde o autor expõe a desapropriação dos
meios de subsistência do camponês como origem da criação tanto do capitalista,
enquanto grande proprietário fundiário, quanto do trabalhador “livre”.
O que faz época na história da acumulação primitiva são todos os
revolucionamentos que servem de alavanca à classe capitalista em
formação; sobretudo, porém, todos os momentos em que grandes massas
humanas são arrancadas súbita e violentamente de seus meios de
subsistência e lançadas no mercado de trabalho como proletários livres
como os pássaros. A expropriação da base fundiária do produtor rural, do
camponês, forma a base de todo o processo. Sua história assume coloridos
diferentes nos diferentes países e percorre as várias fases em seqüência
diversa e em diferentes épocas históricas (MARX, 1984:263).
Longe de apontar um processo linear – como fica claro na última frase – Marx
situa mudanças significativas na estrutura de produção, as quais afetam diretamente
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os produtores expropriados1. Na Europa de então, o autor analisava o processo que
possibilitou a constituição da classe operária.
Marx (1984), pensando a Europa dos séculos XV e XVI, a qual atravessava
um momento de transição para uma economia efetivamente capitalista, entendia a
acumulação primitiva como fenômeno que precede à acumulação propriamente
capitalista, ou seja, delimita seu ponto de partida. O processo de separar produtores
dos meios de produção atuaria na formação do modo de produção capitalista
criando trabalhadores que, potencialmente, produziriam o excedente a ser
apropriado por terceiros; bem como desonerando os proprietários dos meios de
produção de maior custo de reprodução dessa força de trabalho livre:
o movimento histórico, que transforma os produtores em trabalhadores
assalariados, aparece, por um lado, como sua libertação da servidão e da
coação corporativa; e esse aspecto é o único que existe para nossos
escribas burgueses da História. Por outro lado, porém, esses recém-
libertados só se tornam vendedores de si mesmos depois que todos os seus
meios de produção e todas as garantias de sua existência, oferecidas pelas
velhas instituições feudais, lhes foram roubados. E a história dessa sua
expropriação está inscrita nos anais da humanidade com traços de sangue
e fogo (MARX, 1984:262).
O autor identifica na produção dessa massa de trabalhadores “livres como os
pássaros” o início do revolucionamento que colocou as bases para a sociedade
burguesa. E em várias passagens de sua obra expõe a violência intrínseca da
expropriação que originou essa sociedade e caracterizou o fenômeno da
acumulação primitiva, o qual Marx (1984:271) sintetiza como “série de pilhagens,
horrores, e tormentos do povo, que acompanham a violenta expropriação do povo,
do último terço do século XV até o fim do século XVIII”.
1 Marx ressalta que a acumulação primitiva não é “a transformação direta de escravos e servos em
trabalhadores assalariados, portanto, mera mudança de forma, significa apenas a expropriação dos
produtores diretos, isto é, dissolução da propriedade privada baseada no próprio trabalho” (MARX,
1984:292). Logo, a propriedade privada passa a ser antítese da propriedade social, coletiva, em um
movimento sempre pautado pelo uso da violência.
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Nessa direção, o capital é entendido como uma relação social que pressupõe
a separação dos produtores dos seus meios de produção (para que tenha início o
processo de transformação do dinheiro, da mercadoria, da terra em capital). Com
esses pressupostos, Marx analisou a formação da sociedade burguesa como
dependente da formação do trabalhador livre, o qual, ao constituir-se em classe,
representaria o negativo do capital e carregaria a possibilidade de superação desse
ordenamento social como potência em sua constituição.
No capítulo XXV d’O Capital, Marx analisa a colonização como parte do
processo de acumulação primitiva. De acordo com sua leitura, a terra tornada
propriedade privada e meio individual de produção é o segredo do florescimento das
colônias e também da resistência à colonização do capital. A acumulação primitiva
produz as colônias como necessidade, a qual tem como consequência a criação do
trabalhador sem terra.
Ao analisarmos o Brasil, indicamos que o processo de acumulação primitiva,
ao se realizar como necessidade externa mantendo a força de trabalho escrava
como instrumento fundamental, originou a formação do país em suas
particularidades como civilização burguesa, inclusive em relação à formação de
massas e tardiamente do trabalho livre, se colocando como elemento estrutural.
Como sintetiza Arantes (1992), o sentido da colonização elaborado por Prado
Jr. vincula “o complexo formado por trabalho escravo, monocultura de exportação e
latifúndio ao capitalismo comercial que cimentava o sistema metrópole-colônia”
(ARANTES, 1992:24). Ou seja, o resultado dessa elaboração nos permite identificar
elementos estruturantes, presentes nos diferentes momentos nos quais a
acumulação assume outras formas, bem como no sentimento de inadequação entre
a vida na periferia e o desenvolvimento do pensamento europeu-liberal.
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Na vida ídeo-cultural do país essa construção provocou uma contradição com
a incorporação do liberalismo em sua funcionalidade no contexto de manutenção do
sistema escravocrata. Schwarz (2005) corrobora essa leitura ao expor a existência
de uma inadequação entre a vida ideológica do país (baseada em princípios
liberais)2 e sua relação produtiva fundamental (o escravismo). Historicamente, tal
contradição permeia nossa vida cultural e intelectual, refletindo entre outros
elementos, o objetivo maior de nossa fundação enquanto país: a busca pelo lucro.
Como é sabido, éramos um país agrário e independente, dividido em
latifúndios, cuja produção dependia do trabalho escravo por um lado e, por
outro, do mercado externo. (...) Era inevitável, por exemplo, a presença
entre nós do raciocínio econômico burguês – a prioridade do lucro, com
seus corolários sociais – uma vez que dominava no comércio internacional,
para onde nossa economia era voltada (SCHWARZ, 2005:62).
Há nesse sentido uma relação estreita entre o raciocínio de Roberto Schwarz
e Caio Prado Jr., pois ambos (cada um com suas peculiaridades) entendem a
necessidade de historicizar as particularidades brasileiras a partir da predominância
dos objetivos mercantis externos. Conforme Schwarz indica, o próprio latifúndio
escravista que negava o liberalismo adotado em nossas terras originou-se como
empreendimento do capital comercial, sendo assim, voltado desde sempre para a
obtenção do lucro3.
2 Principalmente no período do Segundo Reinado.
3 A partir desse raciocínio podemos generalizar o conceito de desenvolvimento desigual e combinado
para pensar não só a relação interna campo-cidade, mas também a relação metrópole-periferia. Visto
que o objetivo e as contingências da metrópole davam o tom da vida colonial, bem como dependiam
da periferia para se realizar, resultando em mazelas oriundas de nossa formação social e em nossa
forma de desenvolvimento nefasta.
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2.1.1 Caráter estrutural da acumulação primitiva no Brasil
Para conferir concreticidade ao movimento de elaboração teórica da nossa
formação social em suas particularidades, podemos também recorrer a Francisco de
Oliveira (2003), por exemplo. O autor redefine o conceito de acumulação primitiva
como estrutural, entendendo-a como fenômeno que
“não se dá apenas na gênese do capitalismo: em certas condições
específicas, principalmente quando esse capitalismo cresce por elaboração
de periferias, a acumulação primitiva é estrutural e não apenas genética”
(OLIVEIRA, 2003:43).
A acumulação primitiva como uma permanência se impõe em diferentes
elementos constitutivos da cultura brasileira, como na violência, em nível geral e na
própria organização socioeconômica, conforme Oliveira (2003:50) sintetiza ao
concluir “que a industrialização sempre se dá visando, em primeiro lugar, atender às
necessidades da acumulação, e não às do consumo”. Cabe então destacar que a
colonização e a industrialização, como processos por meio dos quais se conforma
no Brasil a sociedade burguesa, incidem diretamente nas formas de organização
política e estrutural das camadas subalternizadas. Conseqüentemente em sua
capacidade de forjar resistência a esse processo, marcado pela imposição externa.
Partindo desse pressuposto, Oliveira (2003) analisa a constituição de setores
numerosos da classe trabalhadora brasileira como tendencialmente alocados em
atividades do setor de circulação, ou seja, não produtivas, o que redimensiona a
exploração em seu sentido clássico de extração da mais-valia. O que seria a
exceção na origem dos países de capitalismo avançado, em nosso solo se constituiu
enquanto regra por ser uma conseqüência da forma que assume o processo de
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acumulação, principalmente antes da industrialização se consolidar, perante o
quadro de expropriação das terras e monopólio das mesmas.
Este movimento particulariza nossa formação social e nos possibilita também
caracterizar as relações por meio das quais fazemos política e produzimos cultura.
Visto que a alocação tendencial dos trabalhadores no setor de circulação produziu
uma massa, oriunda principalmente do Nordeste do país, não identificada à classe
operária em seu sentido clássico, à qual restou o lugar outorgado por Darcy Ribeiro
de “eternos itinerantes”. Nem sempre as formas políticas clássicas contemplaram
historicamente a possibilidade de representação dessas camadas populares,
oriundas em sua maioria do campo. Facó (2009) suscita tais questões ao identificar
formas de organização político-culturais diferenciadas por meio das quais se
afirmaram o descontentamento e a revolta popular no campo entre meados do
século XIX e início do século XX.
Os rebatimentos posteriores desse processo germinal na produção de cultura
podem ser analisados a partir da leitura de Weffort (1988), a qual situa a influência
dos imigrantes nordestinos na cultura paulista. Estes, conforme veremos no próximo
capítulo, não se integravam à classe operária, permanecendo em setores da
circulação e interferindo na forma cultural do estado a partir de seus modos de vida
diferenciados.
Retomando, observamos alguns determinantes que particularizam a cultura
popular brasileira. Esta teve historicamente sua originalidade expressa nos
momentos em que seu caráter potencial de resistência, não só à expropriação
constante, mas também à imposição de determinada forma de sociabilidade foi
colocado em prática como transgressão, produção da vida para além da
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sociabilidade mercantil pautada pela acumulação. Canudos reflete um desses
momentos.
Bosi (2008), ao estudar a obra de Euclides da Cunha “Os Sertões”,
principalmente ao referir-se ao messianismo característico da figura de Antônio
Conselheiro, aponta Canudos como manifestação da condição sertaneja em suas
contradições. A pobreza, a religiosidade do sertanejo e a busca por redenção
compõem um amálgama, uma forma de razão (no sentido de entendimento de
mundo) a qual, durante a fundação de Canudos em suas feições comunitárias,
resultou em um movimento de resistência; o qual configurou também uma resposta à
destruição efetuada pelas forças dominantes da forma aparentemente arcaica de
sociabilidade então cultivada. Nas palavras de Alfredo Bosi, “hoje, depois de tantos
bons estudos sobre messianismo, sabemos interpretar o fenômeno (...) articulando-o
com todas as forças de resistência de que se vale a cultura popular em momentos
de crise e opressão” (BOSI, 2008:220).
Na obra de Darcy Ribeiro (2006) está presente a destruição como elemento
dinâmico, o que indica que a construção da cultura brasileira, em geral, se deu a
partir da sociabilidade constituída no processo de acumulação primitiva. O autor
recoloca essa questão a partir da análise da destruição das bases da vida social
indígena e africana e da negação de todos seus valores, expressos na maneira de
se relacionar com os outros homens e com a natureza. Entendendo esse processo
como forma de obter lucros suficientes para alimentar a dinâmica da acumulação
dos países desenvolvidos, podemos observar a produção de cultura que ocorre
nesse choque civilizacional também como imposição de valores a partir do
predomínio da sociabilidade do colonizador. Nas palavras de Ribeiro,
22
estamos diante do resultado de um processo civilizatório que,
interrompendo a linha evolutiva prévia das populações indígenas brasileiras,
depois de subjugá-las, recruta seus remanescentes como mão-de-obra
servil de uma nova sociedade, que já nascia integrada numa etapa mais
elevada da evolução sociocultural. No caso, esse passo se dá por
incorporação ou atualização histórica – que supõe a perda da autonomia
étnica dos núcleos engajados, sua dominação e transfiguração –,
estabelecendo as bases sobre as quais se edificaria daí em diante a
sociedade brasileira (RIBEIRO, 2006:67).
Assim, o processo civilizatório que deu origem a Portugal e Espanha como
Estados nacionais levou a uma expansão que teve como conseqüência a extinção
de povos e a simultânea formação de macroetnias abrangentes, por meio da
destruição. Ao se lançarem aos mares os iberos estabeleceram “os fundamentos do
primeiro sistema econômico mundial” (RIBEIRO, 2006:59). Ou seja, as
transformações ocorridas nos países desenvolvidos em sua relação com os povos
considerados “selvagens” deram origem a uma constituição social diferente, a qual é
parte da expansão da civilização européia; na qual estamos condenados à
marginalidade. Podemos colocar em questão a práxis dos movimentos sociais no
sentido de reverter essa marginalidade ao agir politicamente de maneira constitutiva
do real.
Nas relações de poder cunhadas pelo encontro da “civilização” com a
“selvageria” a primeira triunfou por meio da destruição, associando a vida dos índios
à produtividade e à racionalidade do colonizador, elementos que garantiriam o
posterior domínio do capital. A civilização, ou melhor, o modo de vida europeu se
impôs como epidemias mortais para os índios e depois como guerras que levaram à
dizimação e à escravização – posteriormente ao genocídio e etnocídio4.
4 Interessante notar que Ribeiro, op.cit., utiliza por vezes o conceito de civilização em sentido
pejorativo, como fronteira da qual os índios buscavam fugir. Essa concepção contribui para
desmistificar a oposição barbárie-civilização.
23
Paradoxalmente, a civilização como força destrutiva triunfou não somente por meio
da violência, como também por meio da absorção da sabedoria indígena5.
Ao atrelarem a vida à produtividade, os invasores impuseram a necessidade
do excedente direcionado aos objetivos mercantis e da produção em massa, ou
seja, inicia-se um processo que culminará na inviabilidade da produção para a
subsistência. A qual apenas se manteve como marginalização do homem livre sem
terra no contexto de uma sociedade ainda escravocrata. Dentre outros elementos,
inviabilizou-se ainda a expansão do trabalho artesanal indígena.
Atualmente observamos que a possibilidade de produção artesanal se
encontra atrelada às necessidades de sobrevivência de seu produtor, ou seja,
expressa cultura e subjetividade, porém atravessada pelo crivo da mercadoria.
Tendência já apontada por Ribeiro na assertiva na qual constata que a vida do
indígena não poderia mais ser “descuidada de qualquer produção mercantil”
(RIBEIRO, 2006:53). A sociabilidade gerada pelo predomínio da mercadoria,
conforme veremos adiante, se impõe como tendência implícita na relação de
produção da cultura brasileira por meio da destruição de culturas já existentes em
seu caráter étnico e territorial.
O autor aponta ainda que a mercantilização se afirmou também pelo fascínio
que determinados objetos causavam nos índios; sem condição de produzi-los todos
artesanalmente, eles acabaram se submetendo em determinados momentos aos
desígnios do europeu – entendo que sem intencionalidade de fazê-lo – para obtê-
las. Tais objetos seriam então o elo entre os índios e o mercado. Para Ribeiro
(2006:44), “a submissão ao invasor representava sua desumanização como bestas
de carga”. E cada tribo lutava por si, elemento significativo no “sucesso” do
5 Holanda, op.cit., desenvolve a tese segundo a qual a maleabilidade cultural dos portugueses
propiciou o êxito da colonização do Brasil.
24
colonizador europeu. O paradoxo apontado pelo autor jaz na proposição de que o
“atraso” dos índios os fazia mais resistentes à subjugação, o que não impediu que
fossem dizimados, devido inclusive à melhor condição militar dos colonizadores.
A obra de Darcy Ribeiro nos permite então particularizar a formação do povo
brasileiro a partir da noção de dominação pelo uso da força e da violência. A
indicação acerca da falta de unidade nacional está presente em Ribeiro (2006)
quando o autor aponta que a história do Brasil é perpassada por conflitos de toda a
ordem. Inclusive étnicos, os quais são resignificados pelas novas determinações
colocadas com a chegada do colonizador europeu.
O processo de formação do povo brasileiro, que se fez pelo entrechoque de
seus contingentes índios, negros e brancos, foi, por conseguinte, altamente
conflitivo (...). Conflitos interétnicos existiram desde sempre, opondo as
tribos indígenas umas às outras. Mas isso se dava sem maiores
conseqüências, porque nenhuma delas tinha possibilidade de impor sua
hegemonia às demais. A situação muda completamente quando entra
nesse conflito um novo tipo de contendor, de caráter irreconciliável, que é o
dominador europeu e os novos grupos humanos que ele vai aglutinando,
avassalando e configurando como uma macroetnia abrangente (RIBEIRO,
2006:153).
Ou seja, podemos observar que houve a redefinição dos conflitos internos
devido à imposição dos interesses do colonizador por meio da violência. Dinâmica
que inviabilizou o processo de construção de uma nação voltada aos seus próprios
interesses. Nesse sentido, a ausência de unidade nacional já apontada pode ser
entendida como decorrente da impossibilidade de elaboração coletiva do trauma
legado pela brutalidade consequente do sentido da colonização.
25
2.1.2 Legados da colonização
A acumulação primitiva pode ser entendida como estrutural no Brasil não
apenas devido a continuidades nas formas de organização socioeconômica. A
dinâmica violenta da colonização provocou um trauma histórico que ainda carece de
elaboração coletiva. Vieira (2011) trabalha o conceito de trauma histórico como
característico de experiências sociais violentas específicas, como a escravidão
perpetrada durante a colonização.
O trauma decorrente de determinados processos históricos tem caráter
transgeracional, afetando também as gerações seguintes às que vivenciaram
experiências traumáticas, principalmente quando sua representação coletiva é
inviabilizada socialmente6. O ato de reapresentar socialmente uma situação dolorosa
propicia “a apropriação do que se passou até o reestabelecimento da verdade, o que
se pode chamar de elaboração social do trauma” (VIEIRA, 2009:5).
A arte e a produção de cultura como transgressão da norma têm um papel
fundamental quanto à possibilidade de representação social dos segmentos
historicamente oprimidos e violentados. Bosi (2008) destaca a poesia de João da
Cruz e Souza, neto de escravos e filho de forros, ainda no final do século XIX, como
um ato de repúdio à ciência oficial. Nesse caso, a resistência se expressa na forma
literária, na linguagem poética contra-ideológica, como reação à dominação pela
ciência. A possibilidade de representação do trauma do escravismo se coloca aqui
na produção artística; “Trata-se de um fenômeno notável de resistência cultural pelo
qual o drama de uma existência, que é subjetivo e público ao mesmo tempo, sobe
6 O racismo no Brasil e a violência ainda decorrente do mesmo é um exemplo dessa dinâmica.
26
ao nível da consciência inconformada e se faz discurso, entrando assim, de pleno
direito, na história objetiva da cultura” (BOSI, 2008:168).
O caráter de originalidade da cultura popular brasileira reside nos episódios
de resistência nos quais houve um tensionamento para (re) associar a produção da
vida aos interesses dos segmentos expropriados. Nesses momentos de
transgressão à norma, seja no âmbito da produção artística ou da produção de
cultura como forma de construção de sociabilidade, a resistência se coloca como
elemento necessário até mesmo à própria manutenção da vida dos oprimidos –
principalmente quando a resistência está associada diretamente a lutas sociais.
Observamos ainda a repetição do uso da violência como forma de minar a
resistência e exercer a dominação.
Darcy Ribeiro (2006) trabalha exemplos de conflitos de diversas ordens, como
Canudos, Palmares, os cabanos, dentre outros. Em todos esses estão presentes
características que, segundo o autor, permitem distingui-los em seus elementos que
sobressaem.
Nesse sentido, Palmares e a luta dos cabanos teriam a característica étnica
como prevalente; seriam enfrentamentos interétnicos. Já Canudos carregaria três
ordens de conflito, classista, étnico-racial e religioso7. Conforme o próprio autor
aponta, “os exemplos de conflitos continuados se multiplicam ao longo desse texto.
O que têm de comum e mais relevante é a insistência dos oprimidos em abrir e
reabrir as lutas para fugir do destino que lhes é prescrito” (RIBEIRO, 2006:159).
Logo, para nossa elaboração do conceito de cultura popular como construção
que carrega os legados da acumulação primitiva e se constitui potencialmente em
um contraponto ao projeto de dominação pautado por contingências econômicas
7 Rui Facó, op.cit., desenvolve uma leitura interessante acerca de Canudos.
27
externas, cabe ressaltar o caráter de resistência que acompanha historicamente os
levantes, as lutas populares. Visto que tais conflitos são constitutivos do ato de
produzir cultura e vice-versa. “O mais assinalável é que nunca são conflitos puros.
Cada um se pinta com as cores do outro” (RIBEIRO, 2006:152). Logo, um constitui o
outro por meio de mecanismos como a memória e o imaginário popular, ambos
fundamentais em processos criativos, de luta e de produção da vida como cultura,
no sentido recuperado por Raymond Williams8.
Destacamos então, a partir da noção de que a colonização legou um trauma
histórico como herança coletiva, a relevância da resistência contida potencialmente
na cultura produzida nos episódios de lutas sociais; já que nestes o trauma originário
se reapresentava, principalmente no questionamento da expropriação e da
dominação étnico-racial. Dizimados novamente por meio da violência, tais conflitos
expressaram a impossibilidade de elaboração social do trauma, elemento que
inviabiliza a resistência como organização consciente.
No plano ideológico e intelectual a colonização, segundo Ribeiro (2006:69),
resultou em um “minúsculo estrato social de letrados que, através do domínio do
saber erudito e técnico europeu de então, orienta as atividades mais complexas e
opera como centro difusor de conhecimentos, crenças e valores”. O imaginário
popular se expressa então comumente por meio de manifestações outras, voltadas à
oralidade: “o imaginário popular se exprimiu, durante séculos, abaixo do limiar da
escrita” (BOSI, 2008:260).
Ou seja, a leitura como técnica restrita a poucos é um dos instrumentos de
dominação, reflete a relação entre saber e poder e torna restrito o acesso a obras
consideradas universais. Para Ribeiro,
8 Cf. Williams, op.cit., 2007, em particular págs.117 a 124. e Cevasco, op.cit., 2001. Analisaremos a
noção de cultura proposta por Williams no capítulo 3.
28
aquelas inovações tecnológicas, somadas às referidas formas mais
avançadas de ordenação social e a esses instrumentos ideológicos de
controle e expressão proporcionaram as bases sobre as quais se edificou a
sociedade brasileira e a cultura brasileira como uma implantação colonial
européia (RIBEIRO, 2006:69).
Ribeiro retoma Sergio Buarque de Holanda em sua posição de que o
colonizador português era um aventureiro, o qual edificou o Brasil como “filial
lusitana”. Para o autor, isso explicaria a ausência inicial de uma classe dominante
nativa, sendo esta substituída por gestores da exploração comercial, prepostos da
dominação colonial. As classes dominadas se configuraram como dependentes da
metrópole e sem condições de viver para sua própria reprodução, ou seja, de
produzir suas condições de existência, se configurando em um “conglomerado
díspar”.
Nesse sentido, a proposição de Ribeiro (2006) vai ao encontro da tese de
Oliveira (2003), ao considerar a dependência da metrópole como determinante para
a sobrevivência das classes dominadas, não opondo assim diretamente centro e
periferia, mas ressaltando as diferenciações de classe internas ao próprio país –
conseqüentemente, a formação de alianças entre as classes dominantes dos países
desenvolvidos e os “gestores da exploração comercial” brasileiros.
Cabe notar que a impossibilidade de produzir suas condições de existência
implica em uma limitação quanto à produção de cultura, resultando no processo
deculturativo apontado. Tal limitação, porém pode se converter em potencialidade de
resistência, pois para sobreviver em condições dignas, os segmentos explorados
têm que criar e reinventar formas e meios de vida – nem sempre previstos como
parte da ordem, ou seja, não institucionalizados em sua origem.
Oliveira (2003:33) ressalta que a leitura acerca da dependência brasileira
deve se pautar pela consideração dos “aspectos internos das estruturas de
29
dominação que conformam as estruturas de acumulação próprias de países como o
Brasil”. Em sua “Crítica à razão dualista” o autor recoloca a questão da acumulação
brasileira após as transformações estruturais da década de 1930, a partir do
entendimento do desenvolvimento como problema referente à oposição entre
classes sociais internas, não apenas relativo à relação centro-periferia, ou melhor, às
relações externas.
Essa leitura recupera a proposição segundo a qual a dependência é a forma
pela qual se articulam os interesses internos com o sistema capitalista em geral9,
logo, “antes de uma oposição global, a ‘dependência’ articula os interesses de
determinadas classes e grupos sociais da América Latina com os interesses de
determinadas classes e grupos sociais fora da América Latina” (OLIVEIRA, 2003:33
– grifos do autor).
Nessa passagem fica clara a tese desenvolvida pelo autor10 e apontada por
Schwarz (2003), a qual privilegia a opção das classes dominantes como elemento
central no embasamento da análise11. A meu ver, essa leitura carrega implícita a
noção de pacto de classes, bem como a complexificação da estratificação de
classes quando considerada a realidade brasileira12. Visto que Oliveira recupera a
9 Proposição desenvolvida por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto em sua teoria da
dependência. Cf. Oliveira, op.cit., capítulo I.
10 O qual dialoga com os teóricos do subdesenvolvimento, principalmente a corrente dualista do Cepal
(Comissão Econômica para a América Latina).
11 Cabe ressaltar que está implícito na análise de Oliveira, a meu ver, o entendimento de Marx e
Engels, segundo o qual os homens fazem a história, mas não a fazem como querem. Netto
recuperou, em aula ministrada na Escola de Serviço Social no primeiro semestre de 2010, a assertiva
de Engels para ilustrar essa relação: a vontade política é menor que 1 e maior que 0. Cf. MARX, K. “O
18 Brumário de Luís Bonaparte”. In: Textos, vol. 3.
12 Ribeiro (2006) traça uma tipologia das classes sociais no Brasil. A estratificação é constituída por
uma classe dominante com segmentos conflitantes, porém complementares: o patronato empresarial
moderno, o qual substitui o oligárquico senhorial parasitário; o patriciado estatal (político, militar,
tecnocrático) e o civil (eminências, lideranças, celebridades). Há os setores intermediários:
profissionais liberais e pequenos empresários (autônomos); funcionários e empregados
(dependentes), além do baixo clero. As classes subalternas: campesinato (assalariados rurais,
parceiros, minifundistas), operariado (fabril, serviços). E as classes oprimidas, marginalizadas
(principalmente negros, mulatos e moradores de favelas e periferias).
30
indicação de que a política de alianças se configura historicamente de acordo com
os interesses em jogo e “a hegemonia aparece como o resultado da linha comum de
interesses determinada pela divisão internacional do trabalho, na escala do mundo
capitalista” (OLIVEIRA, 2003:33 – grifos do autor).
Ou seja, perante algumas imposições externas, estruturais, se fixaram as
alianças entre diferentes segmentos da classe dominante e até mesmo da classe
trabalhadora integrada formalmente ao sistema, as quais moldaram o país em sua
forma esdrúxula e peculiar. Porém, tomando a análise de Quijano (2005) acerca da
inexistência de interesses comuns aos diferentes segmentos sociais, podemos
concluir que as configurações resultantes dessas alianças pontuais e provisórias,
que se formam no momento em que determinada questão se coloca como crucial,
agravam a condição dos segmentos subalternizados e explorados que se encontram
na base de nossa pirâmide social.
O latifúndio crônico é o resultado mais evidente do decorrer desse processo,
pois mesmo após o getulismo (abordado mais adiante) ter alavancado a
industrialização limitando os mandos e desmandos da fração agrária até então
dominante, os privilégios agrários referentes à posse e propriedade permaneceram
em seus fundamentos.
O latifúndio envolve a rotação de terras e não de culturas, interferindo
diretamente nas formas de cultivo dos trabalhadores rurais e, por conseguinte, nas
condições de vida (alimentação, saúde, moradia) de toda a massa de não-
proprietários. Oliveira elucida esse mecanismo:
o trabalhador rural ou o morador ocupa a terra, desmata, destoca, e cultiva
as lavouras temporárias chamadas de ‘subsistência’; nesse processo, ele
prepara a terra para as lavouras permanentes ou para a formação de
pastagens, que não são dele, mas do proprietário. Há, portanto, uma
transferência de ‘trabalho morto’, de acumulação, para o valor das culturas
31
ou atividades do proprietário, ao passo que a subtração de valor que se
opera para o produtor direto reflete-se no preço dos produtos de sua
lavoura, rebaixando-os (OLIVEIRA, 2003:43).
Retomando as colocações de Marx, podemos indicar que os produtores
diretos são duplamente expropriados nessa forma de acumulação primitiva
permanente (a qual inviabilizou a reforma agrária); primeiro da terra e dos próprios
meios de garantir sua subsistência. Depois em uma constante, quando já
expropriado de seus meios originais de subsistência, em sua consequente condição
de trabalhador livre, da totalidade do valor gerado por seu trabalho na terra de
terceiros, acumulado na forma de trabalho morto. O trabalhador expropriado passa a
depender do uso temporário da terra de terceiros, a qual se caracteriza como capital
acumulado, bem como necessita entrar em relação com o capitalista, na figura do
latifundiário, para garantir sua subsistência. Nesse processo transfere valor às
terras, o qual é apropriado privadamente.
Conforme indica Sérgio Buarque de Holanda (1956), a forma peculiar
assumida pelo latifúndio agrário no Brasil deve-se às conveniências da produção e
do comércio, ou melhor, do mercado externo. Assim como Prado Jr., Holanda
aponta que as necessidades do comércio europeu, que carecia de gêneros típicos
dos climas quentes, tornaram possível a expansão desse sistema agrário.
Favorecendo inclusive a monocultura voltada para exportação.
Logo, o processo de acumulação primitiva como fundante do modo de
produção capitalista tem sua face violenta e de espoliação muito bem delineada no
processo de colonização dos povos, o qual possibilitou a integração das colônias no
movimento mundial de constituição da civilização burguesa de acordo com os
interesses comerciais externos em jogo. O sentido da colonização elaborado por
32
Caio Prado Jr. (1957) nos coloca assim lacunas que acompanham a formação social
brasileira, particularizando-a.
Ou seja, a formação de civilizações modernas européias e não-européias
ocorre a partir do choque entre culturas potencializado por um projeto expansionista
essencialmente mercantilista – na medida em que as necessidades de acumulação
das metrópoles e a busca por lucros prevalecem no direcionamento do processo.
Esse encontro produz um estranhamento político-cultural no qual uma das partes
será violentada para se submeter ao domínio da outra – dinâmica que provoca o
exercício de reações, refletido na espontaneidade que pauta diversas lutas ao longo
da história.
Cabe notar que há um tensionamento para que certa normatividade da vida
social seja aceita como regra, o qual é particularizado a partir do momento em que
consideramos essas normas como imposição externa que torna constante a
violência na formação do país enquanto nação. Ocasionando contradições entre a
maneira pela qual se organiza a produção e a forma de entender e explicar a vida
social. Conforme aponta Schwarz (2005), por exemplo, ao tratar do paradoxo
formado com a incorporação do liberalismo europeu em um país cujas forças
produtivas dependem da força de trabalho escrava. Ou seja, nossa auto-
representação, por meio do próprio desenvolvimento do pensamento, reflete uma
figura estranha, conformada em moldes exteriores – aos quais não nos ajustamos
por nossa condição periférica.
Nesse sentido, a criação de uma cultura popular no contexto de predomínio
da sociabilidade do colonizador se coloca como originalidade em seu necessário
caráter de resistência à destruição de outras formas de sociabilidade e à violência
intrínseca ao processo de acumulação primitiva. A resistência localiza-se também na
33
possibilidade de reapresentação da realidade de forma não institucionalizada,
construída em oposição à sociabilidade oficial imposta. Visto que a aceitação de
determinada normatividade social, como a proposta pelo liberalismo, por exemplo,
ocorre por meio dos desdobramentos da exploração.
Ao mesmo tempo a normatização social imposta na forma do liberalismo é
negada pelas condições objetivas postas pela forma de consolidação de nossa
organização social; há a percepção de inadequação aos moldes “civilizacionais”
europeus, porém no contexto de pertencimento a esse sistema como forma geral de
organizar a vida social. O que gera um sentimento acerca do dualismo que perpassa
nossa história, produzido pela própria experiência imediata, conforme aponta
Arantes (1992) e Schwarz (2005)13.
A deculturação intentada durante o processo de acumulação primitiva pode
ser então rechaçada perante a possibilidade de criatividade e espontaneidade
popular, as quais se expressam culturalmente em manifestações não
institucionalizadas (principalmente nos momentos de conflitos e de lutas sociais). No
entanto, a negação da realização do potencial criativo recrudesce conforme avança
a sociabilidade gerada no âmbito da racionalidade mercantil, mesmo que somente
pela ressignificação dos espaços e momentos de manifestação de tal criatividade,
conforme nos mostra Calleia (2010) em sua análise do carnaval carioca.
Qualquer movimento social que se proponha atuar nesse cenário de maneira
revolucionária tem então como imperativo analisar a dinâmica dessas relações e a
estrutura que as condiciona, questionando seus fundamentos e suas conseqüências
nefastas. Como por exemplo, essa forma instituída de cultivo da terra e a
insegurança alimentar provocada pela manutenção do latifúndio e da monocultura.
13 “(...) resta na experiência aquele ‘desconcerto’ que foi nosso ponto de partida: a sensação de que o
Brasil dá de dualismo e factício (...)” (SCHWARZ, 2005:71).
34
Logo, coloca-se o questionamento da cultura em seu sentido de cultivo e de modo
de vida gerado pela forma de produção e pelo consumo como necessidade de
sobrevivência.
A acumulação primitiva potencializa ainda fenômenos como o
desenraizamento e a criação de uma massa sem terra – no sentido estrito do termo.
No Brasil, devido às conseqüências desse sentido contingente da colonização, a
composição social dessa massa sem terra é extremamente diversificada.
Inicialmente concentrada no campo, identificada aos escravos negros e indígenas,
tem sua formação alterada de acordo com as mudanças na dinâmica da
acumulação: fim da escravidão, política de incentivo à migração, urbanização e
industrialização, aumento no emprego de tecnologia, dentre outras.
No entanto, se identificamos no período colonial a origem da formação dessa
massa, podemos compreender também a ausência da reforma agrária como parte
do caráter atribuído aos trabalhadores/ produtores originariamente no período da
escravidão. Segundo Darcy Ribeiro, o povo brasileiro surge intrinsecamente ligado à
nossa forma singular “de organização socioeconômica, fundada num tipo renovado
de escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial” (RIBEIRO,
2006:17).
Nossa história se escreve então de acordo com as contingências que marcam
os países de capitalismo desenvolvido e suas necessidades de superar os limites da
acumulação14. O que significa que, durante nosso desenvolvimento, “queimamos
etapas” para atender a necessidades externas, ou seja, nos modernizamos de uma
maneira brusca e cheia de atropelos objetivando equipararmos aos nossos
colonizadores. Portanto, a reforma agrária nunca se colocou como um impedimento
14 Emprego aqui o termo contingência para designar os acidentes de percurso que no sistema
capitalista se tornam lógicos e racionais por derivarem de contradições intrínsecas. Tendência não
confere a mesma abrangência ao sentido, mas pode ser empregado em substituição.
35
ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil quanto aos interesses de acumulação
comerciais, tendo sua ausência deixado um rastro ainda mais brutal de expropriação
e uma dívida social secular insaldável.
A acumulação primitiva se impõe ainda como uma permanência perante a
ausência de um sujeito político coletivo capaz de conscientemente fazer ruir as
estruturas aqui formadas ao impor suas necessidades de sobrevivência como
prioridade – invertendo assim o predomínio das necessidades do capital comercial,
ao qual nascemos atrelados. Ou seja, devido às transformações na estrutura
produtiva terem partido sempre de necessidades colocadas pela reprodução do
capital como sujeito automático, as quais, por vezes, não são nem ao menos
negociadas.
As revoluções ocorreram historicamente no Brasil como frutos dos avanços
tecnológicos e industriais, o que equivale à reprodução de estruturas que carregam
em seu bojo o recrudescimento da desigualdade social. Trocando em miúdos: mais
do mesmo ou a permanência do velho como recriação devido a tendências e
contradições do próprio modo de produção15.
Assim como Prado Jr., Ribeiro (2006) identifica que somos um implante
necessário e consequente da expansão europeia, mantido para gerar lucros
exportáveis pelo ato de prover bens para o mercado mundial16. Nesse tipo peculiar
de formação, os trabalhadores explorados carregam em sua constituição as marcas
15 Nesse sentido, Menegat recupera a crise do capital como estrutural, apontando a partir de Marx
que a ruína – já em andamento – desse modo de produção provocada por suas contradições internas
e não por sujeitos sociais organizados, tem como conseqüência a barbárie. Essa não é mais uma
sombra que espreita a civilização burguesa, sendo antes, parte constitutiva da mesma. Ainda
segundo o autor, a barbárie se traduz em uma sociedade que desmorona e se mantém, caindo o
peso de seus destroços nos ombros das massas despossuídas, geradas por esse sistema falido de
acumulação.
16 Holanda (1956) identifica essa marca da nossa formação nacional na ausência da construção
significativa de universidades no país, o que diferencia o caráter da colonização espanhola do da
portuguesa.
36
legadas pelo sentido da colonização, sendo identificadas pelo autor como
permanência expressa na condição de proletariado externo.
Combinada à análise de Oliveira (2003) de que a maior absorção de força de
trabalho ocorre em setores improdutivos (como regra), indicamos a criação de outra
lacuna, a qual se configura em uma ausência a ser preenchida: além do trauma
originário ocasionado pela colonização como parte do processo de acumulação
primitiva, a possibilidade de essas massas expropriadas elaborarem politicamente o
mesmo, bem como sua condição social e se fazerem representar em instituições
clássicas se complexifica também devido à sua forma de integração ao sistema. A
imagem de sociedade inorgânica elaborada por Prado Jr. (1957) ilustra esse
entendimento ao resgatar a ausência de qualquer unidade baseada em interesses
internos.
Também a figura do eterno itinerante, cunhada por Ribeiro (2006) exemplifica
essa condição com a dificuldade dos produtores diretos de criar raízes no trato com
a terra, o que recoloca a análise de Oliveira exposta acima. A complexidade de se
criar uma identidade de classe a partir da condição de exploração social, também
corolário desse processo, começa a ser elaborada nas Ligas Camponesas.
(Abordaremos essa questão mais adiante).
Cabe uma breve digressão acerca do conceito de barbárie como elemento de
caracterização desse cenário cujos fundamentos buscamos delinear. Objetivamos
expor a permanência da acumulação primitiva em sua forma mais evidente – e
generalizável mundialmente como elemento constitutivo da sociabilidade produzida
nos marcos da civilização burguesa.
37
2.2 O INVÓLUCRO CIVILIZADOR QUE CONTÉM A BARBÁRIE
Segundo Menegat (2010), o conceito de barbárie como elemento constitutivo
da sociedade capitalista nos permite desenvolver um entendimento acerca da
condição brasileira (considerando as patologias historicamente desenvolvidas em
uma sociedade periférica), assim como do contexto e do pensamento de diferentes
autores que, em diferentes épocas, se debruçaram sobre a mesma. A barbárie seria
uma caracterização substantiva da realidade brasileira17, um modo de ser que
remete a situações culturais, políticas e econômicas regressivas.
A partir do entendimento de que a barbárie é um conceito presente em obras
de diferentes autores brasileiros como forma de concepção abrangente acerca da
realidade brasileira (resultado de um estranhamento perante o choque com a
realidade), Menegat (2010) identifica em Prado Jr. a percepção de um duplo caráter
da barbárie – decorrente da permanência do sentido da colonização. Essa
permanência se expressa como barbárie nos seguintes sentidos:
no processo de formação teriam operado e convivido, segundo Prado Jr.,
dois modos diferentes de barbárie: a barbárie dos escravos e povos
originários (a temática das raças inferiores que encontra no nosso Autor
recepções ambíguas, mas que é entendida também por ele como um
estágio inicial da evolução das sociedades); e os métodos bárbaros dos
colonizadores dentro do processo de acumulação primitiva de capital (...), A
barbárie dos métodos de colonização se tornou imanente a este processo
que não criou alternativas de outra forma de existência para os povos
originários e os escravos africanos (MENEGAT, 2010:41).
Há então em Caio Prado Jr. a sinalização de um sentimento nacional
correspondente a uma lacuna em nossa formação social, deixada pela ausência da
elaboração coletiva acerca do sentido da barbárie resultante da acumulação
17 Não só da realidade brasileira, mas antes da civilização burguesa como um todo. Nesse momento
nos limitaremos à periferia dessa civilização.
38
primitiva como uma permanência. O autor aponta para as condições de vida das
massas exploradas, resultantes das relações que o sentido da colonização produziu
como fator determinante nessa ausência política.
Menegat, em entrevista publicada em 2008 na Revista do Instituto de
Humanidades, elabora o conceito de barbárie como parte da lógica dessa civilização
e das relações sociais estranhadas, cunhadas a partir do império da lógica de
valorização do valor. O processo de colonização, nesse sentido, corrobora o
entendimento de barbárie enquanto condição interna à civilização.
Essa elaboração coloca o questionamento acerca de quem são os bárbaros,
já que no pensamento antropológico e filosófico eurocentrado esse papel foi
historicamente atribuído aos indígenas e aos negros, ou seja, ao que é considerado
marginal perante as normas sociais de “civilidade”, ao outro. Menegat aponta as
origens remotas dessa concepção:
O “bárbaro” e a “barbárie”, ao menos desde os gregos – que, até onde sei,
iniciaram o uso deste termo e pensaram a fundo a lógica inserida nele –,
referem-se ao outro e o qualificam depreciativamente. Assim, a barbárie é o
que está fora. A sociedade moderna, aquela que, como já disse, nasceu do
processo colonizador europeu, acrescentou a esta noção e sua dialética
uma nova construção, que é aquela presente no termo “civilização”.18
Segundo Williams (2007), o sentido da palavra civilização, conferido
a partir do S18, é uma combinação específica das idéias de um processo e
de uma condição adquirida. Tem atrás de si o espírito geral do Iluminismo,
com sua ênfase no autodesenvolvimento humano secular e progressivo.
Civilização expressou esse sentido de processo histórico, mas também
celebrou o sentido associado de modernidade: uma condição adquirida de
refinamento e ordem (WILLIAMS, 2007:83 – grifos do autor).
18 Entrevista concedida a Regina L. de Faria, publicada em Candelária. Revista do Instituto de
Humanidades; nº 9, julho-dezembro de 2008.
39
Nesse sentido, civilização é um termo moderno, o qual parte da noção
iluminista de racionalidade e reflete dois sentidos historicamente relacionados,
referindo-se simultaneamente:
1. à organização dos povos em um Estado realizado;
2. a um estado realizado de desenvolvimento, ao progresso.
Essa concepção analisada em seu caráter histórico por Williams (1977)
contém a noção segundo a qual civilização opõe-se à barbárie conforme o
desenvolvimento e a adequação dos povos a determinadas normas sociais.
Conforme o autor aponta, essa concepção está imbuída da racionalidade iluminista.
A análise que desenvolvemos inverte essa lógica e localiza a barbárie como
inerente ao desenvolvimento da civilização burguesa. Em outras palavras, o
resultado do progresso pode ser a regressão social enquanto forma de
sociabilidade. Observamos que o resultado geral do processo de colonização dos
povos – necessário à consolidação do capitalismo – expõe a regressão social
inerente à construção e manutenção da civilização burguesa, negando o caráter de
autodesenvolvimento humano progressivo contido nas promessas iluministas –
eurocêntricas em sua essência, por mais que propusessem valores supostamente
universais.
Considerando os próprios métodos bárbaros do colonizador – regressivos
quanto ao cultivo da terra e impeditivos quanto ao cultivo pleno dos homens – a
afirmação que localiza a barbárie nos povos originários se inverte, ou melhor, se
mostra como ideologia em seu sentido clássico de falsa consciência, revelando a
crua e sangrenta face da racionalidade “civilizadora” que pauta o processo de
acumulação de capital.
40
Ribeiro (2006) destaca que, para o indígena, o europeu era o outro,
introduzido em sua história como “novo protagonista” (p.26) que trazia destruição19.
Nesse sentido, o conflito iniciado com a colonização ocorreu em todos os níveis,
sendo biótico, ecológico20 e econômico-social. Neste último, a escravização dos
povos e principalmente a mercantilização das relações de produção, articulou o
velho mundo europeu aos “novos” mundos, os quais exerciam papel de provedores
de mercadoria.
Na leitura de Menegat, essa lógica que nos vincula aos países europeus pela
mediação do desenvolvimento do sistema capitalista tem como conseqüência a
transformação da cultura; a qual seria capaz de construir um ethos comum e se vê
reduzida a
uma ‘esfera’ menor e submetida ao imperativo da valorização do valor.
Portanto, a civilização – e com este termo só existe a moderna, uma vez
que ele é um termo moderno – expurgava do seu interior este meio, a
cultura, que é a própria forma expressiva do humano21.
Tal assertiva implica na potencialidade de sua própria negação, no sentido
que, a partir desses pressupostos que localizam a barbárie na consolidação da
civilização, a produção de cultura como possibilidade de emancipação (constitutiva
do negativo da norma de valorização do valor) se expressa enquanto resistência dos
segmentos explorados à lógica dominante. Conforme o próprio autor sinaliza,
numa sociedade escravocrata até há pouco mais de três gerações atrás,
formada por um processo brutal de colonização, falar em formas civis e
pacificadas de relações humanas é falar justamente daqueles que fugiam e
19 Perspectiva similar à de Quijano (2005), o qual destaca que o próprio conceito de europeu se
construiu a partir do contato com o outro.
20 Devido às epidemias que os brancos trouxeram às quais os indígenas não haviam desenvolvido
imunidade e à sua forma diferenciada de se relacionar com a natureza.
21 Idem à nota 18. Williams (1977) recupera a história do conceito de civilização, bem como a
separação desse conceito do de cultura, a partir de Rousseau e do entendimento de cultura como
descrição dos meios e obras do desenvolvimento humano: artes, religião, instituições, etc.
43
expressou também no uso que os portugueses fizeram da rivalidade entre as tribos
para obter êxito em sua empresa26.
Logo, o desenvolvimento predatório típico do capitalismo ocorreu no Brasil (e
na periferia em geral) de forma mais evidente, afetando os povos originários ao
alterar radicalmente o metabolismo sociedade - natureza e afetando também os
colonizadores com a involução momentânea de suas técnicas de produção. A
destruição inerente a essa forma social foi realizada com o intuito de satisfazer os
interesses do colonizador europeu, ou seja, do outro e não da população local.
Menegat27 aponta que os europeus nos copiaram no que tínhamos de mais
atrasado: as técnicas produtivas; o atraso instrumentalizado pelo outro (o uso de
instrumentos atrasados) também contém a barbárie que acompanhou o processo de
constituição do país e da cultura brasileira enquanto parte constitutiva da cultura
burguesa.
Indicamos então que o choque civilizacional produzido no processo de
colonização permitiu a ruptura do invólucro que continha a barbárie que acompanha
o desenvolvimento da civilização burguesa; nem sempre visível a olhos nus, já que
(até então) contida por normas sociais que regem comportamentos, durante a
colonização se espraiou nas relações entre os diferentes povos e entre os homens e
a natureza, ao torná-las mediadas por coisas, na lógica do domínio inerente à
imposição da valorização do valor como normatividade social.
A barbárie entendida como característica da colonização e enquanto forma
permanente resultante do processo de acumulação primitiva além-mar é um conceito
26 Cf. Holanda, 1956, em particular capítulo 4.
27 Aula ministrada no segundo semestre de 2007 na pós-graduação da Escola de Serviço Social da
UFRJ. O autor coloca também o conceito de trabalho humano como portador de destrutividade, ou
seja, não é em si um valor positivo. Tal conceito está presente (mesmo que em outro sentido) em
Ribeiro (2006) relacionado a destrutividade do próprio homem, não só da natureza. Ribeiro indica o
desgaste físico da força de trabalho usada na colonização, principalmente no que tange aos índios.
44
interessante para compreendermos também a brutalidade que foi a mudança cultural
sofrida pelos povos originários ao se depararem com o imperativo de satisfazer
necessidades de outros – sendo eles próprios transformados em objetos, ou melhor,
em mercadorias necessárias à realização dos fins de acumulação. Menegat (2010),
em sua leitura de Antonio Candido, aponta que a colonização é concebida por tal
autor
como um choque entre culturas diferentes, em que a cultura do colonizado
será brutalmente modificada para se adaptar aos fins do colonizador. A
mitologia da superioridade será um estoque de referências a serem
utilizadas como um mandato de transformação do outro, visto como inferior.
(MENEGAT, 2010:40)
Nesse sentido, podemos pensar a violência como constitutiva da dominação
em vigor no nosso país desde a colonização, bem como sua influência na
construção da enorme distância social que separa os diferentes segmentos de
classe em uma estrutura hierarquizada e inorgânica – impedindo a criação de um
ethos comum. Menegat (2010) retoma Caio Prado Jr. para expor a falta de
questionamentos internos acerca do sentido da colonização, lacuna decorrente da
ausência do protagonismo das massas subalternizadas. Para Prado Jr., estas
estariam presas no estado de barbárie constitutivo da colonização – o qual
permanece como forma de dominação da posterior classe nacional dirigente.
Menegat ressalta: “a ação coletiva, numa formação em que a brutalidade é o modo
estruturante da vida social, tem boas chances de ter um caráter de mera reação. Os
sentimentos coletivos talvez apenas sejam possíveis neste caso como ressentimento
(sentir por efeito)” (MENEGAT, 2010:43).
45
Cabe lembrar brevemente que Quijano (2005) aponta a ausência de
interesses comuns entre os membros de um país como impeditiva à efetivação da
democracia. O autor entende que o Estado-nação moderno é uma estrutura de
poder que começa a se constituir com a colonização dos povos; nesse processo, a
exclusão histórica dos negros, índios e mestiços da participação na organização
sócio-política foi uma constante – a regra. Paradoxalmente, essa ausência velada
inviabiliza o processo de democratização efetiva, o qual é fundamental para a
organização política da sociedade em Estado-nação.
Logo, na América Latina não foi possível levar a termo a perspectiva européia
de construção do Estado-nação, pelas próprias relações estabelecidas ao longo dos
séculos; como o autoritarismo e a menorização do povo por parte das elites e dos
dirigentes políticos, a dependência mútua não reconhecida, entre outras. Elementos
constitutivos da nossa existência, óbices quanto à elaboração de um sentimento
coletivo que vá além do ressentimento28.
Nesse sentido, trataremos adiante da independência do Brasil como momento
no qual o sentido da colonização é reafirmado no bojo do processo de exclusão das
classes populares dos momentos políticos decisórios. Já que em nosso país a
independência significou a manutenção do conteúdo elitista travestido em novas
formas moldadas pela aspiração a ascender à condição de Estado-nação.
No Brasil, o colonizador europeu, ao renegar os avanços tecnológicos na lida
com a terra e com o cultivo do solo, reflete a questão do “atraso” brasileiro como
elemento necessário ao desenvolvimento da metrópole. Antes de ser um fator
germinal de problemas posteriores (forma pela qual o atraso foi e é entendido por
alguns pensadores), o tão reclamado atraso do país se mostra condizente,
28 Penso que é nesse sentido que Ribeiro (2006) utiliza a idéia de sentimento de injustiça como
potencializador de convulsões anárquicas latentes ao potencializar o movimento de ir além do
ressentimento.
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inicialmente, com os objetivos dos dominantes. Perante a ausência de rupturas
concretizadas pelos segmentos explorados da população, o atraso se tornou um
fator a ser mantido de acordo com as conveniências, ou melhor, contingências.
Menegat29 entende que a ausência de revoluções tem como conseqüência
espiritual a impossibilidade de elaborarmos nossas vivências e nossas dores
coletivas. Seria um elemento a mais que atua no sentido de reforçar o silenciamento
cotidiano imposto na lógica do individualismo burguês. Além disso, representa a
nossa dificuldade de construirmos uma auto-representação coerente com a
realidade. A produção de formas de cultura não institucionalizadas traz tal
elaboração como possibilidade, no sentido de que expressa determinadas
concepções não oficiais de mundo, trazendo potenciais questionamentos às formas
sociais elaboradas por imposição.
Calleia (2010) nos coloca o exemplo do carnaval, festa popular que em suas
origens e em sua capacidade criativa possibilitava a negação – mesmo que
momentânea – da racionalidade do trabalho. E, acrescento eu, da imposição do
completo recalque do prazer como condição primária para a adaptação à
racionalidade capitalista do trabalho.
Talvez por isso manifestações culturais tenham sido perseguidas e
criminalizadas, mesmo que seu sentido aparentemente não seja o de resistência
direta. É o caso da capoeira e do samba em seus primórdios, associados com a
vadiagem; e recentemente do funk, tratado como motivo de intervenção policial,
dentre outras. Quando da consolidação da indústria cultural, porém, a repressão
pode vir travestida de adaptação a formas mercantilizadas e reificadas de se fazer
cultura.
29 Aula ministrada no segundo semestre de 2007 na pós-graduação da Escola de Serviço Social da
UFRJ.
47
Nesse sentido, o termo popular expressa aceitação, ou seja, refere-se a
produtos vendáveis, passíveis de serem consumidos por grandes contingentes
populacionais, os quais se tornam indiferenciáveis em seu caráter de consumidores,
sendo regidos pela racionalidade que pauta o desenvolvimento da sociedade
burguesa. Segundo Furtado (2010:25), “na cultura surgida da revolução burguesa, a
racionalidade é um desses moldes ou estruturas implícitas que ordenam e
submetem a criatividade”, entendida como invenção da cultura. Pensando no avanço
da técnica como fundante da história da civilização industrial, o autor aponta a
“progressiva subordinação de todas as formas de atividade criadora à racionalidade
instrumental” (FURTADO, 2010:26) e suas nuances em um país no qual não houve
a revolução burguesa “originária”.
Na discussão proposta por Furtado há um elemento essencial colocado como
mediação para pensar a relação entre transformação, acumulação e cultura
(criatividade): a universalidade da forma mercadoria e a inserção dos sujeitos no
mercado. Pois se o processo de acumulação implica em transformações sociais por
se basear na inovação, principalmente tecnológica e científica, “um conjunto de
normas derivadas do processo de acumulação sobrepõe-se à atividade criadora em
sua expressão mais universal, qual seja, a invenção do estilo de vida da sociedade”
(FURTADO, 2010:27), a qual passa a ser regida por normas e contingências
mercantis.
Após essas breves considerações acerca de um fenômeno que interfere
diretamente na produção de cultura, principalmente na época pós-moderna, cabe
então retomarmos a análise acerca da produção de cultura possível em um país
periférico. Objetivamos localizar as raízes de práticas sociais que permanecem como
constitutivas de diferentes formas de fazer política. Esse movimento pode nos
48
auxiliar a compreender posteriormente a ação política desenvolvida no MST em sua
proposição de produzir cultura como uma forma de potencializar a luta (e oriunda da
mesma).
2.3 EXPROPRIAÇÃO E PRODUÇÃO DE CULTURA
A acumulação primitiva delegou aos negros, índios e imigrantes pobres no
Brasil o papel de “proletariado externo”, de peça na engrenagem da produção de
bens de exportação. Nesse sentido, ao modificar seu sócio - metabolismo, ao cunhar
uma forma híbrida de cultivo do solo – voltado hegemonicamente para a exploração
externa do que o mesmo tinha a oferecer –, acompanhada de uma forma particular
de conduzir as relações sociais, a colonização instaura um padrão de
desenvolvimento e “progresso” extremamente predatório. O qual marca também o
cultivo espiritual do brasileiro. Indagarmos que tipos de práticas sociais são
possíveis nessa configuração cultural auxilia na análise das raízes formativas das
bases sociais que constituirão o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
Para Menegat30, a não compreensão por parte do colonizador de sua
dependência relativa ao colonizado acentuou a perversidade do dominador para
com o mesmo. E a ausência de elaboração coletiva desse processo pelos
dominados, somada ao desgaste físico nos processos de produção é um dos
elementos que pode ter teor explicativo quanto à imbricação trabalho e cultura nas
classes pobres.
30 Aula ministrada no segundo semestre de 2007 na pós-graduação da Escola de Serviço Social da
UFRJ. Durante as aulas o autor se baseou na dialética do senhor e do escravo, de Hegel, a partir da
categoria de reconhecimento. No caso brasileiro, o ressentimento seria o resultado da ausência do
reconhecimento da dependência estabelecida entre um e outro. Porém tais questões ficam apenas
sinalizadas, devido à falta de acúmulo da autora da presente pesquisa no que se refere a Hegel.
49
Tanto os escravos negros quanto os índios e os imigrantes pobres têm
culturas diferenciadas, mas relacionadas a maneiras de cultivar o solo objetivando a
subsistência local. Característica que foi negada com o processo colonizador
culminando na imposição da deculturação, já que as formas de organização familiar,
comunitárias, bem como a lida com a natureza foram duramente afetadas. Ou seja,
a impossibilidade de produzir para subsistência, de forma livre, afeta a produção de
cultura em seu sentido amplo, pois modifica as formas dos homens se relacionarem
entre si a partir da mudança de sua relação com a natureza.
Uma questão fundamental acerca da produção de cultura nessas condições é
retomada por Ribeiro (2006:15): “como estabelecer a forma e o papel da nossa
cultura erudita, feita de transplante, regida pelo modismo europeu, frente à
criatividade popular, que mescla as tradições mais díspares para compreender essa
nova versão do mundo e de nós mesmos?”.
Está implícito nesse questionamento que “essa nova versão do mundo e de
nós mesmos” requer elaboração, a qual pode ser realizada considerando as formas
que a cultura assume, em particular a popular, já que nesta há a possibilidade de
criação como potência, para além da reprodução do existente. A junção de tradições
díspares, nesse sentido, pode potencializar o caráter criativo da cultura popular ao
se fazer representar como absorção e negação da cultura transplantada. Já que a
criatividade popular só pode se expressar, em determinadas condições, como
resistência.
No contexto da escravidão, por exemplo, tais tradições díspares envolviam,
no caso dos escravos negros, expressões culturais originárias de seu continente,
recuperadas nos espaços de trabalho forçado. A contestação da racionalidade do
trabalho que pauta a construção da sociedade burguesa era feita espontaneamente
50
nas rodas de capoeira, por exemplo, consideradas oficialmente, por muito tempo,
como vadiagem.
Quanto aos índios, a manutenção de expressões culturais originárias seria a
afirmação de outra racionalidade possível e de outra forma de se relacionar com a
natureza e com o trabalho; inviabilizadas por meio de genocídios perpetuados como
forma de imposição cultural, política e econômica.
Ribeiro (2006) nos permite imprimir concreticidade a essa afirmação ao
analisar a situação dos caboclos da Amazônia. Segundo o autor, a Amazônia
era ocupada, originalmente, por tribos indígenas de adaptação
especializada à floresta tropical. A maioria delas dominava as técnicas de
lavoura praticadas pelos grupos Tupi do litoral atlântico, com que se
depararam os descobridores. Em algumas várzeas e manchas de terra de
excepcional fertilidade e de fácil provimento alimentar, através da caça e da
pesca, floresceram culturas indígenas de mais alto nível tecnológico, como
as de Marajó e de Tapajós, que podiam manter aldeamentos com alguns
milhares de habitantes (RIBEIRO, 2006:279).
No final do século XIX, início do XX, se desenvolve um processo de
exploração dos seringais nativos, favorecido pelo estabelecimento de comunicações
diretas por meio dos rios. Tal exploração deságua na emigração em massa de
nordestinos para a Amazônia (para trabalhar na exploração dos seringais), bem
como no ataque à floresta e aos povos originários que ali habitam.
Mais de metade da população original de caboclos da Amazônia já foi
desalojada de seus assentos, jogada nas cidades de Belém e Manaus.
Perde-se, assim, toda a sabedoria adaptativa milenar que essa população
havia aprendido dos índios para viver na floresta (RIBEIRO, 2006:278).
O autor destaca ainda a qualidade do artesanato desses povos, cujo modo de
vida tinha caráter tribal-comunitário. A riqueza dessas comunidades representa,
paradoxalmente, o inverso da situação cunhada pela exploração dos seringais, a