The words you are searching are inside this book. To get more targeted content, please make full-text search by clicking here.

Dissertação de Mestrado intitulada Expropriação e resistência: produção de cultura em condições de acumulação primitiva. Versa sobre a produção de cultura e a necessidade de resistência a partir da análise da formação social brasileira. Partimos do pressuposto de que a acumulação primitiva tem sido estruturante na constituição do Brasil enquanto país de capitalismo periférico. Observamos ainda o Coletivo de Cultura do MST-Movimento Sem Terra e apontamos a
potencialidade contida nas lutas sociais que colocam a recuperação da possibilidade de produzir cultura em consonância com a necessidade de produção da vida para além dos limites de valorização do capital, no contexto da redemocratização seguida
pelo agravamento das formas de regressão social.

Discover the best professional documents and content resources in AnyFlip Document Base.
Search
Published by Larissa Murad, 2017-04-21 11:09:15

Dissertação Larissa Murad

Dissertação de Mestrado intitulada Expropriação e resistência: produção de cultura em condições de acumulação primitiva. Versa sobre a produção de cultura e a necessidade de resistência a partir da análise da formação social brasileira. Partimos do pressuposto de que a acumulação primitiva tem sido estruturante na constituição do Brasil enquanto país de capitalismo periférico. Observamos ainda o Coletivo de Cultura do MST-Movimento Sem Terra e apontamos a
potencialidade contida nas lutas sociais que colocam a recuperação da possibilidade de produzir cultura em consonância com a necessidade de produção da vida para além dos limites de valorização do capital, no contexto da redemocratização seguida
pelo agravamento das formas de regressão social.

Keywords: Coletivo de Cultura MST,Colonização brasileira,Expropriação e resistência,Cultura

101

utilização da arte e da cultura produzidas na práxis enquanto parte do próprio
movimento de mobilização e interferência política nos rumos do país.

Retomando Paulo Arantes e Caio Prado Jr., podemos dizer que os militares
miraram no que viram e acertaram no que não viram, já que a ditadura civil-militar e
a modernização conservadora conseqüente se configuraram em uma interrupção
brusca e brutal do movimento que continha potencialmente uma possibilidade de
representação das massas por meio da elaboração coletiva de traumas originários,
os quais (conforme acreditamos ter apontado no capítulo anterior) marcam a
conformação do Brasil enquanto nação de capitalismo periférico.

Vieira (2009:3) aponta que “há experiências sociais – especialmente aquelas
relativas ao sofrimento, que a cultura brasileira tendencialmente pautada na alegria
costuma negligenciar ou encobrir”. No período anterior à ditadura civil-militar tais
experiências sociais começavam a ser colocadas em cena por meio da
representação artístico-cultural e política de questões próprias da vida nacional. As
Ligas Camponesas e os CPC’s expressam esse processo, trazendo a possibilidade
de representação coletiva do trauma legado pela colonização.

Em um contexto no qual a indústria cultural não estava com suas faculdades
plenamente desenvolvidas foi possível então se iniciar um processo de produção da
cultura enquanto forma de ação política. Por mais que a modernização tenha se
realizado atropelando valores e hábitos característicos da cultura popular, a
resistência ao sistema se manteve, sendo agora liderada por outros sujeitos: parte
da intelectualidade urbana e os remanescentes do campo, acuados pelo aumento da
expulsão dos trabalhadores das terras e pelas condições de trabalho precárias.

Os Centros Populares de Cultura (CPC’s) sintetizam bem essa movimentação
em sua tentativa de modificar as formas de produção e distribuição de arte, bem

102

como de sistematizar um movimento cultural incipiente como organização política
atuante59. As reivindicações construídas no processo de luta político-cultural nesse
momento passavam necessariamente pela luta pela terra e pela transformação da
estrutura agrária como um todo. Nesse sentido, as reformas de base encampadas
por Jango obtiveram amplo apoio das bases populares, bem como de alguns outros
setores que acreditavam que a reforma agrária contribuiria para a modernização do
país ao modernizar a agricultura.

A ditadura implicou então em uma situação na qual o processo que estava em
curso, o qual poderia possibilitar a elaboração coletiva do trauma legado, foi
interrompido. O Golpe constitui-se em outro momento histórico traumático devido ao
seu caráter extremamente violento de interrupção de um processo de mudança
social. A ditadura civil-militar traz ainda o silenciamento e – posteriormente – a
tentativa de apagar a memória sociohistórica, dinâmicas que inviabilizam o processo
de luto coletivo, fundamental na elaboração do trauma60. A posterior consolidação da
indústria cultural nesse contexto recoloca a afirmação de Vieira (2009), segundo a
qual a cultura brasileira tende a encobrir experiências traumáticas relativas ao
sofrimento a partir da tendência à exaltação da alegria.

A partir desses pressupostos, é necessário que tracemos brevemente um
panorama das lutas que se desenharam no campo na década de 1950, bem como
algumas formas adotadas para fazer cultura e política, no intuito de
compreendermos posteriormente a influência desse movimento na constituição do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no contexto pós-ditadura militar.

59 No trabalho de conclusão de curso intitulado “Centros Populares de Cultura: uma experiência na
contramão da mercantilização da vida” analisei os CPC’s como uma experiência inovadora no que se
refere à relação entre movimentos sociais e cultura, visto que tanto a produção quanto a distribuição
artístico-cultural estavam, neste momento, intrinsecamente ligadas à ação de um grupo e às
transformações propostas pelo mesmo, no bojo do processo de enfrentamento político-cultural da
realidade que se colocava.
60 Cf. Vieira, op.cit., pág.3.

103

3.3.1 Alguns precedentes no campo

Porque os pobres do campo dispõem hoje da mais poderosa das
armas, uma arma que não possuíam antes: vão ganhando consciência de

sua situação de míseros explorados e oprimidos e organizam-se como
jamais se organizaram os trabalhadores do campo no Brasil. Esta

consciência e organização lhes valem como um penhor de vitória61.

A aposta de Rui Facó, feita por volta de 1963, está calcada no surgimento das
Ligas Camponesas, organização dos trabalhadores rurais que desponta na década
de 1950. Nesse período a questão agrária, mantida intocada mesmo com o
desenvolvimento do capitalismo em suas bases urbano-industriais, se coloca como
problema político ao se configurar em limite à acumulação. O contexto é também de
afirmação do nacionalismo com o movimento contrário à abertura do petróleo ao
capital estrangeiro e de busca pelo desenvolvimento em seu caráter progressista.

Este se expressou no campo, no entanto, com as obras contra a seca e a
abertura de vias férreas (FACÓ, 2009), o que traz mais uma vez a relação intrínseca
do campo com a cidade, visto que as mudanças em um ambiente refletem no outro.
Novamente, porém, o problema da distribuição e da posse da terra é tratado de
maneira paliativa, com o intuito de evitar conflitos no campo, ou seja, sem realização
da reforma agrária, a qual se coloca como possibilidade e necessidade histórica
posteriormente no governo João Goulart. Considerando a industrialização em seu
potencial desenvolvimento, este seria – teoricamente – o momento ideal para a
realização da mesma.

Porém, apesar das tentativas da burguesia industrial de amenizar as lutas
realizadas em suas formas diversas, como foi o caso de Canudos e do cangaço
analisados por Facó (2009), do sindicalismo rural germinou diferentes movimentos

61 Rui Facó,op.cit., pág. 236.





106
acampamentos sem-terra. Esse movimento delineou propostas e estratégias
recolocadas em cena pelo MST:

O Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master) nasceu no município de
Encruzilhada do Sul. O motivo foi a tentativa de um proprietário de terras de
retomar uma área com cerca de 1.800 hectares, situada no distrito de
Faxinal – que hoje faz parte do município de Amaral Ferrador –, que há 40
anos era habitada por cerca de 300 famílias.
Mais tarde, associações de agricultores sem-terra foram criadas em
dezenas de municípios gaúchos.
A partir do segundo semestre de 1961, o Master ganhou o apoio decisivo de
Leonel de Moura Brizola, governador do Estado entre 1959 e 1962.
O mês de janeiro de 1962 marcou a explosão do Movimento, com a
instalação de diversos acampamentos de sem-terra, para obter
desapropriações e assentamentos.
Milhares de agricultores participaram das mobilizações, até que, em 1964, o
golpe militar encerrou as atividades do Master. Lideranças e militantes
foram presos, torturados, exilados.
A disputa pela terra seria retomada apenas em 1979, com a ocupação das
fazendas Macali e Brilhante, no complexo da Fazenda Sarandi – ocupação
que é considerada a gênese do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST), fundado em 1984 (http://www.mst.org.br/node/10167, por
Gazeta do Sul em 24/06/2010).

Córdula Eckert sinaliza em sua pesquisa que

Tanto o Master como o MST surgem tendo como bandeira central a luta
pela reforma agrária, motivados pelo alto índice de concentração da
propriedade da terra e pela falta de perspectivas de sobrevivência, exceto
pela luta e o processo de organização dos agricultores (...)
Os agricultores sem-terra reunidos pelo Master, segundo Córdula Eckert,
eram os assalariados permanentes e temporários que – pela pouca geração
de empregos no campo e as más condições de trabalho oferecidas –
ansiavam pela posse da terra como forma de garantir sua sobrevivência e a
da família; os posseiros, parceiros, arrendatários e agregados que, apesar
de terem acesso à terra, tinham-no de forma instável; os pequenos
proprietários, que desejavam aumentar a sua propriedade; e os filhos de
pequenos proprietários que, ao casar, queriam permanecer como
agricultores mas nem sempre a terra do pai era suficiente para atender as
suas necessidades.
(http://www.mst.org.br/node/10167, por Gazeta do Sul em 24/06/2010).

Além das Ligas Camponesas e do MASTER se conformou ainda a União dos
Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (Ultab), movimento de menor

107

expressão, mas de igual importância no mapeamento das organizações
camponesas.

A partir desses pressupostos concluimos que a organização das lutas
camponesas em torno da disputa pela terra no Brasil ganha outra dimensão nas
décadas de 1950 e 1960, possibilitando a constituição dos camponeses em atores
políticos fundamentais na luta consciente pela reforma agrária. Mas não só.
Afirmamos ainda que essa movimentação camponesa teve seus rebatimentos nos
grandes centros urbanos, provocando o apoio e a solidariedade de parte da
intelectualidade urbana de esquerda para com suas bandeiras de luta. A
intelectualidade que se movimentava em busca de novas formas estéticas de fazer
política se aproxima da realidade das classes pobres por meio do contato com as
lutas camponesas. A alfabetização de adultos foi um dos caminhos pelo qual esse
contato se estreitou.

O Golpe Civil-Militar de 1964 representou a interrupção dessas formas
organizativas que começavam a se estabelecer e ganhar território. Culturalmente,
significou o prelúdio da vitória da indústria cultural e de outra estética, apartada das
formas politizadas que estavam sendo recuperadas no Brasil como momento
necessário da política. Impedida pela força de se conformar enquanto resistência, a
cultura popular já modificada desde 1930 com o enquadramento industrial é
confrontada agora com seu próprio reflexo esvaziado de qualquer conteúdo
emancipatório a partir do boom televisivo iniciado no período militar – no qual os
meios de comunicação recebem investimento pesado de capitais estrangeiros,
assumindo os artistas uma estética “importada”.

108

Schwarz (2005) analisa os meandros da relação cultura e política após o
Golpe. Veremos brevemente a partir do autor algumas implicações da política da
ditadura militar no âmbito cultural.

3.3.2 Sobreveio o golpe

(...) como seria a cultura popular se fosse possível preservá-la do comércio
e, sobretudo, da comunicação de massa? O que seria uma cultura nacional

sem mistura? De 1964 para cá a internacionalização do capital, a
mercantilização das relações sociais e a presença da mídia avançaram

tanto que essas questões perderam a verossimilhança (SCHWARZ,
2005:113).

Conforme apontamos acima, o sentimento de dualidade que perpassa a
intelectualidade brasileira tem seus fundamentos na permanência de uma estrutura
sócio-econômica aparentemente oposta às idéias modernas em vigor no país, mas
convivendo com as mesmas. Esse par a princípio esdrúxulo, cujas raízes remontam
à ausência de participação popular na vida política do país, não encontrou
elaboração cultural coletiva capaz de representá-lo em suas contradições.

Durante a década de 1960 a possibilidade de elaborar traumas originários da
colonização estava em curso, colocando em xeque afirmações segundo as quais a
mestiçagem nos tornava incapazes de criar63. Com a efervescência provocada por
práticas políticas diferenciadas, pautadas na arte e na cultura como meio de
transformação, tanto camponeses quanto estudantes e a intelectualidade de
esquerda se colocavam em cena como sujeitos de sua história.

Nesse sentido, o golpe civil-militar de 1964 representou a brusca interrupção
desse processo e a reiteração da afirmação segundo a qual “a dominação absoluta
faz que a cultura nada expresse das condições que lhe dão vida” (SCHWARZ,

63 Cf. a leitura de Schwarz da obra de Silvio Romero em seu ensaio “Nacional por subtração”. In:
Schwarz, 2005, op.cit.

109

2005:133). Ou seja, o sentimento presente no século XIX de que nossa vida cultural
era imitação, oriundo das estruturas sociais do país, tem sua elaboração
interrompida antes mesmo de alcançar seu auge.

Se, conforme demonstra Schwarz (2005:133), a estrutura social do país
“confere à cultura uma posição insustentável, contraditória com o seu autoconceito”,
(apesar de não ser infértil de todo), a ditadura eleva ao máximo tal afirmação,
principalmente ao garantir as condições para a afirmação da indústria cultural. A qual
funciona por meio de mecanismos perversos mercantilizando todos os espaços da
vida dos homens, inclusive as criações que satisfazem necessidades do espírito. A
elaboração e a possibilidade das massas de representar o real é novamente adiada
pelo uso da força e da técnica como meio de produção de cultura.

Cabe ressaltar o caráter nacional desse processo interrompido pelo golpe. A
inviabilidade de construção do Estado-nação em seus fundamentos nos países de
capitalismo periférico possibilitou a afirmação de uma espécie de nacionalismo de
esquerda no período desenvolvimentista. O nacionalismo como bandeira de luta
pela transformação é compreensível nesse contexto, onde se ansiava pela
conformação de uma nação em seus elementos básicos, por meio da emancipação
política. Devido à nossa história, entendemos que a busca por uma cultura popular
nacional foi um elemento problemático64, porém necessário no processo de negação
da interferência externa.

Schwarz sintetiza o clima que perpassava aquele contexto intelectual a partir
do raciocínio no qual o Partido Comunista estava fundamentado:

64 Os anos decorridos e os rumos do país pós-64 nos permitem fazer tais observações.

110

o aliado principal do imperialismo, e portanto o inimigo principal da
esquerda, eram os aspectos arcaicos da sociedade brasileira, basicamente
o latifúndio, contra o qual deveria erguer-se o povo, composto de todos
aqueles interessados no progresso do país. Resultou no plano econômico-
político uma problemática explosiva mas burguesa de modernização e
democratização; mais precisamente, tratava-se da ampliação do mercado
interno através da reforma agrária, nos quadros de uma política externa
independente (SCHWARZ, 2005:14 – grifos do autor)

O sentimento nacionalista que marcou parte da esquerda nesse período se
fundamentava então em noções (não coincidentemente destacadas pelo autor) que
apontavam para a necessidade de superação do atraso para que o progresso se
tornasse generalizável internamente. A ausência de unidade perante a falta de
interesses nacionais em comum se conformou nesse momento na proposta de
aliança com a burguesia nacional, uma espécie de aliança para o progresso,
pautada no entendimento de povo-nação. Colocava-se então a necessidade de
reforma agrária, a qual desenvolveria o mercado interno e proporcionaria melhores
condições para a população pobre; de superação do atraso em busca da
modernização; e de democratização voltada à participação popular.

Esse intento pôde ser problematizado no momento de sua negação: o golpe
civil-militar de 1964, o qual relegou o populismo ao lugar de ideologia. O decorrer
dos acontecimentos demonstrou que o capitalismo se construiu em sua condição
periférica inviabilizando as reformas necessárias ao país, pois estas suprimiriam os
elementos atrasados que servem aos interesses de valorização do capital. Logo, nos
limites desse modo de produção não seria possível avançar nas reformas, mesmo
nas de caráter burguês-liberal.

Schwarz (2005) ressalta que havia, antes mesmo do golpe, esse
entendimento acerca dessas contradições. Porém vinculado a práticas sociais
resultantes do contato entre intelectuais e a massa da população expropriada, as

111

quais resultaram na radicalização do populismo. Como no método Paulo Freire de
alfabetização, onde a leitura deixa de ser encarada como técnica, é tida como

força no jogo da dominação social (...). Em lugar de aprender humilhado,
aos 30 anos de idade, que o vovô vê a uva, o trabalhador rural entrava, de
um mesmo passo, no mundo das Letras e dos sindicatos, da Constituição,
da reforma agrária, em suma, dos seus interesses históricos (SCHWARZ,
2005:19).

O método Paulo Freire transformava certezas e trazia “a noção de que a
miséria e seu cimento, o analfabetismo, não são acidentes ou resíduos, mas parte
integrada no movimento rotineiro da dominação do capital” (SCHWARZ, 2005:20).

Cabe uma breve digressão. No meu entendimento, a partir de elementos
expostos na peça e no prospecto, o grupo teatral Companhia do Latão, na já referida
peça “Ópera dos vivos”, utiliza a liberdade de criação e segue as pistas de Schwarz,
relacionando nas entrelinhas de seu espetáculo os métodos de alfabetização de
adultos com a terceira tese de Marx ad Feuerbach, na qual Marx afirma que o
educador deve ser educado. Sua contribuição vem no sentido de apontar os homens
como criadores, os quais carregam assim a potência de revolucionar as
circunstâncias. Essa se efetiva como práxis transformadora. Penso que é nesse
sentido que ocorre a radicalização do populismo, pois justamente no contato com os
trabalhadores rurais a intelectualidade urbana pôde questionar suas
pseudoverdades e efetivamente aprender com quem se dispõe a comunicar
situações vivenciadas no cotidiano de exploração do trabalho. Entendo que é nesse
sentido também que Schwarz (2005) afirma a politização de parte da classe média
nesse período “pré-revolucionário” como um dos ganhos desse contato direto com
as massas.

112

Ainda nessa perspectiva podemos observar também a modificação do sentido
usual de “alta cultura”. Historicamente a cultura letrada no Brasil foi considerada
sinônimo de posses. Ou seja, por ser domínio de poucos, o desenvolvimento da
leitura se conformou como um símbolo de status sócio-econômico, no extremo, de
poder e dominação. Isso leva ao entendimento da cultura como um bem privado,
patrimônio de poucos. No contexto por nós analisado a separação entre alta cultura
e cultura popular se mostra outra falsa dualidade (que obviamente tem seu
fundamento histórico) a partir da possibilidade de universalização da leitura. Essa
seria uma das maneiras de adentrar e questionar o então intocável universo da
produção da escrita como forma de ideologia (no sentido de visão de mundo), logo,
poderia se configurar em uma maneira de participar das relações de poder e tentar
virar esse jogo ao se configurar em produtor de cultura também por meio da escrita.

Retomando o raciocínio anterior, acerca da necessidade de supressão do
atraso expressa em correntes nacional-desenvolvimentistas, Schwarz (2005) afirma
que a ditadura enquanto contra-revolução cristalizou não só a separação entre as
massas e a intelectualidade, alijando novamente do processo os mais interessados
na transformação dessa ordem de coisas, mas também a conjunção esdrúxula entre
o arcaico e o moderno, na qual os termos do problema são insolúveis por serem
funcionais. Ou seja, modernizou-se o país reavivando os elementos arcaicos
necessários à modernização:

a integração imperialista, que em seguida modernizou para os seus
propósitos a economia do país, revive e tonifica a parte do arcaísmo
ideológico e político que necessita para a sua estabilidade. De obstáculo e
resíduo, o arcaísmo passa a instrumento intencional da opressão mais
moderna, como aliás a modernização, de libertadora e nacional, passa a
forma de submissão (SCHWARZ, 2005:28).

113

Além do arcaísmo ideológico e político que consolida formas de poder
tradicionalistas, há a retirada das reformas de base do horizonte. A possibilidade de
que estas fossem feitas observando-se os interesses das massas se perde e formas
consideradas arcaicas de uso da terra, como os latifúndios monocultores, se
reafirmam na condição de arcaico (agora parte do moderno tecnologicamente
constituído) necessário ao desenvolvimento do país, maneira de integrar o Brasil à
economia mundial.

O desenvolvimento do Brasil nos marcos da sociedade capitalista ocorre
conjugando etapas diferentes do desenvolvimento do capitalismo, ou seja, essa
conjunção esdrúxula marca nossa formação social enquanto periferia. Nesse
sentido, o caráter nacional da modernização reivindicada pela esquerda acaba se
afirmando em sua feição conservadora perante os limites do capital enquanto forma
de organização social. Novamente, a edificação do Estado-nação ocorre “pelo alto”,
o que em termos liberais o inviabilizaria.

Conforme aponta Schwarz,

a coexistência do antigo e do novo é um fato geral (e sempre sugestivo) de
todas as sociedades capitalistas e de muitas outras também. Entretanto,
para os países colonizados e depois subdesenvolvidos, ela é central e tem
força de emblema; isto porque esses países foram incorporados ao
mercado mundial – ao mundo moderno – na qualidade de econômica e
socialmente atrasados, de fornecedores de matéria-prima e trabalho barato.
A sua ligação ao novo se faz através, estruturalmente através de seu atraso
social, que se reproduz em lugar de se extinguir. Na composição insolúvel
mas funcional dos dois termos, portanto, está figurado um destino nacional,
que dura desde os inícios (SCHWARZ, 2005:34 – grifo do autor).

Entendemos que o autor recupera o sentido da colonização, de país criado
para fornecer produtos e riquezas ao exterior, para analisar o desdobramento da
modernização levada a cabo pelo Golpe Civil-Militar. Logo, a produção e reprodução

114

do atraso como elemento funcional foi a forma pela qual o país se equiparou aos
países desenvolvidos, ou como diz o autor, se ligou ao novo.

O destino nacional ao qual Schwarz se refere como “ponto de partida” pode
então ser entendido como conseqüência de determinantes originados na
colonização, cuja elaboração ainda não se concretizou em formas de representação
das massas. Entendo que não há uma espécie de determinismo nessa leitura, antes
a constatação de uma ausência de participação política que se fez constante na
história da formação do Brasil enquanto país de capitalismo moderno e periférico,
conduzida de maneira autoritária e perversa.

Nas décadas de 1950 e 1960 a produção de cultura voltava-se ao
entendimento desse processo a partir de conceitos-chave como a crítica ao
subdesenvolvimento, aos elementos atrasados e às desigualdades inerentes ao
processo. Porém, nesse momento, a crítica estava ligada a práticas sociais
diferenciadas, como a alfabetização de adultos com o método Paulo Freire,
apresentações culturais em praça pública acerca de tais questões, formação de
organizações camponesas, entre outras. A ditadura tolhe essa movimentação
política e cultural que começava a se radicalizar ao cortar “as pontes entre o
movimento cultural e as massas” (SCHWARZ, 2005:9).

No período entre 1964 e 1968 (quando ocorre o endurecimento da ditadura),
a cultura de esquerda gestada antes do golpe permanece, porém dissociada das
práticas sociais até então em desenvolvimento. Em um aparente paradoxo, a cultura
que incitava a participação política permanece mesmo com a ditadura, porém
atrelada ao consumo – o qual se torna determinante. Há assim uma mudança
fundamental do lugar da esquerda, particularmente em suas frações mais
abastadas, de produtores de cultura a público-alvo da venda de produtos culturais.

115

Adorno (2002) aponta que a indústria cultural se consolida também pela
criação de nichos de mercado, ou seja, de produtos aparentemente diferenciados,
produzidos de acordo com o gosto do público-alvo ao qual se dirigem. Com o
começo da consolidação da indústria cultural no Brasil no contexto ditatorial a
produção cultural da esquerda não estava isenta de enquadramento nesse
mecanismo. Cortadas as pontes entre intelectuais e as massas, abrem-se as portas
para o triunfo do reino da mercadoria.

Resumidamente, podemos apontar que o golpe civil-militar e os anos duros
de ditadura recriaram traumas originários legados pelo processo de colonização ao
implicar, conforme apontou Paulo Arantes, na interrupção do ato de pessoas comuns
fazerem política65. A ausência de unidade nacional se reapresenta após a ditadura
como um problema inerente à sociedade dividida em classes, com o agravo da
manutenção da dependência externa dos países periféricos – agora enfim
modernos! – a qual havia colocado no mesmo barco dominação imperialista e
reação interna, vencedores no trágico desfecho antecipado do espírito da década de
1960.

A ditadura em sua condição de trauma retirou do horizonte o debate público
acerca de temas oriundos das práticas sociais organizativas (sindicais, operárias,
camponesas, estudantis), justamente no momento que a “vanguarda cultural do
Ocidente” coloca em pauta por diferentes meios o apodrecimento do capitalismo
enquanto formação social. Ou seja, nos modernizamos pela pior das vias, calando
vozes que poderiam encontrar eco mundialmente quando de sua continuidade.

Novamente recorremos a Schwarz (2005:37): “o processo cultural, que vinha
extravasando as fronteiras de classe e o critério mercantil, foi represado em 1964”.

65 Debate realizado devido ao lançamento do livro “O que resta da ditadura”, em 05 de julho de 2010.

116

“A mercantilização das relações de trabalho em geral, e da produção cultural em
particular, nestes vinte anos avançaram muito. Outras formas de sociabilidade
tornaram-se quase inimagináveis em nosso meio” (SCHWARZ, 2006:73, 74). O
autor aponta, no entanto, a impossibilidade de se represar esse movimento cultural e
político eternamente, devido à manutenção de desigualdades, resultante da política
econômica dos governos militares. Essa forma de governo autoritário também
alcançou seu limite lógico e sua desaprovação foi sentida nas ruas com o movimento
“Diretas-já” e com a criação de movimentos sociais que expressam a insatisfação
popular perante a permanência de elementos nefastos, como o latifúndio, o
analfabetismo funcional, a miséria, dentre outros.

Observaremos no capítulo seguinte o MST como possibilidade nesse
contexto, a partir de sua forma de produzir cultura. Compartilhamos do entendimento
segundo o qual “a cultura é aliada natural da revolução, mas esta não será feita para
ela e muito menos para os intelectuais. É feita, primariamente, a fim de expropriar os
meios de produção e garantir trabalho e sobrevivência digna aos milhões e milhões
de homens que vivem na miséria” (SCHWARZ, 2005:58).

117

4 CULTURA EM MOVIMENTO: A EXPERIÊNCIA DO MST

Dissertamos até aqui acerca da formação brasileira enquanto país de
capitalismo periférico. A constituição de massas de trabalhadores sem terra é uma
das conseqüências desse processo iniciado com a colonização e a manutenção do
país em seu caráter de potência na produção de produtos para exportação.

A constituição do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
inicia-se, não por acaso, em um período no qual a esquerda brasileira tentava se
recuperar do que podemos considerar como o maior dos golpes, o qual levou à
modernização conservadora. Nesse momento, partidos políticos se refaziam do
bipartidarismo; eram fundados e/ ou refundados representando uma tentativa de
retomar o fio da meada.

Porém o contexto que se colocava era outro fruto da modernização que
conservou a desigualdade, elevando-a a condição de estrutural, principalmente no
que tange à continuidade do monopólio das terras e ao agravante da ausência de
empregos formais que possam atender à demanda crônica. Ou seja, o que era
considerado fruto do atraso do país passa a se reafirmar como continuidade,
consequência da própria modernização. A esses elementos, somam-se questões
oriundas do processo de reestruturação produtiva iniciado na segunda metade da
década de 197066.

A ditadura civil-militar agravou a histórica expulsão dos trabalhadores rurais
do campo ao modernizar a produção tecnologicamente, aumentando-a sem efetuar
a redistribuição de terras, o que culminou no deslocamento de grande contingente
populacional para os centros urbanos. Ao apontarmos que a ditadura acentua a

66 Cf. HARVEY, D. A condição pós-moderna. SP: Loyola, 1992.

118

questão urbana ao modernizar a produção, tendo como um de seus resultados a
formação de densa massa de desempregados urbanos estruturais, a criação de um
movimento social pós-ditadura composto por trabalhadores rurais parece paradoxal.
Podemos, no entanto, deslocar essa contradição ao analisarmos a questão agrária
no Brasil como uma permanência que ganha nuances diferenciadas de acordo com
o momento histórico.

Nas décadas de 50 e 60 do século XX a questão agrária desponta fortemente
como um problema político67 exposto nas práticas e nos discursos de diferentes
atores sociais, tanto do campo quanto da cidade. Dentre aqueles as Ligas
Camponesas se destacavam por representarem um “novo desdobramento” das lutas
até então travadas de maneira inconsciente (FACÓ, 2009), ou mais imediata, no
meu entendimento68. As Ligas se formam, porém em um contexto no qual uma
revolução democrática efetivamente se colocou no horizonte. A ditadura civil-militar
iniciada em 1964 interrompe esse processo político-cultural em gestação.

Paulo Arantes, em palestra ministrada no auditório do Centro de Filosofia e
Ciências Humanas da UFRJ69, analisou a ditadura civil-militar brasileira como um
golpe preventivo, o qual interrompeu o ato de pessoas comuns (massas não
proprietárias) fazerem política. Conforme sinalizamos nos capítulos anteriores, a
possibilidade das massas se representarem foi novamente inviabilizada nesse
momento. A abertura democrática carrega a elaboração desse trauma enquanto um
dos requisitos para sua efetiva consolidação, marcada pela continuidade da
acumulação primitiva.

67 Cf. apresentação feita por Leonilde de Servolo Medeiros do livro de Facó, op.cit..
68 Facó (2009) refere-se a lutas como o cangaço e as movimentações de caráter religioso que
culminaram em levantes como Canudos.
69 Debate realizado devido ao lançamento do livro “O que resta da ditadura”, em 05 de julho de 2010.

119

Segundo Arantes (2007), a acumulação primitiva constitui um processo
contínuo. A partir dos novos cercamentos, da intensificação da concorrência privada
pelo controle dos espaços abertos pelo alargamento da esfera privada de
acumulação e do atual surto territorialista dos imperativos econômicos, há a
reatualização da acumulação primitiva, “que pode muito bem nunca ter desaparecido
inteiramente de cena” (ARANTES, 2007:181). O autor aponta ainda que,
principalmente em momentos de crise, há a busca da acumulação por outros meios,
a qual é ainda marcada por toda sorte de violência.

Nesse sentido, a abertura democrática no país encontra sua outra face ao ser
entendida em relação com a crise do capitalismo desencadeada em 1973. De certa
forma, a reestruturação produtiva desencadeou dinâmicas de acumulação que
recolocam nosso lugar de periferia do capitalismo, sinalizando a atualidade do
sentido da colonização.

O MST ganha força nesse cenário de (re) democratização, já que a
modernização do Brasil no bojo do processo ditatorial conservou elementos como a
concentração da propriedade da terra e consequentemente do poder político. Ou
seja, no Brasil a modernização ocorre sem que a estrutura agrário-fundiária seja
revolucionada pela ação de sujeitos coletivos representantes dos segmentos não
proprietários; logo, o novo se consolida predominantemente a partir das
necessidades do capital como sujeito automático, o qual atropela e reconfigura, ou
melhor, reatualiza o velho como parte de sua dinâmica. Nesse sentido, o próprio
conceito de camponês ganha outros matizes ao ser atravessado por determinações
que marcam o lugar das massas sem terra no processo produtivo; e que tornam
tênue as fronteiras entre o rural e o urbano.

120

A ditadura civil-militar, enquanto “contra-revolução preventiva que completou
de modo autoritário e antipopular o nosso modelo de substituição de importações,
iniciado na grande crise do capitalismo mundial dos anos 1930” (MENEGAT,
2008:152), provocou uma significativa inflexão político-cultural no cenário brasileiro,
atualizando as bases para o desenvolvimento capitalista. Este, porém, ocorreu de
maneira peculiar, reatualizando elementos arcaicos, pré-capitalistas, como
funcionais à manutenção do sistema periférico-central.

Logo, esta formação social que comporta no seio de sua existência a
manutenção do “atraso” e do retrocesso como corolários do próprio “progresso” é
atravessada por um paradoxo que requer condições subjetivas para efetivar sua
autonegação: as condições objetivas pós-ditadura recolocam a possibilidade de
concretização de movimentos organizados contra essa lógica desigual ao modificar
as estruturas de produção social mantendo as enormes desigualdades, como a
concentração de terras. O que seria um impedimento, um limite à continuidade da
acumulação, a partir da modernização tecnológica torna-se consequência da
mesma.

O próprio MST, consolidado a partir de 1984, nasce atrelado às bases
colocadas pela modernização conservadora do país. O movimento surge em um
período no qual, em contrapartida e como produto do contexto de exclusão e
desigualdades agravado pelo desenvolvimento do “capitalismo tardio” iniciou-se no
Brasil o processo contínuo de constituição de “novos” sujeitos sociais organizados.
Nos anos 80 do século XX “ressurgem” – tanto na cidade, com o movimento
operário, estudantil, entre outros, quanto no campo, com o MST – movimentos que
afirmam a necessidade de redemocratização da sociedade brasileira, incluindo a
necessidade de democratizar o acesso a terra, já que a política instituída pelo

121

governo militar manteve os privilégios da oligarquia agrária contidos no Estatuto da
Terra, o qual vigorou até a promulgação da Constituição Federal de 1988.

Se durante a ditadura militar movimentos como as Ligas Camponesas, os
sindicatos e o movimento estudantil são colocados na clandestinidade ou dizimados,
o processo de reabertura democrática permite a entrada em cena desse movimento
que tem suas razões de surgimento diretamente vinculadas às estruturas do
capitalismo periférico brasileiro – já então consolidado. No MST, a herança das lutas
travadas pelas Ligas e pelo sindicalismo rural é reatualizada e ressignificada ao ser
combinada com a religiosidade organizada a partir do trabalho de base da Comissão
Pastoral da Terra (CPT), realizado na década de 196070.

No bojo desse processo o camponês enquanto não proprietário se auto-
afirma ao mesmo tempo em que é negado em seu sentido “puro” pelas condições
objetivas postas pelas mudanças globais na estruturação do capitalismo pós-década
de 1970. Principalmente as que se referem ao desemprego enquanto fenômeno
estrutural, à urbanização enquanto pressuposto da globalização e à mobilidade ou
desterritorialização dos pólos produtivos71. O campesinato é então negado ao ser
obrigado a se deslocar do campo para a cidade e se deparar com o agravo da
condição de desempregado estrutural. O conceito pode ser problematizado ainda ao
analisarmos as modificações nas formas de sociabilidade pelo proliferamento das
tecnologias – entendidas hoje como constitutivas da sociabilidade urbana pós-
moderna.

Após a modernização brasileira ter se completado, o camponês – entendido
como produtor rural que produz para sua própria subsistência e para sustento de

70 Cf. Lewin (s/d).
71 Cabe lembrar que o deslocamento dos pólos produtivos é um dos elementos que recolocam o
arcaico como consequência do moderno – inclusive no que se refere ao trabalho escravo
contemporâneo.

122

sua família – se tornou exceção; devido inclusive ao imenso deslocamento ocorrido
na ditadura militar, essa figura compõe o arcaico engendrado pela própria
consolidação do moderno, ou seja, é parte da atual configuração social urbana que
tem a miséria e a desigualdade como seu corolário crescente (em contraposição a
opulente riqueza de poucos). Sua conceituação clássica passou a ser objeto de
mistificação quando dissociada do real.

Assim, é interessante pensar o MST enquanto movimento que traz em sua
constituição rebatimentos consequentes do encontro do processo global de
mudança na estrutura do sistema de produção com as particularidades históricas da
acumulação que conformam o Brasil como país de capitalismo periférico.

4.1 SOCIABILIDADE E PRODUÇÃO DE CULTURA

A partir desses pressupostos brevemente sinalizados, alguns já expostos nos
capítulos anteriores, adotamos o entendimento do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra como fruto das condições de vida às quais grandes contingentes
populacionais foram relegados, ou melhor, como possibilidade de reação às
mesmas. Os trabalhadores rurais, em particular, vivenciaram por diversos momentos
intensos processos migratórios, os quais contribuíram para seu desenraizamento
sociocultural e, no entanto tiveram como consequência espontânea a produção de
cultura nos grandes centros urbanos como um amálgama (conforme visto com
Weffort, 1988).

Segundo Lobo (2005:216), a “dimensão da origem para o trabalhador sem-
terra é algo bastante difuso, devido à própria condição de migrante sempre em
busca de trabalho”. Ou seja, a base social do MST é marcada pelo deslocamento,

123

pela condição apontada por Darcy Ribeiro de “eterno itinerante”. Nesse sentido, o
lúdico recupera o senso de imaginar e criar, expropriado pela brutalização do
homem legada por essas condições de vida.

Ecléa Bosi (1988) afirma que a cultura das classes pobres está ligada à
existência e à sobrevivência dessas, ou seja, a relação entre a condição humana
gerada pela sociabilidade burguesa e a produção de cultura está na base do
processo de criação da vida em seus diferentes matizes, como acomodação e
construção do novo por meio da transgressão à norma. Em outras palavras, há
códigos próprios em cada cultura, inclusive lingüísticos os quais, por vezes,
dificultam a comunicação entre classes, pressupondo que “na raiz da compreensão
da vida do povo está a fadiga” (BOSI, 1988:27).

Essa assertiva pode ser entendida a partir da proposição segundo a qual a
cultura em uma sociedade de classes é cultura de classes, logo, a cultura dominante
de uma época é a produzida pelas classes dominantes. Marilena Chauí (1988)
recupera essa perspectiva em sua afirmação de que a expressão cultura do povo,
utilizada para evitar as ambigüidades presentes no termo cultura popular, pressupõe
o reconhecimento da existência da diferença, da oposição e da luta de classes.

Para a autora, o termo “do povo” permite ler a frase de Marx, segundo a qual
as idéias dominantes de uma época são as idéias dos dominantes, a partir do
pressuposto de que seu contraditório deve existir; ou seja, a negação das idéias
dominantes se expressa nas idéias dos dominados enquanto parte de uma cultura
“dominada”. Chauí lembra que a expressão, porém, não deve ser romantizada, ou
seja, vista como imediatamente libertadora, pois o romantismo pode levar ao
populismo. Cabe então ressaltar que a alienação e a reprodução da ideologia dos
dominantes estão presentes no complexo de relações que forma a cultura do povo.

124

A partir desses preceitos Marilena Chauí faz a leitura da afirmação de Walter
Benjamin, de que todo documento de cultura é um documento de barbárie. Para
Chauí (1988), essa afirmação contém sentidos diferenciados, porém historicamente
unidos. Documentos de cultura seriam documentos de barbárie pelas condições nas
quais são produzidos,

“seja porque a cultura do dominante se realiza através da violência exercida
sobre aqueles que a tornam possível, seja porque a cultura do dominado
fica exposta à barbárie do dominante, seja, enfim, porque a cultura dos
dominados exprime a barbárie em que vivem” (CHAUÍ, 1988:122).

Ou seja, há a permanência da dominação na história e essa se expressa
também na cultura e nas formas de produzi-la. Daí Walter Benjamin apontar que
todo documento de cultura é um documento de barbárie; constituído por esta e
constituinte de modos de vida.

Assim, podemos analisar a cultura produzida em um movimento social no
contexto pós-ditadura civil-militar, ou seja, no momento posterior à consolidação da
modernização conservadora, como possibilidade de negação da barbárie
constitutiva, mas ainda assim marcada por ela. Com a modernização completada,
recuperar o caminho iniciado pelas Ligas Camponesas e pavimentá-lo com uma
práxis política de valorização da cultura como produção artística dos trabalhadores
expropriados e como transformação de formas de vida significa a possibilidade de
recuperação da resistência enquanto elemento original da cultura popular. Esta é
retomada enquanto parte da memória em seu caráter de luta pela subsistência e em
suas práticas comunitárias.

Ecléa Bosi afirma que a resistência diária à massificação (a qual analisamos
como corolário da afirmação da indústria cultural) reflete o sentido das formas da
cultura popular. Com o império da mercadoria, o conceito de cultura popular se torna

125

empobrecido em seu sentido ao realizar-se a cisão entre este e a resistência
característica. Para a autora,

essa diversidade caiu no vazio: não há memória para aqueles a quem nada
pertence. Tudo o que se trabalhou, criou, lutou, a crônica da família ou do
indivíduo vão cair no anonimato ao fim de seu percurso errante. A violência
que separou suas articulações desconjuntou seus esforços, esbofeteou sua
esperança, espoliou também a lembrança de seus feitos (BOSI, 1988:33,
34).

Logo, a análise de Ribeiro acerca das lutas de resistência se pintarem com as
cores dos conflitos passados fica desbotada quando a própria memória é espoliada
enquanto possibilidade de construção de novas formas de vida. O neoliberalismo em
seu ideário “totalizante e totalitário” (MALAGUTI, CARCANHOLO & CARCANHOLO,
2008) contribui para esse processo com a tentativa de impor uma racionalidade
única.

Cabe ressaltar a elaboração de Schwarz (1999) referente a algumas
contradições inerentes ao ato de pensar a cultura popular na atualidade. Ao analisar
a obra de Bosi, Schwarz indica a necessidade de observarmos as transformações no
contexto onde a modernização já se completou.

É verdade que a cultura gerada “sob o limiar da escrita” não desapareceu.
Mas os seus portadores e a sociedade de que fazem parte estão mudados,
e mais, a mudança não parece consubstanciar as noções e alternativas que
acompanharam o começo do ciclo (SCHWARZ, 1999:70).

No meu entendimento, a cultura popular se construiu em relação com a
colonização, porém nos momentos em que a reação se constituiu em possibilidade
de resistência, houve a reafirmação da dominação, o que a impediu de se realizar
em sua originalidade. Já com a afirmação posterior da indústria cultural, os sujeitos



127

homens em sua condição de produtores de cultura, ou seja, por meio da produção
da vida em condições extremamente adversas e da busca por um sentido mais
humanitário. Mais do que condições, a recuperação do potencial de resistência das
lutas populares se coloca como uma necessidade histórica.

Durante nossa exposição, navegamos por diferentes entendimentos acerca
do conceito de cultura, então, antes de prosseguirmos, cabe nos determos nesse
conceito para situar melhor nossa compreensão acerca do mesmo. Penso que esse
movimento é imprescindível na tentativa de ler o Coletivo de Cultura do MST em sua
condição de produtor de cultura.

4.2 CULTURA NA PERSPECTIVA DO MATERIALISMO HISTÓRICO

O conceito de cultura adquiriu autonomia a partir de sua desvinculação da
noção moderna de civilização. Williams (1992) aponta sua origem vinculada à noção
de cultivo, tanto da terra quanto do homem. O autor utiliza o desenvolvimento da
língua inglesa como elemento vivo para analisar o conceito de cultura em suas
implicações e em seu caráter de constante transformação – de acordo com as
mudanças ocorridas de época em época, entendendo a linguagem como elemento
indissociável da autocriação humana (WILLIAMS, 1979):

Começando como nome de um processo – cultura (cultivo) de vegetais ou
(criação e reprodução) de animais e, por extensão, cultura (cultivo ativo) da
mente humana – ele se tornou, em fins do século XVIII, particularmente no
alemão e no inglês, um nome para configuração ou generalização do
‘espírito’ que informava o ‘modo de vida global’ de determinado povo.
(WILLIAMS, 1992:10 – grifos do autor).

O autor sinaliza a transformação dos significados socialmente atribuídos ao
termo cultura em diferentes épocas históricas. O conceito de cultura reflete

128

contradições através das quais ele se desenvolveu. Na citação feita acima
identificamos três formas diferenciadas de utilização do conceito, mas notamos
também que as três relacionam-se ao se referirem a formas de produção e
reprodução da vida. Seja por meio do cultivo da terra, de animais e/ ou dos próprios
homens. Cultura assume assim o significado de espírito de um povo, podendo ser
associado à noção de ethos.

Destacamos que em seus diferentes matizes o conceito relaciona-se à forma
de cultivo da terra, cotejada com o cultivo espiritual do homem. A palavra que a
antecede, no latim colere, significava habitar, cultivar, proteger, entre outros
significados (WILLIAMS, 2007), todos relacionados à relação do homem com a
natureza, mais especificamente, com a lida com a terra.

Segundo Williams (2007),

em todos os primeiros usos, cultura era um substantivo que se referia a um
processo: o cuidado com algo, basicamente com as colheitas ou com os
animais. (...). A partir do princípio do S16, o cuidado com o crescimento
natural ampliou-se para incluir o processo de desenvolvimento humano, e
esse, ao lado do significado original relativo a lavoura, foi o sentido principal
até o fim do S18 e início do S19. (WILLIAMS, 2007:117-118 – grifos do
autor).

Cevasco (2001:46) destaca que a obra de Williams recoloca a proposição
segundo a qual as palavras trazem em “suas extensões e ambigüidades a história
de disputas em torno da fixação de seu sentido para cumprir determinada função
social”. A autora utiliza o exemplo de E.P.Thompson e o sentido de cultura como
modo de luta, atribuído pelo autor. Podemos mobilizar também a situação do Brasil
agrário para entender a complexidade dessa afirmação.

Ao analisarmos a colonização do Brasil e o contexto social da época,
identificamos que a noção de cultura como cultivo da mente está apartada de seu

129

sentido correlato de cultivo da terra. Afinal, tal conceituação apontava para as
condições de cultivo espiritual nos moldes da civilização moderna européia, se
consolidando em nossas terras como símbolo de diferenciação social. Isso denota
uma relação de poder e de domínio da terra, que possibilitava, por exemplo, a
dominação exercida por meio do domínio da escrita. Nesse sentido, isolar essa
noção de cultura de seus outros significados implicava em classificar os “cultos” e
separá-los dos “incultos”.

Técnica então restrita à elite proprietária, o domínio da leitura e da escrita
implicava tanto na possibilidade adquirida pelo proprietário de terras quanto na
impossibilidade lógica dos produtores reais que lidam com a terra de se apropriarem
da cultura escrita representada em obras de caráter universal. Ou seja, o sentido da
colonização proposto implicou na dissociação da lida com a terra do cultivo dos
homens, bem como da condição dos produtores de se afirmarem como produtores
também de uma cultura escrita. Há aqui a dissociação entre produção material e
produção escrita.

Essa condição real de acesso restrito à cultura em seu sentido letrado,
perante a fixação desse sentido do conceito de cultura, acaba reforçando a relação
de poder acerca da inferiorização da massa de analfabetos que o país gerou e
comportou durante seu desenvolvimento. Cabe ressaltar que o Brasil se construiu
enquanto nação mantendo parte significativa de seu povo nessa condição.

Daí o entendimento elitista que coloca cultura como privilégio de poucos, os
colonizadores como pessoas cultas e civilizadas e relega os colonizados ao lugar de
bárbaros, retirando os trabalhadores braçais da condição de intelectuais e
produtores de cultura devido às formas assumidas pela divisão social do trabalho,

130

particularizada no Brasil pela perversidade do processo colonial em seu sentido de
produção para o mercado externo e em sua condição de dependente.

(Essas notas nos ajudarão a compreender o Coletivo de Cultura do MST em
seu caráter formativo, ou seja, em sua proposta que vai ao encontro da Frente de
massas de formar intelectualmente os trabalhadores sem terra em contato com o
trabalho coletivo de construção do próprio movimento em suas particularidades).

Retomando, note-se que os sentidos de cultura descritos por Williams ainda
estão nesse momento associados ao moderno conceito de civilização. O autor indica
que somente a partir de meados do século XIX a palavra cultura se autonomiza
enquanto substantivo que indica um processo abstrato ou o resultado desse
processo. Logo, deixa de ser sinônimo de civilização, pelo próprio surgimento deste
termo, desvinculando-se por conseqüência da idéia de um processo de civilizar-se
que diferencia os povos – noção baseada nos parâmetros iluministas no sentido de
“processo secular de desenvolvimento humano” (WILLIAMS, 2007:119).

Raymond Williams (2007) destaca ainda a contribuição do movimento
romântico para a mudança no sentido ortodoxo do conceito de cultura vinculado a
civilização, o qual passou a ser reivindicado no plural como culturas e em seus
tentáculos, como a noção de cultura popular72.

Para além das mudanças sociohistóricas do conceito de cultura, Williams traz
em sua obra a contribuição original de pensar a cultura a partir do vínculo entre seus
significados aparentemente diversificados. Isso também o situa em uma tentativa de
atribuir outra função social ao conceito de cultura, desvinculada de seu caráter de
hierarquizar e inferiorizar os homens por certa evolução espiritual que os mesmos
supostamente não possuem. Na leitura de Williams, as relações de dominação

72 Conceito que o próprio autor considera problemático em seu desenvolvimento. Cf. em particular
Williams, 2007, págs. 117 a 124; 184 a 186; 318 a 320.

131

passam pelo entendimento de cultura como atividade constituinte e constituída da e
pela vida social. Seriam três os sentidos de cultura, no geral, compilados pelo autor:

(i) o substantivo independente e abstrato que descreve um processo de
desenvolvimento intelectual, espiritual e estético, a partir do S18; (ii) o
substantivo independente, quer seja usado de modo geral ou específico,
indicando um modo particular de vida, quer seja de um povo, um período,
um grupo ou da humanidade em geral (...). Mas também é preciso
reconhecer (iii) o substantivo independente e abstrato que descreve as
obras e as práticas da atividade intelectual e, particularmente, artística.
(WILLIAMS, 2007:121).

Na perspectiva do materialismo histórico, cultura seria então entendida a
partir da relação entre esses significados, os quais, como o próprio autor aponta, são
por vezes indiscerníveis. Cevasco (2001) captou justamente essa perspectiva na
obra de Williams ao apontar para a indissociabilidade dos sentidos de cultura,
presente no conjunto da obra do autor. Tal perspectiva contraria a noção idealista
que reproduz a separação entre cultura e vida social material.

A originalidade de Williams estaria então no ato de pensar a cultura em sua
questão fundante, que remete ao materialismo histórico: a relação entre produção
material e simbólica, feita sem hierarquizar uma perante a outra e sem aceitar a
conseqüente redução também hierarquizante da arte e da intelectualidade à
condição de superestrutura73:

em geral, o que é significativo é o leque e a sobreposição de sentidos. O
complexo de significados indica uma argumentação complexa sobre as
relações entre desenvolvimento humano em geral e um modo específico de
vida, e entre ambos e as obras e práticas da arte e da inteligência.
(WILLIAMS, 2007:122).

Williams se contrapõe à noção dominante no marxismo, segundo a qual há
uma infra-estrutura que determina a superestrutura; desta última a cultura seria uma

73 Cf. Williams, 1979.

132

parte, juntamente com aspectos relacionados à intelectualidade, às idéias e ao
cultivo do espírito. O autor recupera as colocações originais de Marx e as analisa em
sua contribuição fundamental: a indissociabilidade entre atividade prática e
pensamento (consciência e produção material), porém no sentido inter-relacional. O
pressuposto recuperado é encontrado na obra de Marx, em seu apontamento de que
o ser social determina a consciência.

Williams (1977:86) atribui importância ao estudo dos “processos reais,
específicos e indissolúveis, dentro dos quais a relação decisiva, de um ponto de
vista marxista, é a expressa pela idéia complexa de ‘determinação’”. No presente
trabalho, nos apropriamos desse entendimento para ler o processo de acumulação
primitiva em suas especificidades em um país periférico, bem como a formação de
massas e sua capacidade de configurar resistência a tal processo.

Nesse sentido, compartilhamos dessa perspectiva com o intuito de entender a
produção de cultura no MST em suas contradições, principalmente as produzidas
pelo choque entre a forma hegemônica (dominante, constituída) de produzir cultura
e a forma proposta pelo movimento (constituinte), a qual parte de práticas
comunitárias populares e da própria práxis desenvolvida pelas bases nos
acampamentos e assentamentos.

Na minha leitura, o Movimento Sem Terra representa a junção desses
sentidos diferenciados de cultura, ou melhor, suas práticas implicam na relação entre
a arte, o desenvolvimento da intelectualidade como um todo e o processo social que
cria diferentes modos de vida. Ao propor a realização de diferentes modos de
cultivar e trabalhar a terra o Movimento implica em formas diferentes de produzir
cultura – entendida nesse sentido amplo e inter-relacionado proposto por Williams.

133

A crítica ao agronegócio pode ser tomada como exemplo dessa relação entre
formas de cultivo da terra e proposta de produção da vida para além do capital. O
MST analisa o agronegócio em sua perversidade tanto para os trabalhadores rurais
quanto para a saúde da população em geral – visto que cada brasileiro “consome
cerca de 5,2 litros de venenos por ano, dissolvidos nos alimentos e na água
contaminados”74, advindos das formas de produção do agronegócio, as quais
abusam dos agrotóxicos.

O Movimento ressalta nessa crítica a junção do capital financeiro com o
latifúndio e a lógica que daí deriva de exploração da terra, bem como suas
consequências: “monocultura, produção basicamente de grãos para exportação,
mecanização e pagamento de baixos salários”. Esse tipo de produção voltada para a
exportação mantém a lógica de garantir interesses outros que não os da população
local. Além de destruir a natureza e perpetuar o aviltamento das relações de
trabalho, o agronegócio se coloca no âmbito do sentido da colonização, agora com o
auxílio dos avanços tecnológicos.

O agronegócio expulsa os camponeses do campo, destrói a terra, enche
suas grandes extensões de máquinas e venenos, paga mal seus poucos
trabalhadores e para quê? Para vender soja e cana para outros países.
Correm para aprovar transgênicos - mesmo que seus potenciais danos à
saúde ainda não tenham sido comprovados - querem de qualquer jeito
flexibilizar o Código Florestal, para poderem desmatar mais sem ter que
prestar contas por isso. Enfim, querem fazer do Brasil uma grande colônia
de exploração, um quintal das transnacionais75.

A campanha desenvolvida pelo MST contra o agronegócio76 coloca em xeque
a produção e o uso da terra para fins exclusivos de valorização do capital. Traz o
questionamento acerca da relação do homem com a natureza e dos limites

74 Matéria publicada em: http://www.mst.org.br/node/11543 .Acesso em 14 de abril de 2011.
75 Matéria publicada em: http://www.mst.org.br/node/11543 .Acesso em 14 de abril de 2011.
76 “Campanha Permanente contra o Uso dos Agrotóxicos e Pela Vida”.

134

colocados por esse tipo de prática predatória à própria reprodução do ser humano.
Na defesa de práticas diferenciadas, como a agroecologia (que envolve inclusive a
integração de saberes oriundos de comunidades indígenas e camponesas na lida
com a terra), identificamos a relação apontada acima entre cultivo da terra e criação
de diferentes modos de vida como forma de produzir cultura a partir da resistência.

Tais práticas propostas carregam como potencialidade a construção de uma
forma diferenciada de produzir a vida; a qual pode se efetivar como negação do
capital e do pensamento único instituído no pacote neoliberal, o qual tem realizado
seu objetivo de destruir “as mais variadas expressões dos movimentos populares de
resistência política aos desígnios do mercado” (MALAGUTI, CARCANHOLO &
CARCANHOLO, 2008:7).

A noção de cultura de Raymond Williams traz então a necessidade de se
pensar o processo criativo de produção da vida, o qual pode ser lido também a partir
das lutas sociais. Para o autor, cultura é experiência ordinária; temos aqui um
contraponto à idéia especializada do termo a partir de um entendimento mais
democrático do conceito. Arte como produção humana e cultura como modo de vida
não são excludentes nessa perspectiva, pois são pensados como parte da
experiência.

Usamos a palavra cultura nesses dois sentidos: para designar todo um
modo de vida – os significados comuns; e para designar as artes e o
aprendizado – os processos especiais de descoberta e esforço criativo.
Alguns escritores usam essa palavra para um ou para o outro sentido, mas
insisto nos dois, e na importância de sua conjunção77.

Seguindo esse raciocínio, o autor conclui que cultura é de todos e deve ser
lida a partir de sua relação ao modo de produção. De acordo com Cevasco (2001),

77 Raymond Williams, “Culture is ordinary”. Citação retirada de Cevasco, op. cit., p. 49.

135

Williams retém essa noção do marxismo e ao mesmo tempo supera os limites do
entendimento marxista de cultura, colocados pela centralidade do modelo base-
superestrutura. Essa relação é reformulada pelo autor, pois este rejeita a idéia da
exclusão das classes trabalhadoras da cultura, mas reconhece sua exclusão dos
produtos e condições para usufruir da arte.

Nesse sentido, a contribuição da classe trabalhadora em sua produção
cultural para a herança comum seriam as “instituições onde se praticam idéias
coletivas de desenvolvimento social” (CEVASCO, 2001:63)78. Ou seja, os sindicatos
e os partidos são entendidos por Williams como realização criativa. Em época de
regressão política e social, podemos entender um movimento social como o MST em
sua dimensão criativa, não em substituição de tais instituições, mas como resposta
criativa a necessidades históricas das massas sem terra, remanescentes perante o
avanço do capital enquanto sujeito automático.

Cabe ressaltar que a leitura de Williams recoloca essas massas como
produtoras também no âmbito espiritual, já que a perspectiva do materialismo
histórico, cultural envolve produção e não somente reprodução de significados e
modos de vida. Logo, entendemos o movimento social aqui em seu caráter
constituinte e não apenas constituído, apesar de compartilharmos da angústia
provocada pelas dificuldades de se produzir cultura em comum perante os
determinantes colocados em tempos de barbárie – como bem captou Walter
Benjamin.

O entendimento da cultura como produto e produção de um modo de vida
determinado tem como conseqüência a necessidade de se pensar a revolução
também em seu caráter cultural. Cevasco (2001) aponta que Williams não tem

78 A autora realiza essa leitura especificamente com a obra de Williams “Culture and Society”.

136

ilusões acerca da cultura ser autônoma ou o determinante central na revolução,
porém o autor avalia que

há algo fundamentalmente contraditório no modo de produção capitalista
que não tem somente a ver com suas leis econômicas internas. O que o
capitalismo produz na forma mercadoria exclui certos tipos de produção que
são necessidades humanas permanentes. (...). Todas as necessidades
humanas essenciais que não podiam ser coordenadas pela produção de
mercadorias – a saúde, a habitação, a família, a educação, o que ele chama
de lazer – foram reprimidas ou especializadas pelo desenvolvimento do
capitalismo. A intensificação da divisão do trabalho e a restrição radical de
concepções de humanidade ou de sociabilidade que esses processos
envolvem produziram contradições profundas (...) a revolução cultural tem
sua fonte na resistência perene contra a supressão pelo capitalismo de
tantas formas de produção básicas e necessárias. A revolução cultural é
então contra a versão de cultura e sociedade que o modo de produção
capitalista impôs79.

A possibilidade de uma revolução cultural está colocada pela necessidade de
reação ao sistema, o qual em suas contradições nega a possibilidade de
autodesenvolvimento dos homens, principalmente a partir do mecanismo da
reificação. A ordem social reificada é reproduzida nos hábitos, ou seja, na
experiência, a qual precisa ser modificada em um processo contínuo que envolve a
produção de outras formas de vida, bem como promove o entendimento das formas
correntes.

Cevasco (2001) aponta que o domínio da mercadoria como chave de análise
fez parte de uma das primeiras obras de Williams, na qual o autor ressaltava a
cultura como espaço de dominação da mercadoria. Williams se preocupou em
analisar

a nova modalidade capitalista em curso, na qual a forma mercadoria toma
conta de vez dos produtos da cultura, e fica cada vez mais evidente, aos
observadores atentos, que a cultura é um espaço dessa dominação, é uma
das formas através das quais ela se articula. (CEVASCO, 2001:130).

79 Raymond Williams, “Politics and Letters”. Citação retirada de Cevasco, op. cit., p.126,127

137

Logo, considerar a cultura em uma perspectiva materialista como produtora
da realidade não significa desconsiderar as determinações que marcam e colocam
as condições de tal produção. Como a indústria cultural e seu mecanismo fundante a
partir do qual a mercadoria é estruturante da experiência contemporânea. Está aqui
em questão a abrangência das práticas humanas; a noção de que, mesmo
marcadas pela reificação das relações sociais, há potencialidades que não podem
ser encampadas pela dominação hegemônica (assim esperamos).

As práticas sociais são entendidas no sentido de produção da cultura.
Williams retoma então a proposição de Marx segundo a qual, além de produzir
mercadorias, os homens produzem a si próprios, mas não em condições de sua
escolha (CEVASCO, 2001).

A partir desses pressupostos podemos compreender o MST em sua
potencialidade advinda do desenvolvimento de práticas sociais que representam os
interesses comuns das massas historicamente expropriadas, mas que vão para além
e iniciam a formação de uma cultura que envolve interesses comuns ao significar
oposição ao capital e aos seus impedimentos conseqüentes ao desenvolvimento
humano.

A formação desse sujeito social nas condições adversas do capitalismo em
sua fase regressiva recoloca ainda a questão da emancipação humana como
necessidade social e de sobrevivência. Observaremos então algumas práticas do
Coletivo de Cultura do MST, com o objetivo de pensar essa relação entre produção
de cultura, construção política de um movimento social e criação de modos de vida
diferenciados.

Segundo Lobo (2005), historicamente no Brasil o conjunto das relações
capitalistas provocou a dissociação entre a revolução econômica da revolução

138

política, nacional e democrática. Logo, a formação da classe trabalhadora no Brasil
foi marcada por essa particularidade. Nesse sentido, o MST recoloca em cena, em
um momento de início da afirmação global do neoliberalismo, a possibilidade das
massas expropriadas terem lugar no ato de fazer política. A cultura desponta nesse
processo como aliada fundamental, tanto no sentido pedagógico quanto em seu
sentido humano de reinventar a vida.

O final da década de 1970 no Brasil pode ser considerado um momento de
“reascenso das lutas sociais, com a reorganização dos movimentos operários a
partir dos sindicatos e dos movimentos camponeses” (ESTEVAM, op.cit.). Com o
início do governo Collor o avanço do neoliberalismo no país aprofunda as feições
regressivas do capital, recolocando pedras no caminho dos movimentos sociais que
objetivam uma mudança radical.

O MST se forma então em um momento de reascenso das lutas, o qual será
novamente interrompido (ESTEVAM, op.cit.) com a ascensão do neoliberalismo e
suas consequências. Para manter-se na estrada nessas condições adversas, foi
necessário buscar meios de formação de uma base concreta. A cultura e a
recuperação do caráter de resistência das lutas populares cumprem então um papel
fundamental no crescimento do Movimento e até mesmo em sua manutenção.

139

4.3 O COLETIVO NACIONAL DE CULTURA DO MST

Quando li que queimavam as obras
Dos que procuravam escrever a verdade
Mas ao tagarela George, o de fala bonita, convidaram
Para abrir sua Academia, desejei mais vivamente
Que chegue enfim o tempo em que o povo solicite a um homem desses
Que num dos locais de construção dos subúrbios
Empurre publicamente um carrinho de mão com cimento, para que
Ao menos uma vez um deles realize algo de útil, com o que

Poderia então retirar-se para sempre
Para cobrir o papel de letras
Às custas do
Rico povo trabalhador.

(Realizar algo de útil – Bertolt Brecht)

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, consolidado desde seu
nascimento “oficial” em 1984, como uma organização relativamente autônoma, tem
sua configuração marcada pelo processo histórico de expropriação, o qual é
atualmente reatualizado. A luta pela terra nesse contexto demanda estratégias
diferenciadas, bem como a recuperação das lutas anteriores e de seus limites. O
MST se constitui a partir das ocupações de terra, já anteriormente realizadas de
maneira espontânea pelos trabalhadores rurais. Segundo Lobo (2005),

as ocupações de terra como método de luta é a base da estruturação do
MST. Ou seja, realizada a luta pela terra cria-se um novo dimensionamento
da luta pela reforma agrária. Com o aumento do número de assentamentos
a partir de 1985 foi possível o desenvolvimento da produção agrícola e
agroindustrial, da educação infantil e de jovens e adultos, assim como o
surgimento de novos militantes dedicados à luta pela reforma agrária,
permitindo a consolidação nos anos 1990 do movimento de massas e da
organização social dos trabalhadores sem-terra (LOBO, 2005:94).

Podemos apontar que a necessidade de auto-organização indica a
importância de investir também em formação. Ambas estão associadas como
elementos essenciais para a manutenção da organicidade do Movimento.

O Movimento tem sua auto-organização forjada em Setores. O Coletivo
Nacional de Cultura foi criado como parte do Setor de Educação em 1996 e se

140

tornou “autônomo” em 2003; é atualmente considerado como instância do MST e
organizado em cinco Frentes de Trabalho: Música, Teatro, Artes Plásticas, Poesia e
Literatura e preservação de identidade e manifestações culturais.

A organização em Setores, Frentes e Brigadas reflete a tentativa de
operacionalizar a perspectiva autogestionária subjacente nas ocupações de terra e
em seus conseqüentes: os acampamentos, pré-assentamentos e assentamentos –
diferentes momentos da dinâmica da luta pela terra. A partir da organização do
Movimento e da vivência do mesmo nos últimos 25 anos, há o sentimento de que
conseguir a posse da terra não é suficiente, pois as contradições geradas no modo
de produção capitalista colocam graves problemas para a humanidade, os quais não
podem ser resolvidos no nível individual (no caso, no termo de posse, concedido às
famílias assentadas80).

Lobo (2005) ressalta que no início do século XXI contabilizam-se mais de
quatro milhões de famílias sem terra no Brasil, as quais encontram na migração seu
destino imposto pelas conseqüências da manutenção do capitalismo. O MST se
configura então em alternativa perante a permanência do latifúndio e de seu caráter
complementar à modernização brasileira. O Movimento “surge como necessidade
histórica, como contradição de um longo processo que relega para o campo relações
sociais de dependência, de desagregação e desumanização” (LOBO, 2005:96).

Há ainda o desenvolvimento da compreensão de que a emancipação não é
concedida pelos governantes, mas sim conquistada no próprio processo de luta pela
transformação social; processo este que é tanto individual quanto coletivo. Nesse
sentido, a arte e a cultura são entendidas como parte constitutiva da luta, logo, da
transformação do próprio ser humano.

80 Uma das músicas composta por Ademar Bogo e interpretada por Fábio Paes no cd Arte em
movimento, de 1997, diz o seguinte: “quando chegar na terra lembre de quem quer chegar; quando
chegar na terra lembre que tem outros passos pra dar”.

141

Segundo Silva (2005), o Coletivo de Cultura surge justamente da necessidade
de organizar as manifestações culturais que já afloravam no Movimento como um
todo, partindo do entendimento de que o MST sempre produziu cultura no processo
de luta. Ou seja, as necessidades impulsionaram o crescimento do Movimento, o
qual desenvolveu ao longo dos anos um forte viés pedagógico-formativo a partir de
tais necessidades:

a matriz pedagógica da cultura é uma matriz que perpassa por todas as
outras, por ser ela a que mostra o modo de vida produzido e cultivado pelo
Movimento, do jeito de ser e de viver dos Sem Terra, do jeito de cultivar a
mística, os valores, os símbolos, a religiosidade, a arte, o jeito de produzir a
vida, os gestos. Esta pedagogia é a necessidade da ação, que exige uma
permanente reflexão que se encarna em nova ação coletiva (...) (SILVA,
2005:21).

O MST busca desenvolver suas atividades em uma perspectiva pedagógico-
formativa contra-hegemônica, expressa em todos os seus setores. O Coletivo de
Cultura, especificamente, tem o entendimento de que

“diante da eficiente hegemonia da indústria cultural, ao darmos vazão ao
processo de multiplicação, corremos o forte risco de reforçar, sem perceber,
as formas de representação da estética dominante. Portanto, ao mesmo
tempo em que multiplicamos, temos que qualificar nossa formação. Daí,
vem a convicção coletiva de que não basta ter acesso aos meios de
produção para fazer também, com as mesmas formas. É preciso fazer
diferente” (Rede cultural da Terra, s/d:5).

Para além do acesso e da difusão da cultura, o Coletivo busca então outras
formas de produzir cultura, as quais contemplem os interesses das massas sem
terra. Essa necessidade expressa de “fazer diferente” reflete a importância do
processo de luta como espaço inventivo e formativo. A indústria cultural em seu
império consolidou a forma hegemônica de produzir e difundir cultura como
monopólio dos poucos detentores do poder. Isso tem como conseqüência a difusão
de uma ideologia do pensamento único, contestada por essa perspectiva do Coletivo
de Cultura segundo a qual produzir novas formas estéticas é necessário para que as

142

massas pobres possam se fazer representar – cultural e artisticamente em uma
perspectiva política.

Ou seja, o movimento se depara constantemente com as contradições
vivenciadas no processo de luta – próprias do agravamento da situação social no
nosso tempo – e faz um esforço no sentido de elaborá-las. Na produção artística do
MST, os próprios integrantes do Coletivo de Cultura identificam a necessidade de
não reproduzir a lógica dominante, tanto na forma de produzir cultura quanto na
forma de divulgá-la por meio de manifestações lúdicas. Isso nos coloca a proposição
segundo a qual forma e conteúdo são dois determinantes do mesmo processo, logo,
um altera o outro.

A estética dominante é tensionada quando a práxis do Coletivo de Cultura se
configura em práxis criadora por meio do reconhecimento dos trabalhadores como
produtores de arte e cultura. Essa noção de público ativo se contrapõe à proposição
dominante de público-consumidor, a qual é universalizada e positivada em torno da
mercadoria. Na perspectiva do Coletivo, cultura não é um produto vendável, ou
melhor, ser mercadoria não é o elemento central e determinante de sua produção.

Douglas Estevam no texto Cultura, política e participação popular, por
exemplo, reconhece a importância da análise acerca da “necessidade de
proporcionar a setores cada vez mais amplos da população brasileira o direito aos
meios de produção culturais”. Também no documento intitulado O campo da
estética, fruto do quinto Congresso Nacional do MST (2007), lê-se um trecho de uma
carta entregue pelo Redemoinho81 ao MST acerca da necessidade de “encontrar
outros parâmetros para a produção simbólica, de modo a fazer dela uma construção

81 Rede Brasileira de Espaços de Criação, Compartilhamento e Pesquisa Teatral.

143

igualitária, desmercantilizada, acessível a todos e contrária aos atuais latifúndios
culturais do país”.

Há uma preocupação acerca da produção e da difusão da cultura pelo e para
o trabalhador, visando uma mudança dos padrões estéticos até então vigentes.
Nesse sentido, a proposta do Coletivo de Cultura vai ao encontro de experiências
em curso na década de 1960, interrompidas pela ditadura civil-militar. Conforme
lembra Douglas Estevam, “a proposta de inserção dos trabalhadores como
protagonistas da produção cultural e artística” está presente em obras que iniciaram
como parte do projeto UNE Volante e dos CPC’s. É o caso do filme “Cabra marcado
para morrer”, de Eduardo Coutinho, que começa a ser produzido na Liga
Camponesa de Sapé.

Nesse exemplo em particular, a estética do filme (em sua origem) está
vinculada à luta pela terra e por uma vida mais digna. O Coletivo de Cultura intenta
recuperar essa perspectiva do trabalhador rural como produtor de cultura a partir da
construção de uma estética própria, ou melhor, diferenciada da dominante. Porém
em um contexto no qual o processo de modernização e migração desencadeado
com o apoio da ditadura militar não permite a permanência de mais de 20% da
população nas áreas (assim consideradas) rurais.

Podemos sinalizar então que o MST em seu Coletivo de Cultura recupera o
imaginário social de base popular gerado pelos CPC’s e outras expressões da
década de 1960. O desafio está em reconstruir esse imaginário social e os padrões
estéticos em outras bases como um possível meio de formação política;
recuperando assim a capacidade de imaginar que a arte pode proporcionar.

Silva (2005:18), ao estudar o teatro no Coletivo de Cultura, recoloca a
perspectiva participativa que pauta o Movimento. A autora recupera a ditadura civil-

144

militar como um acontecimento que interrompe “o projeto político de construção de
uma nova forma de imaginar o mundo”, conforme já expusemos no capítulo anterior,
com a interrupção dos CPC’s. Até mesmo a participação das massas como
espectadores fica comprometida, já que “a discussão de teatro político volta a ficar
restrita ao círculo da classe média de esquerda” (SILVA, 2005:18) – dinâmica já
apontada por Schwarz em Cultura e Política. No teatro realizado no MST, as massas
sem terra têm a possibilidade de atuar como produtores ou como co-participe,
rompendo com a perspectiva mercantil que pauta a criação de nichos de mercado
baseados na produção de arte “de esquerda”.

Na produção das manifestações artísticas do MST, por exemplo, o público
ativo participa em uma relação dialética: há um momento de definição do tema das
manifestações artístico-culturais, de acordo com o contexto do Movimento ou dos
acampamentos/assentamentos, outro momento de estudo sobre a temática, a
preparação e a apresentação e o retorno para o debate, de acordo com o qual a
manifestação vai sendo modificada.

A relação entre o público e o artista é então modificada, pois o público sai do
lugar de mero espectador para se colocar como criador e o artista não é entendido
na perspectiva burguesa do espetáculo; ambos são primeiramente militantes,
trabalhadores sem-terra e/ou desempregados. O artista surge então da própria
organicidade do Movimento e a temática apresentada de suas experiências de vida,
buscando assim a ruptura com a estruturação mecânica e com a noção de
especialização, ambas propiciadas pela complexificação da divisão do trabalho.

Segundo Menegat, “a violência que instaura a divisão social do trabalho é
uma violência coletiva sobre outro grupo social” (MENEGAT, s/d:19), logo







148

unidade. Essa maneira de produzir cultura – a partir da experiência de vida e de luta
dos Sem Terra – evita a separação abstrata entre as formas por seu caráter
dialético. A própria prática cotidiana tem um sentido formativo. Williams (1979)
ressalta que formas e convenções na arte e literatura são elementos inalienáveis do
processo material social. Há uma “formação social de um tipo específico que pode,
por sua vez, ser considerada como a articulação (com freqüência, a única
articulação plenamente existente) de estruturas de sentimento” (WILLIAMS,
1979:135).

Estruturas de sentimento são entendidas pelo autor como processos vivos,
logo, experimentadas de forma muito mais ampla em sua complexa relação com
classes diferenciadas. Apesar de não serem redutíveis às ideologias das classes, as
estruturas de sentimento estão articuladas em um tipo específico de formação social,
conforme enuncia Williams. Nesse sentido, a organização de tais estruturas a partir
de uma noção de classe (em particular) e de outra perspectiva de humanidade (no
geral) pode contribuir no processo formativo. O diferencial proposto pelo Coletivo de
Cultura é justamente politizar tais estruturas a partir da auto-representação do
passado e do presente dos trabalhadores expropriados.

A criação de uma referência cultural para trabalhadores sem-terra e
desempregados não é nem de longe tarefa exclusiva do Coletivo de Cultura. Este
pode auxiliar os trabalhadores na síntese e na organização de suas vivências por
meio da descoberta e da recuperação de maneiras diferenciadas de produzir cultura.
A concepção presente no Coletivo é a de que essa síntese é parte de um processo
pedagógico-formativo. Segundo Ricieri e Garcia,

Uma das grandes lições práticas que um movimento como o MST pode dar
aos artistas, para além da ativação da luta de classes, está na sua
capacidade de organização. O crescimento do papel da cultura dentro do

149

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, nos últimos anos, é um
bom exemplo de uma impressionante capacidade de acumular esforços de
aprendizado. Ainda que a ação cultural tenha sempre existido no MST,
originalmente ligada às chamadas Místicas e a uma produção espontânea
de canções, poesias e peças comunitárias, formadas da experiência de vida
dos acampamentos ou assentamentos, foi nos últimos anos que essa
produção se sistematizou com a criação do Coletivo Nacional de Cultura do
MST84.

Assim como Silva (2005), as autoras esboçam a compreensão de que a arte e
diversas manifestações culturais sempre fizeram parte do processo de construção
do MST. O Coletivo de Cultura teria então a função de organizar a produção cultural
oriunda do próprio movimento, ou melhor, da vivência dos Sem Terra que compõem
o Movimento, bem como buscar novas formas de produzir cultura, atuando assim a
partir da necessidade de sintetizar cultural e artisticamente as diferentes
experiências dos trabalhadores sem-terra. Essa síntese teria ainda a potencialidade
de atuar no sentido organizativo e formativo.

Segundo Rafael Villas Boas, um dos responsáveis pelas atividades culturais
no MST, o Coletivo de Cultura, trabalha com três eixos programáticos:
qualificação estética e política de militantes nas linguagens culturais com o
objetivo de formação de multiplicadores; produção de um referencial de
cultura que se contraponha à lógica da produção cultural do capitalismo; e
fortalecimento do contato entre população rural e urbana (RICIERI e
GARCIA, s/d) 85.

Nesse sentido, produção cultural na contramão da lógica do capital envolve
formação, tem um sentido pedagógico distinto da lógica da massificação e
conseqüentemente objetiva a transformação das formas de vida. Lobo (2005) situa o
reconhecimento e a objetivação da necessidade imperativa de formação na
construção das escolas nacionais. O Movimento desenvolveu então um método
próprio de formação vinculado às necessidades de organização. Lobo destaca um
dos elementos de diferenciação do Movimento ao analisar a construção da ENFF:

84 Material não-publicado, cedido por companheiros do MST.
85 Idem nota anterior.

150

pela primeira vez na história do Brasil uma organização social de massas se
dedica profundamente não só ao processo de formação política, mas
também ao processo de escolarização de sua base social, promovendo
dentro de situações adversas uma elevação real das condições materiais e
espirituais dos trabalhadores rurais (LOBO, 2005:220).

A estética pautada na apropriação coletiva reflete na arquitetura da ENFF, na
qual princípios do MST são materializados. Observamos então a vinculação orgânica
entre o setor de formação, o Coletivo de Cultura e a Frente de massas. Já que a
formação materializada também nas escolas é potencializada pelo trabalho do
Coletivo de Cultura e traduz-se em organização política – por meio da qual os
princípios que embasam o Movimento podem se traduzir em ação política.

Não há dúvidas que a finalidade do trabalho político-organizativo do MST é
a transformação objetiva da realidade social, com a intenção de atender as
necessidades humanas concretas e o processo de humanização dos
homens em seu sentido mais profundo. Portanto, o trabalho político-
organizativo modifica o social, ou seja, as relações sociais e humanas, a
partir de uma nova configuração concreta de reprodução social. (LOBO,
2005:159).

A transformação cultural também possibilita e reflete a criação e organização
de outras formas de reprodução social, as quais estão contidas de maneira
embrionária nos acampamentos e assentamentos. Nesse sentido, há uma relação
orgânica entre cultura, formação e organização.

Um referencial de cultura se constrói também de maneira pedagógica a partir
da recuperação de formas de resistência intentadas historicamente pelos segmentos
expropriados, nas quais também se buscou construir outras formas de reprodução
social, conforme já apontamos anteriormente. Nas místicas, por exemplo, busca-se a
lembrança de lutadores populares já mortos, principalmente os assentados e


Click to View FlipBook Version