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Dissertação de Mestrado intitulada Expropriação e resistência: produção de cultura em condições de acumulação primitiva. Versa sobre a produção de cultura e a necessidade de resistência a partir da análise da formação social brasileira. Partimos do pressuposto de que a acumulação primitiva tem sido estruturante na constituição do Brasil enquanto país de capitalismo periférico. Observamos ainda o Coletivo de Cultura do MST-Movimento Sem Terra e apontamos a
potencialidade contida nas lutas sociais que colocam a recuperação da possibilidade de produzir cultura em consonância com a necessidade de produção da vida para além dos limites de valorização do capital, no contexto da redemocratização seguida
pelo agravamento das formas de regressão social.

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Published by Larissa Murad, 2017-04-21 11:09:15

Dissertação Larissa Murad

Dissertação de Mestrado intitulada Expropriação e resistência: produção de cultura em condições de acumulação primitiva. Versa sobre a produção de cultura e a necessidade de resistência a partir da análise da formação social brasileira. Partimos do pressuposto de que a acumulação primitiva tem sido estruturante na constituição do Brasil enquanto país de capitalismo periférico. Observamos ainda o Coletivo de Cultura do MST-Movimento Sem Terra e apontamos a
potencialidade contida nas lutas sociais que colocam a recuperação da possibilidade de produzir cultura em consonância com a necessidade de produção da vida para além dos limites de valorização do capital, no contexto da redemocratização seguida
pelo agravamento das formas de regressão social.

Keywords: Coletivo de Cultura MST,Colonização brasileira,Expropriação e resistência,Cultura

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acampados assassinados durante a luta pela terra, como forma de ativar a memória
coletiva.

Ademar Bogo, em documento resultante do quinto Congresso Nacional do
MST, trabalha a perspectiva da mística como uma forma de representação e
também um tipo de vivência: “é uma grande escola de formação política porque
mexe com o imaginário das pessoas (...) desse modo, as pessoas vêem a política
com prazer”. Logo, por meio da simbologia cria-se um imaginário coletivo
diferenciado acerca das lutas populares e da realidade de exploração vivenciada.

Essa compreensão implica no próprio nascimento do MST, visto que o
Movimento recupera formas de lutas populares recriando outras historicamente
“derrotadas”. Silva (2005) aponta 1979 como o ano no qual trabalhadores e
trabalhadoras rurais reiniciaram a luta pela terra ao se organizarem para realizar
ocupações. O MST se oficializa como movimento social em 1984, mas tem nesse
período anterior sua gestação, a qual ocorre com a retomada (e posterior superação)
da herança das Ligas Camponesas.

Logo, juntamente com Silva (2005:11), podemos afirmar que “o Movimento
Sem Terra foi construído com base em elementos históricos da luta pela terra,
calcado nas lutas que o antecederam”. Recuperar expressões de resistência como
elemento formativo é uma maneira tanto de recolocar historicamente as lutas
populares em outro patamar, resignificando o próprio conceito de cultura popular,
quanto de criar uma unidade em torno de sentimentos coletivos acerca da injustiça
gerada por esse modo de produção.

As manifestações construídas no Coletivo de Cultura86 recuperam os
sentimentos e a cultura dos trabalhadores sem terra de maneira lúdica. Porém há o

86 A dissertação de Mittelman (2006) e a monografia de Silva (2005), citadas anteriormente trazem
exemplos compilados de tais manifestações, principalmente teatrais.

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trabalho formativo de criar outras formas de elaborar ludicamente a experiência dos
trabalhadores sem terra, indo para além da mística. No documento do quinto
Congresso Nacional do MST, por exemplo, a mística é compreendida como o
diferencial do Movimento por ser a dimensão estética da organização política. Porém
há ao mesmo tempo o reconhecimento do teatro como experiência estética que se
diferencia da mística, apesar dos pontos de contato.

O que está em questão no documento é a criação de uma sociabilidade
mediada pela estética. O objetivo de criar uma sociabilidade que não se resuma à
mercantilização das relações coloca então a necessidade de se desenvolver uma
experiência estética diferenciada, vinculada à experiência política:

é constituinte da experiência política do MST a experiência estética, a
estetização da experiência política ou a vivência da análise política através
da experiência estética. De certa forma, o que o coletivo de cultura
desenvolve hoje é algo que já estava no início, talvez não com os conceitos
que tem hoje, mas enquanto vivência, experiência, atividade real, prática
(...) não é só o momento da representação, mas toda a experiência 87.

Observamos aqui a pertinência da utilização do conceito de cultura
desenvolvido por Raymond Williams, pois a cultura produzida na dinâmica do
Movimento Sem Terra avança em seu caráter de resistência a partir da experiência e
da vivência dos trabalhadores-produtores, as quais são sistematizadas em seu
caráter coletivo. Há no Movimento a compreensão de que a experiência organizativa
tem uma dimensão pedagógica e a partir desse processo se produz cultura. Por sua
vez, as manifestações artísticas sintetizadas e lapidadas pelo Coletivo de Cultura
auxiliam no processo de elaborar politicamente a experiência desses trabalhadores.
Nesse sentido, contribuem para a organização política, para além da qualificação
técnica.

87 O campo da estética. Quinto Congresso Nacional do MST.

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Há, no entanto, a necessidade de cautela para que as manifestações
produzidas pelo Coletivo não causem o mesmo efeito propiciado pela indústria
cultural, qual seja, o de naturalizar os fenômenos ou torná-los espetáculo,
principalmente por meio da técnica da repetição. Conforme destaca Sérgio de
Carvalho, “torna-se importante não mostrar como a vida é – pois isso seria
naturalismo, poderia dar a sensação de que a injustiça seria natural – e sim como a
vida não deveria ser” 88. Nesse sentido, há a necessidade de imaginar para criar o
novo.

O conceito de edificadores, presente na fala de lideranças do movimento
como Ademar Bogo89, por exemplo, define precisamente a idéia que pauta o
Coletivo de Cultura em seu caráter comum. A experiência da construção da Escola
Nacional Florestan Fernandes90 traduz esse conceito na práxis almejada pelo MST,
bem como recoloca o Coletivo de Cultura como parte de uma totalidade; na qual a
cultura em seu caráter de resistência é uma busca em comum pela criação de outras
práticas sociais que não as dominantes. Tais práticas têm a potencialidade de
edificar o homem novo ao torná-lo parte criativa no processo de construção material
de sua própria riqueza.

Cabe lembrar que isso envolve a recuperação da perspectiva subjacente no
método de Paulo Freire, segundo a qual as massas são agentes educadores
(LOBO, 2005). Tal percepção contraria a proposição iluminista da educação como
saber e prática restrita aos educadores. Marx já trabalhava essas questões nas
teses ad Feuerbach, principalmente na tese III ao trazer a necessidade do educador
ser educado.

88 In: Silva, op.cit.
89 Cf. http://www.youtube.com/watch?v=CsIxQ1BO7oU .
90 Cf. Lobo, op.cit.

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Segundo Lobo (2005:15) foi o investimento na formação de massas que
possibilitou ao MST desenvolver “um trabalho político-organizativo sistemático,
independente do fluxo e refluxo do movimento de massas”. Retomando o
pensamento de Raymond Williams, podemos concluir que a organização intentada a
partir da formação se configura em uma herança para a humanidade, tendo em vista
a proposição de novas formas de travar as lutas sociais no contexto neoliberal.

Segundo Williams (1977), os partidos políticos e sindicatos foram a herança
legada pela classe trabalhadora à humanidade. No caso de um movimento como o
MST, o qual recupera formas de resistência por meio da recriação da cultura popular
(e intenta o movimento de superá-las criando o novo), entendemos a produção
cultural do movimento como um legado que unifica e recria o sentimento da
exclusão, elaborando-o.

Nos meios de massa dominantes, a cultura popular não encontra espaço para
se manifestar como resistência e construção da vida, somente enquanto mercadoria
e moda, ou seja, apenas em sua forma reificada. Nesse sentido, o Coletivo de
Cultura traz a possibilidade de expandir a produção cultural do MST em seu sentido
formativo, potencializando a elaboração em comum, para além do sentimento
provocado pela identificação imediata com a realidade retratada.

A relação entre formação e organicidade destacada por Lobo (2005) é então
um meio possível na tentativa de superação das amarras do nosso tempo, as quais
se expressam também culturalmente, ou melhor, na forma dominante de produzir e
difundir cultura. No contexto de predomínio da indústria cultural, a possibilidade das
massas expropriadas produzirem cultura encontra brechas para se realizar na ação
política e nas formas organizativas que compõem o MST – criadas de maneira
dinâmica durante as ações de luta e resistência. Logo, o Movimento expressa um

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processo organizativo que produz acúmulo cultural e político em sua intenção de
romper as amarras do capital – as quais se fazem mais presentes conforme o
caminhar.

Lobo explicita que

a compreensão da dialética da cultura, enquanto vida presente, produção
de memória e de projetos futuros, abre caminhos para o entendimento da
vida social produzida pelo MST, onde a formação cultural está intimamente
vinculada as condições sociais e históricas dos trabalhadores/as (LOBO,
2005:20).

Nesse sentido, conforme já indicamos a compreensão de Raymond Williams e
E.P.Thompson acerca do conceito de cultura pauta nossa leitura no que tange à
construção cultural em um movimento de massas. Afinal, entendemos que cultura
significa, para além de manifestações artísticas, modo de vida. E essa é uma das
contribuições mais significativa do MST: a busca pela construção de modos de vida
diferenciados a partir da recuperação da experiência social de suas bases. O MST
em seu Coletivo de Cultura sistematiza o acúmulo de experiência das lutas
históricas, bem como o acúmulo propiciado pela junção de massas expropriadas de
origens diferenciadas em suas bases, potencializando assim a capacidade
representativa dessas massas política e culturalmente por meio da experiência
estética.

Ao se tornarem produtores de cultura, essas massas estão também
colocando em questão a histórica exclusão intelectual e artística que costeia a
formação do Brasil enquanto nação. Ao observarmos a relação do movimento com o
teatro, por exemplo, percebemos que o Coletivo recupera a perspectiva dos CPC’s,
porém em outras bases. Visto que tanto os militantes quanto os assentados, ao
serem considerados produtores de cultura, rompem o fosso antes existente entre

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intelectuais e massa. Tal ruptura foi intentada já pelos CPC’s, porém a ditadura teve
o efeito inverso, no sentido de aprofundar esse fosso.

Ao objetivar a democratização não só do acesso, mas também da produção
de cultura, o Coletivo recoloca em cena a representação lúdica, artística, de temas
vivenciados pela população explorada. A mística já mobilizava sentimentos
representando-os esteticamente, movimento que no teatro é retomado e requer a
elaboração constante em todas as fases, desde a preparação da peça à sua
encenação e discussão coletiva, até sua modificação propiciada pela participação
dos “espectadores”. Ou seja, no teatro os próprios meios de produção são
questionados e as questões cotidianas aparecem como experiência de formas
diferenciadas. Mobiliza-se então a imaginação e os sentimentos de formas
diferenciadas para elaborar coletiva e criticamente a experiência, representando-a
esteticamente do ponto de vista dos trabalhadores.

Conforme ilustram Riciere e Garcia ao destacar o crescimento de parcerias
entre o MST e artistas e intelectuais atuantes na arte crítica:

Membros do Centro do Teatro do Oprimido (CTO) trabalharam com os
integrantes da Brigada Patativa do Assaré, representante dos 23 estados
em que o MST atua, num contato que produziu de início várias cenas de
Teatro Fórum, sendo os temas das peças definidos pelos participantes. Um
desses assuntos recorrentes foi a discriminação racial. O Teatro Fórum
demonstrou, assim, ‘capacidade de identificar problemas de opressão e
discriminação que as comunidades acampadas e assentadas tinham
dificuldade de expor em reuniões e assembléias’, nas palavras de Villas
Boas, apontando ainda outras questões críticas do cotidiano das pessoas,
como machismo, violência doméstica, discriminação dos sem terrinha nas
escolas da cidade e o preconceito em torno da educação sexual.

Assim, questões cotidianas podem se transformar em elos entre as massas
historicamente expropriadas ao se constituírem como parte do imaginário social por
meio da produção de uma arte e uma cultura em comum. No documento do quinto
Congresso Nacional, coloca-se ainda a parceria com o grupo Redemoinho e a partir

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dessa destaca-se outro diferencial referente à produção artístico-cultural e à
organização do Movimento:

são grupos que são de dentro do movimento mesmo, que atuam e que,
então, produzem uma representação estética e imaginária sobre a própria
experiência política, histórica e social. Acho que isto coloca para o conjunto
da organização uma percepção do potencial político da arte, da cultura,
diferente do que foi em outros momentos porque isto se torna questão
estrutural do processo de configuração do MST.

Em um contexto no qual tanto a produção quanto a difusão da cultura
necessita de tecnologia e inovação, a produção cultural de um movimento social de
massas sem terra tem que ser considerada em sua dimensão de classe, no sentido
da possibilidade que traz de constituição de interesses comuns entre os explorados
– os quais não se esgotam na luta pela terra.

Uma das coordenadoras do Coletivo de Cultura do MST, Evelaine Martines,
lembra que a tarefa de desenvolvimento do projeto cultural do movimento
exige uma crítica da cultura dominante em seu caráter de classe: ‘a cultura
pode formar identidade desde que não desconsidere seu processo histórico
de elitização, em que ela foi tirada da mão dos trabalhadores. E é essa
situação que precisa se transformar’. A fundação recente da Escola
Nacional Florestan Fernandes (SP), destinada à formação geral de
militantes, assinala um momento do MST em que ganha nova importância a
formação cultural como um todo. Quando organizada politicamente, a
produção cultural revela seu real sentido comunitário (Riciere e Garcia).

Observamos que assim como o Coletivo de Cultura, há outros espaços
formativos no MST nos quais a cultura ganha destaque como forma que expressa
vivências e potencializa a elaboração coletiva em torno de um objetivo comum. Na
citação acima temos a construção da ENFF como momento no qual a formação
cultural ganha destaque em seu caráter político-organizativo. Ambos compartilham
esse viés de formação a partir da cultura e surgem de necessidades vivenciadas
pelo Movimento. Constituem-se então em formas organizativas que expressam os
rumos que o MST tomou durante esses anos de luta.

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Afinal, o Movimento começa com a luta pela terra e se constitui em
anticapitalista ao se deparar com a compreensão de que a luta necessária não pára
na conquista da terra. Antes, envolve a possibilidade de emancipação humana como
horizonte (possível e desejável). A luta pela emancipação no Brasil começa com a
luta pela terra e pelas reformas básicas e vai além dessas na busca pelas condições
nas quais o desenvolvimento humano em sua plenitude possa se realizar.

Nesse sentido, Lobo (2005) aponta que o MST recupera a luta das Ligas
Camponesas e vai para além dessas em sua luta contra o capital. Entendendo que o
capitalismo em seu período de apodrecimento é incompatível com a própria noção
de humanidade e que a reforma agrária não se viabilizaria nesse momento histórico
como uma simples reforma capitalista.

A questão da Reforma Agrária no Brasil atual supera o sentido de uma
reforma capitalista, visto que ao arraigar-se como problema secular e ao
possibilitar o surgimento de um movimento social de massas como o MST,
recupera o forte sentido político projetado pelas Ligas Camponesas,
superando sua crítica contra o arcaico latifúndio de nova roupagem em
direção a uma luta contra o capital em sua forma mais avançada (LOBO,
2005:80).

O MST expandiu os horizontes da luta pela terra ao perceber-se imerso em
um contexto histórico diferenciado. E durante sua jornada outras necessidades (re)
surgiram, para além da luta pela terra, como a de criar novos meios para a formação
e organização dos trabalhadores Sem Terra objetivando a superação do capitalismo
em última instância. Conforme se observa no Programa de Reforma Agrária
apresentado pelo Movimento em 1995, o qual busca a democratização da terra, dos
meios de produção, bem como a implementação de um modelo tecnológico não-
predatório e a formação técnica e política dos trabalhadores rurais. Objetivos não-

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compatíveis com a manutenção do capitalismo em seu caráter extremamente
predatório.

O Coletivo de Cultura expressa então uma tentativa de sintetizar a cultura
produzida em movimento, na dinâmica das lutas, de alargar os espaços de
discussão política por meio da arte, bem como responde a necessidades colocadas
no decorrer do processo de fazimento do MST, movimento que atualmente não pode
manter-se limitado à luta pela terra.

Entendemos que o Coletivo enquanto parte de um todo potencializa a
formação e auto-representação dos trabalhadores e em conseqüência, atua como
um mediador no processo organizativo; isso não sendo considerado como uma
instância estanque, separado dos outros setores que compõem o Movimento, mas
sim como momento de síntese das experiências e vivências dos Sem Terra que
integram o MST e produzem cultura para além dos limites do capital – recriando
assim suas condições de embate com o mundo tal como está colocado.

Considerando a história de exclusão política das massas brasileiras, o
Coletivo de Cultura e o MST enquanto totalidade tem como conseqüência o
questionamento do processo de construção do Brasil como nação. Principalmente
ao recuperar a resistência que pautou diversas lutas históricas e marcou a
originalidade da cultura popular brasileira.

O Antônio Cândido, quando foi na inauguração da biblioteca da Escola
Nacional Florestan Fernandes, falou muito sobre a importância política na
luta de classes de um imaginário fora de um imaginário já colonizado,
estruturado, pautado pelas estruturas do capital, pela indústria cultural, a
importância de a gente ter no horizonte de uma organização política a
compreensão de como o imaginário desta forma de organização que negue
o capital se configura. É claro que, nos campos da produção da vida social
do movimento, é um processo que começa a se desenvolver com uma
porrada de contradições e, também, tem a base econômica muito forte
nisso, porque a privação cultural, estética, a privação simbólica, ela também
é muito mais acentuada nas camadas sociais de baixo poder aquisitivo que,

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no caso, não têm acesso ao teatro porque não existe teatro nas áreas rurais
(5º Congresso Nacional do MST – O campo da estética, 2007).

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5 Considerações Finais

Conforme pudemos observar, o MST apresenta potencialidades no sentido de
realizar a resistência aos avanços do capital em seu caráter regressivo, também no
que tange à arte e à produção de cultura. A conformação de uma estética vinculada
à luta política e às condições de vida da população explorada, a tentativa de romper
com a divisão do trabalho e a necessidade de produzir outra forma de sociabilidade
não centralizada na mercadoria, são alguns caminhos abertos pela práxis do
Movimento e pavimentados pelo Coletivo de Cultura.

Não podemos desconsiderar, porém, que os avanços conquistados pelo
Movimento Sem Terra esbarram em limites históricos que condicionam as lutas
sociais no geral, no contexto de mundialização do capital e em particular na vivência
na periferia do capital.

José Paulo Netto91, ao discorrer sobre concretização de direitos no mundo
contemporâneo, lembra que “qualquer debate sério sobre direitos no mundo
contemporâneo deve começar pelo reconhecimento do óbvio condicionalismo dessa
contemporaneidade pela mundialização do capital” (NETTO, 2008:4). O autor elenca
algumas implicações nefastas da mundialização do capital: a enorme concentração
do poder econômico, incompatível com a idéia de controle democrático; a erosão da
soberania dos Estados mais frágeis; a predominância do capital financeiro; e a
consequente deterioração profunda das condições de vida e trabalho tanto nas
periferias quanto nos centros do sistema.

Perante esse quadro, pensar um Movimento Social com o acúmulo do MST
requer a análise desses limites estruturais (gerais e particulares), os quais podem

91 XIX Conferência Mundial da Federação Internacional dos Trabalhadores Sociais. Salvador ∕ Bahia,
agosto de 2008.

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provocar ações de reação e resistência ao colocarem a urgência da transformação
social como horizonte de luta em prol da própria realização da humanidade.

Afirmamos acima que o MST nasce justamente do acirramento das
contradições originadas no processo de acumulação primitiva brasileiro, provocado
pela modernização conservadora; porém em um momento propício, no qual a efetiva
democratização das relações se colocava como possibilidade real.

Já o cenário imediatamente posterior (década de 1990 em diante) apresenta
condições históricas desfavoráveis para a afirmação de práticas sociais
revolucionárias, consolidando no bojo da mundialização do capital a mercantilização
total das relações sociais – fenômeno que reflete na produção de cultura, logo, na
produção da sociabilidade contemporânea, conforme vimos.

Assim, se coloca o desafio de concretizar as potencialidades encontradas no
desenrolar da construção de um movimento social como o MST, o qual tem buscado
traduzir as necessidades de suas bases em ação criadora. Assim podemos sinalizar
os limites e possibilidades que perpassam a construção contínua do Coletivo de
Cultura.

Novamente, a análise de Netto (2008) quanto à efetivação de direitos pode
ser emprestada para pensarmos o objetivo último da luta do MST, para além do
direito a terra, em seus limites e em suas condições objetivas de efetivação:

A possibilidade de ampliar, universalizar e concretizar direitos é posta
objetivamente pelo grau de desenvolvimento das gigantescas forças
produtivas acumuladas nos dias de hoje pela humanidade; (...); há
condições reais de construir a auto-gestão da vida social, propiciando a
todos os homens e mulheres as bases para a sua auto-reprodução num
horizonte de emancipação.
O limite que trava esse enorme potencial reside nas relações de
propriedade e poder existentes. Toda a experiência histórica da
humanidade indica que, em épocas onde se dá a colisão ente o potencial de
desenvolvimento e as exigências das relações de propriedade e poder
vigentes, ou estas últimas são rompidas ou se abre um longo período de
regressão social. Não há, nesta história, nenhum determinismo, nenhuma

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teleologia. Por isto mesmo, se a luta pela concretização de direitos parece
travar-se em condições adversas, nada indica que tais condições
perdurarão indefinidamente (NETTO, 2008:14).

Nesse sentido, em um período de aberta regressão social, podemos observar
que o MST se constitui em uma possibilidade real de pavimentar outros caminhos,
principalmente ao questionar as relações de propriedade, produção e de poder
instituídas e ao propor a construção de formas de sociabilidade dissonantes.
Entendemos que a recuperação do potencial caráter de resistência da cultura
popular é elemento inerente a esse processo. A construção do novo aparece assim
a partir de práticas sociais que colocam a necessidade de produção de cultura como
produção e reprodução de formas de vida diferenciadas, as quais possam fazer
frente à barbárie. O desafio é a generalização e a manutenção de tais práticas em
condições extremamente adversas.

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RICIERE, Daniele e GARCIA, Maria Cecília. O exemplo da ação teatral no MST.

Imagem da capa adaptada do Acervo do MRE. Disponível em:
http://www.dc.mre.gov.br/imagens-e-textos/imagens-do-brasil/cultura/artesanato.
Acesso em: abril de 2011.


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