Teoria Social e Realidade Contemporânea
Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro _ 1o. Semestre de 2015 _ n. 35, v. 13, p. 1-266
ISSN 2238-3786 (Versão online)
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
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Editora Responsável: Isabel Cristina da Costa Cardoso
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Endereço para correspondência
Revista Em Pauta: teoria social e realidade contemporânea
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ISSN 2238-3786 (Versão online)
Em Pauta: Teoria Social e Realidade Contemporânea é um periódico semestral, arbitrado, de circulação nacional e
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A revista pretende ser um instrumento de divulgação e de disseminação de produções atuais e relevantes do ensino,
da pesquisa e da extensão, no âmbito do Serviço Social e de áreas afins, através da publicação de artigos, ensaios
teóricos, pesquisas científicas, resenhas de livro, comunicações, relatórios de pesquisas científicas e informes, visando
contribuir para a formulação e a divulgação de políticas públicas e debates, no âmbito da academia e da sociedade
civil.
CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CCS/A
E55 Em Pauta: teoria social e realidade contemporânea.
– vol. 1, n. 1 (1993) – . – Rio de Janeiro UERJ /
Faculdade de Serviço Social, 1993– . v. : il.
Semestral.
Inclui bibliografia.
ISSN 1414 – 8609
1. Serviço social – Periódicos. 2. Ciências sociais – Periódicos 3.
Políticas públicas – Periódicos. I. Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Faculdade de Serviço Social
ISSN 2238-3786 (Versão online)
1º Semestre de 2015 – n. 35, v. 13
Equipe Editorial
Isabel Cristina da Costa Cardoso
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Fontes (UFF); Yolanda Guerra (UFRJ).
Sumário
9 Editorial
Dossiê “Marxismo e Realidade Contemporânea”
Para a crítica da centralidade do trabalho: contribuição com
15 base em Lukács e Postone.......................... Mario Duayer e
Paulo Henrique Furtado de Araújo
37 Ernest Mandel: imprescindível .......... Elaine Rossetti Behring
Participação e controle social no Brasil recente: influência do
65 pensamento gramsciano.....................................................
Teresa Cristina Coelho Matos e Maria D’Álva Macedo Ferreira
80 Controversias sobre el desarrollo....................... Claudio Katz
Crise do capital, neoconservadorismo e Serviço Social no
Brasil: apontamentos para o debate.....................................
99 ............................................ José Fernando Siqueira da Silva
126 O espaço como palavra-chave ........................ David Harvey
A relação natureza-sociedade no modo de produção capi-
153 talista ............................. Fabiane Agapito Campos de Souza
Marxismo, capitalismo e natureza: pensando algumas ques-
169 tões ............................................. Luiz Marcos de Lima Jorge
Tema Livre
A contribuição do Serviço Social para a efetivação do Con-
184 trole Social no HC-UFU ............... Priscila Aparecida Martins
Mostra Fotográfica
203 Fotografia entre confronto e arte .......................... Luiz Baltar
Entrevista
Revisitando um clássico da interlocução do Serviço Social
225 com a tradição marxista ......................... Isabel Cristina da
Costa Cardoso
Homenagem de Vida
248 Um amorável marxista: Leandro Konder (1935-2014) ..........
.................................................................. José Paulo Netto
Resenhas
251 O fetichismo do trabalho não pago.......................................
....................................................... Mariana Costa Carvalho
255 Desdobramentos sobre o trabalho em Marx .........................
....................................................... Henrique Pereira Braga
261 Normas Editoriais
Contents
12 Editorial
Dossiê “Marxism and contemporary reality”
Towards the critique of the centrality of labor: a contribution
15 based on Lukács and Postone.......................... Mario Duayer
e Paulo Henrique Furtado de Araújo
37 Ernest Mandel: essential ..................... Elaine Rossetti Behring
Participation and social control in contemporary Brazil:
65 influence of Gramsci’s thought ...........................................
Teresa Cristina Coelho Matos e Maria D’Álva Macedo Ferreira
80 Controversies in development ....................... Claudio Katz
The crisis of capitalism, neoconservatism and social work
99 in Brazil: notes for debate.....................................................
............................................ José Fernando Siqueira da Silva
126 Space as a keyword ......................................... David Harvey
The nature-society relation in the capitalist mode of pro-
153 duction .......................... Fabiane Agapito Campos de Souza
Marxism, capitalism and nature: considering some questions
169 .................................................. Luiz Marcos de Lima Jorge
The contribution of Social Service for the effectiveness of
184 Social Control in HC-UFU ............ Priscila Aparecida Martins
Photography Exhibition
203 Photography between confrontation and art ....... Luiz Baltar
Interview
Revisiting a classic dialogue of Social Work with the Marxist
225 tradition ............................. Isabel Cristina da Costa Cardoso
Homage
248 A lovable Marxist: Leandro Konder (1935-2014) ..................
.................................................................. José Paulo Netto
Reviews
251 The fetishism of unpaid work ................................................
....................................................... Mariana Costa Carvalho
255 Developments on labor in Marx’s work ................................
....................................................... Henrique Pereira Braga
264 Editorial Norms
Editorial
A presente edição nº 35 da Revista da Faculdade de Serviço Social
da UERJ – Em Pauta: teoria social e realidade contemporânea – convida o
leitor à reflexão e ao aprofundamento do tema Marxismo e Realidade Con-
temporânea.
Constituindo-se como uma unidade de diversidades, esta tradição
intelectual agrega correntes diferenciadas e um vivo debate interno. Sua
unidade é soldada pela crítica do capitalismo: seu modus operandi, seu
desenvolvimento e transformações históricas, em que os conflitos dos in-
teresses de classes adensam a política, se refratam no Estado enquanto centro
do poder político e na organização dos trabalhadores. A fidelidade à História
no seu vir a ser tem como contrapartida metodológica o privilégio da tota-
lidade, das contradições e da negatividade na busca de libertação dos limites
materiais impostos à praxis coletiva. Logo, o desafio de se pensar a relação
Marxismo e realidade contemporânea é uma tarefa intrínseca dessa razão
crítica fundada na práxis e em uma perspectiva de totalidade aberta ao de-
vir histórico.
A Equipe Editorial da Em Pauta: teoria social e realidade contem-
porânea, compreende, assim, ser oportuno revisitar a tradição intelectual
expressa no marxismo. Com a intenção de capturar suas sugestões para
pensar, com criatividade e rigor científico, os inéditos processos sociais que
conformam o novo século, sintonizados com os interesses das maiorias traba-
lhadoras: a relação entre os povos, a reconstrução do Estado-nação, o cresci-
mento abissal das desigualdades entre classes, países e regiões e a expansão
acelerada da pobreza; as transformações profundas no mundo do trabalho, nas
bases materiais e simbólicas dos modos de ser e de vida da classe trabalha-
dora, que estabelecem novas mediações para a experiência sócio-histórica
de seus sujeitos, as diversidades culturais, de gênero e étnico-raciais e a lu-
ta pelos direitos sociais e humanos; a destruição/preservação da natureza e
a apropriação privada dos bens naturais; as descobertas científicas e as ino-
vações tecnológicas a serviço do desenvolvimento das forças produtivas
sociais do trabalho; as novas formas de sociabilidade no cotidiano, dentre
muitos outros dilemas que adensam a riqueza humana da vida em sociedade.
Buscando responder aos desafios do chamado editorial da revista,
os artigos ora apresentados ao público expressam diferentes ângulos de
abordagem da tradição marxista para a compreensão teórico-metodológica
e política das deteminações sócio-históricas da realidade contemporânea.
Assim, um primeiro conjunto de artigos, revisita autores clássicos e contem-
porâneos da tradição marxista, como Lukacs, Gramsci, E. Mandel e M.
Postone, para abordar de forma mais sistemática as contribuições teórico-
metodológicas legadas por tais pensadores, colocando-as em diálogo com
os desafios do tempo presente. Nesse segmento, encontram-se os três primei-
ros artigos. O primeiro, nos termos de seus autores,”procura contribuir
EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 1o Semestre de 2015- n. 35, v. 13, p. 9 - 11
Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro 9
para a autocrítica que a tradição marxista deve a si mesma. Baseia-se espe-
cialmente em Lukács e Moishe Postone para sustentar que a crítica das
concepções correntes sobre trabalho, no interior da tradição, constitui um
imperativo para tal autocrítica e, consequentemente, para a restauração da
dimensão crítica da teoria marxiana”.
Assim, como desdobramento de seus argumentos, o texto instiga
o leitor a compreender os pressupostos da crítica formulada por Postone ao
denominado “marxismo tradicional”, notadamente sobre a forma como
tal tradição compreende a crítica de Marx ao trabalho no capitalismo.
Uma justa homenagem à Ernest Mandel é objeto do segundo artigo
da revista. Partindo dos vinte anos de sua morte, o texto percorre algumas
das principais contribuições de sua vida e obra dedicadas à tradição marxista,
ao mesmo tempo em que dirige sua interlocução de forma especial aos lei-
tores menos familiarizados com o legado do militante e pensador socialista
de matriz trotskista.
Fechando o primeiro segmento, encontra-se o artigo que proble-
matiza a influência do pensamento gramsciano para a análise e interpretação
da realidade brasileira, em especial para o campo teórico e político de de-
fesa das práticas de participação e controle social.
Dando continuidade aos assuntos abordados na presente edição,
destacam-se os artigos que tratam diferentes temas sobre os sentidos, as
práticas societárias e os fundamentos do desenvolvimento capitalista, nota-
damente quando consideradas as sociedades latinoamericanas, a partir da
intensificação das ações neoliberais na virada do século XXI. Com essa
chave interpretativa são também formuladas questões à profissão do Serviço
Social. Nesse contexto de discussão, estão os textos Controversias sobre el
desarrollo e Crise do capital, neoconservadorismo e Serviço Social no Brasil:
apontamentos para o debate.
Dialogando com os dois segmentos anteriores, estão os artigos
que dedicam especial ênfase sobre a dialética desenvolvimento histórico/
sociedade/natureza frente à dinâmica da reprodução ampliada do capital
e da sociabilidade capitalista. Tal diagrama cognitivo e político convoca a
tradição marxista ao aprofundamento do conhecimento crítico e da
formulação de um projeto societário revolucionário que articule
dialeticamente e de forma emancipadora a relação sociedade/natureza no
desenvolvimento da totalidade histórica. Nessa chave interpretativa, são
formuladas questões que reivindicam o espaço como dimensão estrutu-
radora da totalidade social para a compreensão das condições de possibi-
lidade e determinação do devir do ser social. Os artigos que se debruçam
sobre tal quadro de questões são, respectivamente, O espaço como palavra-
chave, de David Harvey, gentilmente cedido pela revista GEOgraphia, do
Programa de Pós-Graduação em Geografia, da Universidade Federal Flumi-
nense; A relação natureza-sociedade no modo de produção capitalista” e
“Marxismo, capitalismo e natureza: pensando algumas questões.
EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 1o Semestre de 2015- n. 35, v. 13, p. 9 - 11
10 Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Por último, é apresentado o artigo da sessão “Tema livre” que
versa sobre as ações do Serviço Social na mobilização popular para a efeti-
vação do Controle Social na área de Atenção ao Paciente em Estado Crítico
(Apec) do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (HC-
UFU).
É com enorme satisfação que inauguramos na presente edição
uma sessão inédita de mostra fotográfica, de autoria de Luiz Baltar, fotógrafo
documentarista formado pela Escola de Belas Artes/UFRJ e pela Escola de
Fotógrafos Populares. Baltar acredita na fotografia como forma de expressão
ativista e crítica, daí sua busca em estabelecer um diálogo entre fotografia
e questões sociais, sobretudo no que diz respeito ao olhar sobre a cidade.
Com tal iniciativa, a revista realiza o sonho de explicitar e compartilhar
uma de suas características editoriais que é a utilização da imagem como
linguagem e fonte documental para compreensão da história. Nesse sentido,
o trabalho fotográfico de Luiz Baltar é parte importante das reflexões aqui
estabelecidas sobre a relação entre marxismo e realidade contemporânea,
particularmente através do registro da vida cotidiana na cidade do Rio de
Janeiro.
A revista traz ainda, entrevista realizada com Marilda Villela Iama-
moto sobre o livro Relações Sociais e Serviço Social no Brasil – Esboço de
uma interpretação histórico-metodológica, obra em co-autoria com Raul
de Carvalho, considerado um clássico da interlocução do Serviço Social
com a tradição marxista. O diálogo entre o projeto de investigação do
Centro Latinoamericano de Trabajo Social (CELATS), que justificou a ela-
boração da obra, e o processo de transformação histórica da sociedade e
da profissão dão a tônica dessa entrevista, entremeada com dados da tra-
jetória biográfica da autora, em especial de sua interlocução com a tradição
marxista.
Compondo a estrutura da revista, a sessão Homenagem de Vida
presta um justo reconhecimento à Leandro Konder, falecido no ano de
2014, que muito contribuiu como intelectual marxista e militante de esquer-
da para a compreensão da relação entre marxismo e realidade contem-
porânea. Nas palavras dessa homenagem “com ele se foi um homem que
soube, como muito poucos, combinar a firmeza de princípios e de posições
com a gentileza, a polidez e a generosidade em todos os níveis das relações
humanas. Morreu um amorável marxista”.
Por último, a revista encerra a presente edição com a publicação
de duas resenhas, a primeira, do livro Sem maquiagem: o trabalho de um
milhão de revendedoras de cosméticos, de Ludmila Costhek Abílio; e a se-
gunda, da obra Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação
da teoria crítica de Marx, de Moishe Postone.
Equipe Editorial 11
EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 1o Semestre de 2015- n. 35, v. 13, p. 9 - 11
Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Editorial
The 35th edition of the journal of UERJ’s Faculdade de Serviço
Social – Em Pauta: teoria social e realidade contemporânea – invites the
reader to reflect on and delve into the theme of Marxism and Contemporary
Reality.
Establishing itself as a union of diversities, this intellectual tradition
combines diverse schools of thought and a lively internal debate. This unity
is welded together by the critique of capitalism: its modus operandi, its
developments, and its historical transformations, in which the conflicts of
class interests thicken politics, and are refracted in the state as center of
political power and in the organization of workers. Fidelity to history in its
becoming has, as methodological counterpart, the privilege of totality,
contradictions, and negativity in the quest for the liberation of material
limits imposed to the collective praxis. Therefore, the challenge of thinking
the relation between Marxism and contemporary reality is an intrinsic duty
of the critical reason founded both in praxis and in the perspective of totality
open to historical developments.
In this way, the editorial team of Em Pauta: teoria social e
realidade contemporânea understands it is appropriate to revisit the
intellectual tradition expressed in Marxism. With the intention of capturing
your suggestions to reflection, with creativity and scientific accuracy, the
unprecedented social processes that shape the new century, in tune with
the interests of the working majorities: the relationship between peoples,
the reconstruction of the nation-state, the abyssal growth of inequality
between classes, countries and regions and the accelerated expansion of
poverty; the profound changes in the labor world, the material and symbolic
bases of ways of being and living of the working class, which establish new
ways to mediate the sociohistorical experience of their subjects, the gender,
ethnic-racial, and cultural diversity, and the struggle for social and human
rights; the destruction/preservation of nature and the private appropriation
of natural resources; scientific discoveries and technological innovations at
the service of the development of social productive powers of labor; new
forms of sociability in daily life, among many other dilemmas that strengthen
the human richness of life in society.
By answering the journal’s editorial call, the articles hereby
presented express different approach angles of the Marxist tradition to
comprehend the sociohistorical determinations of contemporary reality
theoretically, methodologically, and politically. Thus, the first group of
EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 1o Semestre de 2015- n. 35, v. 13, p. 12 - 14
12 Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
articles revisit classical and contemporary authors of the Marxist tradition,
such as Lukács, Gramsci, E. Mandel and M. Postone, to address more
systematically the theoretical and methodological contributions bequeathed
by such thinkers, putting them in dialogue with present challenges. In this
segment, the first three articles can be found. The first one, in the words of
its authors, “is thought of as a contribution to the self-criticism that the
Marxian tradition owes itself. It is mainly based on the ideas of Lukács and
Postone to argue that the critique of the usual conception of labor within
the Marxian tradition is an unavoidable condition of that self-criticism.”
Therefore, as a development of its arguments, the article
encourages the reader to understand the premises of Postone’s critique to
the so called “traditional Marxism”, especially on the way it interprets Marx’s
critique on labor in capitalism.
A fair homage to Ernest Mandel is the object of the journal’s second
article. From the 20th anniversary of the thinker’s death, the article covers
some of the major contributions of his life and work dedicated to the Marxist
tradition, being notably directed to readers less familiarized with the legacy
of the militant and socialist thinker of Trotskyist basis.
Closing the first segment, there is an article that discusses the
influence of Gramsci’s thought to the analysis and interpretation of Brazilian
reality, especially for the theoretical and political fields defending the practice
of participation and social control.
Continuing the topics covered in this edition, there are articles
that address different topics on capitalist development, its course, its
corporate practices, and its foundations, mainly considering Latin American
societies from the intensification of neoliberal actions in the turn of the
21st century. With this interpretive key, questions are also asked of the
profession of social work. The articles Controversies in development e The
crisis of capitalism, neoconservatism and social work in Brazil: notes for
debate are also within the context of this discussion.
In a dialogue with the previous two segments, there are articles
that give special emphasis on the historical development/society/nature
dialectic facing the dynamics of expanded reproduction of capital and
capitalist sociability. Such cognitive and political diagram exhorts the Marxist
tradition to deepen its critical knowledge and to formulate a revolutionary
social project that dialectically articulates in an emancipatory way the
society/nature relation in the development of historical totality. In this
interpretive key, questions are formulated to claim space as the structuring
dimension of social totality for understanding the conditions of possibility,
and as the determination of the becoming of the social being. Articles that
focus on such issues above are, respectively, Space as a keyword, by David
Harvey, kindly provided by the journal GEOgraphia, from Universidade
Federal Fluminense’s Graduate Program in Geography; Marxism, capitalism
and nature: considering some questions.
EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 1o Semestre de 2015- n. 35, v. 13, p. 12 - 14 13
Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
At last, the article from the open subject section is presented,
which deals with the actions of social work in the popular mobilization for
the realization of social control in the area of Critically Ill Patient Care from
Universidade Federal de Uberlândia’s Clinical Hospital (HC-UFU).
It is with great pleasure that we open in this edition a new section
of photography exhibition, by Luiz Baltar, a documentary photographer
graduated from the Escola de Belas Artes/UFRJ and the Escola de Fotógrafos
Populares. Baltar believes in photography as a form of activist and critical
expression, hence his quest to establish a dialogue between photography
and social issues, especially regarding the city. With this initiative, the journal
fulfills the dream of making explicit and sharing one of its editorial features
that is the use of image as a language and documental source for the
understanding of history. In this sense, the photographic work of Luiz Baltar
is an important part of the considerations established herein regarding the
relationship between Marxism and contemporary reality, particularly by
recording everyday life in the city of Rio de Janeiro.
This edition also has an interview with Marilda Villela Iamamoto
about the book Social Relações Sociais e Serviço Social no Brasil – Esboço
de uma interpretação histórico-metodológica, work of joint authorship with
Raul de Carvalho, considered a classic on the relation between social work
and the Marxist tradition. The dialogue between the Centro Latinoamericano
de Trabajo Social (CELATS), which justified the conceiving of the work,
and the process of historical transformation of society and the profession
provide the keynote in this interview, interspersed with data from the
biographical trajectory of the author, especially her dialogue with the Marxist
tradition.
Composing the magazine’s structure, the Homage session provides
a just recognition of Leandro Konder, who died in 2014, and contributed
greatly as a Marxist intellectual and left activist for understanding the
relationship between Marxism and contemporary reality. In the words of
the tribute, “with him is gone a man who knew, as very few did, how to
blend the firmness of principles and stances with the kindness, politeness,
and generosity on all levels of human interactions. He died a lovable
Marxist.”
Finally, the journal closes this edition with two reviews. The first
one of the book Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras
de cosméticos, by Ludmila Costhek Abílio; and the second one of the work
by Moishe Postone, Tempo, trabalho e dominação social: uma
reinterpretação da teoria crítica de Marx.
The Editorial Team
EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 1o Semestre de 2015- n. 35, v. 13, p. 12 - 14
14 Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Para a crítica da centralidade
do trabalho: contribuição
com base em Lukács
e Postone
Towards the critique of the centrality of labor: a contribution
based on Lukács and Postone
Mario Duayer*
Paulo Henrique Furtado de Araújo**
Resumo O artigo procura contribuir para a autocrítica que a tradição
marxista deve a si mesma. Baseia-se especialmente em Lukács e
Postone para sustentar que a crítica das concepções correntes sobre
trabalho, no interior da tradição, constitui um imperativo para tal
autocrítica e, consequentemente, para a restauração da dimensão
crítica da teoria marxiana. O argumento concentra-se na diferença
entre trabalho como categoria fundante e central, e apresenta a
seguinte estrutura: em primeiro lugar, oferece uma explanação sobre
o caráter fundante do trabalho na gênese e desenvolvimento do ser
social; em segundo, procura mostrar que a centralidade do trabalho
é exclusiva do capitalismo e constitui a contradição básica desse
sistema; em terceiro, defendendo que crítica de fato é crítica
ontológica, sustenta que a crítica da economia política de Marx
consiste na crítica do trabalho, ou da relação social armada pelo
capital que unidimensionaliza os sujeitos como trabalhadores.
Palavras-chave: crítica ontológica; centralidade do trabalho; Marx;
Lukács; Postone.
Abstract The article is thought of as a contribution to the self-criticism
that the Marxian tradition owes itself. It is mainly based on the ideas
of Lukács and Postone to argue that the critique of the usual conception
of labor within the Marxian tradition is an unavoidable condition of
that self-criticism. It focuses on the distinction between labor as a
founding or central category and is structured as follows: firstly, it
provides an explanation on the founding character of labor in the
genesis and development of the social being; secondly, it attempts to
show that the centrality of labor is exclusive to capitalism and
constitutes the fundamental contradiction of this system; finally,
assuming that true critique is an ontological critique, it argues that
Marx’s critique of the political economy is the critique of labor, or of
the social relation made up by capital that unidimensionalizes people
as workers.
Keywords: ontological critique; centrality of labor; Marx; Lukács;
Postone.
..............................................................................
* Professor visitante do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Uerj. Correspondência: Est. Caetano
Monteiro, 2201, casa 56. CEP 24.320-570, Niterói, RJ. E-mail: <[email protected]>
** Professor adjunto do Departamento de Economia da UFF. Correspondência: Rua Vitor Meireles, 32. CEP 20.950-
230, Riachuelo, Rio de Janeiro, RJ. E-mail: <[email protected]>
EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 1o Semestre de 2015- n. 35, v. 13, p. 17- 38 15
Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
} PARA A CRÍTICA DA CENTRALIDADE DO TRABALHO - DUAYER, M. ; ARAÚJO, P. H. F. }
[…] es menester mantenerse en la idea arduamente adquirida de que la
crítica de las categorías económicas de Marx trasciende el dominio de la
economía como disciplina especializada, es conveniente comprender de
qué manera el análisis de la forma valor orientado sobre categorías filosóficas
tiene como función la de superar las antinomias de esta economía
especializada.
H.G. Backhaus
Tempos atrás, em plena atmosfera de intensa euforia, de júbilo
pela celebração da nova (e, dessa vez, pretendidamente definitiva) morte
de Marx, Derrida (1994) declara de forma sumária: “não há futuro sem
Marx”. Declaração tão mais surpreendente e, por que não dizer, paradoxal,
porquanto vem de um pensador não marxista. Aijaz Ahmad (1994), marxista
indiano, saúda a posição de Derrida (1994), importante numa época de
afetado desdém por tudo que evoque Marx, mas não sem assinalar a dife-
rença substantiva entre o esmaecido Marx derridiano e o Marx da crítica
da sociedade governada pelo capital.
Muita coisa mudou desde então. O regozijo conservador se arre-
feceu na mesma progressão do previsível fracasso das políticas preconizadas
pelo tardo-liberalismo. Tendo em vista as tragédias que tem contribuído
teórica, ideológica e politicamente para produzir em todos os cantos do
globo, nem mesmo com sua notória desfaçatez teria como continuar prome-
tendo um auspicioso mundo de “liberdade” e prosperidade. Nessas circuns-
tâncias, o conservadorismo não comparece mais com a radiante e arrogante
certeza de que restara como a única alternativa. Apesar disso, porém, con-
serva seu predomínio político-ideológico, agora sombrio, lúgubre, tal como
o futuro que se pode prognosticar a se crer em sua postulação de que a his-
tória termina no presente.
No entanto, a opressiva sensação de epílogo que hoje se expe-
rimenta, a desalentadora percepção de que a humanidade não tem possi-
bilidade de ir além da vida social regrada pelo capital – é preciso admitir –
não são obra exclusiva do conservadorismo. A aparente ausência de alter-
nativa deve ser debitada também na conta do(s) tipo(s) de marxismo(s) pre-
valente(s) entre adeptos e, por extensão, adversários. Talvez se possa afirmar
que nunca uma vitória deveu-se tão pouco à excelência do vitorioso quanto
às debilidades do derrotado1. Daí a necessidade de crítica, no caso, de
autocrítica para que a teoria marxiana possa reassumir sua condição de
análise insuperável da estrutura e dinâmica da sociedade moderna, de suas
contradições e de seus futuros possíveis.
..............................................................................
1Já na década de 70 do século passado Lukács (2012, p. 299) adverte que, com o predomínio das correntes
antiontológicas (neopositivismo e neokantismo), não muito tempo depois da morte de Marx a maioria dos seus seguidores
encontrava-se sob a influência dessas correntes. Em consequência, segundo ele, o que existe de ortodoxia marxista
consiste em “afirmações e inferências singulares de Marx, frequentemente mal compreendidas e sempre coaguladas
em slogans radicais”.
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O presente artigo procura contribuir para a autocrítica que nós,
os herdeiros da tradição marxista, devemos antes de tudo a nós mesmos.
Nesse particular, trazendo elementos já elaborados por autores marxistas,
especialmente G. Lukács (2013) e M. Postone (2014), sustenta que a crítica
das concepções correntes sobre trabalho no interior da tradição constitui
um imperativo para a autocrítica e, consequentemente, para a restauração
da dimensão crítica da teoria marxiana. Com esse objetivo, o argumento
está centrado na diferença entre trabalho como categoria fundante e central,
sendo exposto em três seções: na primeira, há uma explanação sintética
sobre o caráter fundante do trabalho na gênese e desenvolvimento do ser
social com base no capítulo sobre o trabalho da Ontologia de Lukács; na
segunda, a partir das formulações de Postone, o propósito é o de explicar
por que a centralidade do trabalho é exclusiva do capitalismo e constitui a
contradição básica desse sistema; a terceira e última seção, apoiada na
ideia de que crítica de fato é crítica ontológica, busca demonstrar que a
crítica da economia política elaborada por Marx consiste na crítica do tra-
balho, ou da relação social armada pelo capital que unidimensionaliza os
sujeitos como trabalhadores.
1. O caráter fundante do trabalho na gênese e desenvolvimento
do ser social
Antes de tratar propriamente da análise do complexo do trabalho
exposta por Lukács em sua Ontologia, é preciso enfatizar o sentido histórico
dessa obra.2 Parece incontestável que, no fundo, o propósito foi dar conta
da historicidade do ser social, sua historicidade específica, distinta das histo-
ricidades do inorgânico e do orgânico. Só compreendendo essa historicidade
é possível determinar o papel do sujeito, da subjetividade na história, ou
na autoconstituição do ser social. De fato, dependendo do tipo de histo-
ricidade o sujeito pode não ter nenhum papel, ou seja, não pode ser propria-
mente um sujeito. Esse seria o caso, como observa Lukács em inúmeras
passagens, do materialismo mecanicista ao subentender que a sociedade
dirige-se a um fim que se realiza de maneira inexorável independentemente
da ação dos sujeitos.
Compreende-se, desse modo, que a Ontologia tenha sido con-
cebida como prolegômenos de uma projetada ética (TERTULIAN, 1999;
OLDRINI, 2013). Se a investigação da historicidade peculiar do ser social
permite demonstrar que o sujeito tem nele um papel único em sua cons-
tituição e desenvolvimento, as questões éticas se impõem de imediato, já
..............................................................................
2Ilustra essa orientação da obra seu comentário sobre as tentativas em apreender, em termos ontológicos, a historicidade
do mundo social, que, para ele, podem ser vislumbradas em escritos de Aristóteles, Maquiavel e também de Vico,
muito embora assinale que somente na ontologia marxiana “essas tendências alcançam uma forma filosoficamente
madura e plenamente consciente.” (LUKÁCS, 2012, p. 298).
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que a práxis como conduta social ativa, como agir teleológico, sempre
pressupõe decisão entre alternativas, enfim, decisão entre valores.3
Contra as opiniões, portanto, que confundem o elevado grau de
abstração da obra com uma atitude a-histórica,4 é absolutamente crucial
ter presente que a categoria trabalho, em particular, é tratada em tal grau
de abstração justamente para demonstrar essa historicidade específica, pois
é pelo trabalho que o ser social, essa nova espécie de ser se autocria ao
produzir as condições materiais de sua vida e, em razão disso, possui uma
historicidade interna que as outras espécies não possuem.5
Para iluminar a particularidade do ser social, Lukács discute o
problema do salto ontológico de uma forma de ser, sua gênese e diferen-
ciação radical da forma de ser da qual se origina. O destaque aqui recai
sobre o novo que surge e que, por isso, não pode ser derivado por indução
ou dedução. Dado o salto ontológico, tem-se um todo desenvolvido com
constituição própria para cuja compreensão não é possível recorrer a esses
tipos de inferência. Ao contrário, é preciso partir do todo desenvolvido e,
por meio de procedimentos abstrativos, obter os elementos constitutivos
que permitam a sua reconstrução ideal. Claro está, como observa Lukács
referindo-se às indicações de Marx, que essa reconstrução não pode partir
de qualquer abstração. Como toda ciência tem de totalizar e, ao fazê-lo,
resulta empiricamente plausível, o caminho do abstrato ao concreto men-
cionado por Marx deve se referir não apenas à totalização propriamente
dita, mas ao modo de totalizar e ao ponto de partida, pois
considerado isoladamente, qualquer fenômeno pode – uma vez trans-
formado em ‘elemento’ por meio da abstração – ser tomado como
ponto de partida; só que um tal caminho não levaria jamais à compre-
ensão da totalidade. O ponto de partida, ao contrário, deve ser uma
categoria objetivamente central no plano ontológico. (LUKÁCS, 2012,
p. 312).
Precisamente por esse motivo, ao justificar porque, do ponto de
vista metodológico, para expor ontologicamente a constituição do ser social
deve-se iniciar pelo trabalho, Lukács faz menção à conhecida passagem de
Marx, em O capital, sobre a diferença entre o trabalho e as operações rea-
lizadas por abelhas e aranhas para sublinhar que ali se enuncia uma cate-
goria central do trabalho, pois nele sucede um pôr teleológico no âmbito
..............................................................................
3Parafraseando Thompson (1978), como “ser moral e racional”, o ser humano sempre tem de decidir entre alternativas
e, portanto, entre valores. Sobre a relevância desse trabalho de Thompson para a compreensão da historicidade do
ser social, ver Duayer (2006).
4A identidade entre ontologia e a-historicismo é confusão comum e muito antiga. Perry Anderson oferece ilustração
notável desse equívoco, na medida em que, do alto de sua autoridade, sequer considera necessário justificar sua
redução de ontologia a postulações metafísicas. De fato, em sua crítica à análise de Thompson sobre as relações de
W. Morris com o marxismo, Anderson sustenta que o erro de Thompson consiste em substituir “uma explicação
histórica por uma ontológica”. (ANDERSON, 1980, p. 160 grifo no original)
5"[...] o trabalho no sentido de simples produtor de valores de uso é o início genético do devir homem do homem.”
(LUKÁCS, 2013, p. 156).
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do ser material que dá origem a uma nova objetividade. Característica que
confere ao trabalho a posição de destaque na gênese e no processo de
desenvolvimento do ser social e o seu exclusivo caráter intermediário.
Ao criar novas formas de objetividade, o trabalho, como metabo-
lismo do ser humano, da sociedade com a natureza, marca a transformação
no ser humano que trabalha do meramente biológico no ser social. (LU-
KÁCS, 2013, p. 44 e 47) Essa nova forma de ser emerge do orgânico e dele
se diferencia porque, mediante o trabalho, põe e repõe, cria as próprias
condições de reprodução.
Por ser agir teleológico, atividade que põe finalidades e as realiza
materialmente, ou inscreve na realidade algo que as causalidades naturais
não produziriam por si sós, o trabalho cria as condições materiais da vida.
Em outras palavras, sem qualquer postulação, ao se iniciar pelo trabalho,
por essa atividade específica do humano, é possível inferir que o ser social
se autocria ou, como salienta Lukács, que o típico no ser social é a re-
produção ampliada, resultado da dialética entre necessidade e sua satisfação.
O pôr de finalidade inverte a determinação biológica prevalente
no orgânico, processo causal em que é o passado que determina o presente.
As transformações nos processos de reprodução filo e ontogenético são
provocadas por alterações ocorridas no meio ambiente, no passado portanto.
O pôr de finalidade muda tal determinação na medida em que é o futuro
– o mundo tal como figurado na finalidade – que determina a ação. Nesse
caso, portanto, há uma inversão no andamento, pois no ser social o futuro
determina o presente (LUKÁCS, 2013: 98).
Não seria possível, claro, a partir dessas considerações iniciais,
cobrir toda a riqueza do capítulo da Ontologia aqui tratado. As observações
acima importam sobretudo para chamar a atenção para a característica
central do ser social pressuposta no trabalho: em lugar de se adaptar ao
mundo tal como ele existe, o ser social cria o seu próprio mundo exterior
e, ao fazê-lo, também se recria continuamente, desenvolve suas poten-
cialidades. Talvez se possa afirmar que o sentido maior da Ontologia consista
em procurar capturar o desenvolvimento do ser social, sua diferenciação e
estratificação crescentes, conformando um complexo de complexos, que
tem sua gênese no trabalho, tal como explica o autor:
[trata-se de apreender as] formas fenomênicas das condutas de vida
especificamente humanas que, embora através de amplas mediações,
emergem do trabalho e que, por isso, devem ser concebidas onto-
lógico-geneticamente a partir dele.6 (LUKÁCS, 2013, p. 126).
Empregando esse método ontológico-genético, a análise do traba-
lho realizada na Ontologia oferece inúmeras ilustrações da gênese de novas
..............................................................................
6Tertulian (2009, p. 376) assim se manifesta sobre essa conexão: “Pode-se definir seu método como ‘ontológico-
genético’, na medida em que procura mostrar a estratificação progressiva das atividades do sujeito”.
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esferas, que marca a crescente complexificação e estratificação resultantes
do desenvolvimento do ser social. Na impossibilidade de comentar todos
os casos examinados pelo autor, a exposição da gênese da ciência, tal como
aparece na Ontologia, serve para mostrar o “método ontológico-genético”
em operação, por assim dizer.7 Para sintetizar o procedimento de Lukács,
basta observar que ele parte dos dois componentes do trabalho já analisados
por Aristóteles: o pensar, em que um fim é posto e se buscam os meios de
sua realização; e o produzir, em que o fim anteposto devém real. A
formulação de Aristóteles é enriquecida pela incorporação da decomposição
analítica do primeiro ato proposta por Hartmann, a saber, o pôr do fim e a
investigação dos meios.
A contribuição de Hartmann, de acordo com Lukács, não altera
a essência ontológica da proposta de Aristóteles, além de torná-la mais
concreta e esclarecedora. Tal essência consiste em que um projeto ideal é
materialmente realizado, ou em que a finalidade pensada transforma a
realidade material. O resultado é a inserção na realidade de algo material
que é qualitativa e radicalmente novo, pois não poderia resultar da operação
normal dos processos causais da natureza.
O primeiro ato, o pôr do fim, é determinado por necessidades
sociais e tem o propósito de satisfazê-las. O segundo ato, a investigação
dos meios, constitui o pressuposto absolutamente necessário para alcançar
esse objetivo, porque o conhecimento correto, mais detalhado possível
das relações e das propriedades dos objetos envolvidos no pôr do fim é
condição imprescindível para que, no trabalho, se possa converter causali-
dades naturais em causalidades postas, que, no final do processo, resultam
no produto, tal como ideado no pôr do fim. Nisso consiste o agir teleo-
lógico: sem mudar a essência das causalidades naturais, deve “canalizá-
las” ou dispô-las em tal ordem de modo que operem em função da fina-
lidade, transformá-las em causalidades postas.
Apesar de constituírem uma unidade, as duas atividades são subs-
tancialmente heterogêneas, conforme salienta Lukács. De fato, enquanto o
pôr do fim determina o modo de se dirigir à realidade, de apropriá-la men-
talmente, a investigação dos meios, ao contrário, impõe a observação estrita
das propriedades e conexões dos objetos e materiais relacionados com
realização do fim. Em outros termos, enquanto o pôr do fim implica a an-
tropomorfização da realidade, a investigação dos fins é inerentemente desan-
tropomorfizadora. Tal heterogeneidade mal pode ser vislumbrada, é claro,
nas formas de trabalho originárias e elementares, condicionadas que são
pelos fins particulares de cada trabalho concreto. No entanto, agrega Lukács,
o conhecimento adquirido em um trabalho específico pode ser utilizado
em outro, em circunstâncias em tudo distintas do primeiro.
..............................................................................
7 Para evitar multiplicação excessiva de referências, vale registrar que explanação que se segue está baseada no
argumento desenvolvido por Lukács (2013) nas páginas 52 e ss.
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Não seria o caso, aqui, de reproduzir todos os pressupostos con-
cretos implicados na existência do trabalho, como característica específica
do ser social, que Lukács infere dessa sua consideração abstrativante: co-
nhecimento, consciência (não mais epifenomênica), linguagem, pensamento
conceitual, separação sujeito-objeto, entre outros. O importante nesse mo-
mento é reconhecer que o trabalho pressupõe não somente o conhecimento da
realidade, qualquer que seja o grau, mas também envolve a sua generali-
zação, pois disso se trata quando os conhecimentos adquiridos em proces-
sos de trabalhos específicos são fixados e utilizados em contextos diferentes.
Lukács situa nessa propriedade intrínseca do trabalho – a genera-
lização dos conhecimentos adquiridos – a gênese da ciência. Evidentemente,
o autor não identifica tal generalização, em geral inconsciente, com a ciên-
cia, mas apenas mostra que ali, no trabalho e no conhecimento da realidade
que ele implica, está radicada a sua gênese. Em adição, sublinha que a ge-
neralização presente no trabalho expressa a autonomização dos conhe-
cimentos em relação aos fins que lhes deram origem, ou explicita a já re-
ferida heterogeneidade entre pôr do fim e investigação dos meios.
Das necessidades surgidas da complexificação dos processos de
trabalho, da crescente divisão do trabalho e socialização do processo de
produção, observa Lukács, a investigação dos meios termina por se constituir
como esfera autônoma, como ciência. A heterogeneidade agora passa a
ser entre ciência e técnica.
A ciência, como esfera apenas relativamente autônoma, também
responde às necessidades sociais. Todavia, sua função social é distinta da
técnica, cujo propósito é o de contribuir para a realização de finalidades
imediatas. A ciência, ao contrário da técnica, embora seja seu pressuposto,
sua condição, tem por objetivo capturar o mundo tal como ele é em si
mesmo. A sua função social é a busca da verdade, não a verdade absoluta,
é óbvio, mas o conhecimento mais adequado possível das coisas tais como
elas são em si mesmas, da realidade. Nesse sentido, pode-se dizer que a
ciência tem uma orientação propriamente ontológica – vai ao ser das coisas,
desantropomorfizando.
Tais considerações permitem mostrar, portanto, a emergência da
ciência como esfera autônoma constitutiva do ser social, cuja gênese é
possível situar no trabalho, e que serve de ilustração exemplar da criação
de novas esferas e complexos envolvida no desenvolvimento do ser social.
Para formulá-lo de maneira mais direta: o desenvolvimento do ser social se
caracteriza por uma crescente complexificação e diferenciação, cujo pres-
suposto é o aumento da produtividade do trabalho social. De fato, o tempo
exigido para a práxis social nos novos complexos e esferas unicamente
pode ser criado pelo incremento da produtividade. Por conseguinte, se o
desenvolvimento do ser social depende da produtividade do trabalho, pode-
se afirmar que tudo o que somos e podemos ser depende do trabalho (e de
sua produtividade).
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Nesse sentido, precisamente o trabalho é fundante, ou, caso se
queira, é central na gênese e desenvolvimento do ser social. Nas palavras
de Lukács (2013, p. 117):
[a] constituição ontológica da esfera econômica [do trabalho] ilumina
a sua conexão com os outros âmbitos da práxis humana. Como já vi-
mos muitas vezes em outros contextos, à economia cabe a função
ontologicamente primária, fundante. E, apesar de já ter dito também
isto muitas vezes, vale a pena sublinhá-lo mais uma vez: em tal
prioridade ontológica não está contida nenhuma hierarquia de valor.
Com isso realçamos apenas uma situação ontológica: uma de-
terminada forma do ser é a insuprimível base ontológica de outra, e
a relação não pode ser nem inversa nem recíproca. Tal constatação
é em si totalmente livre de valor. (grifo nosso).
No entanto, não é difícil perceber que o trabalho gera uma dinâ-
mica que o torna um dos muitos componentes do complexo de complexos
aos quais por necessidade, imediata ou mediatamente, dá origem. Por con-
seguinte, apesar de permanecer fundante, com o desenvolvimento do ser
social o complexo do trabalho passa a representar uma fração declinante
da totalidade.
Vai-se ver na próxima seção que na sociedade capitalista o traba-
lho, embora fundante, mas tendencialmente decrescente em relação aos
outros complexos e às correspondentes práticas humano-sociais, também
é central. Portanto, a contradição básica dessa sociedade reside preci-
samente nessa centralidade, que é sempre recomposta pela acumulação
de capital a despeito do crescimento vertiginoso da produtividade do tra-
balho social tornar o trabalho, como um complexo dentre os múltiplos
complexos que compõem o ser social, proporcionalmente cada vez menos
relevante. Há uma contradição absurda entre essa irrelevância crescente
do trabalho e sua centralidade nessa forma de sociedade.
Por essa razão, pode-se pôr em dúvida a interpretação corrente
na tradição marxista segundo a qual o trabalho é a categoria central na crí-
tica de Marx. Noção que se manifesta numa espécie de apologia, apoteose
do trabalho, ternura pelo trabalho. Não é um acaso que Marx tenha sido
associado ao trabalhismo, não só aqui mas internacionalmente, quando,
na verdade, sua análise da formação social governada pelo capital não
apoia de forma alguma tal inferência. Muito pelo contrário, como será vis-
to na próxima seção, a crítica de Marx é a rigor crítica da centralidade do
trabalho, crítica da sociedade em que o trabalho, por ser categoria media-
dora social, é central.
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2. Postone e a centralidade do trabalho no capitalismo8
Postone se propõe a construir uma leitura específica e inovadora
dos últimos textos de Marx. Nessa leitura, as categorias básicas de Marx
não são tomadas apenas como a manifestação de um modo específico de
exploração, mas, ao contrário, expressam uma dinâmica própria ao modo
de vida constitutivo da sociedade capitalista, caracterizada por formas de
dominação quase-objetivas, abstratas.
Desse modo, categorias como trabalho e capital são a expressão
e elementos constitutivos de uma dinâmica histórica específica socialmente
construída. Posta no mundo dos homens, tal dinâmica traz a possibilidade
objetiva de sua superação e, no mesmo movimento, bloqueia a possibilidade
de emancipação humana na entificação de uma sociabilidade pós-
capitalista.
A categoria valor é o fundamento desta dinâmica. O valor é a
forma específica que a riqueza assume no capitalismo e, simultaneamente,
uma forma de mediação social singular. A partir de tal estrutura inter-
pretativa, Postone elabora um aparato teórico destinado a capturar os ele-
mentos centrais do capitalismo comuns a todas as épocas de sua evolução
histórica.
No entanto, Postone não sustenta com isso que o Marx maduro
constrói uma teoria com validade trans-histórica ou “ontológica”,9 pois sua
teoria tem uma perspectiva intrínseca ao objeto estudado, de tal maneira
que suas categorias são historicamente específicas, ou seja, exclusivas do
modo de produção capitalista. Afirmar a validade trans-histórica da teoria
marxiana tem como desdobramento lógico, de acordo com o autor, a iden-
tificação de uma dialética intrínseca à história humana ou do trabalho
como elemento central na constituição da vida social – para Postone noções
patentemente trans-históricas.
Partindo da análise de Marx sobre a mercadoria, Postone destaca
que ali já se demonstra o duplo caráter do trabalho no capitalismo: concreto
e abstrato. A sua crítica se concentra nas interpretações usuais do trabalho
abstrato como trabalho concreto tomado em abstrato. No caso do trabalho
concreto, sua análise não apresenta qualquer novidade na medida em que
afirma sua presença em toda e qualquer sociedade humana e faz a mediação
entre o homem e natureza. O trabalho abstrato, todavia, não pode ser en-
tendido como o trabalho concreto abstraído de suas particularidades con-
cretas. Para o autor, ao contrário, trata-se de um tipo categorial diferente,
não consistindo em uma categoria fisiológica, mas social e inerente à socia-
bilidade posta pela lógica do capital (POSTONE, 2014).
..............................................................................
8 Esse item é uma releitura da primeira parte do artigo “Superação do capitalismo a partir da lógica humano-societária
do trabalho? Postone, Lukács e Chasin se encontram.” (ARAUJO, 2011).
9Postone ainda que elabore uma crítica ontológica, toma ontológico e trans-histórico como sinônimos e parece confundir
ambos com uma atitude a-histórica. Sobre esse equívoco muito difundido, ver nota 9.
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Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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Postone reafirma a concepção de que o trabalho no capitalismo
é a substância do valor, mas agrega que ele possui uma função única nessa
sociedade, a saber, a função exclusiva de mediação social, constituindo
uma forma abstrata de interdependência social. Em virtude disso, possui
uma dimensão social que não é intrínseca à atividade do trabalho em si.
Fato que, para Postone, corrobora a sua avaliação de que, para Marx, o
trabalho no capitalismo não é trans-histórico, mas constitui a atividade
mediadora social historicamente determinada que põe como objetivações
a mercadoria e o capital – ao mesmo tempo produtos de trabalho concreto
e formas de mediação social.
Para Postone (2004, p. 59; 2014, p. 174s.) a teoria do valor-
trabalho de Marx não é uma teoria do valor-trabalho da riqueza, nem tam-
pouco uma teoria que tem por centro a explicação do funcionamento do
mercado e da exploração do homem pelo homem. Como o trabalho sempre
foi a fonte social da riqueza em qualquer tempo e lugar, parece evidente,
conclui ele, que Marx analisa o valor como forma historicamente específica
da riqueza que, ao mesmo tempo, também é uma forma de mediação so-
cial. Por isso, Marx diferencia valor de riqueza material, sendo a riqueza
material mensurada pela quantidade física de valores de uso produzidos e
explicada por fatores associados ao trabalho concreto no processo de pro-
dução: conhecimento, organização social, condições sociais etc. O valor
constituído pelo trabalho gasto na produção, por sua vez, é mensurado
pelo tempo despendido e se apresenta como a forma de riqueza dominante
no capitalismo.
Como capital é valor em expansão, valor que se valoriza, e valor
é o trabalho humano abstrato que só pode ser quantificado pelo tempo
gasto no próprio processo de trabalho, segue-se que a dominação posta
pelo capital é do tempo sobre os homens, ainda que intermediada pelas
coisas que os homens produzem. Em suma, o valor é uma forma auto-
mediadora da riqueza, que põe e bloqueia a possibilidade histórica de sua
própria superação por uma sociabilidade baseada na produção consciente
de riqueza material. (POSTONE, 2004, p. 59; 2014, p. 176-177)
Portanto, o que caracterizaria o capitalismo, segundo Postone, é
a presença de um tipo de mediação social abstrata e historicamente
específica que é posta pelo trabalho. Mediação esta constituída por
determinadas formas de prática social que se tornam quase-independentes
das pessoas envolvidas na entificação dessas práticas.
Tal referencial teórico de acordo com Postone (2004, p. 59-60;
2014, p. 18s, p. 40s, p. 186s, p. 249s.) mostra que estamos diante de uma
forma historicamente nova de dominação social. Forma que não pode ser
compreendida exclusivamente em termos de dominação de classe, pois é
impessoal e tem imperativo e constrangimentos estruturais específicos. Ela
não tem um locus determinado e parece não ser social, apesar de ser cons-
tituída por formas específicas de práticas sociais.
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24 Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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A mesma estrutura teórica permite ao autor (2004, p. 60; 2014,
p. 224-225s.) sustentar que o capitalismo possui uma dinâmica peculiar
caracterizada por um aumento inexorável da produtividade do trabalho,
com consequente redução do valor por unidade de mercadoria. Tal ten-
dência é orientada pela dimensão temporal do valor.
A dominação das pessoas pelo tempo, como já observado, é a
forma abstrata e historicamente específica de dominação social intrínseca
às formas fundamentais de mediação social na sociedade capitalista. Tal
dominação abstrata, por sua vez, está associada a uma forma específica e
abstrata de temporalidade – o tempo abstrato newtoniano (tempo lógico).
Como valor e mais-valor são trabalho humano abstrato, portanto, indi-
ferenciáveis entre si, a verificação da ampliação do valor, da produção de
valor a mais, da valorização, só pode ser feita através da quantificação do
tempo gasto no processo de trabalho produtor das mercadorias. Por esse
motivo, a temporalidade abstrata encontra-se necessariamente associada à
produção de valor e mais-valor, e, por conseguinte, ao aumento da força
produtiva do trabalho e à extração de mais valor relativo como momento
decisivo para o processo de acumulação de capital.
Todo esse movimento ocorre no interior dessa temporalidade abs-
trata. Formulando em outros termos, o valor que é mensurado pelo tempo
de trabalho socialmente necessário (em média) para produzir a mercadoria
é a própria expressão da transformação do tempo concreto em tempo abs-
trato no capitalismo. Esse valor se põe como uma norma temporal objetiva
e impessoal autoimposta aos seres humanos, e que “se reconstitui continua-
mente ao longo da história. Os produtores não são só obrigados a produzir
de acordo com uma norma temporal abstrata, mas devem fazê-lo de forma
historicamente adequada: eles são obrigados a ‘se manterem atualizados’.”
(POSTONE, 2014, p. 347).
O valor, ou seja, o tempo de trabalho, é a própria riqueza no ca-
pitalismo e o material do qual são feitas as relações sociais (POSTONE,
2014, p. 348). Trata-se de um metabolismo criado pelo trabalho dos seres
humanos e que domina os produtores e os obriga a continuar trabalhando,
garantido a manutenção dessa dominação.
Postone (2004, p. 60-61; 2014, p. 92s.) vincula diretamente a
descrição de Marx dessa dinâmica do capital e a correlata dominação abs-
trata ao movimento do Geist (Espírito),tal como exposto por Hegel na Feno-
menologia. Em sua opinião, em O capital, Marx tenta explicar social e his-
toricamente o que Hegel apreende com o conceito de Geist (POSTONE,
2014). Para ele, a linguagem de Marx, ao tratar o capital como movimento,
é similar à de Hegel para descrever o Espírito como substância automovente,
que é sujeito do seu próprio processo. Dessa forma, Postone sugere que
Marx permite entender que o sujeito histórico deve de fato existir no capi-
talismo, não como espírito hegeliano, mas como valor.
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Postone (2004, p. 60-61; 2014, p. 92s.) procura articular a desco-
berta de um espírito hegeliano na análise do Marx “maduro” à teoria da
alienação apresentada por Marx em seus primeiros trabalhos. De acordo
com ele, na formulação de Marx o desdobramento da lógica dialética do
capital é uma expressão real das relações sociais alienadas, que, embora
constituídas pela prática, existem quase independentemente dela. Razão
pela qual as relações sociais do capitalismo não podem ser captadas adequa-
damente pelas relações de classe.
Essas relações sociais devem ser apreendidas como formas de me-
diação social que são expressas pelas categorias de mercadoria, valor e ca-
pital. Categorias que, por sua vez, estruturam e são reestruturadas por estas
relações. Nesse sentido, Postone (2004, p. 60; 61) conclui que
a lógica do capital não é uma manifestação ilusória das relações de
classe subjacentes, mas é uma forma social de dominação inseparável
das formas/relações sociais características do capitalismo. Uma lógica
da história e formas alienadas de relações sociais são intrinsecamente
relacionadas.
Em conformidade com sua argumentação, Postone (2004, p. 61)
mantém que Marx – por se referir à determinação conceitual do espírito de
Hegel –, ao tratar da categoria de capital, “sugere que a noção de Hegel de
história como um desdobramento dialético direcional é válida, mas somente
para a era capitalista”. Só no capitalismo teríamos uma substância (trabalho
abstrato) social qualitativamente homogênea e que garante a existência do
capitalismo como totalidade social. As outras sociedades, onde não domina
o modo de produção capitalista, possuem relações sociais que não são
qualitativamente homogêneas. Em consequência, “não podem ser tota-
lizadas – elas não podem ser apreendidas pelo conceito de ‘substância’,
não podem ser desdobradas a partir de um princípio estruturante, singular,
e não apresentam uma lógica histórica necessária, imanente.” (POSTONE,
2004, p. 61).
As formas que antecedem o modo de produção capitalista, apesar
de não terem um princípio estruturante e uma lógica temporal newtoniana,
são totalidades com legalidades específicas. A lógica da história, no modo
de produção capitalista, é a da história do capital. Nesse caso, tem-se uma
forma logicista de apresentação da história que não é histórica. É um modo
de operar que na aparência se põe como histórico, mas em sua essência é
lógico, mera passagem do tempo.
Para Postone Marx realiza, em O capital, uma reinterpretação
crítica do postulado hegeliano do espírito automovente, que se põe no
mundo enquanto sujeito-objeto idêntico. Na leitura sugerida por ele, sendo
o sujeito não o Geist, mas o capital, conclui-se que as relações capitalistas
não são extrínsecas ao Sujeito e tampouco impedem a sua plena realização.
Na verdade, não há impedimento para sua plena realização. Significa dizer
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que Marx não postula ou presume um sujeito meta-histórico, por exemplo,
o proletariado, que irá realizar a si mesmo na sociedade emancipada. Ao
contrário, com Marx teríamos as bases para a crítica de tal postulado.
Portanto, para Postone, sua proposta interpretativa é distinta das concepções
teóricas para as quais a totalidade social constituída pelo trabalho seria o
ponto de vista da crítica ao capitalismo e que, no socialismo, ocorreria sua
realização plena.
Em O capital, pelo contrário, essa totalidade e o trabalho a ela
associado são o objeto da crítica. Evidentemente, nesse caso, a conclusão
lógica é de que a negação do mundo do capital exige a abolição desse su-
jeito (o capital), de sua contraparte necessária (o trabalho proletário) e da
totalidade por ambos constituída, e não a realização plena trabalho pro-
letário (POSTONE, 2004).
Após argumentar que Marx fundamenta a lógica histórica desdo-
brada em O capital no duplo caráter da mercadoria e, portanto, na forma-
capital, Postone (2004, p. 60-61; 2014, p. 333s.) retoma o valor como for-
ma temporalmente determinada de riqueza e reafirma que ele possui em si
uma orientação para o aumento da produtividade – marca da produção
capitalista.
Muito embora, como se sabe, o valor seja mensurado pelo tempo
de trabalho socialmente necessário, os aumentos de produtividade da so-
ciedade como um todo implicam um enorme crescimento da produção da
riqueza na forma de mercadorias, mas não redundam em um aumento do
valor. O efeito do aumento da produtividade sobre o valor consiste na re-
dução da unidade de tempo que serve de referência, no caso, a hora de
trabalho social (tempo por unidade de mercadoria). Em consequência, com
o aumento da produtividade e a redução do tempo gasto para a produção
das mercadorias necessárias para a manutenção e reprodução da força de
trabalho, o nível básico para a mensuração do valor se modifica continua-
mente, de modo que, na mesma hora temporalmente tratada, obtém-se
uma quantidade cada vez maior de mercadorias. Em outras palavras, a
medida continua sendo a hora, mas o aumento da produtividade, a elevação
da força produtiva do trabalho permite que em meia hora, por exemplo,
produzam-se tantas ou mais mercadorias do que antes, em uma hora. De
tal maneira que a sociedade passa a ter a cada vez um novo nível básico de
referência para a mensuração do valor. A essa dinâmica peculiar do capital
(de transformação e reconstituição da determinação temporal abstrata do
valor) que se impõe à totalidade da formação social capitalista Postone
chama de treadmilleffect.
Segundo Postone, quando Marx passa a tratar da categoria de
mais-valor relativo, a exposição assume uma lógica histórica caracterizada
pela aceleração temporal. Com o mais-valor relativo, o aumento da pro-
dutividade social em geral deve gerar um aumento do próprio mais-valor.
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E isso sem que haja correspondência entre o aumento da riqueza material
produzida e o aumento da riqueza social na forma de valor.
Nas sociedades em que domina o modo de produção capitalista,
argumenta Postone interpretando Marx (2004, p. 62-63; 2014, p. 222s.), o
aumento da força produtiva do trabalho não implica a redução da ne-
cessidade geral por gasto de tempo de trabalho. Tal redução seria possível,
por exemplo, em uma formação social em que a riqueza material fosse a
forma específica de riqueza. No capitalismo ocorre o oposto: a necessidade
em questão é permanentemente reconstituída. O trabalho como meio ne-
cessário para a reprodução individual e o gasto de tempo de trabalho para
a sociedade como um todo permanecem fundamentais para a sociedade
como um todo independentemente do nível de produtividade.
Efeito que se explica, como já se viu, pelo fato de que o trabalho
sob a lógica do capital tem um duplo caráter: é ao mesmo tempo trabalho
concreto e trabalho abstrato. Sendo o capital valor em expansão e o valor,
trabalho abstrato, este último deve permanecer como o aspecto central e
fundamental para a continuidade do processo de valorização do valor.
Postone (2004, p. 63; 2014, p. 336s, 344s.) conclui que há uma
dinâmica histórica de transformação e reconstituição direcional, mas não
linear. De tal modo que “história no capitalismo não é uma simples história
do progresso – técnico ou de outro tipo.” (POSTONE, 2004, p. 63). Na
verdade, ela tem um duplo aspecto. Por um lado, a dialética do valor e do
valor de uso acelera as transformações da vida social a partir dos avanços
do progresso técnico, que incide sobre a divisão do trabalho gerando au-
mentos de produtividade. Por outro, “a dinâmica histórica do capitalismo
reconstitui suas próprias condições fundamentais como uma característica
imutável da vida social.” (POSTONE, 2004, p. 63). Em outros termos, a
mediação social do valor é sempre efetivada pelo trabalho indepen-
dentemente do nível de produtividade alcançado.
A dinâmica histórica do capital, engendrada pela mediação social
do valor, se põe para além da necessidade do valor e do trabalho proletário
e, ao mesmo tempo, reconstitui essas necessidades como condição de vida
e de reprodução do capitalismo. Tal dinâmica gera continuamente o “novo”,
enquanto regenera o “mesmo”. Não obstante dê origem à possibilidade de
outra organização da vida social, essa dinâmica impede a efetivação de tal
possibilidade (POSTONE, 2004, p. 63; 2014, p. 344s).
Desse modo, o autor enfatiza que essa dinâmica produz uma for-
ma de dominação exclusiva do capitalismo e que só pode ser compreendida
levando-se em consideração que a “dualidade instável das formas merca-
doria e capital acarreta uma interação dialética entre valor e valor-de-uso
que subentende uma dinâmica histórica complexa que é o coração do
mundo moderno.” (POSTONE, 2004, p. 63; 64). Na prática, para Postone
(2004, p. 64), isto significa o
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abandono das hipóteses trans-históricas de que a história humana em
geral apresenta uma dinâmica, para demonstrar que uma dinâmica
histórica é uma característica historicamente específica do capita-
lismo. Esta dinâmica dialética que não pode ser capturada nem em
termos do Estado nem da sociedade civil [...].
Desdobrando seu raciocínio, o autor argumenta que a dinâmica
histórica do capitalismo “não é simplesmente uma sucessão linear de pre-
sentes, mas envolve uma dialética complexa de duas formas de constituição
do tempo.” (POSTONE, 2004, p. 64). De um lado, acumulação de tempo
passado (trabalho morto) que reduz a necessidade de trabalho presente
(valor); de outro, a forma de tempo que é “concreta, heterogênea e dire-
cional”: o tempo histórico.
Tempo histórico e tempo abstrato são inter-relacionados e são
formas de dominação. Os indivíduos constituem o tempo histórico, porém
não dispõem dele. O tempo histórico associa-se à produção de valores de
uso, ao aumento da produtividade; contudo, não altera o tempo abstrato.
Porém, como indicado acima, modifica o padrão de valores de uso produ-
zidos na hora de trabalho abstrata.
O aumento da produtividade implica o aumento da quantidade
de valores de uso produzidos na mesma hora de trabalho, de modo que a
soma dos valores de uso contém a mesma quantidade de valor. Todavia,
cada valor de uso individualmente possui menos valor do que na situação
anterior. O aumento da produtividade da força de trabalho potencialmente
assinala a possibilidade da libertação do ser humano da obrigatoriedade
do trabalho, mas a necessidade da produção de valor e mais-valor, de ca-
pital, reforça a necessidade do trabalho vivo. Em outras palavras: o trabalho
passado, morto, objetivado nos meios de produção e que está manifesto
no tempo histórico, reforça a necessidade da constante transformação da
produção no tempo presente. Produzindo, por esse caminho, a dominação
do tempo abstrato no presente. Tal movimento é decorrente da necessidade
de reconstituição da condição fundamental do capital: a mediação social
através das mercadorias produzidas pelo trabalho humano.
O autor compreende criticamente a existência de uma dinâmica
histórica no capitalismo “como uma forma de heteronomia relacionada
com a dominação do tempo abstrato, para a acumulação do passado de
uma forma que reforça o presente”. (POSTONE, 2004, p. 64). Na estrutura
proposta por Postone, essa dinâmica histórica não é vista positivamente,
ela não é “o motor positivo da vida social humana” (ibid.). Aqui a acumu-
lação do passado se apresenta em uma tensão crescente com a necessidade
do presente – por um lado, a necessidade da produção de valor pelo trabalho
vivo que também reanima o trabalho passado, morto, contido nos meios
de produção e, por outro, o aumento da produtividade possibilitado pelo
desenvolvimento técnico dos meios de produção que reduz a necessidade
da utilização de trabalho vivo. O futuro é tornado possível pela apropriação
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do passado, do trabalho já realizado, objetivado, e reatualiza a dominação
abstrata dos produtos do trabalho sobre os produtores.
Tomando a análise de Marx dos processos de produção e de valo-
rização enquanto momentos constitutivos do processo de produção capita-
lista, a abordagem de Postone (2004, p. 65; 66) não apreende o processo
de produção capitalista como um processo meramente técnico que, ainda
que faculte o aumento da sociabilidade, é ao mesmo tempo apropriado
pelos capitalistas para o atendimento de seus objetivos particulares. Refe-
rindo-se à diferença que Marx estabelece entre a subsunção formal e real
do trabalho ao capital, Postone assinala que na subsunção real o processo
de valorização molda a própria natureza do processo de trabalho; com ela
a produção torna-se intrinsecamente capitalista.
Em consequência, afirma ele, a produção de uma sociedade pós-
capitalista exige a transformação das estruturas de produção e da própria
organização da produção herdadas do capitalismo. Por conseguinte, não é
possível conceber a produção de uma sociedade pós-capitalista com o
mesmo padrão da produção capitalista. O desafio seria modificar as formas
da própria produção e não operar simples mudanças nas formas jurídicas
de propriedade ou nas formas de distribuição da produção.
Considerando a categoria de subsunção real do trabalho ao ca-
pital, Postone (2004, p. 66) propõe que, num nível alto de abstração, ela
está “fundamentada no imperativo dual do capital – um direcionamento
para o contínuo aumento da produtividade e a reconstituição estrutural da
necessidade de gasto direto de força de trabalho no nível social como um
todo”. Este par de opostos seria capaz de explicar em boa parte a forma
material do pleno desenvolvimento da produção capitalista. Pois o aumento
de produtividade, como imperativo do capital, é obtido mediante o uso de
tecnologias cada vez mais sofisticadas e que implicam a economia de
trabalho presente em relação ao trabalho passado. O que por si só coloca
a possibilidade da redução da jornada de trabalho e da reorganização social
do próprio processo de trabalho.
Entretanto, a lógica que estrutura a produção capitalista obstrui a
realização dessas tendências. “Não há liberação da maioria dos trabalha-
dores dos trabalhos parciais e fragmentados e, [portanto], a jornada de tra-
balho não é reduzida no nível social total, mas é distribuída desigualmente,
até mesmo aumentada para muitos.” (POSTONE, 2004, p. 66). Lógica que
permite afirmar que a produção capitalista não pode ser compreendida
unicamente do ponto de vista tecnológico. Em lugar disso, requer a con-
sideração das mediações sociais postas pelas categorias mercadoria e capital.
Para o autor, a teoria crítica de Marx põe no centro da dinâmica
capitalista não a contradição entre produção e distribuição ou entre pro-
priedade privada dos meios de produção e mercado, e tampouco a luta de
classes (POSTONE, 2004). O cerne da dinâmica, na verdade, é o duplo ca-
ráter de formas sociais constitutivas dessa formação: valor, valor de uso e
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tempo socialmente constituído. Tais formas sociais postas pelo trabalho no
capitalismo é que estruturam a luta de classes que, logicamente, são uma
parte integrante da dinâmica do capitalismo, mas não o seu fundamento.
(Postone, 2004, p. 66-67; 2014, p. 348-349).Em outras palavras, as relações
sociais de dominação no capitalismo acontecem através do trabalho. Elas
são portadoras de um aspecto formal e abstrato, sendo portanto duais, e se
caracterizam pela oposição de uma dimensão abstrata geral e homogênea
e outra concreta e particular.
Postone (2004, p. 67; 2014, p. 376) assinala que, com o advento
da grande indústria, “as forças produtivas sociais do trabalho concreto apro-
priadas pelo capital não são mais as dos produtores imediatos”. As forças
produtivas sociais do trabalho concreto não existem primeiro como “forças
dos trabalhadores que são tomadas deles. Antes, elas são forças produtivas
socialmente gerais. A condição para o seu vir a ser historicamente é precisa-
mente que elas sejam constituídas numa forma alienada, separada e oposta
aos produtores imediatos”.
Portanto, a categoria marxiana de capital tem por objetivo capturar
esta forma alienada acima assinalada. Logo, capital, segundo Postone (2004,
p. 67; 68),
é a forma real da existência de capacidade da espécie [humana]
[species capacity] que são historicamente constituídas numa forma
alienada. Capital, então, é a forma alienada de ambas as dimensões
do trabalho social no capitalismo. Por um lado, ele confronta os indi-
víduos como algo estranho, uma Outra totalidade. Por outro, as capa-
cidades da espécie historicamente constituídas na forma de capital
abrem a possibilidade histórica de uma forma de produção social
que não se basearia na produção de excedente mediante o gasto de
trabalho humano vivo na produção, ou seja, no trabalho de uma
classe produtora de excedente.
Sob essa ótica, Postone (2014, p. 214-215) afirma que o capital
não existe como uma totalidade unitária, de tal forma que a conhecida
contradição dialética entre forças produtivas e relações de produção não
dizem respeito a uma contradição
entre ‘relações’ que são intrinsecamente capitalistas (tais como mer-
cado e propriedade privada) e ‘forças’ que significativamente são
extrínsecas ao capital. Ao contrário, tal contradição dialética se dá
entre as duas dimensões do capital. Como uma totalidade con-
traditória, capital é o gerador do complexo dinâmico histórico [...],
que põe a possibilidade de sua própria superação.
Por isso, prossegue o autor, a contradição estrutural do capitalismo
não é entre a esfera da distribuição (mercado e propriedade privada) e a
esfera da produção, entre as relações de propriedade que existem no capi-
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talismo e a produção industrial que é produto da lógica do capital. “Em lu-
gar disso, ela emerge como uma contradição entre formas existentes de
crescimento e produção e o que poderia ser se as relações sociais não fos-
sem mediadas numa forma abstrata pelo trabalho.” (POSTONE, 2004, p.
68).
Fazendo um contraponto entre a estrutura teórica por ele proposta
com o que denomina de marxismo tradicional, Postone (2004, p. 69; 2014,
p. 458) assinala que no marxismo tradicional o trabalho é tomado como
uma categoria “trans-histórica e constitui um ponto de vista quase-on-
tológico da crítica do capitalismo.”10 Em sua estrutura interpretativa, pelo
contrário, o trabalho é o objeto da crítica. No marxismo tradicional “as
formas categoriais do capital velam as ‘reais’ relações sociais do capitalismo”.
Para ele, por sua vez, estas categorias “são aquelas relações sociais”. Ou se-
ja, as estruturas imateriais de mediação capturadas por Marx não escondem
as relações sociais reais do capitalismo, elas “são as relações fundamentais
[...] e constituem o sujeito”.
Em suma, o chamado marxismo tradicional procura entender o
capitalismo partindo das relações entre as classes sociais, sendo estas, por
sua vez, estruturadas pelo mercado e pelas relações de propriedade. Jus-
tamente por isso procura capturar as formas de dominação do capitalismo
partindo das noções de dominação de classe e exploração e “formulando
uma crítica normativa e histórica do capitalismo do ponto de vista do tra-
balho e da produção (entendidos em termos trans-históricos da interação
dos homens com a natureza material).” (POSTONE, 2004, p. 70). Já a formu-
lação de Postone procura demonstrar que a análise marxiana do trabalho
no capitalismo tem por objetivo desvendar a dominação abstrata que não
só estrutura a produção como gera a dinâmica específica da sociedade ca-
pitalista.
A leitura de Postone busca ultrapassar a crítica às formas burguesas
de distribuição que focam no mercado e na propriedade privada. Visa trat-
ar da indústria como indústria constituída pela lógica do capital. Por isso,
toma a classe trabalhadora como o elemento básico do capitalismo e não
como encarnação de sua negação. Logo, o socialismo não envolve a reali-
zação do trabalho e da produção industrial tal como herdados do capi-
talismo, mas exige a “abolição do proletariado e da organização da produção
baseada no trabalho proletário, tanto quanto do sistema dinâmico de com-
pulsão abstrata constituído pelo trabalho enquanto atividade socialmente
mediadora.” (POSTONE, 2004, p. 70). O socialismo exige, então, uma
transformação geral das estruturas de trabalho e do tempo. Por tudo isso,
Postone sente-se justificado ao propor que Marx elabora uma crítica do
trabalho no capitalismo e não uma crítica do capitalismo do ponto de vista
do trabalho.
..............................................................................
10 Ver nota 9 sobre o equívoco do autor em identificar ontologia com postulações metafísicas.
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Como a construção de Postone afasta a centralidade do trabalho
tanto da esfera teórica quanto da política, ele se obriga a adiantar novos
caminhos para a superação do capital e para a abolição do trabalho prole-
tário. Tais caminhos passariam pela emergência histórica das subjetividades
e do autoentendimento ou autorreconhecimento do pós-proletariado.11
Eles abrem a possibilidade para uma teoria que possa refletir histori-
camente nos novos movimentos sociais das últimas décadas do século
XX, cujas demandas e necessidades expressas têm muito pouco a
ver com o capitalismo como tradicionalmente é entendido [...]. [Essa
teoria] deveria ser capaz de tratar de tais movimentos, explicando
historicamente sua emer-gência e a natureza das subjetividades ex-
pressas. (POSTONE, 2004, p. 71).
Considerações finais
H.G. Backhaus, autor da epígrafe do presente artigo, é um dos
teóricos que deram origem à chamada “Nova Leitura de Marx” que inspira
autores como M. Postone, M. Heinrich, R. Kurz entre outros. Sem sabê-lo
ou pretendê-lo, Backhaus afirma na epígrafe a natureza ontológica da crítica
de Marx ao defender enfaticamente a ideia de que a “crítica de las categorías
económicas de Marx trasciende el dominio de la economía como disciplina
especializada”. De fato, considerando que toda ciência subentende uma
ontologia ou, caso se queira, que é impossível falar de “lugar nenhum”
(ontológico), se a crítica de Marx fosse exercitada no interior do domínio
da economia como disciplina especializada, ela não poderia de modo al-
gum ser, como ele próprio reivindica, crítica das concepções geradas e re-
queridas pelas relações sociais da formação capitalista e, portanto, crítica
das próprias relações.
A crítica praticada na disciplina especializada é crítica que não
abrange nem pode abranger a ontologia em que a disciplina está fundada.12
É crítica que gira em torno das maneiras de “melhor” administrar a sociedade
existente, prática que expressa a natureza instrumental da ciência. Pre-
cisamente por essa razão, Marx não procura estabelecer uma interlocução
com a ciência econômica, quaisquer que sejam suas correntes; ao contrário,
ela é o objeto da crítica.
De maneira similar, e também sem se dar conta de que lida com
questões ontológicas, Postone chama a atenção para a diferença entre eco-
nomia política crítica e crítica da economia. A primeira é positiva, crítica
do que existe com base no que existe. A crítica da economia política de
Marx é negativa: é crítica do que existe com base no que poderia ser,
crítica que, portanto, sem desconsiderar os constrangimentos e condições
..............................................................................
11 Vide Postone, 2014, p. 429s.
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Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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do presente, investiga os futuros que sua historicidade necessariamente
encerra (POSTONE, 2014, p. 84).
A crítica positiva pressupõe, ao menos de forma tácita, uma
ontologia em que a configuração presente do mundo é inalterável pela
prática dos sujeitos; a crítica negativa, por sua vez, está fundada em uma
ontologia em que o mundo social, por ser reproduzido e transformado
pela práxis humano-social, é figurado em sua historicidade específica e no
qual, conforme foi possível mostrar com Lukács, a subjetividade cumpre
um papel central. Em síntese, mesmo sem reconhecê-lo ou mesmo admiti-
lo, Backhaus e Postone corroboram a análise de Lukács, de modo que as
considerações acima permitem reafirmar que a crítica marxiana se instaura
como crítica ontológica.
Como foi visto na segunda seção, a análise do complexo do traba-
lho realizada por Lukács esclareceu, delimitando-a concretamente, a histori-
cidade específica do ser social, porquanto ele, em primeiro lugar pelo tra-
balho, produz as condições materiais de sua vida. A autocriação daí resul-
tante envolve sempre a emergência do novo, de modo que a Lukács parece
razoável assegurar que o típico no ser social é a reprodução ampliada,
posta em movimento pelo agir teleológico. Tal reprodução se manifesta na
complexificação e diferenciação da sociedade, na emergência de novos
complexos, processo que tem por pressuposto o aumento da produtividade
do trabalho social, já enfatizado anteriormente.
Na verdade, contra as concepções que negam a possibilidade de
se apreender as legalidades do mundo social, Lukács sustenta que, no que
diz respeito à produtividade do trabalho, é possível inferir que o seu aumento
constitui uma legalidade tendencial própria do ser social, cujo desenvol-
vimento – recuo progressivo das barreiras naturais – tem por pressuposto
justamente a crescente produtividade do trabalho.
Essa dinâmica peculiar ao ser social, essa capacidade do trabalho
social de produzir suas condições de maneira ampliada e, ao mesmo tempo,
reduzir continuamente o tempo de trabalho necessário, se manifesta no
capital sob a forma de mais-valor, capacidade estranhada dos sujeitos e
que, em consequência, embora funcione como mecanismo que universaliza
as relações sociais, plasma a primeira sociedade propriamente dita, também
o faz de forma estranhada.
Viu-se com Lukács que o trabalho é decisivo na gênese do ser so-
cial e pressuposto insuprimível de seu desenvolvimento. Nessa dinâmica,
naturalmente, o trabalho é fundante, uma vez que ela é condicionada pelo
aumento da produtividade. Todavia, em razão de sua própria lógica, o tra-
balho, por definição, progressivamente deixa de ser central na constelação
de complexos que compõem o ser social. A centralidade do trabalho sob o
capital, por conseguinte, constitui a principal contradição do sistema, além
..............................................................................
12 Para um tratamento detalhado dessas questões, ver Duayer (2015).
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34 Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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de manifestar o caráter estranhado dessa forma da produção social. Contra-
dição e estranhamento que Marx (2011, p. 705) expõe, como se segue:
O fato de que, com o desenvolvimento das forças produtivas do traba-
lho, as condições objetivas do trabalho, o trabalho objetivado, têm de
crescer em relação ao trabalho vivo – trata-se, na verdade, de uma pro-
posição tautológica, pois o que significa força produtiva do trabalho
crescente senão que se requer menos trabalho imediato para criar
um produto maior e que, portanto, a riqueza social se expressa cada
vez mais nas condições de trabalho criadas pelo próprio trabalho –, tal
fato, do ponto de vista do capital, não se apresenta de tal maneira que
um dos momentos da atividade social – o trabalho objetivo – devém
corpo cada vez mais poderoso do outro momento, do trabalho subje-
tivo, vivo, mas de tal maneira que – e isso é importante para o traba-
lho assalariado – as condições objetivas do trabalho assumem uma
autonomia cada vez mais colossal... em relação ao trabalho vivo.
Postone certamente é o autor que mais contribuiu para esclarecer
o fato de que a centralidade do trabalho é exclusiva do capitalismo. Sem
dúvida, deve-se a ele a ênfase na função mediadora do trabalho e, em con-
sequência, como categoria constituinte das relações sociais da sociedade
moderna: “[...] a teoria de Marx propõe que o traço distintivo que caracteriza
o capitalismo é precisamente o fato de que suas relações sociais básicas
serem constituídas pelo trabalho.” (POSTONE, 2014, p. 20). Tal interpre-
tação da teoria de Marx, sublinha ele, distingue-se radicalmente das inter-
pretações correntes na tradição marxista, que, por estarem baseadas na
noção de que o trabalho é central em todas as sociedades, imaginam que a
crítica de Marx é crítica do ponto de vista do trabalho. Muito pelo contrário,
insiste ele, a crítica de Marx, pela razão apontada, é crítica do trabalho no
capitalismo, de sua centralidade no capitalismo, portanto.
Se o trabalho é categoria mediadora que constitui a sociedade,
as relações sociais de dominação no capitalismo, argumenta Postone, se
dão através do trabalho. O trabalho proletário é, por conseguinte, a con-
traparte necessária do capital, e o metabolismo do capital impõe um cons-
tante aumento da produtividade do trabalho que, em lugar de livrar os se-
res humanos da coerção do trabalho, reconstitui continuamente a neces-
sidade do trabalho vivo de reavivar o trabalho morto, objetivado, contido
nos meios de produção como capital.
Os ganhos de produtividade do trabalho que, num primeiro mo-
mento, reduzem o valor contido em cada unidade de mercadoria produzida,
num segundo momento, com a transformação dessa nova forma de produzir
em padrão social, reduzem o tempo de trabalho socialmente necessário
para a produção das mercadorias. Esses ganhos de produtividade, só podem
ser contabilizados através do tempo lógico. Tal movimento no mundo do
capital instaura, como assinala Postone, uma dominação do tempo sobre
os seres humanos.
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Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
} PARA A CRÍTICA DA CENTRALIDADE DO TRABALHO - DUAYER, M. ; ARAÚJO, P. H. F. }
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Recebido em 12 de junho de 2015
Aprovado para publicação em 20 de junho de 2015.
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36 Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Ernest Mandel:
imprescindível
Ernest Mandel: essential
Elaine Rossetti Behring*
Resumo – O presente artigo realiza uma homenagem ao intelectual
marxista belga Ernest Mandel, com destaque para sua análise da on-
da longa com tonalidade depressiva do capitalismo a partir dos anos
1970. Procura demonstrar a atualidade de seu pensamento para des-
vendar os processos sociais em curso na economia política contem-
porânea em crise.
Palavras-chave: Ernest Mandel; tradição marxista; capitalismo tardio;
economia política.
Abstract – This article presents a tribute to the Belgian Marxist intellec-
tual Ernest Mandel, especially his analysis of long wave with depressi-
ve tone from the 1970s onwards. It seeks to show the relevance of his
thought to unravel the social processes taking place in contemporary
political economy in crisis.
Keywords: Ernest Mandel; Marxist tradition; late capitalism; political
economy.
Introdução
Em 2015 completam-se vinte anos da ausência física de uma das
grandes referências da tradição marxista do século XX, o belga Ernest Mandel
(1923-1995). O presente artigo presta uma homenagem a este crítico da
economia política, militante e intelectual tão importante, ao mesmo tempo
em que ressalta alguns aspectos da sua obra, tendo em vista, especialmente,
as pessoas que não tiveram um contato maior com seu trabalho.
Mandel, com suas descobertas originais e provocações, é impres-
cindível para enfrentar os desafios deste início de século XXI. Estes são
tempos em que o capitalismo mostra com contundência o esgotamento de
suas potencialidades civilizatórias, preconizado por Mandel (1982) em seu
..............................................................................
* Doutora em Serviço Social. Professora Associada da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Orçamento Público e Seguridade Social (GOPSS).
Correspondência: Rua São Francisco Xavier, 524/sl. 8033 – bloco E, 8º andar. CEP: 20550-900. E-mail: <elan.rosbeh
@uol.com.br>
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Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
} ERNEST MANDEL: IMPRESCINDÍVEL - BEHRING, E. R. }
Magnum opus, no Brasil publicado com o título O capitalismo tardio1, e se
mantém destruindo como nunca, num ambiente de profunda crise es-
trutural.
Os últimos quarenta anos confirmaram as análises originais e an-
tecipadoras de Mandel, configurando-se como um período de tônica regres-
siva, de grande ofensiva sobre os trabalhadores na busca por superlucros e
de ataques conservadores e reacionários à toda crítica do mundo do capital,
crítica à qual Mandel se dedicou durante toda a vida. A crise material e de
legitimidade dessa forma de produção e reprodução da vida social, para-
doxalmente, amplifica o potencial teórico e metodológico do arsenal crítico
do marxismo revolucionário, apesar de opiniões em contrário.
A expansão da “universidade operacional” traz consigo a recusa
da perspectiva heurística da totalidade, o trabalho acadêmico estandar-
dizado, empobrecido e marcado pelo “produtivismo”, as tentativas mais
ou menos bem-sucedidas de isolamento da crítica radical do mundo do
capital, a influência do pós-modernismo e a hipervalorização das micro-
narrativas (CHAUÍ, 1998). Desta forma, esta expansão também requisita o
resgate das ideias de intelectuais, da estatura de Ernest Mandel, como mo-
mento necessário para a difusão do pensamento crítico e para o reco-
nhecimento das pessoas imprescindíveis. Aqui, aludimos ao muito conhe-
cido poema de Brecht, sobre os homens que lutam toda a vida2. Mas, em se
tratando de Mandel, sua persistência militante e seu legado de um pen-
samento denso, crítico e de combate à exploração dos trabalhadores e à de-
sigualdade social, alimentaram a luta da sua geração e a das gerações sub-
sequentes de socialistas, numa obra que ultrapassa a si mesma e a seu tempo.
Mandel pode ser considerado como um clássico do século XX.
Portanto, o objetivo deste artigo é o convite ao conhecimento de sua contri-
buição e ao diálogo crítico com seu legado, sem o qual muitos aspectos do
mundo em que vivemos não teriam explicação3.
Meu contato pessoal com a obra de Mandel não se deu pela via
do marxismo acadêmico, na qual, aliás, nosso autor não se destacou. Deu-
se pelo caminho da luta social, nos tempos dos primeiros passos militantes
na organização de esquerda, a Democracia Socialista (ORM-DS)4, no início
..............................................................................
1 No original em alemão, de 1972, Der Spätkapitalismus; em francês, Le troisième âge du capitalisme; já no inglês, que
data de 1975, houve uma revisão e o livro intitulou-se Late capitalism (ACHCAR, 1999: 15). Penso que a melhor
tradução para o português seria O capitalismo na maturidade ou O capitalismo maduro, já que a tradução brasileira
pode levar à confusão com livro de João Manuel Cardoso de Mello, de mesmo título.
2 “Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos
e são muito bons, mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis.”(BRECHT, 2012).
3 Fundada em 1979, a partir da fusão de organizações de esquerda que atuaram na clandestinidade durante a
ditadura militar brasileira, participou da fundação e organização do Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil e esteve
vinculada até o início dos anos 2000 ao SU, quando os desdobramentos transformistas da trajetória do PT atingiram
profundamente a organização. Afastou-se da corrente internacional ligada a Mandel, e sofreu migrações de militantes
e intelectuais, que foram para outros partidos e organizações de esquerda. Informações atualizadas sobre a DS
podem ser encontradas em: <http://www.democraciasocialista.org.br/democraciasocialista/>.
4 Ver os seguintes documentos da antiga ORM-DS: A Construção do PT como Partido Revolucionário, Cadernos De-
mocracia Socialista (1988) e a brochura O Que É a Democracia Socialista: as posições políticas da Organização Re-
volucionária Marxista Democracia Socialista (s/d).
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} ERNEST MANDEL: IMPRESCINDÍVEL - BEHRING, E. R. }
dos anos 1980. Livros como O Lugar do marxismo na história e Introdução
ao marxismo eram de leitura obrigatória nas células daquela organização,
que reivindicava o legado de Marx, Lenin, Trotsky e Mandel. A ORM-DS
vinculava-se ao Secretariado Unificado da IV Internacional, organização
que se colocava na perspectiva de construir uma nova internacional comu-
nista, e que tinha entre suas principais lideranças nosso autor em foco.
O ambiente da pós-graduação da Escola de Serviço Social da
UFRJ, a partir de 1988, veio a adensar e sofisticar este contato, no diálogo
com professores como Carlos Nelson Coutinho, José Paulo Netto e Marilda
Iamamoto. Por meio deles, tive o privilégio de poder acessar ao melhor do
pensamento socialista no mundo e no Brasil: a crítica da vulgata marxista
dos manuais e do stalinismo; a perspectiva metodológica em Marx; a radi-
calidade da crítica da economia política do capital, com seu metabolismo
incessante, e que hoje se expressa nas formas mais bárbaras e fetichistas,
reforçadas pela assertiva de Rosa Luxemburgo (ano), Socialismo ou barbárie,
autora que influencia decisivamente a obra mandeliana. Além disto, tam-
bém a necessidade da superação revolucionária do capitalismo, não como
algo inatingível, mas como um trabalho incessante, complexo e cotidiano,
que faz história e potencializa os vetores profundamente humanistas da
sua “hemorragia de sentidos”, como nos diz Daniel Bensaid (1999). É nesse
campo que se insere Ernest Mandel.
Pelos vínculos políticos iniciais, tive, ainda como estudante, a
oportunidade de encontrar Mandel nas suas vindas ao Brasil, por pelo menos
duas vezes. Estava diante de um homem grande, de semblante sério, mas
com um olhar alegre e muito vivo, e que tinha uma ideia fixa naqueles
meados dos anos 1980: a experiência do Partido dos Trabalhadores (PT)
no Brasil. Nós, os brasileiros, queríamos formação teórico-política, conhecer
suas análises da conjuntura internacional, dos movimentos do capital, da
situação da esquerda. Já Mandel queria avidamente informação sobre o
Brasil. Perguntava, perguntava e perguntava sobre a experiência do PT,
suas possibilidades revolucionárias, seus limites.
Mandel, um militante incansável, de origem judaica, que lutou
na resistência ao nazismo e fugiu duas vezes dos campos do holocausto do
Terceiro Reich. Tão jovem – com 18 anos, era já incorporado à direção do
movimento socialista mundial. Viveu os embates dos tempos de profundo
isolamento da esquerda revolucionária, engendrado pelos anos de ouro
do capitalismo, em especial na Europa, e pelo advento do stalinismo, com
um movimento operário e popular polarizado entre a social-democracia e
a burocracia dos PCs durante um longo tempo. Aquele que viveu e analisou
os movimentos de 1968 como expressão de tendências profundas do capi-
talismo contemporâneo e como um momento de renovação e respiração
da esquerda, apesar de seus limites; ele estava ali conosco, empolgado
com a novidade brasileira. E nós também estávamos embalados pela
perspectiva de construir um projeto socialista afastado da social-democracia
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Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
} ERNEST MANDEL: IMPRESCINDÍVEL - BEHRING, E. R. }
e do socialismo burocrático, vendo o PT como a via de construção do par-
tido revolucionário no Brasil, apesar de cientes dos seus dilemas internos5.
Introduzo, aqui, uma lembrança muito pessoal da “tietagem” apai-
xonada de uma jovem estudante diante de um ícone, orgulhosa em poder
levar Mandel para o lugar onde se hospedaria no Rio de Janeiro. Mas o que
se quer colocar em evidência é uma forte característica de Mandel: a sensi-
bilidade para o movimento de massas, a atenção para a luta de classes e
para a perspectiva da revolução, na qual se mostrassem sinais de novas
possibilidades histórico-sociais. Sempre com um otimismo visceral, clara-
mente de inspiração trotskista, sobre a vida futura e, naquele momento, so-
bre o Brasil.
Sabemos hoje que os dilemas internos se agudizaram com a con-
solidação do PT. Os desdobramentos mais recentes desta experiência brasi-
leira mostram tanto a capacidade de o capital impor seu avassalador meta-
bolismo, levando de roldão muitas das melhores intenções, quanto as es-
colhas políticas da maioria dos sujeitos que hegemonizou o partido. Assim,
abrindo mão de um projeto de transição e de ruptura com o capital, obri-
garam-nos a uma espécie de reconstrução permanente dos nossos instrumen-
tos de luta. Contudo, foi com indivíduos como Ernest Mandel que
aprendemos sobre a tenacidade, sobre a resistência, sobre a esperança e sobre
o humanismo revolucionário profundo que dá sentido à vida (LÖWY, 1999).
Em 1989, afastei-me da DS por razões pessoais; em 1994, comecei
também a me afastar do PT, desta vez, por razões políticas. Dentre essas ra-
zões, destaca-se o giro na política de alianças eleitorais, naquele momento
de novas eleições presidenciais após a grande derrota de 1989, e o advento
do neoliberalismo. Mas a formação teórica e política6 que adquiri nessa
experiência marcou-me para toda a vida.
Além da oportunidade de conhecer Ernest Mandel – bem como
outros intelectuais da mesma tradição teórico-política, como Michael Löwy,
Daniel Bensaid, Eric Toussaint, Francisco Louçã, Livio Maitan, Michel Hus-
son, Pedro Montes, e, ainda, alguns brasileiros, a exemplo de João Machado
e João Antônio de Paula “, seus textos de formação me acompanharam nos
mergulhos intelectuais e políticos subsequentes. Assim, encontrei e continuo
encontrando, no trabalho e na referência mandeliana, pontos de apoio
fundamentais para a crítica ao mundo e ao Brasil.
..............................................................................
5 Quando as organizações de esquerda se preocupavam efetivamente com isso, o que me parece frágil na esquerda
brasileira hoje. Há exceções, a exemplo das escolas de formação do MST, com destaque para a Escola Nacional Flo-
restan Fernandes.
6 Nossos trabalhos sobre a política social, como uma mediação importante nessa relação entre economia e política,
entre valor e luta de classes, são fortemente inspirados nesse eixo. Esse ponto de apoio na obra mandeliana foi deci-
sivo para chegar a uma visão de política social que foge ao estruturalismo, economicismo, politicismo e redistributivismo.
Estas, dentre outras leituras unilaterais ou monocausais, marcam muitas abordagens sobre a questão. Ver: Behring
(1998; 2003; 2008a; 2008b; 2010; 2012) e Behring e Boschetti (2006)
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1. Alguns destaques do legado de Ernest Mandel
O primeiro destaque a fazer sobre a obra mandeliana é sua abor-
dagem e incorporação do método em Marx. Pode-se afirmar que o método
da economia política orienta o trabalho teórico-político de Mandel numa
perspectiva ortodoxa. Segundo Lukács (1989, p. 15):
O marxismo ortodoxo não significa, pois, uma adesão sem crítica
aos resultados da pesquisa de Marx, não significa uma ‘fé’ numa ou
noutra tese, nem a exegese de um livro ‘sagrado’. A ortodoxia em
matéria de marxismo refere-se, pelo contrário, e exclusivamente ao
método. (grifo no original).
No conjunto da obra mandeliana essa perspectiva do método
comparece de forma clara: a reconstrução do concreto como a síntese de
múltiplas determinações. Por exemplo, quando ele se propõe à reconstrução,
como concreto pensado, da lógica contemporânea do capital, da totalidade
concreta. Identificando, com isso, as formas de valorização do capital do
pós-guerra e suas tendências de crise a partir do final dos anos 1960 e in-
corporando de maneira riquíssima dimensões político-culturais do capita-
lismo maduro.
Como um elemento interno ao método, está presente na obra
mandeliana a contradição, a dimensão faustiana da negação, ou seja, a
luta de classes tencionando o processo de valorização do capital. Nesse
sentido, é interessante a observação de Michel Husson (1999) sobre as des-
cobertas de Mandel, que empreendem uma articulação entre teoria e história
encontrada apenas nos melhores textos da tradição marxista. Para ele, com
a formulação acerca das ondas longas ou ciclos longos do capital, Mandel
(1982) não descortina uma espécie de “respiração natural” do capitalismo,
como se houvesse um calendário de ascensão e crise do capital. O que
determina os pontos de viragem de expansão e estagnação é a condição
geral da luta de classes, influenciando a operação da lei do valor, como
relação determinante da vida social no capitalismo. Retomaremos esse argu-
mento adiante; contudo, esse eixo é decisivo para evitar leituras mecanicistas
ou economicistas do desenvolvimento do capitalismo e das possibilidades
históricas de sua superação, que podem levar a posições catastrofistas e vo-
luntaristas. Isto porque, em Mandel, temos uma fértil articulação entre eco-
nomia e política: a ideia da totalidade como a síntese de muitas deter-
minações é levada às últimas consequências7.
Fundada em dois estudos sistemáticos centrais – Tratado de eco-
nomia marxista (de 1975, mas com primeira edição francesa lançada em
..............................................................................
7 Este é um item de minha Tese de Doutorado, intitulada Brasil em Contra-reforma, defendida em 2002, e que não foi
publicado no livro lançado em 2003, Brasil em Contra-Reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. Trata-
se de um texto inédito, revisado, tendo em vista a publicação na forma de artigo.
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Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
} ERNEST MANDEL: IMPRESCINDÍVEL - BEHRING, E. R. }
1969) e o estudo sobre A Formação do Pensamento Econômico de Karl
Marx (1968) –, essa compreensão do método do materialismo histórico e
dialético leva Mandel a caminhos consistentes para a análise do capitalismo
contemporâneo. Estes caminhos são rigorosamente pautados na lei do valor:
a busca do capital pelos superlucros, a partir do diferencial de produtividade
do trabalho, implicando o valor como movimento determinante e a sub-
sunção do trabalho como seu elemento constitutivo. Portanto, o trabalho
como estruturador da vida social. Ainda, o aumento permanente da compo-
sição orgânica do capital, ou seja, a revolução tecnológica como estratégia
de extração de superlucros e de reação burguesa à queda tendencial da ta-
xa de lucros e de crise; a fuga do capital das situações de equilíbrio e de ni-
velamento da taxa de lucros, donde decorre a impossibilidade da “produção
sem perturbações”. Seu impacto sobre a hierarquia na economia-mundo,
a partir da ideia do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo,
engendra relações assimétricas de subordinação, imperialismo e belicismo.
Acrescenta-se a esses tópicos acerca da lei do valor a teoria da
revolução permanente, que Mandel incorpora das conhecidas formulações
de Leon Trotsky, articulada ao desenvolvimento desigual e combinado do
mundo do capital. Este permite ver com mais clareza os limites da burguesia
para a realização ampliada de seu projeto de modernidade. Auxilia-nos,
na compreensão das vias não clássicas de constituição das formações sociais
capitalistas e das estratégias socialistas nesses contextos.
São esses os pontos de sustentação que permitiram a Mandel uma
análise arguta da dinâmica do capitalismo do pós-guerra, capitalismo ma-
duro, que desencadeia um conjunto de estratégias anticíclicas – o sócio-
metabolismo do capital, segundo Mészaros (2002) – para sustentar sua ma-
nutenção e hegemonia, engendrando uma onda longa expansiva. Esta onda
expansiva do pós-guerra viabilizou-se, dentre outros elementos, por sobre
uma acumulação anterior com base na ascensão do fascismo e na guerra,
implicando uma forte derrota para o movimento operário. Posteriormente,
na capitulação de segmentos – em especial do setor monopolista – do movi-
mento operário frente ao pacto fordista keynesiano, bem como no redimen-
sionamento do papel do Estado após a grande crise de 1929/1932 e da II
Grande Guerra.
Contudo, essa expansão esgota-se em sua própria dinâmica interna
e na das condições gerais da luta de classes, a partir do final dos anos 1960.
Nesse sentido é que os acontecimentos de 1968 têm relação visceral com
esse esgotamento e suas consequências sobre os trabalhadores: as tendências
de desemprego e de falta de perspectivas para a juventude, para além da
revolução dos costumes, tão unilateralmente enfatizada no filme de Bernardo
Bertolucci, Os Sonhadores (2002).
Essa interpretação nos permite reconhecer o Estado de Bem-Estar
Social como uma situação excepcional, inserida num determinado contexto
geopolítico, mas que é colocado em xeque na viragem para uma onda
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longa de estagnação, que ganha contornos mais nítidos a partir da crise do
petróleo em 1973/1974.
Para Mandel (1982), no capitalismo maduro o desenvolvimento
das forças produtivas entra em forte contradição com as relações de pro-
dução. A expressão máxima disso é a diminuição do tempo de rotação do
capital fixo com a revolução tecnológica permanente, donde decorre a
necessidade da aceleração de todo o ciclo de rotação do capital (produção,
circulação e consumo), aumentando os riscos e incertezas dos investimentos.
Neste momento, as teses de Mandel têm afinidade com o trabalho de David
Harvey (1993) quando este tematiza a compressão espaço-tempo como
uma marca da acumulação flexível. Discute, assim, o capitalismo nos des-
dobramentos da crise pós-1970, no contexto da onda longa com tonalidade
depressiva e da “luta heroica” do capital para conter suas tendências de
crise e perenizar-se.
Outro ponto de apoio na obra mandeliana é a ideia de que esse
contexto do capitalismo maduro requisita um Estado “ com direção/hege-
monia de classe “ que assegure as condições gerais de produção. Isto tem
fortes implicações para a destinação do fundo público, como um pressuposto
geral do capital.
Mandel (1982) caracteriza o Estado como um capitalista total
ideal. Para ele, as funções coercitivas foram suficientemente estudadas pelo
marxismo clássico e as de consenso/legitimação por Antônio Gramsci. Po-
rém, ele quer enfatizar essa refuncionalização do Estado para a garantia
das condições gerais de produção e reprodução do capital no pós-guerra.
Esta volta a acontecer hoje no contexto da reação burguesa à crise de 2008/
2009 e da financeirização, na qual o fundo público novamente se desloca
para as novas requisições do neoliberalismo, visando configurar novos
mecanismos de controle da crise e de suporte à valorização do capital em
tempos de financeirização (Chesnais, 1996 e Behring, 2012).
Por fim, outra tese, em Mandel (1990), que merece ser apontada
é a sua análise de que o capital não teria condições de promover uma reto-
mada expansiva, ampla e profunda das taxas de crescimento, considerando
as imensas contradições em curso na sua fase madura, expressas no de-
semprego e nas dificuldades de escoamento da produção; no endividamento
e na excessiva liquidez de capital, base da financeirização; nos limites da
capacidade do Estado de desencadear estratégias anticíclicas sem esbarrar
nas taxas de lucros do capital; no acirramento das contradições e da luta
de classes daí decorrente, bem como da barbarização da vida social.
Esta é uma tese assumida pela maior parte das análises marxistas
mais densas de hoje. Vale dizer que ela não leva ao raciocínio da derrocada
iminente do capital, do colapso, já que esses dependem das forças subjetivas
que se encontraram fragilizadas após uma sequência de derrotas históricas.
Estas forças começaram a dar sinais de retomada a partir do encontro de
Chiapas no ano de 1996, organizado pelos zapatistas, e que se configurou
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Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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como um embrião da luta contra o neoliberalismo e pela humanidade.
Este foi seguido dos encontros do Fórum Social Mundial, no Brasil e depois
em outros países. E mais recentemente tivemos a denúncia da desigualdade
e da finança em Seattle e Gênova, o movimento dos Indignados, o Occupy,
as reações à austeridade no sul da Europa e os movimentos sociais na A-
mérica do Sul (por exemplo, Brasil e Chile, a partir de 2013), o que ainda
não se consolidou ainda como um movimento anticapitalista vigoroso. A
eleição de governos de centro-esquerda na América Latina, com seus di-
versos matizes pode se situar no contexto de reação ao neoliberalismo,
ainda que muitas expectativas tenham sido frustradas, especialmente no
Brasil.
A incapacidade de o capital retomar o crescimento e a sua extra-
ção de superlucros por meio da barbárie apontam um quadro no qual, do
ponto de vista dos socialistas, só há uma saída: fazer a grande política e
lutar. Ou seja, fazer a luta defensiva em torno das condições de vida e dos
direitos, o que por vezes é minimizado por segmentos da esquerda – Mandel
enfatizou isso na sua segunda vinda ao Brasil, no início dos anos 1990.
Fazer isto disputando parcela do valor socialmente criado na forma dos
direitos viabilizados por políticas públicas, o que implica na disputa feroz
do fundo público. Além disso, fazer a luta radical, da denúncia dessa forma
de organização da vida, dos seus valores e práticas anti-humanistas, vio-
lentas, intolerantes, destrutivas da sociabilidade, da ecologia, da construção
do indivíduo (o que é diferente de individualismo) e da democracia. Esta é
entendida, aqui, numa perspectiva que ultrapassa o Estado democrático
burguês, representativo, embora este esteja também vivendo um profundo
mal-estar.
2. Sobre os fundamentos da onda longa com tonalidade
depressiva em que nos encontramos8
Neste momento, proponho revisitar com maior profundidade a
contribuição de Mandel para a compreensão do esgotamento da onda longa
expansiva, o que considero seu mais importante legado para a teoria social.
As pressões para uma refuncionalização do Estado capitalista nos
anos 1980 e 1990 estão articuladas a uma reação burguesa à crise do capital,
que se iniciou nos anos 1970 e foi vislumbrada por Mandel (1982). Esta
reação aprofunda ou mantém algumas características enunciadas no con-
ceito de capitalismo tardio (maduro), em particular na chamada onda longa
de estagnação – que se desenvolve desde o final dos anos 1960 até os dias
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8 Uma breve síntese do debate sobre as ondas longas, citando outros autores com esse mesmo campo de preocupa-
ções, para além de Mandel e Kondratieff, pode ser encontrada no capítulo A crise da onda longa, em Kucinski e Bran-
ford (1987).
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de hoje, segundo as melhores análises críticas dos processos contemporâneos
a que tive acesso. No entanto, acrescenta também elementos novos.
Há uma constatação generalizada no campo da tradição marxista
contemporânea de que o capital desencadeou uma reação implacável à
queda das taxas de lucro ao longo dos anos 1980 e 1990. Assim, retomando
níveis de rentabilidade por parte das empresas transnacionais e do capital
financeiro, em especial, mas mantendo taxas de crescimento medíocres
em todos os cantos do planeta. Isto faz com que seja permitido afirmar que
não houve retomada de uma nova onda expansiva, apesar das autocomemo-
rações neoliberais. A clássica saída belicista da crise, configurada após os
atentados a Nova Iorque de 11 de setembro de 2001 e as guerras do Iraque
e do Afeganistão, dentre outras guerras localizadas, corrobora a tese da
longa estagnação.
Evidentemente, se a formulação mandeliana é imprescindível,
faz-se necessário agregar outras reflexões, no sentido de adensar o entendi-
mento sobre alguns processos que se tornaram mais claros e visíveis nos úl-
timos anos. O esforço teórico “ e político, sempre “ de Mandel (1982), em
Capitalismo tardio, foi o de apreender como as variáveis, que compõem a
lei do valor e que se comportam de forma parcialmente independente en-
tre si, manifestaram-se ao longo da história do capitalismo, em especial em
sua fase tardia ou madura, aberta após 1945. Esta última é uma tradução
mais adequada para o conceito que ele quer desenvolver. Por que maduro?
É uma referência ao desenvolvimento pleno das possibilidades do capital,
considerando-se esgotado seu papel civilizatório. Assim, a ideia de maduro
remete ao aprofundamento e à visibilidade de suas contradições fundamen-
tais, e que engendram as tendências de barbarização da vida social (ME-
NEGAT, 2001).
Mandel estava preocupado com os ciclos de expansão e estagnação
do capital de uma maneira geral9. Contudo, o centro de sua pesquisa é a
expansão nos Anos de Ouro pós-1945 e os sinais de seu esgotamento, em
fins dos anos 1960, anunciando um longo período de estagnação. Ele parte
do princípio dialético fundamental da crítica marxista da economia política
de que não se configuram tendências de equilíbrio no capitalismo, como
se enunciou no item anterior. A perseguição dos superlucros é sempre a
busca pelo diferencial de produtividade do trabalho e, como consequência,
a fuga a qualquer nivelamento da taxa de lucros. Assim, é inerente ao
mundo do capital seu desenvolvimento desigual e combinado, ou seja, um
vínculo estrutural entre desenvolvimento e subdesenvolvimento.
Mandel (1982) situa as várias formas de extração dos superlucros,
fundadas no comportamento dos elementos que compõem a lei do valor.
A variada combinação das possibilidades de extração de superlucros – cabe
dizer que, em Mandel, não há qualquer naturalização desses processos
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9 Para uma bela crítica do determinismo tecnológico, conferir Wood (2003).
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embebidos de subjetividade e historicidade – é a base para os movimentos
de aceleração e desaceleração sucessivos no capitalismo: as ondas longas.
Como enunciamos há algumas linhas atrás, Husson (1999), com
muita propriedade, diz que o raciocínio dos ciclos longos não é a descoberta
de uma espécie de “respiração” do capitalismo, movida por automatismos,
calendários ou processos naturais. Nesse sentido, faz uma citação de Mandel
que merece ser reproduzida aqui:
A emergência de uma nova onda longa expansiva não pode ser con-
siderada como o resultado endógeno (ou, por outras palavras, mais
ou menos espontâneo, mecânico, autônomo) da onda longa recessiva
precedente, qualquer que seja a sua duração ou gravidade. Não são
as leis de desenvolvimento do capitalismo, mas os efeitos da luta de
classes de todo um período histórico que decidem do ponto de vira-
gem. O que supomos aqui é a existência de uma dialéctica entre os
factores objectivos e subjectivos do desenvolvimento histórico, em
que os factores subjectivos são caracterizados por uma autonomia
relativa, ou seja: não são directamente e unilateralmente predeter-
minados por aquilo que aconteceu antes do ponto de vista das ten-
dências de fundo na acumulação de capital e as mutações tecnoló-
gicas, ou pelo impacto dessas evoluções sobre a própria organização
do trabalho. (MANDEL apud HUSSON, 1999, p. 43).
Nos ciclos de reprodução ampliada do capital pode-se perceber
um incremento tecnológico. Ele engendra, em primeiro lugar, pela via da
convergência tecnológica, uma possibilidade de nivelamento; na sequência,
de queda da taxa de lucros, em função da diminuição do diferencial de
produtividade do trabalho. Essa tendência vai encontrar contraposição nas
renovadas estratégias de extração de superlucros. Dentre elas, o aumento
permanente da composição orgânica do capital, por meio de inovações
tecnológicas. Vale reiterar que não se trata de um determinismo tecnológico,
mas do incremento tecnológico movido pela concorrência e cujos ritmos
também encontram limites no contexto da operação da lei do valor e da
luta de classes10.
Períodos de ascensão do capital foram desencadeados, em geral,
com algumas pré-condições: queda da composição orgânica média do ca-
pital por sua penetração em países com composição baixa; aumento da
taxa de mais-valia, decorrente de derrotas políticas dos trabalhadores e/ou
do aumento da intensidade do trabalho (mais-valia relativa); queda súbita
dos componentes do capital constante ou diminuição repentina do tempo
de rotação do capital circulante. A interação combinada destes elementos
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10 Estratégia que esteve presente mais uma vez na chamada Reaganomics, a política econômica de Ronald Reagan,
voltada para resgatar a hegemonia do dólar e sugar recursos do terceiro mundo para os EUA, por meio dos juros
flutuantes. Combinou-se ao gasto militar em programas como Guerra nas Estrelas e o treinamento de
contrarrevolucionários em diversas regiões do mundo. Conferir Kucinski e Branford (1987).
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pode gerar as condições para uma inovação técnica radical, a partir de um
aumento prévio da taxa de lucros.
Para Mandel (1982), a situação excepcional envolvendo a eco-
nomia de guerra e a ascensão do fascismo estiveram na base do processo
de acumulação que antecedeu e possibilitou os Anos de Ouro, caracte-
rizados por ele como terceira onda com tonalidade expansionista da história
do capitalismo. A esta acumulação prévia que propiciou as pré-condições
referidas, somam-se outras condições políticas especiais que viabilizaram
a experiência do Welfare State: o contexto da Guerra Fria e a necessidade
de fazer um contraponto civilizado ao ainda recente Estado socialista (com
todos os seus problemas e limites, hoje largamente reconhecidos), que fun-
dou o Plano Marshall, de reconstrução da Europa. Tratou-se da dificuldade
de conviver com uma crise da proporção das de 1929/1932, sem grandes
perdas de legitimidade e, portanto, o desencadeamento de estratégias anti-
cíclicas keynesianas; a possibilidade de uma integração maior dos trabalha-
dores no circuito do consumo, a partir de uma repartição dos ganhos de
produtividade advindos do fordismo; a capitulação de segmentos do mo-
vimento operário, motivada por essas condições objetivas – as possibilidades
de acesso ao consumo e as conquistas no campo da seguridade social.
Estas davam a impressão de que o capitalismo, a partir daí, ao menos nos
países de capitalismo central, havia encontrado a fórmula mágica, tão ao
gosto da socialdemocracia, para combinar acumulação e equidade. Tudo
isto, ao lado de uma desconfiança política em relação ao projeto em curso
a leste da Europa.
Detendo-se neste período, observa-se que uma de suas caracte-
rísticas principais foi a busca contínua de rendas tecnológicas derivadas da
monopolização do progresso técnico, direcionada à diminuição dos custos
salariais diretos, e cuja expressão maior é a automação. Chama atenção
que Mandel (1982 e 1990) já identificava, então, alguns elementos em de-
senvolvimento e que aparecem hoje de forma mais clara e intensa. Estes
são essenciais para desvendar os anos 1980 e 1990 do século XX, no que
se refere à extração da mais-valia e ao mundo do trabalho: o forte desloca-
mento do trabalho vivo pelo trabalho morto; a perda ainda maior da impor-
tância do trabalho individual, a partir de um amplo processo de integração
da capacidade social de trabalho; a mudança da proporção de funções de-
sempenhadas pela força de trabalho no processo de valorização, de criar e
preservar valor; as mudanças nas proporções entre criação de mais-valia
na própria empresa e aquela gerada em outras empresas; o aumento no in-
vestimento em equipamentos; a diminuição do período de rotação do ca-
pital; a aceleração da inovação tecnológica com fortes investimentos em
pesquisa; e, por fim, uma vida útil mais curta do capital fixo e a consequente
tendência ao planejamento (controle dos riscos).
Para Mandel (1982, p. 138-139), a automação é a “quintessência
objetivada das antinomias inerentes ao modo de produção capitalista”, já
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que intensifica no conjunto suas contradições. São elas: entre a socialização
crescente do trabalho agregada à redução do emprego e a apropriação pri-
vada; entre a produção de valores de uso e a realização de valores de tro-
ca; entre o processo de trabalho e o de valorização.
Nesse sentido é que se coloca a questão da maturidade do mundo
do capital, com um forte desenvolvimento das forças produtivas, em contra-
dição cada vez mais intensa com as relações de produção. Nessas contradi-
ções residem os limites históricos para a onda longa de expansão e a entrada
em um período de estagnação, a partir do início dos anos 1970.
A potencialização das contradições fundamentais do capitalismo,
a partir do momento da expansão, expressa-se por alguns processos identi-
ficados por Mandel (1982) e que estarão na base do referido ciclo depres-
sivo. Apresento-os a seguir, de forma sintética e esquemática, tendo em
vista os limites de um artigo:
1- A busca de superlucros por meio da competição tecnológica
permanente gera uma redução do tempo de rotação do capital fixo. Com
isso, diminui o tempo de rotação do capital circulante; há uma intensificação
da produtividade do trabalho e uma compressão do tempo de reprodução
da força de trabalho, diga-se, do consumo. Ou seja, há um encurtamento
do tempo do conjunto do ciclo de rotação do capital que reforça as contradi-
ções que estão na origem das tendências de superprodução e superacu-
mulação;
2- Aumentam os riscos e incertezas dos investimentos que passam
a exigir montantes enormes de capital. No período de expansão, o Estado
comparece como um sustentáculo de políticas de contraposição a esta ten-
dência, assegurando condições de rentabilidade, especialmente a partir
dos processos de planificação indicativa e programação social, socializando
os riscos de investimentos empresariais e controlando/negociando os custos
salariais (keynesianismo/fordismo);
3- O incremento tecnológico requer um acréscimo de mão de
obra intelectual altamente qualificada. Disto, decorre a ampliação do ensino
de terceiro grau na universidade tecnocrática pública e privada, a partir
dos anos 1950 e 1960. Esta instrumentalização direta da universidade esteve
no âmago dos protestos e reivindicações estudantis nas mobilizações de
1968, especialmente na França, e já expressavam a falta de perspectivas de
manutenção do pleno emprego e dificuldades de inserção para a juventude
(MANDEL, 1979);
4- Grande parte do incremento tecnológico teve e tem origem
militar. No contexto da chamada Guerra Fria, justificava-se o inchamento
dos orçamentos dos itens bélicos, como um verdadeiro subsídio estatal do
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lucro11, característica amplamente identificada pelo conjunto dos autores
no âmbito da tradição marxista (BEHRING, 1998);
5- Há uma predominância da empresa transnacional como forma
do grande capital, com as seguintes características no período de cresci-
mento, segundo Mandel (1982): compulsão à integração vertical; auto-
financiamento e supercapitalização; especialização crescente dos produtos;
tendência à exportação de capitais, em vez de mercadorias; especialização
e racionalização do controle do capital;
6- Ocorre uma tendência à industrialização generalizada univer-
sal, penetrando todos os setores da vida social. A industrialização na esfera
da reprodução é o ápice desse movimento, que representa o processo de
supercapitalização. As dificuldades crescentes de valorização do capital
alavancam a penetração deste em investimentos que não produzem neces-
sariamente mais-valia de forma direta, mas fazem aumentar a massa de
mais-valia em algumas circunstâncias. A supercapitalização, processo no
qual uma forte liquidez de capital se faz acompanhar da sua penetração e/
ou busca de nichos de valorização, é o fundamento dos processos atuais
de “invenção” de novas necessidades, industrialização das esferas do lazer,
da cultura e até da seguridade social, bem como dos processos de privati-
zação de setores produtivos antes assumidos pelo Estado. Essas são tendências
que se acirraram nas duas últimas décadas, mas que já eram identificadas
por Mandel (1982);
7- Expande-se o setor de serviços, o que tem relação com o encur-
tamento do tempo de rotação do capital e com a supercapitalização, mo-
vimento do capital decorrente desta condição última, em busca de nichos
de valorização do valor12;
8- Existe, nos Anos de Ouro, uma inflação permanente, incen-
tivada pela expansão do crédito e de medidas anticíclicas a partir dos poderes
públicos, com a função de ocultar a redução do valor das mercadorias,
dissimular a alta da taxa de mais-valia e resolver temporariamente as difi-
culdades de realização (expansão do crédito), facilitando a acumulação de
capital;
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11 Vale a pena chamar a atenção para a crítica de Iamamoto (2007) e Cislaghi (2015) sobre a questão dos serviços em
Mandel, a qual compartilhamos, mas cujos argumentos não iremos desenvolver aqui. Fazemos apenas o registro do
que em Mandel (1982) está correto, o crescimento do setor de serviços, embora sua caracterização da abrangência
e da relação como circuito do valor deste setor esteja incompleta e equivocada.
12 Mandel (1982) detém-se no estudo das funções estatais que tratam de assegurar as condições gerais de produção.
Sua função repressiva, designada por Gramsci de Estado gendarme, foi estudada por Marx e Lenin; e a ideia do Es-
tado Ampliado e as estratégias de consenso e legitimação, combinadas ao conceito de hegemonia, foi desenvolvida
pelo próprio Gramsci. Como o primeiro desses aspectos foi menos estudado pela tradição marxista, Mandel (1982)
pretende focar sua contribuição aí. Conferir também o estudo de Coutinho (1989).
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9- Esse conjunto de processos em operação no âmago do capi-
talismo tardio, em sua fase expansiva (1945-1970), teve como corolário a
ideologia da reificação da tecnologia e da tecnocracia, levando à natura-
lização dos processos sociais em nome da racionalidade e dos imperativos
técnicos.
O Estado é, segundo Mandel (1982), uma espécie de administrador
ou uma instância de síntese geral desses processos que se cruzam no âmbito
do capitalismo tardio, por meio de suas funções de garantir as condições
gerais de produção, enfrentar as ameaças externas e internas e integrar as
classes dominadas13. Tais funções gerais, nas esferas da acumulação e da
legitimação (O’CONNOR, 1977), são exercidas a partir de uma autonomia
relativa, já que as decisões neste nível atingem um conjunto de interesses
individuais ou coletivos, contrariando-os eventualmente. Portanto, há uma
hegemonia – uma diretriz de classe – na condução geral das decisões.
No contexto da onda longa expansiva no capitalismo tardio, há
uma ampliação das funções estatais na garantia das condições gerais de
produção, com as políticas econômicas de cariz keynesiano, a programação
social e a legislação social (pacto fordista). Tratou-se de articular uma inter-
venção anticíclica ou anticrise, incorporando inclusive certa redistribuição
horizontal (e até vertical, ainda que de forma muito limitada) de renda, na
forma de salários indiretos. Ou melhor, de políticas sociais, evidentemente,
também como um resultado político da luta de classes, da pressão dos tra-
balhadores e da existência do contraponto soviético.
A disputa pela direção das decisões, no âmbito de um Estado que
se apropria de uma parcela significativa do PIB para desenvolver suas tarefas,
tornou-se vital. Assim, configurou-se um ambiente político no qual os grupos
mais fortes de pressão – transnacionais e instituições financeiras – foram
progressivamente adquirindo maiores canais de acesso, vínculos com altos
funcionários, participações privilegiadas em grupos de trabalho instituídos
em nível governamental, sem falar das formas ilícitas e conluios. Ou seja,
identifica-se uma forte privatização do Estado, a depender das tradições
políticas e relações de classe nos vários países. Daí decorre a constatação
de que “o Estado capitalista tardio é ator decisivo, nodal, no cenário da
acumulação capitalista, fato do qual decorre sua instrumentalização direta
ou indireta” (BEHRING, 1998, p. 140) e, acrescentaria, cada vez mais sofis-
ticada, inclusive pelos meios midiáticos. Seria ainda maior, não houvesse
resistências, conflitos societários e contradições que, de alguma forma, tradu-
zem-se no interior do próprio Estado.
Tais tendências se desenvolveram num ambiente político demo-
crático, sustentado como uma contraposição ideológica ao chamado socia-
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13 Um certo mal-estar da democracia na contemporaneidade é identificado por autores não marxistas, mas que tra-
zem elementos críticos interessantes para pensar as possibilidades de uma vida verdadeiramente democrática, a e-
xemplo de Hirst (1992), Bobbio (1986) e Held (1991; 1994).
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