51
qual envolve pobreza, aviltamento, miserabilidade, etnocídio. Nesse sentido, a forma
de se relacionar com os outros homens e com a natureza – a forma cultural – muda
radicalmente na lógica da acumulação, pois para os exploradores a floresta seria
somente um óbice a ser ultrapassado.
Impossibilitado de cultivar a terra para sua própria subsistência e expropriado
de suas relações sócio-territoriais familiares e comunitárias, os povos originários têm
as manifestações de sua cultura de outrora reduzidas a formas possíveis
(geralmente iletradas e em alguns momentos brutalizada) de expressar dores e a
maneiras conseqüentes de suportar o processo desgastante de trabalho, bem como
a miséria e a brutalidade às quais são submetidos. Conforme notamos a partir de
Ribeiro (2006), a manutenção de elementos culturais originários carrega a
criatividade que possibilita criar o novo, em um processo de auto-refazimento
necessário à manutenção da humanidade.
Podemos indagar então quais as conseqüências da expropriação da cultura
perpetrada posteriormente pela indústria cultural, quando, em um momento de
aceleração do desenvolvimento e da modernização, os elementos criativos são
esvaziados de seu potencial revolucionário ao serem contidos pelo crivo da
universalização da mercadoria.
Ribeiro (2006) entende que as manifestações culturais desses povos que
compõem o Brasil podem preencher a ausência de uma história escrita pelos
segmentos dominados. Na medida em que esses foram escravizados e/ou obrigados
a sair de seu país de origem devido à necessidade do excedente e desgastados em
função do mesmo, sua contribuição cultural teria o sentido de constituir uma cultura
52
nova – brasileira, já que o país foi fundado nessa lógica31. Há aqui uma dialética
entre conformação e resistência32.
A obra de Darcy Ribeiro aponta para o reconhecimento de um sentimento de
desagregação social devido à ausência de uma unidade sócio-cultural capaz de
representar uma auto-elaboração coletiva. Esse sentimento se expressa também na
leitura da formação brasileira feita por Caio Prado Jr., principalmente no
entendimento desta como eminentemente inorgânica.
Segundo Menegat (2010:40), Caio Prado Jr. analisa a formação da sociedade
brasileira como “um corpo desagregado que beira ao inorgânico”. A definição de
inorgânico estaria ligada ao sentido da colonização, do qual advém o duplo caráter
da barbárie, mas também às relações sociais produzidas por esse sentido,
expressas na
reificação das relações entre escravos e senhores, que dominou as relações
constitutivas da formação da sociedade impondo a uma imensa massa uma
condição absolutamente desumana de existência. Pode-se dizer que esta
relação é um elemento constitutivo dos métodos bárbaros utilizados na
empresa comercial de onde derivou a formação desagregada (MENEGAT,
2010:41).
Logo, a condição de existência imposta às massas relegadas ao lugar de
produtores expropriados para atender às necessidades do mercado externo – e não
às suas próprias –, combinada à impossibilidade de elaboração política dessa
condição, possibilitou a barbárie em sua forma mais brutal como permanência
oriunda do processo de acumulação primitiva.
31 Entendo que há na obra de Ribeiro o desejo e a expectativa de ver realizada a unidade étnica e
cultural brasileira, apesar do autor ressaltar constantemente a distância social e étnica como
elemento intrínseco à nossa dinâmica social. Sem a elaboração de um sentimento coletivo, porém, a
unidade projetada pelo autor é inviabilizada. A práxis construída em movimentos sociais carrega essa
elaboração como potencialidade, principalmente quando é referente à percepção da cultura como
constitutiva do fazer política.
32 Na dissertação intitulada “Folias do carnaval e lucros do capital”, Calleia mostra como essa dialética
de contenção da cultura popular, imposição de uma oficialidade e resistência ocorre ao longo do
desenvolvimento do carnaval carioca.
53
Cabe apontarmos alguns elementos presentes em Ribeiro que consideramos
fundamentais para a análise dessas condições de existência das massas, apontadas
por Prado Jr. em sua leitura acerca da formação social brasileira, objetivando
ressaltar elementos impeditivos à construção cultural autônoma e a insistência da
mesma em permanecer como possibilidade de auto-reconstrução.
Condicionada por necessidades alheias às suas próprias, a massa
trabalhadora brasileira – formada pelos segmentos expropriados de seus meios de
subsistência, a começar pela terra – é historicamente marcada por ter sido utilizada
como um “proletariado externo” (RIBEIRO, 2006); ou seja, por ter sido desgastada
em um processo produtivo (seja como escrava ou como força “liberta”) que obedece
à necessidade imperiosa de gerar lucros exportáveis pelo ato de prover bens para o
mercado mundial.
Segundo o autor, constitui-se uma sociedade impedida de legislar em causa
própria, devido ao seu caráter de implante necessário e conseqüente à/ da
expansão européia. Em sua formação e consolidação, a condição inicial de gerador
de lucros externos tem como corolário o desgaste físico e espiritual dos segmentos
recrutados violentamente como força de trabalho. Bem como o empobrecimento das
bases de acumulação internas e a forma de inserção na divisão do trabalho,
conforme indica Oliveira (2003).
Ribeiro (2006) utiliza o conceito “moinhos de gastar gente” ao aludir às
diversas etnias que sofreram esse desgaste na construção do país, ou seja, no
processo colonial de acumulação primitiva. Incluindo os mamelucos paulistas
(brasilíndios), os afro-brasileiros e seus diferentes grupos étnicos.
A partir dessa categoria analítica, o autor desenvolve a formação do povo
brasileiro considerando as etnias que surgiram no convívio dos colonizadores com
54
os colonizados. Aponta ainda algumas contradições surgidas nesse convívio com o
aparecimento dessas novas etnias, como a rejeição dos mamelucos paulistas pelos
povos originários. Perante a ausência de reconhecimento e identificação social com
seu próprio grupo de origem, esse novo grupo étnico entrou para a história como
eficiente agente da civilização33. Consideradas ainda as condições de pobreza da
feitoria paulistana, os mamelucos paulistas acabaram se constituindo como grupo
étnico particular a partir da atividade de caçar índios para escraviza-los, a qual
contribuiu com o propósito da dominação.
Com esse conceito o autor ressalta óbices conseqüentes da escravização dos
negros e dos indígenas à construção cultural autônoma de tais povos:
A empresa escravista, fundada na apropriação de seres humanos através
da violência mais crua e da coerção permanente, exercida através dos
castigos mais atrozes, atua como uma mó desumanizadora e deculturadora
de eficácia incomparável. Submetido a essa compressão, qualquer povo é
desapropriado de si, deixando de ser ele próprio, primeiro, para ser ninguém
ao ver-se reduzido a uma condição de bem semovente, como um animal de
carga; depois, para ser outro, quando transfigurado etnicamente na linha
consentida pelo senhor, que é a mais compatível com a preservação dos
seus interesses. O espantoso é que os índios como os pretos, postos nesse
engenho deculturativo, consigam permanecer humanos. Só o conseguem,
porém, mediante um esforço inaudito de auto-reconstrução no fluxo do seu
processo de desfazimento (RIBEIRO, 2006:106).
Penso que tal esforço de reconstrução passa pela recuperação de elementos
de sua cultura originária, dinâmica de produção cultural que se afirma como um
processo de resistência expresso nas lutas sociais. Como a produção de cantigas
que guiavam os negros fugidos das fazendas até o local no qual estariam seguros –
geralmente os quilombos. Assim Ribeiro (2006) aponta que, ao serem desgastados
na produção de bens exportáveis, além de passarem por um processo de
33 Para aprofundamento cf. Ribeiro, op.cit., p. 95 a 101.
55
desumanização, os povos explorados originam formas possíveis de resistência
cultural à exploração sentida duramente.
Logo, os impedimentos que se colocam como determinantes, apesar de
estruturais, não são estáticos, ou seja, há a necessidade de indagarmos até que
ponto os obstáculos colocados pelo processo de colonização e pela forma
conseqüente que delineia a cultura política brasileira são resignificados pela práxis
dos sujeitos coletivos que se formam em diferentes momentos históricos, inclusive
na forma de ressignificação cultural. E qual o poder político que esses atores sociais
desenvolvem, no sentido de formação cultural desenvolvido por Ortner (2007) e já
posto em Marx, nas teses ad Feuerbach34.
Além de mobilizar forças para o enriquecimento da metrópole, a acumulação
primitiva no Brasil é marcada por seu caráter etnocida, visto que se perpetuou por
meio da escravidão dos negros e indígenas. A própria consolidação do Brasil como
nação passou por esses meios espúrios, os quais serviram aos fins de
enriquecimento de uma minoria branca e perpetuaram as alianças entre a burguesia
estrangeira e a – posteriormente formada – burguesia nacional, a qual não costuma
ter em conta seus conterrâneos como aliados potenciais no processo de formação
nacional.
Configura-se em diferentes momentos históricos um pacto entre segmentos
de classe, o qual adia indefinidamente uma possível supressão da hegemonia de
uma classe por outra em um processo revolucionário. Conforme vimos, a própria
constituição em classe carrega marcas que a particularizam. Os segmentos que
destoam do pacto firmado ou que ameaçam de alguma maneira o projeto dominante
são tratados por meios ilegítimos, porém historicamente institucionalizados. Segundo
34 Pretendo desenvolver essa discussão nos próximos capítulos.
56
Ribeiro (2006:20), a unidade nacional que alcançamos posteriormente “resultou de
um processo continuado e violento de unificação política, logrado mediante um
esforço deliberado de supressão de toda identidade étnica discrepante e de
repressão e opressão de toda tendência virtualmente separatista”.
As conclusões do autor acerca de uma potencial unidade étnica e nacional
apontam para o entendimento de que o “povo- nação” possível nessas condições
surge apesar de processos de genocídio e etnocídio. Ou seja, a unidade social
brasileira guarda em seu esqueleto a exacerbada distância social resultante da
“estratificação classista de nítido colorido racial e do tipo mais cruamente
desigualitário que se possa conceber” (RIBEIRO, 2006:21), produzida pelo processo
de formação nacional. Para o autor, o antagonismo classista aqui se exacerba,
opondo uma camada privilegiada extremamente estreita à massa da população.
Logo, há latente em uma suposta uniformidade étnico-cultural “tensões
dissociativas de caráter traumático” (IDEM), as quais têm origem no processo de
acumulação primitiva e que geram esse sentimento de que somos uma sociedade
inorgânica. O povo brasileiro seria possível então enquanto uma construção das
classes subalternas, tendo as classes dominantes brasileiras um caráter de agente
externo.
Ribeiro (2006) identifica ainda a latência de convulsões anárquicas,
provocadas também pela amargura advinda dos preconceitos e do sentimento de
injustiça, as quais são combatidas historicamente com “revoluções preventivas” que
vêm para remediar as falhas do sistema de contenção35. (Note-se que há novamente
aqui a dialética entre conformação e resistência produzida por uma cultura popular
35 Também entendida como contrarrevolução. A ditadura civil-militar de 1964 é o exemplo mais
palpável dessa reação perante a mínima organização progressista – ainda que no âmbito do
reformismo – por parte de segmentos da esquerda.
57
que resiste à repressão oficial.) Assim, o autor aponta para a persistência de um
medo racial, visível quando os antagonismos sociais estão prestes a explodir.
Nas lutas travadas ao longo da história, os segmentos explorados que nelas
se engajaram instituíram e resignificaram determinadas práticas sociais, porém não
conseguiram suprimir a situação opressiva de dependência e expropriação,
tampouco (re) tomar as rédeas de seu destino social36 – confundido
esperançosamente com o destino da nação, o qual só tem reforçado a condição de
desigualdade. Ou seja, há um saldo negativo no sentido até físico resultante do uso
feito pelas classes opressoras da violência, já que essas sempre fizeram de tal
instrumento uma “arma fundamental da construção da história” (RIBEIRO, 2006:23),
bem como da própria (ausência de) memória histórica.
Podemos retomar aqui a reificação apontada por Menegat (2010) das
relações entre escravos e senhores, a qual pode nos auxiliar na compreensão da
sociabilidade que pautou, também se reproduzindo como uma permanência, o
convívio dos segmentos sociais brasileiros. Alencastro aponta a perversidade desse
convívio marcado pelas relações sociais que se originam na escravidão:
a dependência do tráfico negreiro e da escravidão também deixou efeitos
perversos entre nós. O fato de pilhar durante três séculos a mão-de-obra
das aldeias africanas facilitou o extermínio das aldeias indígenas, tornadas
desnecessárias, e gerou entre os senhores de engenho, os fazendeiros e o
próprio governo, uma brutalidade e um descompromisso social e político
que até hoje caracterizam as classes dominantes brasileiras
(ALENCASTRO, 2008:20).
36 Menegat (2010:41) recupera a importante, porém insuficiente elaboração contida no tipo de
resistência quilombola; já que as rebeliões dos escravos, apesar de significativas, não modificaram
estruturalmente a ordem das coisas.
58
Identificamos, a partir dos autores estudados, a falta de um projeto social
alternativo, o qual elaborado por movimentos sociais pelos quais as massas possam
se fazer representar fosse capaz de reverter esse quadro.
Cabe notar que a consideração dos determinantes étnico-raciais no processo
de acumulação tem sido fundamental para os autores que buscaram suprir
minimamente a ausência histórica de uma teoria que nos defina e nos permita
construir nosso auto-entendimento como sujeitos constituídos e constituintes dessa
determinada formação social. Bem como o entendimento da cultura como produto
das diferentes formas de cultivar a terra37.
A análise do lugar reservado às classes subalternizadas no Brasil passa ainda
pelo entendimento da constituição objetiva de massas excluídas do próprio ato de
fazer política, como fenômeno relacionado também a não-absorção das mesmas
pelas relações formais típicas das sociedades burguesas centrais. Bem como do
entendimento das formas de criação que permitem seu trânsito pelas relações
formais.
Isso nos remete à análise de Marx acerca da acumulação primitiva na Europa
e aos limites a partir dos quais podemos nos apropriar de tal análise para ler a
formação das massas expropriadas no Brasil.
Assim, apontamos acima alguns elementos que particularizam a formação
dos segmentos subalternizados no Brasil, diferenciando-os das elites, com o objetivo
de sinalizar a relação entre a formação estrutural desse particular – o povo brasileiro
– e suas formas singulares de ação política contestatória e de produção de cultura
como resistência, as quais podem reatualizar e ressignificar o ordenamento cultural.
37 Esforço realizado por Sérgio Buarque de Holanda. Menegat (2010) entende que o autor pensou o
estado de barbárie como conseqüência da confrontação entre a civilização rústica (no sentido de
pouco cultivo, cultivo superficial da terra e do espírito), herança colonial e o processo modernizador. A
forma da dialética desses dois mundos seria um traço característico do espírito, da cultura brasileira.
59
Visando elaborar com mais cuidado a produção de cultura em diferentes
momentos históricos, cabe nos determos na independência do país como um marco
que traz novas determinações e consolida velhas contradições como parte do
esqueleto que sustenta as formas de produzir cultura e fazer política. Visto que o
reconhecimento da independência do país perante sua metrópole não modifica de
imediato o estatuto escravocrata que regia as relações de produção.
Buscaremos então apontar alguns determinantes nesse processo, o qual
passa pela transformação sócio-jurídica da condição de escravo em trabalhador
livre, porém modificando apenas a forma de servidão legalmente reconhecida.
Mudança que atinge a forma de produção em todos os seus âmbitos e de forma
mais acentuada quanto à produção de cultura e a participação política.
2.4 INDEPENDENTES E LIVRES, PORÉM NEM TANTO
A independência do Brasil no início do século XIX trouxe novos ares em
termos sócio-culturais. O cenário cultural e econômico do Rio de Janeiro, por
exemplo, já havia começado a mudar com a vinda da família real, conforme aponta
Abreu (1997):
a vinda da família real impõe ao Rio uma classe social até então
praticamente inexistente. Impõe também novas necessidades materiais que
atendam não só os anseios dessa classe, como facilitem o desempenho das
atividades econômicas, políticas e ideológicas que a cidade passa a
exercer. A independência política e o início do reinado do café geram, por
sua vez, uma nova fase de expansão econômica, resultando daí a atração –
no decorrer do século e em progressão crescente – de grande número de
trabalhadores livres, nacionais e estrangeiros (ABREU, 1997:35).
Em seu estudo intitulado “A evolução urbana do Rio de Janeiro”, Abreu
aponta uma contradição que acompanha a formação social brasileira em sua
60
totalidade: relações de produção arcaicas, de base escravista, convivendo com
elementos essencialmente capitalistas, os quais se introduziram em definitivo com a
vinda da família real em 1808. Além das necessidades de consumo já indicadas,
inicia-se um processo que culminará em mudanças na produção de cultura a partir
de 1930, as quais acompanham a industrialização conforme veremos adiante.
A vinda da família real para o Brasil pode então ser entendida como um
marco em termos de início de uma sociabilidade mais voltada para o urbano. No
entanto, o ápice desse processo – a independência do país em 1822 – consolida
formas não participativas, politicamente excludentes, as quais se configuram como
um modelo de revolução pelo alto, ou no caso específico, ausência de uma
revolução legítima.
É sabido que a Independência brasileira não foi uma revolução: ressalvadas
a mudança no relacionamento externo e a reorganização administrativa no
topo, a estrutura econômico-social criada pela exploração colonial
continuava intacta, agora em benefício das classes dominantes locais
(SCHWARZ, 2005:128).
A independência configurou um processo interno às elites, de revezamento no
poder, mantendo a primazia de interesses externos e combinando-os às
necessidades da classe dominante local, que até então representava um amálgama
formado pelos latifundiários e pela nascente classe dominante urbana.
O processo de independência teoricamente consolida a maturidade político-
cultural e econômica de um povo, erigindo-o em nação. No caso brasileiro ocorreu a
constituição da nação enquanto prolongamento das marcas coloniais em outro nível.
Além da permanência de arcaísmos recriados como o latifúndio, permanece o
sentimento de inautenticidade, ou como quer Schwarz (2005), a sensação de que
nossa vida cultural possui um caráter imitativo. A permanência dessa estrutura
61
econômico-social colonial faz com que “as formas modernas de civilização, vindas
na esteira da emancipação política e implicando liberdade e cidadania, parecessem
estrangeiras” (SCHWARZ, 2005:128).
Assim, conforme expõe o autor, nosso sentimento de inautenticidade, de
discrepância, ou ainda de dualidade remete à maneira pela qual o Estado nacional
brasileiro foi construído com a base de trabalho escravo, antiga forma de exploração
do trabalho decorrente de contingências externas. “O modo retrógrado pelo qual o
Brasil rompeu o estatuto colonial e entrou para o concerto das nações
independentes” (SCHWARZ, 1999:83) ocasionou uma sensação de desconcerto:
Tratava-se de incorporar as instituições e idéias necessárias à construção
da jovem pátria, mas isso sem quebra da ordenação social e econômica
formada na Colônia, tráfico negreiro e trabalho escravo inclusive, ordenação
sobre a qual repousariam a liberdade e a prosperidade nas novas
circunstâncias (SCHWARZ, 1999:83).
Em outras palavras, nosso processo de formação nacional carrega
permanências reatualizadas em diferentes momentos da vida política do país, as
quais remetem ao sentido da colonização e nos legam a sensação de discrepância
entre a vida ideológico-cultural do país e sua estrutura produtiva. Tais resquícios
coloniais, ou arcaísmos permanecem também devido à ausência de protagonismo
das massas nos momentos decisórios. Na independência, por exemplo, nos
construímos enquanto nação sem emancipação política; sem que a massa da
população participasse ativamente do processo.
Segundo Menegat (2010), Prado Jr. identifica a permanência da barbárie38
após a independência, acarretada pela ausência de protagonismo das massas, pela
38 Apesar de Prado Jr. identificar a barbárie como expressão de uma formação incompleta, não como
um estado definitivo (MENEGAT, 2010:45), essa caracterização é fundamental para compreendermos
tanto o período em questão quanto o sentimento que a formação brasileira provoca nos autores que
se propuseram a lê-la criticamente.
62
inviabilização da participação política no que poderia ser uma forma de elaboração
comum do sentido da colonização. Para Caio Prado Jr.,
o não protagonismo das classes subalternas era uma das causas da
formação desconjuntada da sociedade brasileira, pois com isso não se
produzia um questionamento do sentido da colonização, que era o fator
determinante da inorganicidade. Além disso, o não protagonismo explicava
a permanência de tal condição e o decorrente laço de diferenciação e
dependência que esta mantém com os modelos civilizatórios de países da
Europa Ocidental. É que as massas ‘mais ou menos à margem da ordem
social’ no Brasil, ao não terem produzido maneiras próprias de ação na
independência, que alterassem significativamente o quadro inorgânico da
formação social, continuaram enredadas no estado de barbárie que era
constitutivo do período anterior, e que agora prosseguia como forma de
dominação da classe dirigente nacional (MENEGAT, 2010:43).
A independência como movimentação política feita “pelo alto” cristalizou
politicamente o sentido da colonização, já que novamente prevaleceram interesses
externos, inorgânicos. Os próprios interesses dos grupos populares mantinham um
contraditório caráter inorgânico. Portanto, em sua leitura de Prado Jr., Menegat
(2010) ressalta que as rebeliões populares ocorridas nesse período estavam
estruturalmente fadadas ao fracasso devido às suas aspirações estarem
organicamente ligadas à estrutura externa fundadora, expressa na idéia de
progresso como redenção.
Ou seja, não havia condições objetivas para irmos além de uma
transformação econômica quantitativa. A classe que Abreu (1997) identifica como
quase inexistente antes da vinda da família real ao Brasil impõe seus interesses no
momento da independência, contribuindo inclusive para a formação de seus
tentáculos nacionais. Arantes (1992:30) aponta que “o suposto Brasil moderno, que
começou a nascer com a Independência, deveria ser uma sociedade de classes,
que no entanto custava a se completar”. Manteve-se, no entanto, a dependência em
diversos sentidos.
63
Em um momento no qual o povo brasileiro poderia “cortar o cordão umbilical”
que mantinha o país caminhando de acordo com as contingências dos
colonizadores, esse não protagonismo político-decisório manteve as amarras que
nos submetem aos interesses externos. Além de apontar a imaturidade do processo,
no sentido de que inexistiam condições para que se efetuasse uma transformação a
partir das aspirações populares; as quais, conforme apontam Abreu (1997) e
Menegat (2010), ainda estavam vinculadas culturalmente à estrutura externa.
Novamente podemos recuperar a situação do convívio incomum do
liberalismo com um sistema baseado na produção para o exterior por meio do
trabalho escravo. Arantes recoloca o sentido da colonização ao apontar que essa
convivência contraditória de liberalismo e oligarquia respondia assim a
exigências externas e internas: encurtando ao máximo a participação social
e política, assegurava a forma de dominação requerida por uma exploração
econômica comandada pelo mercado externo. (...) o liberalismo pesou na
Independência e voltaria a pesar na Abolição, neste intervalo todavia
apresentou-se expurgado de seus pressupostos e implicações de origem
pela presença da escravidão e seus prolongamentos (ARANTES, 1992:82).
Assim, a independência como possibilidade de desenvolvimento autônomo
mantém elementos regressivos, porém constitutivos do progresso da civilização
burguesa. A manutenção de traços arcaicos, como a permanência do escravismo e
a ausência de participação popular nos momentos decisórios, resulta na
permanência do conteúdo colonial. A influência dessa contradição se expressa na
produção da sociabilidade local ao passo em que esta permanece atrelada a
aspirações, tradições, costumes e interesses externos.
Nesse sentido, podemos pensar a cultura popular como resistência a ajustar-
se a imposições de uma racionalidade que não atende a interesses locais, não
sendo assim orgânica, entendendo-a como possibilidade de criação autêntica. Isso
64
em um momento no qual a produção de novas formas de sociabilidade começava a
apontar para a adequação ao modelo civilizatório europeu, o qual é identificado aqui
como tendo a barbárie como elemento constitutivo que impõe uma forma de
sociedade em permanente estado de regressão.
Cabe notar que Schwarz analisa o paradoxo da tentativa de adequação de
um país de capitalismo periférico ao modelo civilizatório europeu a partir da dialética
da malandragem de Antonio Candido. Para Schwarz, essa “dialética dual de norma e
infração” se reflete também na prosa machadiana e no capricho retratado nos
personagens de Machado de Assis:
as elites brasileiras ‘se queriam parte do Ocidente progressista e culto,
naquela altura já francamente burguês (a norma), sem prejuízo de serem na
prática, e com igual autenticidade, membro beneficiário do último ou
penúltimo grande sistema escravocrata do mesmo Ocidente (a infração).
Ora, haveria problema em figurar simultaneamente como escravista e
indivíduo esclarecido? Para quem cuidasse de coerência moral, a
contradição seria embaraçosa. Contudo, uma vez que a realidade não
obrigava a optar, por que abrir mão de vantagens evidentes? Coerência
moral não seria o nome para a incompreensão do movimento efetivo da
vida? Valorização da norma e desprezo pela mesma eram da natureza do
caso...’.39
A permanência das contradições cristalizadas pela forma de efetivação da
independência encontra sua possibilidade de negação com o fim da escravidão, o
qual deveria significar a total modernização das relações sociais, a partir da
aquisição do estatuto jurídico de trabalho livre. Logo, representaria a possibilidade
de negação do caráter inorgânico elaborado por Caio Prado Jr., a partir da criação
de uma unidade nacional em torno do trabalho livre – mesmo que isso significasse a
redenção do pensamento liberal. Porém novamente se repete o sentido da
39 Cf. leitura de Schwarz feita por Paulo Arantes, op.cit., págs. 78 a 84 e Schwarz, 2005, págs. 85 a
107.
65
colonização como conteúdo do abolicionismo. Conforme observou Arantes (1992), a
dualidade que se refletiu na intelectualidade brasileira tem raízes mais profundas.
Podemos considerar que o fim da escravidão em 1888 configurou uma
situação jurídica favorável, ao passo que manteve a desigualdade socioeconômica
refletida na permanência do estigma que ex-escravos e seus descendentes
carregam e de sua materialidade sócio-espacial, ou seja, o lugar de marginalidade
que continuam a ocupar. A situação de não acerto de contas definitivo com os
séculos de escravidão recoloca o sentimento de inorganicidade. O qual pode agora
ser identificado no âmbito da criação de homens com o status de livres os quais,
porém, não encontram lugar nas relações formais dominantes aumentando assim
esse contingente populacional já identificado por Oliveira (2003) como parte
estrutural no desenvolvimento do capitalismo periférico, derivada da forma que a
acumulação assumiu no Brasil. A inviabilidade da elaboração do trauma originário é
então recolocada; este se reafirma enquanto recalque coletivo.
Nesse sentido, podemos visualizar as diferenças e os paralelos que
perpassam a análise da formação social brasileira lida a partir da forma assumida
pela acumulação primitiva e a análise da acumulação primitiva em Marx, como um
momento de constituição da classe operária em sua formação clássica.
Tendo como pressuposto os diferentes contextos históricos, consideramos
que Marx (1984) aponta a acumulação primitiva como momento temporalmente
situado de constituição das figuras da classe operária e, conseqüentemente, do
capitalista; em nossa leitura, a partir dos autores trabalhados, indicamos a
acumulação primitiva como forma de constituição do Brasil enquanto sociedade
inorgânica, devido à sua origem atrelada ao capitalismo comercial40.
40 Devo este (e muitos outros) insight ao Marildo Menegat.
66
Ou seja, a formação da classe operária em seus moldes clássicos europeus,
a qual torna as necessidades do capital passíveis de negociação41 – obviamente até
certo ponto – é estruturalmente distinta do processo que ocorre no Brasil, de
constituição de uma massa extremamente heterogênea, desapropriada de seus
meios, que não encontra sequer espaço nas relações formais de venda de sua força
de trabalho. Bem como nas relações e na sociabilidade dominantes, logo, a
resistência encontra outras formas de se expressar, as quais não necessariamente
estão vinculadas a modalidades formais de representação.
Isso nos leva a observar que a cultura popular nessas condições só pode se
construir enquanto resistência de maneira não institucionalizada. O que implica
também em seu não reconhecimento pelas forças dominantes e, por conseqüência,
na dupla negação da liberdade dos segmentos explorados a partir da criminalização.
A qual nega essas formas culturais não reconhecidas oficialmente, assim como
culpabiliza os próprios indivíduos pelo seu não enquadramento nas relações formais
de trabalho42.
Cabe uma digressão inicial acerca do conceito de classe proposto por
Raymond Williams (2007), objetivando expor a relação entre formação do país e
produção de cultura, bem como da importância da cultura no processo de
“fazimento” da classe trabalhadora. O autor retoma Marx em sua leitura das classes
sociais (principalmente a parir de “O 18 de Brumário”), no sentido de compreender a
classe a partir da noção de formações. Ou seja, em seu processo constitutivo classe
envolve também o âmbito cultural, principalmente no sentido organizativo e
formativo. Isso nos remete ao entendimento segundo o qual a constituição dos
41 Movimento que culmina no Estado de bem-estar social.
42 Na atualidade, esse movimento ideológico se expressa no discurso de diferentes segmentos
públicos, os quais atribuem o crescimento do desemprego à falta de qualificação profissional -
pessoal.
67
trabalhadores em classe vai além de seu lugar na estrutura produtiva / econômica,
envolvendo ainda modos de vida e de livre associação.
Nesse sentido, podemos transpor esse referencial para entender as
particularidades de formação da classe trabalhadora brasileira a partir das formas de
sociabilidade construídas nesse contexto de contradições entre as forças produtivas
e as relações sociais. E da cultura como possibilidade de criação de formas de vida
não institucionalizadas – referentes ao lugar ocupado por essas massas no processo
produtivo e a reação às mazelas dessa formação social.
Apesar dos pesares, podemos afirmar que o fim da escravidão – mesmo que
formalmente – coloca novas bases ao desenvolvimento capitalista no Brasil,
viabilizando-o ao disponibilizar força de trabalho “livre” ao mercado. Mesmo que
esse movimento de libertação tenha se concretizado, novamente, por pressões
externas de países como a Inglaterra, por exemplo.
O processo de “libertação” se concretizou então como vantagem perante as
necessidades inerentes ao próprio processo de acumulação. Schwarz recupera um
dos limites que a escravidão colocava ao processo de consolidação do capitalismo:
Sendo uma propriedade, um escravo pode ser vendido, mas não despedido.
O trabalhador livre, nesse ponto, dá mais liberdade a seu patrão, além de
imobilizar menos capital. Este aspecto – um entre muitos – indica o limite
que a escravatura opunha à racionalização produtiva (SCHWARZ, 2005:62).
Cabe ressaltar que não desconhecemos a importância dos movimentos dos
próprios escravos pelo fim da escravidão, como os quilombos e a ação espontânea e
pontual de se retirarem das fazendas43. Objetivamos apenas apontar alguns
momentos decisivos nos quais se consolidou e se fez valer uma forma de ação/
43 “Também os quilombolas queriam criar uma nova forma de vida social, oposta àquela de que eles
fugiam. Não chegaram a amadurecer como uma alternativa viável ao poder e à regência da
sociedade, mas suas lutas chegaram a ameaçá-las” (RIBEIRO, 2006:152).
68
dominação política que exclui formalmente os segmentos explorados da
possibilidade de decidir politicamente os rumos do país. No fim das contas, pouco
cabe à maioria da população, sendo a canetada de estrangeiros um fator
determinante, pautado por interesses externos, o que é tido como fator definitivo,
realmente decisório.
Retomando, consideramos que o Brasil pós-abolição entra definitivamente
nos termos de uma civilização que aspira ao progresso, a qual transpira
contradições, principalmente perante a tentativa de se enquadrar em moldes
externos, mesmo ainda sendo uma sociedade estruturalmente periférica e
dependente, logo, marcada pela servidão oriunda do predomínio de interesses
externos, expressa na condição de subjugado imposta ao trabalhador expropriado,
sem terra. Consideramos a formação de uma classe política nacional, porém voltada
às contingências externas, como fundamental na dinâmica de manutenção da
dependência; conseqüentemente, da servidão, elevada ao status de trabalho livre.
Visto que a classe dominante interna formada a partir do processo de independência
continuava a compactuar com a manutenção da dependência externa.
Schwarz (2005) aponta a existência de 3 grandes segmentos produzidos pela
colonização baseada no monopólio da terra: latifundiários, escravos e homens livres.
Estes últimos eram livres, porém, dependentes de relações de favor, já que não se
configuravam como proletários nem como proprietários. Com a abolição, grande
parte dos ex-escravos se junta a esse contingente de homens livres carregando o
peso excedente do estigma de ter sido escravo.
Além de contribuir no entendimento da constituição de uma massa sem terra,
não proprietária, o autor aponta ainda o mecanismo pelo qual o favor no Brasil se
instituiu como mediação universal, combinado ao liberalismo – o qual seria, em seus
69
fundamentos, a crítica do favor. A contradição que atravessava as relações sociais e
sua ligação com as forças produtivas se expressava então, no campo das idéias, em
um sentimento constitutivo da vivência na periferia do capitalismo, acerca do “caráter
ornamental de saber e cultura, que é da tradição colonial e ibérica” (SCHWARZ,
2005:69).
Logo, indicamos a ausência de coerência entre a vida ideológica do país e
suas condições de produção, a qual se explica pelo vínculo entre colonização e
capital comercial. Apontamos ainda que a abolição, por não ter se consolidado com
um forte movimento unificado interno, não modificou a ausência de condições para a
realização consciente da negação da reificação das relações sociais que transforma
o negro escravizado em coisa. A reificação recrudesce ao tentarmos integrar nossas
relações de produção à moderna sociedade “civilizada”, já que a partir desse
momento todos nos tornamos livres para ascender à condição de mercadoria – logo,
vendável. Será esse caráter mercantil nossa única possibilidade de unidade?
Assim, a abolição, em seu caráter de movimento que novamente atende às
contingências externas ligadas às necessidades da acumulação, torna realizável a
universalização da mercadoria recrudescendo assim a reificação ao erigir em coisa
vendável e à condição de dependente todos os segmentos não-proprietários. A
produção de cultura nesse contexto pode significar novamente a afirmação de outra
racionalidade desejável.
Cabe retomar a relação contraditória entre trabalho e cultura nas condições
de vida dos segmentos historicamente explorados. Conforme indicamos, durante a
escravidão, negros e indígenas foram parte de um processo deculturativo, fruto da
tentativa de impor a racionalidade do trabalho em seu caráter burguês de
valorização do capital por meio da produção do excedente. A manutenção de
70
hábitos culturais, bem como a possibilidade de se expressar culturalmente em seu
tempo livre, atuou então no sentido indicado por Ribeiro (2006), como elemento que
contribui na manutenção e na reconstrução do humano.
No decorrer do tempo, principalmente após a abolição, a produção de cultura
pelos segmentos explorados significou então a possibilidade de afirmação de outra
forma de sociabilidade, mais livre por ser menos pautada na racionalidade do
trabalho (que informa as exigências senhoriais), apesar de ter sido por vezes criada
em espaços que compunham o trajeto moradia-trabalho (ainda realizadas em
momentos de tempo livre).
Essa forma de construção cultural poderia ter coberto a lacuna dissociativa
entre realidade e representação:
Nas revistas, nos costumes, nas casas, nos símbolos nacionais, nos
pronunciamentos de revolução, na teoria e onde mais for, sempre a mesma
composição ‘arlequinal’, para falar com Mario de Andrade: o desacordo
entre a representação e o que, pensando bem, sabemos ser o seu contexto.
– Consolidada por seu grande papel no mercado internacional, e mais tarde
na política interna, a combinação de latifúndio e trabalho compulsório
atravessou impávida a Colônia, Reinados e Regências, Abolição, a Primeira
República e, hoje mesmo, é matéria de controvérsia e tiros (SCHWARZ,
2005:76).
Vale ressaltar a consideração de que as formas de trabalho que cabem aos
segmentos explorados mantêm diferentes tipos de estigma que pautam a
sociabilidade construída nas relações entre as classes, por mais que haja a
aparência de cordialidade nessa relação. Por esse pressuposto afirmamos a
diferenciação necessária entre cultura popular e cultura erudita, a qual, repetimos, é
eivada de contradições, não podendo nenhuma dessas nem seus derivados receber
o status de “pura”.
Nesse sentido, apontamos que a acumulação primitiva como originária de um
cenário no qual as relações informais de vida e de trabalho se consolidaram como
71
regra foi determinante quanto à construção cultural possível fora da ordem.
Principalmente ao estabelecer lugares determinados às classes populares nesse
sistema excludente.
Ressaltamos ainda que a inserção desses segmentos sociais no sistema
dominante, por vezes, se deu a partir da própria produção de cultura, o que
configura um paradoxo quanto à afirmação da cultura popular como resistência.
Considerando, porém as condições encontradas para a manutenção de uma cultura
espontânea, que oferecesse resistência à sociabilidade dominante ao se afirmar
como criação de modos de vida informais e expressão/ representação dos mesmos,
podemos afirmar que a mercantilização se impõe com força total, atropelando
formas de produção de cultura consideradas arcaicas. Denominações associadas ao
processo de criminalização das classes consideradas “perigosas”, o qual envolve a
criação de estigmas acerca de seus meios de sobrevivência.
Com a consolidação da indústria cultural no Brasil no século XX, podemos
identificar que a cultura popular brasileira, mesmo ao se colocar como resistência, é
eivada de contradições, principalmente quando os anseios populares nela
representados refletem a ânsia pelo progresso, ou seja, a equiparação com a cultura
burguesa desenvolvida.
Nesse sentido, poderemos indagar mais a frente quais as implicações
políticas da retomada pelo MST do movimento de se representar enquanto coletivo,
bem como de representar suas formas não institucionalizadas de luta contra a lógica
dominante a partir da produção de uma cultura que busca autonomia perante o
mercado e suas contingências; no contexto de recrudescimento da indústria cultural
e seus corolários. Por enquanto nos contentamos em sinalizar que a realização do
potencial criativo dessas formas culturais está ligada a determinada práxis política.
72
As maneiras de impor a mercantilização são diversas e a própria situação de
vida do artista popular, além do desenvolvimento e do domínio da técnica, contribui
para a afirmação da mesma, posteriormente consolidada como indústria cultural –
mediação que retira a espontaneidade e esvazia o potencial criativo das
manifestações culturais produzidas pelas camadas subalternizadas.
Calleia (2010:60) afirma que tal movimento contraditório “é próprio de uma
cultura que se afirma e se nega a todo o tempo, e que tem em si uma tendência a
sujeitar-se quando lhe convém, na mais pura dialética da malandragem”. É por meio
dessa dialética, caracterizada por Antonio Candido como dialética da malandragem,
que tais segmentos podem se inserir nas relações formais, sem perder o contato
com a informalidade.
Observamos então, que a liberdade pós-independência e pós-abolição se (re)
afirma como ausência de opção perante o atropelo da modernização e a
manutenção das condições “desiguais e combinadas” de existência dos segmentos
sociais explorados. A ausência de opções concretas se consolida no trânsito e na
escolha forçada entre uma sociabilidade condizente com a “civilização” e outra tida
como representante do atraso e criminalizada. A primeira é mola propulsora da
segunda perante a manutenção da enorme distância social já sublinhada por Ribeiro
(2006).
A própria produção cultural em determinado momento passa a expressar a
liberdade de compor um quadro nos moldes dominantes. Ou seja, com o fim da
escravidão se coloca o imperativo do controle dos corpos por meio do controle da
alma, conforme lembra Calleia (2010:55). Essa necessidade de controle tem as
bases para sua realização na afirmação e no desenvolvimento da até então
incipiente industrialização brasileira, a partir da década de 1930.
73
A qual recoloca as contradições que permeiam a formação brasileira,
conforme aponta Arantes:
novamente é o eixo mundial de um processo único porém de duas caras
que definirá a trajetória da contradição, pois onde havia sustentação
recíproca passa a haver antinomia – o capitalismo introduziu a escravidão,
que assim atuou na formação do capital industrial: quando então este entra
em cena o Sistema entra em crise e o mundo criado pelos senhores entra
em choque com o universo burguês de além-mar. Só que para nós a crise
do Antigo Sistema Colonial nada resolveu (ARANTES, 1992:87 – grifos do
autor).
No próximo capítulo, abordaremos então alguns meandros dessa contradição
acentuada com o desenvolvimento industrial na década de 1930, bem como as
transformações que originam uma forma de produzir cultura diretamente vinculada à
modernização e à conseqüente urbanização e seus atropelos. Mudando as formas
de acumulação, as formas culturais também se modificam ao serem submetidas a
outras determinações – até então incipientes.
74
3 CONSIDERAÇÕES SOBRE OS ATROPELOS DA MODERNIZAÇÃO
3.1 DA UNIDADE DOS OPOSTOS
Ao analisar o conjunto da obra de Antonio Candido e Roberto Schwarz, Paulo
Arantes (1992) nota uma experiência de dualidade que perpassa e se reflete em
diversos momentos da vida intelectual brasileira, expressa em diferentes autores.
Arantes atribui tal sentimento a uma “ambivalência congênita”, a qual não poderia
ser facilmente resolvida com a abolição, visto que suas raízes são mais profundas.
Há então certa dualidade que perpassa a formação social brasileira e se expressa,
inclusive intelectualmente, como uma permanência.
Podemos exemplificar esse pensamento com as seguintes passagens:
a reposição do antigo sistema produtivo pela nova ordem do capitalismo
industrial, articulando Antigo Regime e civilização burguesa, lançava as
bases histórico-mundiais de nossa dualidade. A razão de nosso modo de
ser dual está nos avanços do capital e não numa compartimentação local
idiossincrática (ARANTES, 1992:89).
(a produção capitalista) não se refere apenas à subordinação da expansão
colonial ao capitalismo comercial, como se enfatiza desde os tempos de
Caio Prado Jr., mas à nossa assimilação sem resto ao núcleo europeu.
Colônia e metrópole são desenvolvimentos particulares do capitalismo, lucro
e acumulação vigoram nos dois hemisférios (ARANTES, 1992:68).
O que podemos observar a partir de Arantes é a existência de elementos
sentidos como opostos, porém integrados em uma relação na qual, justamente por
serem um o negativo do outro, constituem uma unidade que nos permite
compreender a formação do Brasil como país de capitalismo moderno-periférico. A
presença de arcaísmos seria então oriunda da própria forma que assume a
modernização em suas particularidades.
75
Recuperando o sentido da colonização, elaborado por Prado Jr., podemos
indicar que o término do período escravocrata, tanto quanto seu início ocorreu por
necessidades internas ao próprio capitalismo, como aponta Fernando Henrique
Cardoso44, no momento em que a servidão se tornou um impedimento ao avanço do
sistema produtivo. Porém Arantes (1992) elucida que a leitura acerca da dualidade
que circunda nossa formação (arcaico-moderno, escravista-capitalista), precisa
considerar a unidade desses supostos opostos; para ser considerada uma
elaboração fiel ao movimento do real.
Decididamente não somos uma coleção de sobrevivências, arcaísmos,
resíduos, etc. Assim sendo, a única categoria que nos convém é a da
unidade: ‘o ressurgimento da escravidão, o desenvolvimento do trabalho
livre, a formação da burguesia, a constituição do empreendedor colonial são
categorias unitariamente determinadas: nos tempos modernos, uma não
existe sem a outra’ (ARANTES, 1992:69).
Logo, a modernização começa a se consolidar após o término da escravidão
trazendo em seu bojo a permanência de determinados elementos do conteúdo
colonial. Como nos mostra a própria forma pela qual a escravidão teve fim
juridicamente, a ausência de participação política e a maneira de tratar os levantes
populares podem ser consideradas reminiscências – as quais representam a
unidade entre colonial e moderno. Outro elemento representativo é o latifúndio.
No final do século XIX, aumenta a massa de pobres concentrados no campo.
Na leitura de Facó (2009), essa concentração inerente à questão agrária colocou as
bases para a sustentação da resistência em Canudos. Tal afirmação vai ao encontro
da proposição que aponta as transformações internas do próprio capital como
produtoras de uma massa de despossuídos. A qual em seus movimentos
espontâneos e organizativos pode se constituir na negação do capital.
44 Cardoso, in Arantes, op.cit..
76
Sem entrar no mérito da questão, podemos indicar sumariamente que a
criação e a permanência dessa massa de despossuídos em condição de
desigualdade e exclusão, “eternos itinerantes” conforme a elaboração de Darcy e a
própria experiência de Canudos nos mostra, é o saldo da consolidação da
modernidade em seus atropelos. Já que esta foi consolidada na permanência do
latifúndio, gerando uma “grande massa do campo submetida pelos senhores
latifundiários” (FACÓ, 2009:87).
A continuidade do poder político atrelado à condição de proprietário de terra
não foi ameaçada de imediato com a passagem da economia brasileira de agrário-
exportadora a urbano-industrial. Visto que a posse da terra é até os dias atuais um
direito de poucos, devido à grande concentração monopolista, bem como signo de
poder. Porém mudanças ocorreram na forma da acumulação a partir do final do
século XIX, culminando na consolidação da industrialização e da urbanização a
partir da década de 1930.
Oliveira (2003) aponta os determinantes políticos que, em sua leitura,
possibilitaram a passagem para outro modelo de acumulação nos anos de 1930,
momento que marca o fim da hegemonia agrário-exportadora e o início do
predomínio urbano-industrial como base da estrutura produtiva – o qual se
concretiza em 1956. Nesse período, há a redefinição da correlação de forças, do
Estado, bem como a expansão das atividades ligadas ao mercado interno.
O autor confere centralidade ao papel da então institucionalizada legislação
trabalhista no processo de acumulação que se acelera a partir de 1930. Nesse
sentido, foi crucial o fortalecimento do Estado como braço direito da criação do
mercado; ao institucionalizar as leis trabalhistas45, o Estado formalizou a redução do
45 As quais, a meu ver, foram sem dúvida uma conquista, porém carregam esse caráter de pacto.
77
salário mínimo às necessidades de subsistência, ou seja, nivelou os salários rurais e
urbanos por baixo. Como diz Oliveira (2003:38), “igualava reduzindo – antes que
incrementando – o preço da força de trabalho (...) igualava pela base”.
Oliveira (2003) entende que as leis trabalhistas foram um elemento político
crucial, “parte de um conjunto de medidas destinadas a instaurar um novo modo de
acumulação” (IDEM). Ao converter os salários de acordo com um denominador
comum – não necessariamente rebaixando-os, mas equalizando-os – a acumulação
foi beneficiada.
Assim, completou-se nesse momento um dos mecanismos apontados por
Marx como parte da acumulação primitiva, o qual havia sido acionado com o fim da
escravidão: a desoneração dos proprietários dos meios de produção para com o
custo de reprodução dos desapropriados. “É a partir daí que um tremendo impulso é
transmitido à acumulação, caracterizando toda uma nova etapa de crescimento da
economia brasileira” (Oliveira, 2003:39), na qual o Estado teve papel não só no
controle do trabalho, mas também na regulamentação de fatores como o preço, a
socialização de perdas e ganhos, o subsídio às atividades produtivas, entre outros.
Logo, criou as bases para a reprodução da acumulação capitalista industrial no nível
das empresas, intervindo de maneira planificadora:
o Estado intervém para destruir o modo de acumulação para o qual a
economia se inclinava naturalmente, criando e recriando as condições do
novo modo de acumulação. (...) A tese é perfeitamente ilustrada como o
caso do café: deixada às leis automáticas do mercado, a produção de café
no Brasil, após a crise de 1929, entraria num regime anárquico, ora sendo
estimulada, ora sendo violentamente contraída. Os estímulos e as
contrações poderiam representar importantes desperdícios sociais. Foi
preciso o controle governamental para fazê-la crescer ou diminuir
guardando certa distância das flutuações do mercado (...). É nesse sentido
que se fala de destruição da inclinação natural para certo tipo de
acumulação (OLIVEIRA, 2003:40, 41, 42 – grifos do autor).
78
Durante a colonização a produção interna se voltou para os bens de
subsistência perante a prevalência da agricultura agro-exportadora – já direcionada
para a monocultura determinada pelas tendências externas e pela exploração
desmedida do solo; e na década de 1930 começa a consolidar-se com o apoio
incondicional do Estado, bem como dos setores empolgados com o
desenvolvimentismo.
Para Oliveira (2003:42), esses foram “anos de passagem”, nos quais a
tentativa de solucionar o assim chamado “problema agrário” se constituiu em “ponto
fundamental para a reprodução das condições da expansão capitalista”, operando
“como uma sorte de ‘acumulação primitiva’” reproduzida incessantemente na
agricultura como corolário da combinação da oferta elástica de mão-de-obra com a
oferta elástica de terras.
O autor propõe a redefinição do conceito de acumulação primitiva tendo como
pressuposto um processo no qual se expropria o excedente produzido pela posse
transitória da terra, em um contexto no qual há a rotação de terras e não de culturas
no latifúndio. Nesse sentido, podemos retomar a assertiva de Ribeiro (2006) acerca
do homem que se produz no contexto dos sertões, nessa configuração particular do
capitalismo: a figura do eterno itinerante, também podendo ser entendido como
eternamente expropriado em diferentes níveis de sua existência.
Por meio dessa redefinição Oliveira afirma que “a acumulação primitiva não
se dá apenas na gênese do capitalismo: em certas condições específicas,
principalmente quando esse capitalismo cresce por elaborações de periferias, a
acumulação primitiva é estrutural e não apenas genética” (OLIVEIRA, 2003:43 –
grifos do autor).
79
Logo, desenha-se uma situação de eterna expropriação material das massas
exploradas, que deságua na expropriação cultural, possibilitada pelo processo de
industrialização iniciado nos anos 1930.
Cotejando a análise de Oliveira com a de Arantes (1992), notamos que a
elaboração de um capitalismo que cresce, ou seja, se moderniza por meio da
elaboração de periferias, é dotada de certa dualidade, a qual encontra seu
fundamento material na relação dialética que configura a unidade centro-periferia e/
ou moderno-arcaico. Nesse sentido, a periferia do capitalismo pode ser entendida
como sendo ao mesmo tempo o fruto do desenvolvimento dos países de capitalismo
avançado e necessária à acumulação dos mesmos: “com a persistência do Antigo
Regime neste quadro modificado, o atraso entrava em cena, porém de ponta à ponta
ambíguo, já que o seu fundo falso revela a verdade do progresso” (ARANTES,
1992:88 – grifos do autor). O autor, ao analisar a elaboração de Schwarz acerca de
Machado de Assis, nota ainda que
o mesmo chão histórico que barateava o pensamento e diminuía as
chances de reflexão – pois aqui se desmanchava o nexo entre idéias e
pressuposto social, o que lhes roubava a dimensão cognitiva –, devolvia a
faculdade crítica com a outra mão, fazendo nossa anomalia expor a fratura
constitutiva da normalidade moderna (ARANTES, 1992:89).
Por mais que a sentença como um todo seja parte de uma análise acerca da
relação entre a singularidade de um escritor como Machado e as particularidades de
nossa formação nacional, podemos entender a leitura que situa a periferia como
espelho do futuro dos países desenvolvidos a partir do pressuposto de que nossa
anomalia tem o potencial de expor o que há de podre na aparente normalidade que
permeia a civilização moderna. Ou melhor, expõe o resultado da constituição da
ordem em suas contradições, as quais permitem que tracemos uma análise acerca
80
de seus próximos resultados. Nas palavras de Arantes (1992:96, 97) “a atualidade
mundial expunha seus segredos na periferia do capital, que não era resíduo mas
parte integrante de uma evolução de conjunto”.
Em outras palavras, o processo modernizador pelo qual passou nosso país
reflete o futuro dos países de capitalismo desenvolvido também ao inviabilizar a tese
que buscava o desenvolvimento como solução para os países periféricos. A dialética
do desenvolvimento brasileiro, pensado em unidade com o desenvolvimento do
capitalismo em sua feição mundial, impõe limites ao projeto civilizador burguês ao
representar a negação de seus fundamentos elementares.
Retomamos então Caio Prado Jr. em sua tese que aponta o desenvolvimento
do Brasil como parte do sistema capitalista. Sentido fundador que permite
caracterizarmos o resultado de nossa formação como espelho do futuro dos países
desenvolvidos, por expor a relação entre desenvolvimento global da sociedade
burguesa e reformulação do arcaico como parte constitutiva do moderno.
Antes de sermos a exceção à regra, somos a própria negação das normas
sociais burguesas em nosso paradoxo fundador da sociedade moderna e periférica:
conteúdo colonial e forma progressista. Por não sermos completamente coerentes
com o capitalismo, a hegemonia burguesa resvala em seu oposto, ou melhor, em
sua negação, ao possibilitar a criação de um ponto de vista próprio que se configura
como “denúncia de promessas não cumpridas” (ARANTES, 1992:98).
Arantes (1992:85), ao recuperar a contribuição de Fernando Novais para o
entendimento dialético da realidade brasileira nota que “neste novo enquadramento,
a periferia colonial se apresenta como o ponto nevrálgico em que o capitalismo
metropolitano revela a sua natureza”. Ou seja, há um deslocamento no eixo do
pensamento acerca da formação brasileira. O qual redimensiona, ou melhor,
81
recoloca o sentido da colonização apresentado por Prado Jr., ao analisar a
economia colonial a partir da relação metrópole-colônia.
Segundo Arantes, esse direcionamento da análise
altera o estatuto da escravidão. Juntamente com o absolutismo, a política
mercantilista, o capitalismo comercial, etc, éramos peças do Antigo Regime,
isto é, de uma fase intermediária em que desintegração do feudalismo e
expansão colonial andavam juntas. Quer dizer, através da exploração
comercial das áreas ultramarinas promovia-se a primitiva acumulação
capitalista nos quadros da economia européia – esse o ‘sentido profundo’
que articula todas as partes do Sistema. Fomos então colonizados para o
capitalismo e foi justamente esta circunstância crucial que acabou impondo
o trabalho compulsório no Novo Mundo. A ampliação da economia de
mercado reinventou a escravidão – nas condições de exploração colonial,
mais rentável que o trabalho assalariado (ARANTES, 1992:86 – grifos do
autor).
Esse raciocínio situa então o dual como forma particular de desenvolvimento
da ordem burguesa no Brasil – ou, como quer Arantes (1992:100), explicita nossa
dualidade constitutiva. Ou seja, o que parece estar “fora da ordem” nos países
periféricos é necessário à acumulação dos países desenvolvidos, resultando desse
tipo de modernização “atropelada” nossa desigualdade histórica e irresponsável,
bem como outras conseqüências nefastas que rebatem tanto nas massas não
proprietárias como na elite brasileira, obviamente, de maneiras diferentes46.
Considerando ainda Arantes (1992), observamos que a presença constante
do lucro e da acumulação como imperativos é fundamental na criação da unidade
entre opostos. Sendo esse o fundamento precípuo do desenvolvimento desigual e
combinado. Bem como da tendência à homogeneização no sentido geral, a qual se
expressa no intento de industrialização que marca a década de 1930.
46 A partir da análise de Schwarz acerca de Machado de Assis, Arantes, op.cit., situa algumas
conseqüências de nossa dualidade para as elites. Como por exemplo, seus rebatimentos na vida
intelectual e no trato das classes pobres. O paradoxo constitutivo de nossa modernidade se explicita
quando Arantes destaca a “dimensão não-burguesa da existência burguesa no Brasil” (ARANTES,
1992:100).
82
Assim, outro apontamento de Oliveira concernente à nossa temática refere-se
à correlação existente entre urbano e rural, onde o crescimento industrial propiciou a
continuidade do padrão “primitivo” nas atividades agropecuárias, tendo como base a
alta exploração da força de trabalho e a formação simultânea do proletariado urbano
e rural em maior escala – sendo o primeiro, condição para a constituição do segundo
– “o que, do ponto de vista das culturas comerciais de mercado interno e externo,
significou, sem nenhuma dúvida, reforço à acumulação” (OLIVEIRA, 2003:46) 47.
O campo forneceu então força de trabalho e alimentos que garantiriam a
reprodução da força de trabalho urbana; ambos os elementos forçavam para baixo o
preço dos salários. A produtividade industrial articulada à intervenção estatal e o
aumento de oferta de força de trabalho barata (com o crescimento da massa não
proprietária) criou um quadro propício ao crescimento da acumulação industrial a
partir de 1930. Assim, por mais que a indústria tenha se consolidado voltada para o
mercado urbano, há uma integração entre esta e a agricultura, na medida em que a
industrialização redefine as condições estruturais48 da agricultura e esta fornece
alimentos e força de trabalho – os quais viabilizam o processo de acumulação com
concentração.
Está em questão a interpretação segundo a qual há uma dicotomia entre rural
e urbano, onde o primeiro representa o arcaico e o segundo o moderno. Oliveira
(2003:60) desmistifica tal proposição:
47 O conceito de desenvolvimento desigual e combinado é interessante para entender os processos
internos (relação campo-cidade) e externos (relação países periféricos e de capitalismo desenvolvido)
até meados da década de 1970 e propicia a compreensão de alguns determinantes nessa relação, no
sentido de interdependência e complementaridade durante o processo de mundialização do capital.
Porém tal discussão foge aos limites deste trabalho.
48 Com a introdução de “novas relações de produção no campo, que torna viável a agricultura
comercial de consumo interno e externo pela formação de um proletariado rural” (OLIVEIRA, 2003:47,
48).
83
a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novas no
arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo, um modo de
compatibilizar a acumulação global, em que a introdução das relações
novas no arcaico libera força de trabalho que suporta a acumulação
industrial-urbana e em que a reprodução de relações arcaicas no novo
preserva o potencial de acumulação liberado exclusivamente para os fins de
expansão do próprio novo (OLIVEIRA, 2003:60 – grifos do autor).
Penso que o conceito de acumulação elaborado por Oliveira permite um salto
qualitativo na elaboração da dualidade ao reforçar a unidade existente entre âmbitos
diametralmente opostos. É uma mediação fundamental para conferir materialidade à
análise das particularidades brasileiras em sua relação com a totalidade do sistema
capitalista, ou melhor, do ordenamento social burguês.
Tendo em conta o modelo de substituição de importações, o autor sinaliza a
importância de pensá-lo a partir das necessidades da acumulação, ou seja, fundado
nas necessidades de produção, não apenas do consumo. Apesar dos determinantes
externos, como a crise cambial e posteriormente a Segunda Guerra Mundial, a
mudança de forma – o processo de industrialização – atende às necessidades da
acumulação. Pensando a posterior produção de bens de consumo duráveis, Oliveira
(2003:51) sinaliza que
do ponto de vista da acumulação essa produção pode realizar-se porque a
redefinição das relações trabalho-capital deu lugar à concentração de renda
que torna consumíveis os produtos e, por sua vez, reforça a acumulação,
dado que a alta produtividade dos novos ramos em comparação com o
crescimento dos salários dá um ‘salto de qualidade’, reforçando a tendência
à concentração de renda.
Oliveira aponta que a agricultura brasileira foi fundada em uma acumulação
primitiva, a qual estabeleceu uma base de acumulação capitalista pobre, sobre a
qual o crescimento industrial teve que se produzir. Ou seja, o crescimento anterior
aos anos 1930 não propiciou o desenvolvimento do capitalismo em seus moldes
tradicionais, pois não acumulava de maneira adequada à empresa industrial, nem
85
operação que é, na aparência, uma sobrevivência de práticas de ‘economia
natural’ dentro das cidades, casa-se admiravelmente com um processo de
expansão capitalista, que tem uma de suas bases e seu dinamismo na
intensa exploração da força de trabalho (OLIVEIRA, 2003:59).
Sérgio Buarque de Holanda em sua obra “Raízes do Brasil” desenvolve a
hipótese de que determinadas práticas, como o mutirão citado por Oliveira, são parte
das especificidades da nossa formação social e moldam o espírito do brasileiro. Sem
entrar em detalhes quanto à discussão acerca do conceito de “homem cordial” 51,
penso que, em ambos os autores trata-se não de desqualificar tais práticas em seu
potencial cultural solidário, afinal, a persistência da solidariedade também difere e
particulariza o povo brasileiro em suas camadas pobres; configurando resistência
aos atropelos da modernização, principalmente na instituição do individualismo
burguês. Antes, recuperamos tal passagem aqui para apontar as particularidades de
nossa formação social em seus elementos duais, porém combinados (conforme
Arantes, 1992), visto que esta comporta a permanência de formas de vida,
consideradas arcaicas ou de economia natural como elementos que potencializam a
acumulação em sua forma estrutural.
Logo, admitimos que as formas culturais consideradas atrasadas podem
potencializar e compor um quadro de resistência à lógica que tem a acumulação
como foco. Quadro pintado na luta de Canudos, por exemplo, com a retomada da
produção para a subsistência e de formas outras de organização comunitária, nas
quais as necessidades dos homens são colocadas em primeiro plano. Nesse breve
momento se conformou um modo de vida próprio, dissonante da cultura dominante.
Entretanto, essas são conseqüências da reação às mazelas geradas pelo processo
de acumulação, o qual gira em torno das necessidades do capital como sujeito
automático.
51 Cf. a terceira edição de Raízes do Brasil, de 1956.
86
Recuperando a dialética elaborada por Marx, observamos que o
desenvolvimento do capital gera seu negativo. Conforme expusemos anteriormente,
nem sempre em sua forma clássica, por vezes como reação. Porém seu oposto não
necessariamente tem condições de se efetivar enquanto tal, se constituindo então
em intento de sobrevivência, ou mesmo memória histórica – processo por meio do
qual pode se construir identificação e identidades coletivas com a mobilização do
imaginário popular. Assim as lutas históricas, mesmo que pontuais e derrotadas, se
tornam parte da composição da cultura popular como resistência.
Segundo as considerações de Oliveira, o que queremos expor são os
meandros contraditórios do próprio capitalismo, ao qual está atrelado o
desenvolvimento e modernização do Brasil; pela forma que se desenvolveu no país,
comporta e institucionaliza elementos considerados arcaicos em seu processo de
reprodução. Mesmo que esses sejam frutos do imperativo primordial do ser humano:
a sobrevivência pela criação, negada constantemente quando ameaça a ordem
dominante. A produção da cultura é então marcada pela exploração do solo na
lógica da acumulação e pelas necessidades geradas pelas próprias bases pobres de
acumulação. É gerada por essas e pode ser apropriada, refuncionalizada no
processo de acumulação, como no caso do mutirão sinalizado acima, em sua forma
de trabalho não pago e de redução dos custos de reprodução da força de trabalho.
Intentamos com a reprodução dessa passagem, mesmo que com o exemplo
mal direcionado, denotar a forma pela qual as criações culturais populares (nesse
caso construção de modos de vida), podem ser apropriadas para fins de
acumulação. O que as resignifica, como é o caso do carnaval (CALLEIA, 2010).
Esse mecanismo específico encontra sua organização máxima na forma de indústria
cultural.
87
Na argumentação de Oliveira (2003), bem como na de Ribeiro (2006),
salvaguardadas as diferenças de perspectivas teóricas, é interessante observar
apontamentos que indicam certa continuidade ao longo da história da consolidação
do Brasil como um país capitalista periférico. Tanto no que se refere ao
recrudescimento da exploração da classe trabalhadora, principalmente em seus
segmentos negros e não integrados ao mercado formal, quanto no que tange à
expropriação contínua dos mesmos.
Menegat (2010:40) sinaliza que “o ponto de chegada do processo social é
muito semelhante à sua origem”. Nesse sentido, a acumulação primitiva como uma
permanência é uma leitura possível para pensar a constituição de diferentes
momentos da cultura popular brasileira. Afinal, as formas particulares de exploração
do solo e de produção se conformam em determinantes quanto às condições nas
quais se produz cultura, tanto em sua face reprodutiva quanto em sua feição criativa.
Cabe considerar ainda que a produção de cultura entendida como modo de
vivenciar a experiência na periferia do capitalismo pode ser uma chave analítica na
compreensão da formação de movimentos de massa – seguindo a pista de
Raymond Williams. Outro momento chave nesse processo analítico envolve a
industrialização (e a consequente urbanização) iniciada na década de 1930 e a
modernização como condição para a consolidação da indústria cultural. A qual
corrobora e resignifica o movimento de urbanização, resvalando na produção de
cultura das massas migrantes.
Nesse sentido, recuperaremos a seguir as modificações que atingem e
redimensionam a forma de fazer cultura com o advento da modernização,
diretamente vinculada à urbanização como um processo global.
88
Segundo Jesús Martin-Barbero (2009:29), a massificação da cultura tem que
ser apreendida juntamente ao “fato político que gera a emergência histórica das
massas”. Nesse sentido, podemos pensar os rumos que a cultura popular tomou no
momento posterior à afirmação da tecnologia como mediação da transformação da
sociedade em mercado.
Em outros termos, analisaremos a seguir alguns resquícios no âmbito cultural
da “’política de desenvolvimento’ criadora de bóias-frias” (TINHORÃO, 2001:208),
iniciada em 1930, tendo atingido seu auge na década de 1950, momento posterior à
segunda guerra mundial. A partir da moderna industrialização brasileira, consolidada
nesse período, “vastas massas de antigos lavradores nordestinos, migrados de suas
regiões para se transformarem em mão-de-obra não-especializada” (IDEM) nos
estados onde ocorreu a concentração do surto industrial viram suas características
culturais serem atravessadas pelo crivo da mercadoria52.
3.2 DA INDUSTRIALIZAÇÃO DA CULTURA
O conceito de cultura popular, trabalhado nas páginas acima em seu caráter
de resistência a partir das contradições de determinada formação social, pode ser
identificado à elaboração feita por Tinhorão acerca de manifestações populares. Em
sua obra “Cultura popular: temas e questões”, o autor recupera sua conceituação já
trabalhada em 1966 no livro intitulado “Música popular: um tema em debate” e
aponta “seu esforço no levantamento da história quase clandestina de uma cultura
popular ao nível das camadas mais baixas dos mais antigos núcleos da vida urbana
colonial, até a atualidade” (TINHORÃO, 2001:167). Para nosso escopo temático,
52 Tinhorão, op.cit., analisa essa transmutação a partir da música popular, como o sertanejo e o forró,
ambos os ritmos industrializados na perspectiva da indústria cultural.
89
interessa notar que o conceito de cultura popular está associado à produção cultural
das “camadas mais baixas”.
Tinhorão (2001:135) recupera a máxima do materialismo histórico, segundo a
qual “numa sociedade de classes, também a cultura é uma cultura de classes”, logo
expressa também a dominação. No entanto, em sua análise de manifestações da
cultura popular, a sociedade brasileira aparece em sua fluidez, principalmente a
existente entre as classes. Logo, o materialismo histórico não é necessariamente
sinônimo de determinismo; antes, expõe as contradições características da dialética
entre dominação e resistência, mesmo que espontânea.
Afinal, a imposição do capitalismo como ordenamento social representa
também a necessidade do domínio por meio da colonização e do controle dos
sentidos, para além do controle dos corpos já exercido pela racionalidade do
trabalho. E a construção cultural dos segmentos dominados como produção da vida
(CEVASCO, 2001) representa a impossibilidade de o Estado exercer esse controle
em sua totalidade. Como exemplifica a análise de Tinhorão acerca das festas
populares no início da colonização:
no caso brasileiro, um levantamento de todas as oportunidades de
sociabilidade festiva de que restam notícias históricas, desde o primeiro
século da colonização, se por um lado revela a imposição de festas de
modelo europeu, de cima para baixo, demonstra também que o seu controle
pelo Estado ou pela Igreja nunca se efetivou com a rigidez que se poderia
imaginar (TINHORÃO, 2001:19).
Há aqui a afirmação de uma forma de resistência à dominação (neste caso
simbolizada pela imposição do Estado e da Igreja de festas religiosas) por meio da
transmutação de festas anteriormente institucionalizadas. No caso analisado pelo
autor, está em questão a dessacralização de festas proporcionadas
90
institucionalmente como festas de devoção. Conforme apontado em outra obra do
autor intitulada “As festas no Brasil colonial”.
De uma forma muito mais flagrante do que acontecera na Europa em mais
de quinhentos anos de história do cristianismo, até o Renascimento, o
antigo sentido dionisíaco das gentes constrangidas ao exercício da
obediência civil, ou a mortificações e abstinências em nome da fé, irá
infiltrar-se pelos desvãos dos rituais públicos civis e religiosos, acabando
por transformar em diversão pessoal o que lhes era apresentado como
evento oficial ou de devoção (TINHORÃO, 2001:20).
As passagens do autor funcionam para nossa argumentação ao colocar em
questão o domínio cultural do colonizador a partir de movimentos espontâneos
observados em diferentes níveis como uma síntese produzida pelo ato de aceitar e
simultaneamente rejeitar imposições externas. O que resulta na transformação da
cultura do colonizador conforme o povo brasileiro a legitimava em seu caráter
mercantil e a negava em suas múltiplas expressões normativas da vida social.
Ou seja, nos primeiros momentos da colonização algo de dionisíaco ainda
encontrava espaço para se manifestar como negação da racionalidade do trabalho
imposta pelos colonizadores e conseqüentemente de sua coisificação já então
expressa na escravidão – onde o escravo era juridicamente uma coisa vendável /
intercambiável. Nesse movimento notamos a transformação de manifestações
institucionalizadas em espaços nos quais os segmentos explorados podiam se
afirmar como constituintes na produção de cultura.
Mesmo com a repressão oficial atuando no sentido de criminalizar e perseguir
manifestações culturais consideradas perigosas, a influência das classes pobres na
construção da cultura nacional (principalmente de sua matriz étnica descendente dos
91
negros africanos escravizados) se afirmou como potencialidade de libertação, ainda
que momentânea, dos grilhões impostos pela “civilidade” européia53.
A forma de construção do ordenamento burguês envolve o surgimento de
grandes cidades comerciais em um processo de mudança de hábitos e modos de
vida. Conforme já sinalizamos, no Brasil o início desse movimento pode ser
localizado com a vinda da família real para o país, no início do século XIX e a
elitização cultural decorrente da mesma. Nos países de capitalismo avançado, esse
processo começa no século XVI, momento no qual se inicia “a formação de grandes
aglomerados urbanos resultantes da crescente divisão do trabalho”. A qual,
“aumentando as diferenças entre o estilo de vida citadino e o das populações rurais,
veio criar um quadro igualmente diferenciado no plano dos interesses culturais”
(TINHORÃO, 2001:168).
O autor conclui que novos conteúdos requerem novas formas. Em outras
palavras, a urbanização crescente coloca a necessidade e as condições para uma
produção cultural condizente com o novo estilo de vida que se afirmava. No Brasil, a
década de 1930 consolida essa mudança, a qual germina com a crise do ciclo do
café. Com a Revolução de 1930, Getúlio Vargas promove o afastamento do poder
das oligarquias tradicionalistas de caráter agrário-comercial e inicia um longo
período de investimento na industrialização. Segundo Facó, nesse momento ocorreu
o maior golpe até então desferido contra o poder político dos grandes latifundiários,
principalmente nordestinos54. A aliança entre burguesia urbana e agrária segue,
porém invertida no sentido de quem está agora no topo do poder.
53 O filme “Besouro”, de João Daniel Tikhomiroff, retrata a partir do misticismo a capoeira como forma
de resistência cultural na Bahia na década de 1920, bem como a permanência de vestígios
escravocratas na região. O filme traz ainda a relação dos Africanos com a natureza a partir da
religiosidade mítica.
54 Cabe colocar que Facó entende o período anterior a 1930 como praticamente feudal. Leitura
diferente da que estamos tentando empreender. Entendemos que a constituição de uma classe
92
Devido à crise de 1929 a exportação do café é colocada em xeque,
agravando o êxodo rural. Em um regime de capitalismo de Estado, Vargas inicia a
substituição da força de trabalho imigrante pela nacional, oriunda basicamente do
Nordeste. Logo, o movimento que pode ter seu início localizado no final do período
escravocrata e na primeira guerra mundial – que provocou a substituição de
importações e colocou a necessidade de abastecimento de um incipiente mercado
interno – se consolida com o Estado Novo. Tal inflexão no processo produtivo e no
caráter comercial-exportador do periférico capitalismo brasileiro provoca mudanças
na forma que assume a produção cultural.
Em um contexto cultural mais voltado à vida urbano-industrial, o Estado Novo
inaugura “o fenômeno do dirigismo político-ideológico” (TINHORÃO, 2001:103).
Estavam criadas as condições básicas para a posterior consolidação da indústria
cultural no país – ainda incipiente em 1920, expressa pela crescente massificação
do jornal e do rádio55, bem como do cinema falado e cantado e da televisão no
período pós-segunda guerra mundial. Tinhorão exemplifica o processo de passagem
para uma forma de produção cultural industrial-tecnológica, resultante da mudança
dos modos de vida e de produção, a partir da análise da história da música popular.
Segundo o autor,
a partir de fins da década de 1920, novo salto tecnológico veio aprofundar o
processo de dependência cultural no plano da música popular: os filmes
americanos passaram a ser sonoros, e os primeiros musicais – que na
realidade eram espetáculos da Broadway filmados – levaram os músicos
brasileiros a reproduzir mimeticamente sobre os tablados até mesmo os
trejeitos dos colegas norte-americanos (TINHORÃO, 2001:181).
dominante nacional envolve o revezamento de suas frações no poder, como é o caso nesse momento
histórico e também, de formas diferentes, no golpe de 1964.
55 O rádio no Brasil só se torna de fato parte da indústria cultural a partir da década de 1930, mais
especificamente 1932, quando seu processo de produção é barateado estendendo o seu alcance; e
quando a legislação passa a permitir que 10% da programação seja propaganda. Cf. Calleia, op.cit.,
capítulo 2.
93
Esse efeito reflexo tem como conseqüência a diluição da particularidade
regional em um movimento de afirmação da falsa universalidade de determinado
estilo de vida – pautado na lógica do valor de troca. A espontaneidade das
manifestações populares nesse contexto fica submetida ao caráter de ser ou não
produto vendável.
A música popular havia surgido no século XIX atrelada às novas
configurações sociais e desde já vinculada “ao comércio e indústria das diversões”.
Seu aparecimento nos moldes modernos remete à criação de “resposta criativa a
novas necessidades da vida social conseqüente do adensamento das populações
dos grandes centros (cada vez mais diversificadas em face da crescente divisão do
trabalho, após a Revolução Industrial)” (TINHORÃO, 2001:189).
Essa idéia é o ponto de partida para o autor afirmar a existência de mais de
uma música popular; uma vinculada ao meio urbano, no qual começa a prevalecer o
individualismo burguês e outra ao meio rural, no qual ainda havia o predomínio de
formas de vida em coletivo56. Localiza-se aí a indicação de uma dualidade de
universos culturais produzido pelo surgimento das “modernas cidades
contemporâneas do capitalismo comercial e da produção manufatureira” (IDEM).
Nos grandes centros urbanos, nos quais a industrialização se concentrou,
misturam-se influências dos migrantes nordestinos e das elites já então constituídas
em seus diversos segmentos. A política adotada pelo Estado Novo de substituição
de força de trabalho migrante pela nacional corrobora e aumenta em termos
quantitativos o deslocamento histórico de massas sem terra. A ditadura militar
consolida o movimento de migração interna, resultando em um contingente de
imigrantes jamais visto antes em termos quantitativos.
56 Cf. Tinhorão, op.cit., em particular págs. 165 à 169.
94
Os surtos migratórios desencadeados na década de 1920 objetivavam suprir
a necessidade de mão-de-obra do surto industrial perante a diminuição da incidência
de correntes imigratórias estrangeiras. Assim, Tinhorão (2001:238-239) indica outra
dualidade no âmbito cultural, qual seja a polarização entre os grupos da classe
média identificados com as elites e divididos entre influências européias e norte-
americanas “(geradora de mudanças de comportamento e fascínio pelos bens de
consumo)”; e os segmentos mais pobres, os quais não possuíam condições de
ascensão e cresciam numericamente com a junção dos contingentes imigrantes
oriundos das áreas rurais às suas fileiras. Tais segmentos “começavam a admitir
suas origens, através da curiosidade e prestígio a tudo o que refletisse a idéia de
‘sertanejo’”.
Nessa mesma linha, Weffort (1988) aponta para a substituição da imigração
italiana pela nordestina em São Paulo, por exemplo, como reflexo da política
desenvolvimentista iniciada nos anos 1930 e com auge na década de 1950, no
desenvolvimentismo. A partir desse pressuposto, o autor traz questionamentos
acerca da possível contribuição dos imigrantes na formação da cultura urbana
nacional-popular.
Especificamente no caso de São Paulo, Weffort coloca em debate a cultura
urbana como essencialmente operária, já que os imigrantes nordestinos, apesar de
não alcançarem grandes proporções na classe operária do Estado, representavam
uma presença cultural expressiva.
Considerando que a imigração nordestina é um fenômeno que ocorre em
âmbito nacional – potencializado nesses momentos de surtos de industrialização –
podemos indicar que a cultura popular passa a se configurar em um amálgama que
reflete a dependência e a relação existente entre campo e cidade, borrada pela
95
divisão social do trabalho. Nesse contexto, paradoxalmente, o que confere unidade à
produção cultural resultante desse amálgama é a afirmação da indústria cultural, ou
seja, a transformação de manifestações oriundas da vida no coletivo (como as
modas de viola e o forró) em produtos vendáveis, em mercadorias que são
determinadas pela necessidade de valorização do capital.
Havia ainda a necessidade de se criar um mercado consumidor para os
produtos culturais; isso implica na seletividade acerca do que pode ou não configurar
um nicho significativo de mercado. Essa a balança utilizada na industrialização da
cultura. Em sua análise da música popular, Tinhorão ressalta um princípio geral
inerente à indústria cultural, qual seja: conforme o avanço da técnica, a produção de
cultura, bem como sua difusão, passa a se configurar a partir das possibilidades
tecnológicas dos grandes centros industriais.
(...) o que se comprova com o princípio da dependência crescente da
música popular aos meios de comunicação é que tanto maior é a
dependência (e a conseqüente descaracterização do produto cultural
nacional) quanto maior a distância entre as possibilidades tecnológicas do
país e a dos centros industriais que criam aqueles meios (TINHORÃO,
2001:181).
O movimento que tentamos caracterizar com essas breves notas refere-se à
passagem do país ao período no qual a produção da vida pelas classes pobres
começa a perder espaço enquanto cultura espontânea para a cultura industrializada.
As próprias manifestações consideradas populares, ou seja, não institucionais (as
quais conforme sinalizamos continham em gérmen a possível resistência à ordem
dominante), são agora reproduzidas e vendidas por uma indústria que explora o
caráter popular como forma de atingir a uma massa maior de consumidores.
A figura do malandro, cantada por Chico Buarque de Holanda, é
paradigmática desse processo de neutralização possibilitado pelo início da era da
96
“reprodutibilidade técnica”. Os versos de Chico traduzem a transmutação daquele
que antes era considerado “barão da ralé” em mais um buscando a sobrevivência de
maneira “adequada”, ou ao menos adaptado a determinadas normas sociais:
Eu fui fazer um samba em homenagem à nata da malandragem, que
conheço de outros carnavais.
Eu fui à Lapa e perdi a viagem,
Que aquela tal malandragem não existe mais.
Agora já não é normal, o que dá de malandro regular, profissional
Malandro com o aparato de malandro oficial,
Malandro candidato a malandro federal,
Malandro com retrato na coluna social,
Malandro com contrato, com gravata e capital, que nunca se dá mal.
Mas o malandro pra valer, não espalha, aposentou a navalha,
Tem mulher e filho e tralha e tal.
Dizem as más línguas que ele até trabalha, mora lá longe e chacoalha, no
trem da Central.
(Chico Buarque – Homenagem ao malandro).
No meu entendimento, essas modificações expostas na letra transcrita acima
podem ser compreendidas também a partir da situação dos artistas populares, os
quais modificam sua arte e suas formas de expressão devido às necessidades de
sobrevivência perante o domínio da técnica. Tinhorão (2001), apesar de pontuar que
o processo intentado de neutralização não é completado em sua totalidade (a
própria contribuição cultural nordestina ao centro paulista indica isso, de certa forma)
traz diversos outros exemplos, como a profissionalização enquanto cantores dos
palhaços circenses e a música popular urbana.
O aparecimento de uma música popular própria desta nova gente das
cidades, pois, nada mais vinha comprovar do que a justeza do princípio
estético segundo o qual a um novo conteúdo deve corresponder uma nova
forma. O novo tipo de música popular surgia, assim, como resposta a
necessidades novas de um novo tipo de gente. E como isso acontecia
contemporaneamente à democratização da imprensa, através da publicação
de folhetos vendidos nas ruas pelos cegos, ao ter os versos das cantigas
que surgiam difundidos em letra de fôrma, a música popular urbana iria se
ligar, desde esse início, aos processos técnicos de produção e divulgação, o
que a transformava desde logo em produto vendável (TINHORÃO,
2001:169).
97
A partir desses pressupostos, o autor conclui que entramos no período em
que as manifestações culturais são (a nível geral) cada vez mais regidas pelas leis
do mercado e não pelas leis da arte. Isso envolve considerar a perda da
espontaneidade e a condição do artista-criador. A criação do fonógrafo também
expressa esse processo. Conforme Tinhorão aponta, o piano ainda possibilitava uma
margem de criatividade e espontaneidade na interpretação das músicas, porém o
fonógrafo inviabiliza qualquer “toque do artista” ao possibilitar a reprodução técnica
das composições em sua forma terminada.
Essas tendências, como os limites tecnológicos à espontaneidade e à
criatividade no processo criador popular e as limitações impostas pelas próprias
necessidades materiais do artista popular, começam a se delinear nas décadas de
1920/30 possibilitadas pelos novos rumos que tomava a industrialização do país.
Porém só se consolidarão em termos de alcance e difusão no período iniciado com o
Golpe Militar (1964). O qual reitera ainda, além da indústria cultural no Brasil, uma
determinada forma de fazer política “pelo alto”, ou seja, sem a participação
representativa das massas exploradas. Processo por meio do qual se constitui a
modernização conservadora no país.
Nesse meio tempo entre os períodos sinalizados crescem os tentáculos da
indústria cultural, os quais se expressam na relação perversa entre a parte artística
da criação e industrial do produto. Conforme sinaliza Tinhorão, novamente com o
exemplo da música,
desvinculada de sua aura de produto de superiores qualidades humanas
por sua redução a simples mercadoria, essa música destinada ao consumo
das grandes massas deixa de obedecer às leis da estética para reger-se,
como qualquer outro produto da indústria, pelas leis do mercado.
Estabelecida essa relação perversa entre a parte artística do produto,
representada pela criação da música, e a industrial, representada pela
prevalência do suporte material-tecnológico, o aparente dilema proposto se
esclarece: quem tiver o maior poder de colocar no mercado mundial as suas
98
ofertas culturais terá, automaticamente, o poder de determinar quais
gêneros ou estilos deverão figurar como ‘o novo’, ‘a moda’, ‘o atual’. E,
naturalmente, se se tratar de música com letra, a própria língua em que será
cantada (TINHORÃO, 2001:185).
O autor indica outro processo, relacionado à ocupação territorial, ou melhor, à
ausência da mesma. Com o emprego de tecnologia, o controle e o poder são
redimensionados de acordo com a capacidade dos países de produzirem tal
tecnologia. A dominação fica submetida assim ao invisível controle efetivo dos
mercados, referente tanto à produção quanto ao consumo. Isso pode ter como
conseqüência o agravamento da reificação perante a ausência de estranhamento,
ou melhor, o recrudescimento da naturalização dos fenômenos, possibilitada pelo
domínio e controle do tempo livre do trabalhador.
Intentamos acima expor a relação entre movimentos migratórios provocados
pelo desenvolvimento urbano-industrial do Brasil e a produção de cultura, bem como
algumas contradições decorrentes da industrialização e da produção de cultura em
tempos de recrudescimento da presença da técnica enquanto controle social – outra
forma de dominação. A seguir, apontaremos a maneira pela qual a ditadura militar,
bruscamente, interrompeu o processo sócio-cultural então em gestação de produção
de um sujeito político, também da cultura como forma de expressão política.
Com a política desenvolvimentista avançando nas décadas de 1940 e 50, no
momento posterior à segunda guerra mundial, agrava-se a condição dos
trabalhadores rurais, ao mesmo tempo em que surge no horizonte a possibilidade de
organização das massas com as Ligas Camponesas. Se a indústria cultural
nascente possibilita a unificação do campo com a cidade por meio da massificação
de manifestações conhecidas por seu caráter rural – processo que por outro lado faz
99
frente à tentativa de universalização de gêneros musicais estrangeiros57 – no cenário
político se coloca a possibilidade de se criar uma unidade entre as áreas; a partir
principalmente do apoio de intelectuais urbanos às lutas camponesas.
Observaremos esse processo a seguir.
3.3 DA PERSISTÊNCIA DAS RUÍNAS EM UM PAÍS EM CONSTRUÇÃO
A indústria cultural pode ter seu começo no país identificado com o advento
do rádio consequente do surto de industrialização, porém sua consolidação ocorre a
partir de 1964, com o desenvolvimentismo que a ditadura militar retoma e eleva ao
seu auge. Considerando ainda as condições materiais e tecnológicas para sua
afirmação, entendemos que somente no momento posterior à ditadura a
industrialização da cultura pode se colocar como tendência predominante.
A industrialização iniciada em 1930 vai se consolidar com o início da indústria
de bens de produção, potencializada com o desenvolvimentismo no governo de
Juscelino Kubitschek, o qual contou com o capital estrangeiro. O golpe militar
possibilitou então que os elementos conservadores já presentes na política de JK
atingissem o auge por meio do atropelo das propostas progressistas intentadas no
governo de Jango.
Logo, o movimento apontado por Tinhorão, de novas formas culturais
oriundas da urbanização e industrialização, se encontra reforçado por um tipo de
desenvolvimento que desloca do campo para a cidade um contingente de
trabalhadores nunca antes visto. Nas décadas de 1950 e 1960, o “atraso” localizado
nas áreas rurais, fruto do próprio processo de acumulação primitiva, se configura em
57 Cf. Tinhorão, op.cit., págs. 205 a 211.
100
obstáculo para o avanço da acumulação. Nesse sentido, o campo precisava ser
modernizado e a forma conservadora pela qual esse movimento se realizou implicou
na expulsão ainda maior dos camponeses da terra.
O momento do Golpe Civil-Militar revela a atualidade do sentido da
colonização, tendo em vista seu caráter de atender aos interesses externos e de
segmentos da classe dominante nacional, os quais se forjaram no próprio processo
que vai da colonização ao auge da industrialização/ modernização. Com a
modernização conservadora, as marcas periféricas continuaram gritantes enquanto
constitutivas da nação.
A ditadura recoloca ainda a máxima de Caetano Veloso utilizada para
caracterizar a forma peculiar pela qual o Brasil se integra à ordem globalizada;
segundo ele, “aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína” 58. Ao tomar o
poder interrompendo o mandato legítimo de João Goulart, a ditadura interrompe
também a constituição do homem do campo em sujeito político; e retira do horizonte
a possibilidade que se delineava com a efervescência político-cultural do período
anterior ao golpe. Neste, conformava-se uma movimentação que continha em
gérmen a possibilidade de elaboração coletiva das marcas, do trauma legado pela
acumulação primitiva.
A forma de fazer política historicamente institucionalizada no Brasil foi
colocada em questão de diferentes maneiras, como por exemplo, com a tentativa de
aproximação dos intelectuais e estudantes urbanos das massas de trabalhadores
rurais e moradores de favelas – os métodos de alfabetização popular de adultos
foram extremamente significativos, principalmente nas áreas rurais. E com a
58 Caetano Veloso, “Fora da ordem”.