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Marxismo e realidade contemporânea

A presente edição nº 35 da Revista da Faculdade de Serviço Social da UERJ – Em Pauta: teoria social e realidade contemporânea – convida o leitor à reflexão e ao aprofundamento do tema Marxismo e Realidade Contemporânea.

Constituindo-se como uma unidade de diversidades, esta tradição intelectual agrega correntes diferenciadas e um vivo debate interno. Sua unidade é soldada pela crítica do capitalismo: seu modus operandi, seu desenvolvimento e transformações históricas, em que os conflitos dos interesses de classes adensam a política, se refratam no Estado enquanto centro do poder político e na organização dos trabalhadores. A fidelidade à História no seu vir a ser tem como contrapartida metodológica o privilégio da totalidade, das contradições e da negatividade na busca de libertação dos limites materiais impostos à praxis coletiva. Logo, o desafio de se pensar a relação Marxismo e realidade contemporânea é uma tarefa intrínseca dessa razão crítica fundada na práxis e em uma perspectiva de totalidade aberta ao devir histórico.

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Published by REVISTA EM PAUTA, 2015-09-15 19:08:52

REVISTA EM PAUTA Nº35

Marxismo e realidade contemporânea

A presente edição nº 35 da Revista da Faculdade de Serviço Social da UERJ – Em Pauta: teoria social e realidade contemporânea – convida o leitor à reflexão e ao aprofundamento do tema Marxismo e Realidade Contemporânea.

Constituindo-se como uma unidade de diversidades, esta tradição intelectual agrega correntes diferenciadas e um vivo debate interno. Sua unidade é soldada pela crítica do capitalismo: seu modus operandi, seu desenvolvimento e transformações históricas, em que os conflitos dos interesses de classes adensam a política, se refratam no Estado enquanto centro do poder político e na organização dos trabalhadores. A fidelidade à História no seu vir a ser tem como contrapartida metodológica o privilégio da totalidade, das contradições e da negatividade na busca de libertação dos limites materiais impostos à praxis coletiva. Logo, o desafio de se pensar a relação Marxismo e realidade contemporânea é uma tarefa intrínseca dessa razão crítica fundada na práxis e em uma perspectiva de totalidade aberta ao devir histórico.

Keywords: Serviço Social,Trabajo Social,Social Work,Teoria social,Realidade contemporânea,Marxismo,UERJ,Em Pauta

} CRISE DO CAPITAL, NEOCONSERVADORISMO E SERVIÇO SOCIAL NO BRASIL - SILVA, J. F. S. }

do capital, da insustentabilidade do capitalismo como ordem social necessá-
ria à sua produção e reprodução ampliada (MÉSZÁROS, 2002). Isso tem se
expressado significativamente nas tendências teórico-metodológicas em cur-
so no Serviço Social brasileiro e influenciado no trabalho profissional.

O que se discute aqui, então, é que tal direção social crítico-es-
tratégica vem sendo impactada por condições objetivas adversas, bem como
está articulada ao entendimento que os assistentes sociais estão formando
sobre os princípios e as categorias sociais contidos nesse “projeto”, que
dão vida e conteúdo teórico-prático, ético-político e técnico-instrumental
a ele: cidadania, emancipação, liberdade, democracia, justiça e equidade
social – (por exemplo). Em outras palavras, a apreensão equivocada acerca
dessa direção social e de seus princípios, em um momento histórico mais
favorável às imposições do capital ao trabalho, não apenas põe em cheque
a sua proposta como também a quebra medularmente ao acomodá-la e
docilizá-la aos limites da propriedade privada.

Afirmar esse Projeto Ético-Político Profissional hoje supõe, neces-
sariamente, radicalizar (no sentido marxiano - MARX, 2005) a explicação
desses princípios e categorias como direção organicamente vinculada a
projetos societários amplos, capazes de organizar formas de resistência e
fomentar alternativas de defesa do ponto de vista do trabalho útil, concreto,
genuinamente humano e potencializador da emancipação humana (MARX,
2009). Isso supõe, ao mesmo tempo, a adoção de alternativas que articulem
esses princípios à esfera particular do Serviço Social como profissão, com
seus limites objetivos como tais, o que não deve significar, em hipótese al-
guma, uma imposição de “tarefas” que não podem ser realizadas pelo Ser-
viço Social e por qualquer outra profissão, mas que, por outro lado, devem
iluminar a práxis profissional como referência geral. Ora, tais princípios,
também situados no campo da emancipação política, têm se mostrado
insustentáveis sob o mando da sociabilidade burguesa madura, regido pela
propriedade privada, reduzindo e eliminando brutalmente direitos.

Reafirmar na atualidade o Projeto Ético-político Profissional ela-
borado nos anos 1990 e a predominância hegemônica de perspectivas
progressistas no Serviço Social brasileiro exigem, hoje, três desafios import-
antes e indissociáveis entre si:

1. a crítica radical ao capital e à sociedade que permite a sua
perpetuação: o capitalismo;

2. a necessária explicação dos princípios que orientam essa dire-
ção social, bem como o debate com as expressões (neo)conservadoras que
têm revisitado o Serviço Social;

3. os desafios atuais que se apresentam à profissão e o vínculo
disto com a direção social empreendida.

Ousemos tecer alguns comentários nessa direção.

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2. Sociedade do capital, reprodução do pauperismo
e pensamento conservador

A sociedade burguesa, ou seja, aquela organização societária que
permite a acumulação contínua e ampliada do capital, o capitalismo, “apa-
rece como uma ‘imensa coleção de mercadorias’ e a mercadoria individual
como sua forma elementar.” (MARX, 1983, p. 45 grifo nosso). A maneira
como imediatamente a ordem do capital se apresenta é, como nos alertou
Marx (1983), apenas sua aparição inicial, já que o capital é relação social,
embora apareça como relação entre coisas, entre objetos. Todavia, como
componente da totalidade social, as formas imediato-fenomênicas não são
desnecessárias, descartáveis, mas absolutamente insuprimíveis como ponto
de partida que permite deslumbrar a sua trama interna, o não imediatamente
revelado (LUKÁCS, 1978; 2010; 2012).

Qualquer produto do trabalho humano se objetiva-exterioriza
(se aliena) do produtor, adquire vida própria ao materializar-se. O produto
na forma mercadoria, isto é, aquele produzido sob o mando do capital,
não apenas se aliena (se exterioriza), mas – e ao mesmo tempo – se estranha
em relação a seu produtor, não pertence aos trabalhadores que o pro-
duziram. Estes, ao entregarem a produção a quem comprou a sua força de
trabalho, por meio de uma relação contratual assalariada, os donos dos meios
de produção e do capital, têm suas energias criativas drenadas por um processo
que produz mercadorias. Portanto, submete o valor de uso ao valor de troca,
realiza o primeiro somente por meio do segundo, viabiliza carências e ne-
cessidades por meio da troca mediada pelo equivalente geral: o dinheiro (a
única mercadoria que não se compra ou se vende – MARX, 1983, p 53-70).

Mais do que isso, o salário (o valor que se paga pela compra da
força de trabalho com o próprio trabalho realizado pelo trabalhador) não
corresponde ao valor do trabalho de fato realizado, mas ao valor médio
para que a força de trabalho se reproduza como tal. Tal processo, portanto,
gera um excedente que é apropriado pelos donos dos meios de produção,
a mais-valia, seja pela simples extensão das horas trabalhadas (mais-valia
absoluta) ou pela permanente inserção de tecnologias que intensifica o tra-
balho (mais-valia relativa) sem, necessariamente, aumentar as horas traba-
lhadas. Ao fazer isso, o trabalhador-produtor se aliena-estranha por inteiro,
em suas relações sociais, entrega seu trabalho como força humanizadora,
criativa e útil, potencializadora de valores de uso, a um processo produtivo
geral comandado pelo capital como produção universal de mercadorias
(MARX, 1983, p. 154). Capital que “é trabalho morto, que apenas se rea-
nima, à maneira dos vampiros, chupando trabalho vivo e que vive tanto
mais trabalho vivo chupa.” (MARX, 1983, p. 189 grifo nosso).

Essas características sustentam a análise crítico-dialética que Marx
(1983) elabora acerca da economia política burguesa nas condições objetivas
da segunda metade do século XIX, necessariamente fundada em um co-

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nhecimento guiado pela razão ontológica. Ou seja, por uma perspectiva
que produz conhecimentos a partir da unidade-diversa entre duas dimensões
bem definidas, diferentes, mas articuladas entre si: a dimensão gnosiológica,
isto é, da razão intencionalmente orientada a conhecer o desconhecido
materialmente posto; e a dimensão ontológica, ou seja, aquela que diz res-
peito à dimensão material da vida humana-social, vinculada à produção e
reprodução de seres sociais reais (LUKÁCS, 2012). Esse processo de re-
construção de complexos sociais reais é tecido sob o ponto de vista da ca-
tegoria da totalidade em que a singularidade é seu componente inicial,
aparente, incapaz de revelar a trama que o compõe. Todavia, o singular é
rico em determinações (nunca imediatamente reveladas), parte da totalidade
social, expressão de processos universais que se objetivam nas realidades
com particularidades ricas em mediações, em conexões reais-intelectivas
que revelam sua trama interna mediata. Todo esse processo, composto pe-
la dialética da singularidade, da universalidade e da particularidade (inte-
ligíveis e inseparáveis entre si), compõe a totalidade como categoria neces-
sária para a explicação do real e de seu movimento material (próprio e real
– independentemente das mentes humanas pensantes). Destaca Lukács
(2012, p. 243; 297), ao apontar os limites do idealismo objetivo de Hegel:

[...] É necessária, porém, a máxima clareza quanto ao fato de que o
verdadeiro ponto de partida é a própria realidade, que sua decompo-
sição abstrata conduz a categorias de espelhamento, cuja construção
sintética representa um caminho para conhecer a realidade, mas
não o caminho da própria realidade, embora seja óbvio que as catego-
rias e conexões que surgem nesse processo possuem – enquanto repro-
duções ideais da realidade – caráter ontológico e não lógico. [...] a
totalidade não é, nesse caso, um fato formal do pensamento, mas
constitui a reprodução mental do realmente existente; as categorias não
são elementos de uma arquitetura hierárquica e sistemática, mas, ao
contrário, são na realidade ‘formas de ser, determinações de exis-
tência’, elementos estruturais de complexos relativamente totais, reais,
dinâmicos, cujas inter-relações dinâmicas dão lugar a complexos
cada vez mais abrangentes, em sentido tanto extensivo quanto intensivo.

É nesse sentido que, por exemplo, o sapato exposto na vitrine do
templo que cultua o deus mercadoria, o shopping, aparentemente encerra,
elimina, faz desaparecer todo processo que o explica como mercadoria.
Sendo assim, o processo produtivo da forma final sapato, composto por
trabalho humano-abstrato, comprado como qualquer mercadoria e pago
por meio de um salário é, por essência, expressão de trabalho realizado e
não pago (expropriado)2. Ao fazer isso, toma o imediato como mediato, a

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2 Vale destacar que o enunciado pós-moderno, que afirma o fim do trabalho na sociedade dita “pós-industrial”,
desconsidera que a crise em curso não é do trabalho concreto e útil, mas da sua forma abstrata, alienada-estranhada.
Isso, ademais, em hipótese alguma, significa o seu fim. Expressa, na verdade, as profundas e irreconciliáveis tensões
e crises estruturais do capital.

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mercadoria sapato por si mesma, em si mesma, ocultando o processo res-
ponsável pela sua criação: o trabalho humano expropriado e suas relações
(burguesas). Elimina, com isso, não apenas o processo que explica a
produção daquele sapato ou de outros sapatos, mas de todas as mercadorias
(guardadas suas particularidades), já que o processo de acumulação do
capital é social, funciona como produção geral e ampla de mercadorias,
interferindo nas relações sociais gerais, estabelecendo seu ritmo, suas regras,
seus princípios.

Estão postas, aqui, as bases por onde o fetiche da mercadoria se
desenvolve e se consolida em diferentes estágios do capitalismo. A sociedade
do capital, então, acumula riqueza ao mesmo tempo em que amplia o
pauperismo (absoluto ou relativo), que se traduz na chamada “questão
social”3. Esta é entendida como situações de extrema pobreza que podem
ser gerenciadas e administradas por meio de ações compensatórias e de
uma “correção moral” que apela para a compreensão das classes mais abas-
tadas e para a dedicação dos assalariados ao trabalho.

São conhecidas as reações conservadoras ao que se convencionou
denominar como modernidade, ou seja, o período mais claramente inau-
gurado a partir da Revolução Gloriosa Inglesa (1688) e, sobretudo, como
expressão mundial, a partir da Revolução Francesa (1789). A nova forma
de produzir e reproduzir a vida humana, cujos germes se encontram no
advento do Renascimento (século XV), o estabelecimento de novas relações
sociais, gerou reações diversas contra seus princípios mais centrais. Esta
reação conservadora, que durou pelo menos mais intensamente até o final
do século XVIII, concentrou-se na crítica aos principais traços da revolução
burguesa clássica: o racionalismo, a autonomia individual, o humanismo
burguês, a dessacralização do mundo e a toda perspectiva que substituía o
teocentrismo pelo antropocentrismo.

Edmund Burke (2012), em Reflexões sobre a revolução na França,
tratou de defender – no século XVIII – o antigo regime e sua base social: o
clero e a nobreza fundiária. Com uma forte perspectiva anticapitalista ro-
mântica, tece duras críticas à desagregação das instituições mais tradicionais,
tais como a família como base moral, a igreja como orientadora espiritual
e a autonomia dos indivíduos, todas elas formas gestadas para destruir a
unidade social e a autoridade exercida por meio da tradição (ESCORSIM,
2011). Também são conhecidas, entre a segunda metade do século XVIII e
as duas primeiras décadas do século XIX, as observações do Conde Joseph-
Marie de Maistre: posições claramente contrárias à modernidade e às con-
cepções mais democráticas presentes no pensamento de Rousseau, a partir
de um absoluto desprezo pelo povo.

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3 Expressão nada afeita à tradição marxiana e marxista, utilizada pelo pensamento conservador a partir da segunda
metade do século XIX.

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Todavia, um importante transformismo é operado por dentro do
pensamento conservador na primeira metade do século XIX. O que até en-
tão o identificava com uma orientação claramente restauradora do antigo
regime e negadora do modo burguês de ser e pensar assume, nesse momento
(especificamente entre 1830 e 1848), um caráter claramente antirrevolu-
cionário no sentido de afirmar a sociedade do capital. Há, aqui, nítida ten-
dência em associar o conservadorismo com a defesa da sociedade burguesa
como ordem social hegemônica, eliminando perigos potenciais à sua ma-
nutenção. Augusto Comte (2012; 1984) alertou, na primeira metade do sé-
culo XIX, para a necessidade de eliminar os “preconceitos revolucionários”,
assumir um “positivismo positivo”, livre de tensões negativas, como “religião
da humanidade”, voltando-se contra resquícios revolucionários do final
do século XVIII. Tocqueville (2014; 2011; 2003), no mesmo período, insis-
tirá em uma “democracia administrada” e Le Play (1941) presenciando
claramente a eclosão do movimento operário em 1848, salientará, com
um toque religioso, a importância da família (particularmente a gestão de
seu orçamento) como instância capaz de apoiar o indivíduo. Uma expressão
mais elaborada e sociológica dessa tradição se objetivará em Émile Durkheim
(2014; 2010) nas primeiras décadas do século XX, com uma clara e otimista
articulação entre conservadorismo, sociedade do capital (sobretudo na sua
fração industrial) e produção técnico-científica no campo da sociologia
positivista. Não por acaso, o conservadorismo é assumido pelo autor de As
regras do método sociológico, seja em relação a seu método de estudo,
seja em relação às revoluções (para ele tão “impossíveis quanto os milagres”).
Desenvolveu, então, inúmeros conceitos vinculados à solidariedade or-
gânica, à ação social, à integração, à disfunção social, às patologias sociais,
às funções manifesta e latente, às reformas morais/sociais e, como não
poderia ignorar, à divisão do trabalho, com um claro enfoque na
solidariedade e nas diferenças individuais4.

Foram postos, aqui, os germes de uma ciência puramente ins-
trumental e subserviente à sociedade do capital, que Lukács (apud NETTO,
1981b) caracterizaria, no século XX, como “decadência ideológica”. Ou
seja, a destruição da razão e da ciência ontológicas, o cultivo à razão mi-
serável, imediata, a clara unidade entre positivismo e conservadorismo, a
especialização/fragmentação como forma de substituir a categoria da tota-
lidade (LUKÁCS, 2010; 2012; 2013). Trata-se, basicamente, de uma inflexão
do pensamento conservador no sentido de substituir a tradicional perspectiva
comprometida com a restauração da antiga ordem por uma concepção
que se acomoda ética, política e cientificamente com a sociedade burguesa
industrial. Marx, por sua vez, adotando caminho oposto, visualizou e com-
bateu essa decadência anunciada no século XIX. Destaca o autor de O ca-

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4 Guardadas as diferenças necessárias, autores como Karl Popper (1998; 2013), Talcott Parsons (2010a, 2010b),
Robert King Merton (1970), Vilfredo Pareto (In RODRIGUES, 1984), Friedrich Von Hayek (2013), além de toda tradição
sistêmica presente desde Bertalanffy (1980) e Capra (2004), por exemplo, retomam heterogeneamente tais temas.

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pital, ao comentar as posições do parlamento inglês em relação ao pau-
perismo e a ascensão do movimento operário:

De início, ele explica o terrível aumento do pauperismo como ‘falha
de administrativa’ [...] O parlamento inglês não se restringiu à reforma
formal da administração. Ele detectou a fonte principal da condição
aguda do pauperismo inglês na própria Lei dos Pobres. O próprio
meio legal contra a indigência social, a beneficência, favoreceria a
indigência social. Quanto ao pauperismo em termos gerais, ele seria
uma lei natural eterna, segundo a teoria de Malthus [...] O Parlamento
inglês combinou essa teoria de caráter humanitário com o parecer
de que pauperismo seria a miséria infligida a si mesmo pelo tra-
balhador, não devendo, em consequência, ser prevenido como um
infortúnio, mas reprimido e punido com um crime. (MARX, 2010, p.
33-34)5.

Ora, a gênese do Serviço Social como profissão é impensável
sem essa dinâmica. O final do século XIX, produto de tensões estruturais
criadas e recriadas pela sociabilidade burguesa (SILVA; SANT’ANA; LOU-
RENÇO, 2013), insolúveis sob suas fronteiras, apontaria para uma nova
fase da sociedade do capital: o imperialismo (nos dizeres de Lenin 2008,
p. 125-126) ou, em outras palavras, a era monopolista que nascia da fusão
entre capital industrial e bancário6.

Inicialmente potencializado pelo padrão fordista de acumulação
(responsável por oferecer as bases racionais para a organização da produção
e da força de trabalho até meados da segunda metade do século XX), o ca-
pitalismo de monopólios intensificou a concentração de capitais ao mesmo
tempo em que teve que responder às demandas sociais tensionadas pela
luta de classes. Incrementando, paulatinamente, demandas situadas no cam-
po dos direitos civis e políticos (o direito à liberdade nos padrões liberais e
aos poucos convivendo com sufrágio universal regulado), a era monopólica
lida com a “questão social” firmando determinados direitos trabalhistas,
algumas redes de proteção social compensatórias, criando um amplo mer-
cado consumidor e fábricas cuja força de trabalho era comandada pelo
padrão fordista de acumulação. Faz isto, claro, apoiada em orientações
bem diferentes da fase industrial (ainda que edificada sobre seu legado): a
captura orgânica dos Estados Nacionais responsáveis por gerenciar-investir,
com fundos públicos, os negócios da burguesia e administrar a “questão
social”; a fusão de grandes grupos econômicos com o objetivo de reorganizar
a produção e monopolizar mercados; a forte participação dos bancos, so-

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5 Também são certeiras as observações de Marx (1987, p. 80-81) sobre as escolas humanitária e filantrópica que
atuaram com o pauperismo a partir da segunda metade do século XIX.
6 Nota-se que os estudos clássicos de Serviço Social datam desse período (particularmente os de Mary Richmond,
nos Estados Unidos), bem como são desta época as primeiras experiências de intervenção em nível de Serviço Social
na Europa.

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bretudo por meio do crédito como forma de estimular a produção acelerada
e em larga escala (típica dessa fase da acumulação).

Tal contexto necessitou de outra espécie de força de trabalho,
não necessariamente vinculada à produção como trabalho produtivo, cria-
dor de mais-valia, com a participação direta do capitalista que compra o
valor de uso da força de trabalho. Intensificam-se, então, formas impro-
dutivas de trabalho, frequentemente vinculadas à esfera dos serviços, não
diretamente geradores de mais-valia, mas essenciais para a gestão do mundo
do capital, sua reprodução metabólica, na medida em que conta com
profissionais que auxiliam a reprodução social (MARX, 1984, p. 105-106;
1985, p. 110; 115). Sendo assim, a força de trabalho é composta, simul-
taneamente, por trabalhadores produtivos, isto é, aqueles contratados di-
retamente pelo capital e criadores de mais-valia, e os improdutivos, ou
seja, os que são empregados por agentes indiretos que auxiliam na repro-
dução geral, social do capital. Neles, produtivos ou não produtivos, se in-
serem os assistentes sociais (de acordo com sua posição na divisão social
do trabalho) que devem lidar com as diversas expressões do pauperismo,
como profissionais especializados, racionais e tecnicamente preparados
para gerenciar tensões sociais. Sendo assim,

[...] na emergência profissional do Serviço Social, não é este que se
constitui para criar um dado espaço na rede sócio-ocupacional, mas
é a existência deste espaço que leva à constituição profissional [...]
não é a continuidade evolutiva das protoformas ao Serviço Social
que esclarece a sua profissionalização, e sim a ruptura com elas [...].
A profissionalização do Serviço Social não se relaciona decisivamente
à ‘evolução da ajuda’, à ‘racionalização da filantropia’ nem à ‘or-
ganização da caridade’; vincula-se à dinâmica da ordem monopólica.
(NETTO, 1992, p. 69).

A ordem monopólica se desenvolveu ao longo do século XX de-
sencadeando duas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945 – expressão
das divergências entre blocos de potências econômicas e disputa por mer-
cados), tendo que lidar com crises cíclicas do capitalismo (particularmente
a de 1930) e com a ascensão da União Soviética em 1917 (a primeira re-
volução proletária que persistiu por mais de 70 anos). O importante
contraponto soviético não apenas ajudou decisivamente na derrota do nazi-
fascismo como também impôs ao Ocidente capitalista a necessidade de
oferecer um contraponto ao Oriente socialista: o Welfare State (Estado de
Bem-Estar Social). Esse paradigma se sustentou em um pacto social firmado
entre sindicatos e patrões, inspirado na tradição econômica keynesiana,
certamente de base fordista, com economia aquecida, altos índices de em-
pregos (“pleno emprego”), altas arrecadações gerenciadas pelo Estado bur-
guês e a redistribuição relativa dos impostos também na forma de serviços
e de direitos sociais. Isso certamente não eliminou a apropriação da riqueza

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socialmente produzida (a propriedade privada), mas abrandou, por um
curto espaço de tempo, a desigualdade social em alguns países do con-
tinente europeu e, sobretudo, serviu para a reconstrução da Europa pós-II
Grande Guerra Mundial.

Esse “lampejo humanitário” do capital, circunscrito a países euro-
peus capitalistas desenvolvidos, durou pouco tempo. O ultraliberalismo
(popularmente denominado “neoliberalismo”) se intensificou com a crise
do chamado “socialismo real”7 e a insustentabilidade dos padrões da eco-
nomia keynesiana (ambos, claro, articulados como faces antagônicas de
propostas societárias diferentes). Esta decadência gerada, antes de tudo,
por uma profunda crise de acumulação do capital, claramente anunciada
já na década de 1970, introduziu ideias ultraliberais e inaugurou os tempos
“neoliberais”8.

Na América Latina esse processo não se reproduziu sem particu-
laridades. Nela, a revolução burguesa se realizou mediada pelas deter-
minações da era imperialista do capital, não como uma expressão imediata
e direta das regiões economicamente centrais do globo, muito menos como
um processo isolado, explicado pela dinâmica interna dos países latinos.
Nações marcadas pelo desenvolvimento capitalista hipertardio e dependente
produziram burguesias nacionais particulares cuja sobrevivência tem se
sustentado na rendição ao imperialismo (do inglês, a partir do final do
século XIX, ao norte-americano do pós-II Guerra Mundial), não assumindo,
por sua natureza, um papel propriamente revolucionário, claramente em-
preendedor e dinamizador das forças produtivas no mundo do capital (como
classe dominante propriamente dita). Não se submeteram, também por
isso, ao controle das pressões democráticas nacionais (típicas das regiões
mais centrais), amarrando seus interesses imediatos àqueles preconizados
pelas regiões centrais.

Todavia, as classes sociais aqui constituídas não são diferentes
das regiões economicamente mais privilegiadas do globo. O que parti-
culariza a América Latina é a forma como o capitalismo se materializou,
produziu e reproduziu, a partir de condições objetivamente dadas, como
“força social” (FERNANDES, 2009, p. 47). O amadurecimento do impe-
rialismo sob o comando norte-americano, desdobramento das duas grandes
guerras mundiais, manterá esse padrão, aprimorando-o.

[...] Assim, enquanto o antigo imperialismo constituía uma mani-
festação de concorrência nacional entre economias capitalistas avan-
çadas, o imperialismo moderno representa uma luta violenta pela
sobrevivência e pela supremacia do capitalismo em si mesmo. [...]

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7 Vale destacar que todas as nações que fizeram parte do bloco liderado pela extinta União Soviética jamais foram
comunistas (no sentido marxiano da palavra). Seguramente passaram por transições socialistas particulares que mo-
lestaram o capitalismo, mas não afetaram a acumulação ampliada do capital.
8 Boas expressões dessas tendências apareceram nas obras de Friedrich Hayek (O caminho da servidão, publicado
em 1944) e Milton Friedman (Capitalismo e liberdade, 1962).

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O novo padrão de imperialismo é, em si mesmo, destrutivo para o
desenvolvimento dos países latino-americanos. A razão é facilmente
compreensível. Não possuindo condições de crescimento autos-
sustentado, para a integração nacional da economia e para uma rá-
pida industrialização, os países capitalistas da América Latina es-
tavam tentando explorar uma espécie de miniatura de modelo europeu
de revolução burguesa, através de expedientes improvisados e opor-
tunistas. (FERNANDES, 2009, p. 30).

A ordem monopólica impôs aos assistentes sociais, desde sua gê-
nese como profissão, uma demanda objetiva, material e ontologicamente
determinada, atrelada à gestão do pauperismo, como dado objetivo, insu-
primível para essa profissão na ordem do capital. Ainda que tais deter-
minações sejam gerais, como parte dos antecedentes do Serviço Social na
era industrial e monopolista do capital, objetivam-se heterogeneamente
com particularidades em diferentes regiões do globo, aspectos igualmente
importantes (em nada desprezíveis)9. Ao mesmo tempo, essa determinação
não impõe ao Serviço Social e aos assistentes sociais uma trajetória uni-
camente comprometida com as demandas do capital no campo da gestão
de realidades afetadas por desigualdades estruturais (embora não possa des-
colar-se completamente delas, nas condições impostas por essa socia-
bilidade).

Ora, decodificar as expressões particulares do conservadorismo
na profissão (suas expressões atuais) é procedimento essencial para lidar
criticamente com esse “esterco de contradições” que se impõe não mecani-
camente aos profissionais. Mais do que isso, é trajetória insubstituível para
os que estão comprometidos com a construção de alternativas contra-hege-
mônicas, de resistência genuína, dentro e fora da profissão (respeitando
suas limitações objetivas)10.

3. (Neo)conservadorismo e Serviço Social no Brasil:
notas para um debate crítico

As condições objetivas para a gênese do Serviço Social como
profissão, ou seja, “[...] como prática institucionalizada, socialmente legi-
timada e legalmente sancionada [...]” (NETTO, 1992, p. 13), foram postas,
decisivamente, em escala mundial, pela dinâmica do capitalismo de mo-
nopólios, após as lutas operárias travadas na segunda metade do século

..............................................................................
9 O Serviço Social latino-americano, por exemplo, não deve ser explicado homogeneamente. Isso não invalida, por
outro lado, a existência de determinações gerais e comuns vinculadas às estruturas do capitalismo monopolista de
base fordista ou toyotista, mesmo que destaque particularidades nacionais, regionais e locais (diga-se de passagem,
uma necessidade).
10 Marilda Iamamoto (2014, p. 213-612) destaca o avanço do (neo)conservadorismo na profissão e a necessidade de
decodificá-lo com maior precisão (inclusive em sua forma mais tradicional – não suficientemente explorada), ao mes-
mo tempo que enfatiza a importância do legado crítico marxista no Serviço Social brasileiro e suas conquistas.

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XIX. A partir desse momento, as ações de cunho religioso e filantrópico
(frequentemente, mas não unicamente, articuladas) adensam-se e imbricam-
se com as inciativas mais organizadas, mantidas pelos Estados Nacionais
organicamente capturados pela dinâmica monopólica do capital e com-
prometidos com a “gestão responsável” do pauperismo. É nessa direção,
ainda que de forma difusa e heterogênea, que atuam na gênese da profissão
(com maior ou menor intensidade conforme o país considerado) tradições
antimodernas (não apenas de perfil católico), com uma forte perspectiva
anticapitalista romântica, defensora de valores e princípios devastados pela
revolução burguesa consolidada, bem como tendências já oriundas de uma
aproximação entre o pensamento conservador e a sociedade do capital do
início do século XIX. Acomodam-se, aí, “valores humanitários”, o manejo
de abordagens científicas e a manutenção da ordem do capital, adensando
e modernizando essa tendência ao longo de todo século XX. Nesse sentido,
o pensamento conservador, ainda que diversamente mais avesso ou ade-
quado às transformações desencadeadas pela Revolução Burguesa, foi com-
ponente estrutural da gênese do Serviço Social como profissão. Isso se ex-
pressou, por exemplo, nas Sociedades de Organização de Caridade (1869
e 1870 – nascidas na Inglaterra e nos Estados Unidos, respectivamente), es-
paços comprometidos em lidar com o pauperismo da época. Igualmente
se inserem nesse contexto, já nas primeiras duas décadas do século XX, por
caminhos diferentes, as experiências de atuação social franco-belga (de
perfil católico-tradicional NETTO, 1981a; 1991) e a abordagem de caso
sistematizada por Mary Richmond nos EUA (1917), afeita a certa sis-
tematização científica (mesmo que com nítidos traços religiosos), como
uma experiência mais clássica de Serviço Social11.

A gênese do Serviço Social no Brasil contou, originalmente, com
uma base doutrinária no campo particular da secularização da Igreja Católica
de tradição franco-belga, com forte influência das Encíclicas Rerum No-
varum (1891) e Quadragésimo Anno (1931)12. Trata-se de elemento rele-
vante no processo de sua constituição, ainda que não deva ser tomado
como decisivo para situá-lo como profissão no Brasil. O Serviço Social
brasileiro teve sua gênese inserida nessa trama tecida pela ordem mo-
nopólica do capital na sua fase fordista (em que se inserem o Estado, a
Igreja e a denominada “questão social”), sem deixar de destacar que o de-
senvolvimento do capitalismo brasileiro se deu pela via colonial, hipertardia
e dependente, com seus ranços centrados em uma economia focada na
grande propriedade, no trabalho escravo e na produção agrícola. A re-
volução burguesa no Brasil (FERNANDES, 1987) teve seu impulso mais in-

..............................................................................
11 A evolução da vida familiar, o poder e a capacidade de coesão, a capacidade de afeto, a admiração, a formação
adicional, o esforço para o desenvolvimento social, o conhecimento do marido e do pai dos filhos das mulheres, a
individualização dos filhos no núcleo familiar, o orçamento familiar e os hábitos de alimentação e habitação são
destacados por Richmond (em 1917) em seu livro Diagnóstico Social (2005).
12 Os documentos de época do Centro de Estudos e Assistência Social (CEAS – 1932) e a fundação da primeira escola
de Serviço Social no Brasil em São Paulo (1936) revelam isso claramente.

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tenso a partir do projeto urbano-industrial desencadeado no primeiro go-
verno nacional-desenvolvimentista de Getúlio Vargas (1930-1945), o que
demonstrou, com requintes particulares, a forte presença do Estado no aden-
samento do capitalismo e da economia de mercado no Brasil13.

A base doutrinária do Serviço Social tradicional persistiu com
forte e clara presença por muitos anos (e, em certo sentido, sob outras
determinações, ainda se faz muito presente). Ela contaminou a formação
profissional e a institucionalização da profissão nas décadas de 1940 e
1950 (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985), adentrando nos anos 1960, que
marcariam sua decadência (mas não extinção) após a renovação do Serviço
Social durante o movimento de reconceituação latino-americano. A reno-
vação do Serviço Social brasileiro, situada entre a segunda metade dos
anos 1960 e primeira metade dos anos 1970 (portanto, objetivada em plena
autocracia burguesa e sua ditadura no Brasil, a partir de 1964 – NETTO,
1991; 2014), reeditou o conservadorismo profissional. Fez isto eclética e
heterogeneamente (a partir da base sincrética ontologicamente dada à pro-
fissão) reproduzindo duas tendências dominantes14: a) a primeira, inspirada
em uma tradição positivista-funcionalista ajustada às condições operativas
do Serviço Social, claramente cientificista, atualizando a metodologia de
caso, grupo e comunidade dos anos 1950, com forte ênfase no desenvol-
vimento com integração social, absoluta subserviência à ordem em curso e
clara reedição de ações que visavam reparar (não apenas moralmente) indi-
víduos, grupos e comunidades, como preconizadas nos documentos de
Araxá e de Teresópolis (ocorridos, respectivamente, em 1967 e 1970,); b) a
segunda reavivou e modernizou a abordagem individual, com ênfase na
“pessoa humana” de orientação neotomista, de inspiração fenomenológica-
personalista, também cientificista, eclética, justapondo autores como
Husserl, Heiddeger, Mounier, Merleau Ponty, entre outros, e propondo
uma abordagem centrada na dinâmica articulada no eixo diálogo, pessoa
e transformação social, conforme explicitado nos estudos amplamente co-
nhecidos de Anna Augusta de Almeida e de seu grupo15.

A possibilidade de uma interlocução diferenciada e fecunda
expressou-se (não sem problemas) nos estudos de Leila Lima dos Santos
(denominado O Método BH), inauguradora do que Netto (1991) denominou

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13 Na América Latina, o nacional-desenvolvimentismo focou sua atenção, estrategicamente, em um crescimento e-
conômico que visava alterar a estrutura produtiva (substituição de importações) e reduzir as vulnerabilidades externas
(alteração do padrão de comércio exterior, encurtamento do hiato tecnológico e tratamento diferenciado para o ca-
pital estrangeiro GONÇALVES, 2012, p. 652).
14 A tese apresentada por José Paulo Netto (1991; 1992) sobre o sincretismo no Serviço Social (ainda que se discuta
se ele deve ser entendido como diferenciado ou indiferenciado – como aponta IAMAMOTO, 2007) possui, segundo
nossa opinião, grande concretude ontológica e universalizante (não vale apenas para o Serviço Social no Brasil). A
mesma consideração pode ser feita sobre as pertinentes observações sobre a gênese da profissão na era de mo-
nopólios e sobre a profissão inserida na divisão social e técnica do trabalho como especialização do trabalho coletivo
(IAMAMOTO; CARVALHO, 1985).
15 Não nos cabe, aqui, avançar nessa discussão fartamente explorada. Para uma incursão crítica é indispensável a
leitura de Netto (1992) e, obviamente, dos próprios textos originais.

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como “intenção e ruptura”. Esta perspectiva critica as abordagens tradicionais
e modernas no âmbito do Serviço Social, o modelo de desenvolvimento
adotado pela autocracia burguesa no Brasil e na América Latina, salientando
a necessidade de os profissionais “organizarem” e “capacitarem” as camadas
expropriadas (ainda que reproduza, com isso, um inegável messianismo e
uma forte preocupação cientificista estranha a Marx e à sua dialética).

Cabe destacar, então, que os segmentos profissionais dentro e fo-
ra das universidades, mais ou menos próximos às lutas sociais travadas nas
décadas de 1980 e 1990, foram vinculados ou, pelo menos, influenciados
por essa tradição de inspiração marxista no Serviço Social. No caso bra-
sileiro, isso se deu por meio de uma forte aproximação com as lutas em-
preendidas pelos movimentos sociais a partir do final dos anos 1970. Passou
por uma aproximação com a esquerda católica (particularmente a Teologia
da Libertação – e aqui a presença doutrinária se fez por outras vias) e também
se enriqueceu, gradualmente, com o adensamento do debate com Marx e
sua tradição. Adensou-se nos anos 1980 e, decisivamente, nos anos 1990,
com a construção de uma hegemonia profissional claramente progressista,
defensora de direitos, democrática, com consequências práticas importantes
para a profissão no Brasil: revisão e amadurecimento de um novo Código
de Ética, viabilização de uma proposta curricular nacional e crítica (ainda
que parcialmente descaracterizada pelas instâncias governamentais da épo-
ca), consolidação de uma direção social estratégica (como projeto profis-
sional hegemônico) conhecida como Projeto Ético-Político Profissional,
além de atuar em inúmeras lutas sociais que se desdobraram em importantes
conquistas democráticas no Brasil.

Todavia, a era de monopólios inspirada no padrão toyotista de
acumulação, que reafirma e radicaliza a tendência desencadeada no final
do século XIX, sob o comando do capital financeiro, impactou a América
Latina nos anos 1990 (sobretudo em sua segunda metade). Houve uma
intensa alteração naquilo que Marx (1984, p. 195-196) caracterizou como
composição orgânica do capital, ou seja, uma brutal diminuição dos inves-
timentos em capital variável (destinados à compra da força de trabalho) e o
crescimento/manutenção dos investimentos em capital constante (sobretudo
na inserção de tecnologias de ponta). Isso vem acelerando a substituição
de trabalho vivo por trabalho morto16, intensificando a produção, sem neces-
sariamente contratar força de trabalho adicional (aliás, uma estratégia utili-
zada pelo capital em outras fases da acumulação). Faz isto desmobilizando
os sindicatos de trabalhadores, fragmentando a luta daqueles que vivem da
venda de sua força de trabalho, criando uma massa de desempregados
permanentes e imprestáveis para o capital, isto é, sem valor de uso/troca,
ou possuidor de um valor marginal pago para preencher serviços precários
e de menor qualificação profissional.

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16 O que não significa a eliminação da força de trabalho viva, mas sua brutal diminuição e precarização.

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Reorganiza-se, então, o mercado de trabalho mantendo parte
dos trabalhadores formalmente empregados e uma parcela imensa e hete-
rogênea de precarizados, subcontratados, informais, parciais, terceiros, am-
bulantes, diaristas, entre outras modalidades (ANTUNES, 1999; 2000). Inten-
sifica-se o trabalho estranhado cortando custos de produção, flexibilizando
direitos trabalhistas sob o argumento de tornar o deus mercadoria com-
petitivo em seu valor de troca e, cinicamente, com isso, “manter e criar
mais empregos”. Tudo isso com a anuência do Estado burguês e de seus
governos “democráticos” que sistematicamente transferem fundos públicos
para “manter empregos”, criar infraestrutura para a sua produção e seu
adequado escoamento, manter o “mercado aquecido” subsidiando negócios
privados (BEHRING, 2012)17.

Tais dificuldades, ontologicamente dadas, obviamente não ex-
clusivas à categoria profissional dos assistentes sociais, particularizam-se
nela intensificando e gerando questões objetivas e concretas para o traba-
lhador assistente social: intensificação do trabalho, redução de direitos,
subcontratações, dificuldades para a requalificação profissional, entre outras
questões mais diretamente afeitas ao profissional propriamente dito. Ao
mesmo tempo, foram seriamente afetadas as condições materiais do trabalho
profissional, processo este não necessariamente marcado pela redução de
recursos investidos, mas pela forma como devem ser gerenciados em nome
da “participação cidadã” e da “defesa da democracia”, no sentido de reduzir
a pobreza extrema, como assistência social despida de seguridade social,
ainda que crítica ao assistencialismo.

Ora, terreno fértil, claro, para a reedição do velho como “velho-
novo”, comprometido unicamente com o “miúdo” e “sua verdade”, com a
gestão da assistência social (em si mesma). O processo ideológico se com-
pleta: a assistência social, que se objetivou como conquista de um longo
processo de lutas por níveis crescentes de emancipação social (inclusive
com ampla participação dos assistentes sociais), é tomada em si como meta
a ser cumprida e priorizada, ainda que efetivamente descolada do campo
da seguridade social e, portanto, da universalização de direitos (embora
idealisticamente o que se pretenda, na maioria das vezes, seja o contrário).

O conservadorismo, então, moderniza-se também no âmbito do
Serviço Social, realimenta as velhas teses, travestindo-as de novas, de atuais,
de mais realistas, mais próximas e “concretas” para “prática profissional”
dos assistentes sociais. Faz isto, claro, renovando-se, reatualizando-se, sem
alterar sua estrutura interna. São reeditadas, então, na era da pós-
modernidade e da chamada “crise dos paradigmas” nas Ciências Humanas
e Sociais (certamente úteis no atual estágio de acumulação do capital), ve-

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17 Negociatas? O patrimonialismo burguês-tardio critica incentivos fiscais destinados “ao outro”, “ao diferente” e, so-
bretudo, aos “gastos” sociais “estimuladores da preguiça”. Por outro lado, considera tais incentivos como “inves-
timentos” necessários, “criador de empregos” (?). “Venha a nós o vosso Reino”!

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lhas receitas comprometidas com velhos conceitos requentados e com
“novas e certeiras soluções”. Isso, no campo particular do Serviço Social,
tem se expressado em diversas tendências teórico-metodológicas em curso
(claramente ou não), retomando e reacomodando, simultaneamente, traços
novos com o passado profissional (NETTO, 1996). Tais tendências têm se
manifestado ora de forma mais organizada, ora de maneira mais dispersa e
isolada, seja no campo da produção do conhecimento, seja no âmbito
mais diretamente vinculado à gestão social e ao trabalho profissional (IA-
MAMOTO, 2007). No geral, reproduzem, não homogênea, mas com-
plexamente, os seguintes aspectos:

a) resistência e/ou dificuldade em estabelecer os limites estruturais
da ordem em curso, suas contradições, bem como fragilidades, para ex-
plicitar as particularidades do Serviço Social como profissão inserida nessa
ordem societária. Nesse âmbito, duas dimensões se destacam: a reedição
de análises absolutamente despidas de economia política (amplamente ca-
racterizadas como “sistêmicas”) e, também por isso, uma visão, pelo menos
implícita, de que é possível reformar a ordem em curso (humanizá-la). As
consequências aqui são inevitáveis: desinteresse e/ou fragilidade para esta-
belecer mediações entre as determinações estruturais e as demandas ime-
diatamente postas à profissão. O “miúdo”, então, passa a falar por si mesmo,
na sua imediaticidade;

b) subalternização ou menor importância da teoria, do estudo e
da pesquisa como parte constituinte e fundamental do trabalho e da forma-
ção profissionais. Ao contrário do que se pensa, essa diminuição não ocorre
apenas em diferentes formas de praticismo (mais ou menos messiânicos)
mas, e principalmente, por meio de tendências que também valorizam
certo tipo de teoria, ou seja, de conhecimentos teóricos que respondem
mais imediatamente à prática como “conhecimento necessário”. Reeditam-
se, aqui, formas de pragmatismo e de utilitarismo no campo da produção e
apropriação de conhecimentos;

c) a valorização da teoria, do estudo e da pesquisa, mas sustentados
na ciência abstrata, estranha à realidade (por isso antiontológica), na especu-
lação teórica que apanha e reorganiza um leque de conhecimentos hetero-
gêneos capazes ou não de responder às demandas profissionais. Trata-se
de uma reedição da ciência abstrata, que atribui ao intelectual o papel de
organizar os conhecimentos, para “os da prática”, na divisão social do traba-
lho. O Serviço Social, então, deve ter seus “intelectuais” “pouco comportados
intelectualmente” (mas adequados política e praticamente), ecléticos, ne-
gadores e críticos dos paradigmas (como utilitaristas pós-modernos cons-
cientes e letrados), defensores da verdade miúda e imediata, mentes pen-
santes e objetivas, cultas, reprodutoras de posições políticas avessas à eco-
nomia política e resignadas com a ordem do capital (na esteira weberiana
da crítica resignada COHN, 2003);

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d) a retomada da discussão do pluralismo profissional como jus-
taposição harmônica dos diferentes, na perspectiva da “verdade relativa”,
vinculada ao ponto de vista de cada um e ao “respeito” aos diferentes sem,
todavia, empreender o debate crítico necessário. Frequentemente, nesse
caso, a tentativa de um debate mais intenso e radical é visto como “des-
respeito à pessoa humana” na esteira da tradição neotomista. Há, pois, a
reedição de um velho princípio: a explicação da profissão a partir de sua
dinâmica interna, de seus referenciais, ao mesmo tempo em que se reeditam
formas de departamentalização do “social” e da própria profissão;

e) a consequência final não poderia ser outra: desinteresse e/ou
dificuldade para visualizar a relação dialética como unidade diversa, entre
a profissão Serviço Social e níveis crescentes de emancipação social, para
além da ordem do capital. Aqui, o processo é duplamente complexo: por
um lado, ele sofre o impacto dos grupos refratários a qualquer procedimento
que possa sintonizar, não mecanicamente, os projetos profissionais com
projetos societários mais amplos, sobretudo aqueles cujas lentes miram
“para além do capital”; por outro lado, é desconsiderado por setores que
acreditam que as profissões nada podem contribuir com níveis crescentes
de emancipação social como espaço contraditório útil ao acúmulo de forças.
Disto deriva outro problema: a absoluta incapacidade de pensar concre-
tamente os limites profissionais, suas potencialidades, reproduzindo imobi-
lismos ou messianismos (IAMAMOTO, 1994) que atribuem tudo ou nada
ao espaço profissional (nesse caso, por diferentes espectros teóricos).

Não se trata, aqui, em absoluto, de impor um enquadramento às
pessoas ou grupos que reproduzem suas convicções dentro e fora do Serviço
Social (mesmo porque se trata de um processo difuso, complexo e nada
homogêneo), mas de reconstruir tendências reais em curso que, por dife-
rentes caminhos, reeditam traços de uma perspectiva não ontológica, cien-
tificista, no campo particular do Serviço Social. Essa decodificação é impor-
tante para esclarecer os traços (neo)conservadores presentes nas tendências
teórico-práticas e ético-políticas em curso na profissão, adensando seu
debate (BARROCO, 2011).

Para aqueles que se sentem confortáveis em gerenciar o caos, o
incômodo aparece como uma “nova questão social”, um “novo desarranjo”
que exige um “novo conhecimento” e uma “nova forma de gestão” (a velha
estratégia é reeditada sob outras condições e contradições). Essa perspectiva,
com suas variações, fiel depositária do legado modernizador de parte do
Serviço Social renovado (NETTO, 1991, p. 164), baseia-se na absoluta sub-
serviência da profissão e dos profissionais à ordem em curso. O foco central
está na integração empreendedora e solidária dos “usuários”, centrada no
empoderamento do indivíduo visando à sua integração sistêmica, repro-
duzindo um discurso ideológico que relativiza os direitos e ignora qualquer
tipo de crítica à economia-política burguesa, reiterando-a por completo.

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O profissional de Serviço Social deve ser um “técnico social”
bem adestrado, competente e criativo na gestão da política oficial, cir-
cunscrito às fronteiras institucionais, a seus limites. A formação universitária
se reduz ao essencialmente necessário à viabilização das regras ins-
titucionais, nisto a competência do profissional, reproduzindo, no geral,
tendências teóricas heterogêneas e ecléticas comprometidas com as reformas
sociais “bem comportadas”, necessárias à saúde social e “solidárias” (leia-
se, esvaziadas de qualquer perspectiva de classe).

Os conteúdos de economia, de política, de história e de filosofia
são pontualmente recuperados, reforçando uma economia “econômica” e
economicista (desprovida totalmente de economia-política), uma política
“dita a-política” (no seu limite “responsável”), uma “história” a-histórica,
desvinculada dos problemas humanos concretos, e uma filosofia “enci-
clopédica” (especulativa). Em contraposição, sugere-se uma “ciência” não
ontológica, sustentada em procedimentos “qualitativos” e quantitativos res-
ponsáveis pelo tratamento equilibrado, “científico”, que impõe uma lógica
estranha, externa à própria realidade. Tudo isto submetido às demandas
imediatamente postas à profissão no campo da “prática profissional”, que
não suporta reflexões críticas “desnecessárias”, “abstratas” e “distantes da
realidade” enfrentadas pelos profissionais de Serviço Social. Trata-se, no
limite, sob essa ótica, de um problema de gestão política que carece de
bons gestores da política em curso. O compromisso Ético-Político Pro-
fissional dos assistentes sociais se reduz à realização “do possível a ser feito”
(quando muito), por doses homeopáticas que se somam gradualmente na
construção harmônica e respeitosa de uma “sociedade mais justa”, sem
desobediência civil às regras “democráticas”, em defesa daquilo que “de
fato a profissão faz”, da sua “prática”, daquilo que é imediatamente
demandado por ela e por seus usuários.

Há, todavia, uma segunda tendência no Serviço Social contempo-
râneo que concentra o foco da profissão no campo da emancipação política
(MARX, 2009, p. 70-71), da afirmação e da defesa de direitos (ora existentes).
Centra-se, por isso, na participação política como a forma principal para
viabilizar gradualmente direitos e, a partir disto, contribuir para a construção
de “outra sociedade”. A ordem burguesa deve ser reajustada, reformada,
reorganizada e aperfeiçoada (leia-se, humanizada) por meio das instâncias
participativas (conselhos, comissões, atividades de bairro territorialmente
definidas e outros espaços), sendo que os assistentes sociais atuam no sentido
de reduzir desigualdades, viabilizar programas e projetos sociais capazes
de potencializar a “inclusão participativa” dos “usuários excluídos” nos
serviços disponíveis e nas ações sociais oficiais atualmente centrados na
gestão da pobreza absoluta (dos mais pobres).

Identificando emancipação política com emancipação humana,
ou pelo menos vinculando a segunda como desdobramento gradual da
primeira, essa tendência prioriza uma formação profissional humanista no

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sentido de preparar os profissionais para que gerenciem e viabilizem direitos,
tendo a legislação social em curso e marcos teóricos centrados na análise
das políticas setoriais/sociais como a referência principal. A pesquisa e a
produção de conhecimentos são valorizadas (para além do simples tecni-
cismo da primeira tendência), desde que atentas à sistematização e/ou
análise de assuntos vinculados mais diretamente às demandas socialmente
postas ao Serviço Social. Neste contexto, temas como o binômio “exclusão-
inclusão”, vulnerabilidades, território, mínimos sociais, conselhos de direi-
tos, capacitação continuada, trabalho socioeducativo, gestão-gerencia-
mento, redução das desigualdades, direitos específicos de grupos sociais
(mulheres, idosos, crianças-adolescentes, homossexuais, portadores de dife-
rentes deficiências físicas ou mentais, entre outros), adquirem visibilidade
nas suas especificidades (na sua “face única”). Há, todavia, um tratamento
da política destacada da crítica à economia-política, ou pelo menos sem
referência enfática a ela, bem como uma recorrência diversa (frequen-
temente eclética) no marco teórico que ilumina a reflexão e a ação no
campo do trabalho profissional.

A terceira tendência, fiel depositária do legado de “intenção de
ruptura” (NETTO, 1991, p. 247), sustenta-se na crítica ao mundo do capital
e a seus mecanismos de produção e reprodução ampliada. Ainda que, evi-
dentemente, não caiba à profissão enfrentar/solucionar questões de ordem
estrutural que se situam para além de suas fronteiras (uma tarefa da práxis
revolucionária), a crítica radical à apropriação privada da produção social
permite uma explicação das bases ontológicas, materiais, que agiram desde
a gênese do Serviço Social como profissão e que explicam sua inserção na
divisão social do trabalho, como parte da produção mundial-social, sua
crescente complexização a partir da era monopólica-imperialista do capital
e suas particularidades nas sociedades que realizaram sua revolução bur-
guesa pela via colonial e hipertardia (nisto, a questão social – sem aspas –
produzida e reproduzida a partir da “lei geral da acumulação capitalista”).

Não cabe, para esta tendência, confundir profissão, partidos e
movimentos sociais (instâncias diferentes, mas relacionadas entre si), bem
como é preciso articular as dimensões teórico-metodológicas, ético-políticas
e técnico-instrumentais na práxis profissional como relação entre teoria e
prática que não identifica nem submete uma esfera à outra, não adota uma
perspectiva de “aplicação teórica”, de um receituário teórico ou de uma
“prática” que recorta da teoria o que interessa imediatamente. A teoria é
consequência de um processo em que a razão reconstrói, como “concreto
pensado” (MARX, 1989, p. 410), a dinâmica materialmente dada, suas
condições e determinações reais (como expressão mental do movimento
real), analisando criticamente tais determinações, nas suas múltiplas me-
diações, devolvendo-as como ações efetivas capazes de interferir na vida
real, sem anular ou superestimar o papel dos sujeitos históricos e das con-
dições reais existentes. Há, neste sentido, uma clara distinção entre eman-

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cipação política e emancipação humana (MARX, 2009, p. 71), não para
desqualificar a primeira em relação à segunda, mas para defender a primeira
a partir do horizonte da segunda, não como pura defesa da política em si,
dos direitos políticos (gradualmente), mas como práxis saturada de crítica
à economia-política.

O profissional de Serviço Social, então, não nega o espaço insti-
tucional, mas tensiona suas contradições, revela seus limites, investe suas
forças genuinamente humanas no que imediatamente não aparece como
prioritário, valoriza uma formação profissional que forme intelectuais no
sentido de pensar criticamente e agir propositivamente (generalistas que
não abrem mão de uma formação ampla sustentada em conteúdos de His-
tória e de Filosofia concretas). Desta forma, a apropriação crítica da teoria
é plural mas não é eclética, priva pelo debate entre os diferentes (como
passo necessário à crítica radical), mas não aceita a justaposição deles como
meio pragmático e utilitarista (como um atalho) para a explicação do real
e para a atuação profissional. O desafio, aqui, está em clarear as diferenças
objetivas entre profissão (seus limites e potencialidades concretas) e as orga-
nizações político-partidárias e movimentos sociais libertários, compro-
metidos com uma crítica mais direta à sociedade do capital. Mais do que
isso, é preciso unificar tais dimensões sem identificá-las, sem exigir das
profissões o que elas não podem realizar.

Resumidamente, para os que se identificam com o que se con-
vencionou denominar Projeto Ético-Político Profissional, edificado ao longo
dos anos 1980 e 1990, cabe uma dupla tarefa contraditória nos dias atuais:
afirmar e defender direitos em uma sociedade que os restringe continua-
damente, tendo a clareza de que essa empreitada não realizará as tarefas
grandiosas de superação da ordem do capital (e esse é um aspecto impor-
tante, embora pareça óbvio imediatamente). A defesa de direitos hoje se
identifica, necessariamente, com uma orientação anticapitalista, e esse
debate crítico deve ser também travado com as ilusões neodesenvol-
vimentistas em curso na América-Latina18.

[...] O verdadeiro resgate da tradição crítica do pensamento latino-
americano passa pela superação de toda ilusão em relação à existência
de uma solução burguesa para a tragédia do subdesenvolvimento e
da dependência. O caminho da crítica encontra-se no polo oposto
da perspectiva provinciana, das opções de classe e das escolhas teó-
ricas neodesenvolvimentistas. (SAMPAIO JÚNIOR, 2012, p. 686).

Ao mesmo tempo, cabe ressaltar que a profissão não cumprirá
tarefas que não cabem a ela (vinculadas à transposição revolucionária e ao

..............................................................................
18 O novo desenvolvimentismo se distingue do nacional-desenvolvimentismo pois se aproxima com o Consenso e o
Pós-Consenso de Washington, incorporando traços da concepção liberal de desenvolvimento. Converge na esta-
bilidade macroeconômica e no crescimento dinamizado por meio das exportações, ainda que critique a tríade maldita:
superávit primário, juros altos e câmbio flutuante (CASTELO, 2012, p. 639; 664).

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início de uma transição socialista), tarefa dos movimentos sociais, dos sin-
dicatos, dos trabalhadores (na sua diversidade) e dos partidos políticos liber-
tários. Entretanto, a profissão e os profissionais devem acumular forças e
enriquecer sua base teórico-prática, seus conhecimentos sobre os confins
da sociabilidade burguesa, suas mazelas insolúveis, suas “patologias incu-
ráveis”. Esse acúmulo estimulado pela razão ontológica (SILVA, 2013a;
2013b), pelo pensar-fazer, pela crítica-crítica da política em curso (exer-
citando o sentido negativo da política), pela unidade-diversa entre a teoria
e a prática, pela práxis (também profissional), muda substancialmente a
nossa inserção como assistentes sociais nos espaços das instituições burguesas
e dinamiza a possibilidade histórica de uma contracorrente no Serviço So-
cial.

4. Apontamentos inconclusivos: o legado crítico do Serviço Social
brasileiro posto à prova

São diversos e intensos os desafios para afirmar a direção social
aqui esboçada e discutida (sem qualquer espécie de romantismo). Esse con-
texto é marcado, intrinsecamente, por um cenário altamente contraditório,
que põe o Serviço Social em contradição com elementos que estão contidos
na sua gênese e o justificam como profissão na sociedade do capital. A re-
sistência aqui destacada deve ter a clareza de que o Projeto Ético-Político
Profissional, como direção social, tão somente tem sua finalidade como
tal, ou seja, como referência geral.

Vinculado a projetos sociais mais amplos, situados muito além
do campo restrito das profissões, os valores contidos nesse projeto e no
próprio Código de Ética Profissional (a defesa da liberdade, da equidade,
da justiça social, de níveis crescentes de emancipação social – no sentido
amplo e mais profundo dessas terminologias), somente poderão ser objeti-
vados “para além do capital” (MÉSZÁROS, 2002; 2003). Isso não significa
que a luta por dentro da ordem, a resistência inteligente e acumuladora de
forças sociais genuinamente humanas, que tensione permanentemente as
contradições insolúveis da ordem societária em curso, seja desnecessária.
Ao contrário, as formas propositivas de resistência alimentam a criação de
alternativas possíveis, objetivamente dadas e claramente orientadas, ainda
que submetidas à mercantilização intensa das relações humanas e sociais.

No campo particular do Serviço Social, alguns velhos-novos temas
merecem atenção. Deve-se ressaltar, prioritariamente, a necessidade de
continuar estimulando estudos sobre o intenso processo de mercantilização
e de privatização da educação brasileira, bem como ações do conjunto
CFESS-CRESS, ABEPSS e ENESSO que resistam efetivamente a esse cenário
(sobretudo em relação à formação profissional aligeirada – BRAZ; RO-
DRIGUES, 2013). Qualquer possibilidade verdadeiramente democrática e

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comprometida com o cultivo da crítica radical e propositiva (como in-
telectuais que pensam e que fazem a partir de condições objetivamente
dadas) carece da existência de espaços e de condições reais para tal.

Nessa mesma direção, Marilda Iamamoto (2014, p. 634) chama
a atenção para a necessidade de explicar mais apropriadamente as linhas
teórico-metodológicas atualmente em curso, nisso a convivência crítico-
respeitosa entre elas e o sentido correto do pluralismo (na direção tratada
nesse artigo). Destaca, ainda, a necessidade de impulsionar pesquisas que
tratem do atual mercado de trabalho do assistente social no Brasil (nos seus
diferentes espaços sócio-ocupacionais) que analisem a formação sócio-his-
tórica da sociedade brasileira e latino-americana, estimulando um debate
mais continental (algo importantíssimo).

Vale destacar, aqui, a necessidade de estimular pesquisas que
descortinem os dois polos das classes sociais fundamentais apontadas por
Marx (1983; 1984; 1985): os donos dos meios de produção, suas teses e
argumentos e, por outro lado, temas mais diretamente pertinentes à realidade
das camadas que vivem da venda da força de trabalho (considerando os
inúmeros temas transversais que aqui se expressam: violência, gênero, raça,
etnia, questões urbanas e rurais, entre outros). Tais construções devem adotar,
necessariamente, o caminho da ciência ontológica e “não neutra” como
reconstrução histórica, nunca exata e que extrai da realidade sua lógica,
orientada pelo ponto de vista do trabalho, questionando o tratamento depar-
tamentalizado e focal do “miúdo”, do território, do espaço imediatamente
exposto aos olhos do assistente social e onde concretamente exerce seu
trabalho.

O Projeto Ético-Político do Serviço Social aqui destacado, da
forma como foi originalmente concebido, não possui qualquer vínculo
comprocedimentos que tendem a identificar ou justapor tendências e grupos
sociais antagônicos. O pluralismo nele contido não contempla qualquer
chance nessa direção. O sentido é muito claro: esse projeto exige, de partida,
como elemento básico, essencial, o compromisso firme (teórico-prático)
com a defesa de direitos, sustentado em uma clara perspectiva anticapitalista
capaz de orientar tal defesa. Não há, portanto, para os adeptos dessa direção
social, a menor possibilidade de harmonizar o capital a perversidade de
sua reprodução ampliada madura com a afirmação de direitos.

Fora desses parâmetros, as expressões do conservadorismo moder-
no, como manifestações (neo)conservadoras, tendem ao recrudescimento
também no campo teórico-prático e ético-político do Serviço Social. De
nossa parte, as melhores condições para a defesa propositiva de direitos
surgem de inciativas inspiradas no legado deixado por Marx, por sua tra-
dição, pela ênfase no ponto de vista do trabalho, pela crítica permanente e
impenitente à apropriação da riqueza socialmente produzida (a propriedade
privada) e pelo diálogo disso com a particularidade da profissão (e isso não
é menos importante). Isto em hipótese alguma elimina o debate entre os

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diferentes (ao contrário), mas não os identifica como parte de um mesmo
bloco construído em nome de uma unidade abstrata e incoerente com os
objetivos propostos. Entendemos que a adoção desse ponto vista oferece as
melhores condições para articular duas dimensões essências à ciência ge-
nuinamente ontológica: a não neutralidade científica (assumindo a defesa
do trabalho concreto, útil e criativo) e o compromisso em produzir conhe-
cimentos a partir da vida real daqueles que vivem da venda da força de tra-
balho. Construir ciência a partir destas condições não é uma tarefa fácil,
embora isto seja urgente, crucial e genuinamente científico.

Isso não é um detalhe “teórico” restrito aos que insistem em “colo-
car defeitos” na profissão e nos profissionais, “desprezá-los”, mas um exercí-
cio necessário à qualificação crítica tão cara à emancipação social de ho-
mens e de mulheres. Seguramente o Serviço Social e os assistentes sociais
têm algo a contribuir com isto, ainda que se trate de uma grandiosa cons-
trução social e coletiva situado muito além do horizonte das profissões.
Nisto, certamente, “A história de toda a sociedade até hoje é a história de
lutas de classes” (MARX, In NETTO, 2012, 185). Ou será que uma alternativa
mais leve e “politicamente correta” deveria ser adotada na defesa do Projeto
Ético-Político Profissional?

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Recebido em 04 de maio de 2015. 125
Aprovado para publicação em 06 de julho de 2015

EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 1o Semestre de 2015- n. 35, v. 13, p. 99 - 125
Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

O espaço
como palavra-chave*

Space as a keyword

David Harvey**

Resumo – Neste artigo, David Harvey discute teoricamente “espaço”
como uma palavra-chave, associando a visão tripartite espaço ab-
soluto-relativo-relacional com a leitura lefebvreana dos espaços per-
cebido, concebido e vivido (também denominados espaços material
ou experimentado, conceitualizado e da representação).
Palavras-chave: espaço absoluto; espaço relativo e relacional; espaço
material, conceitualizado e vivido.

Abstract – David Harvey in this article discuss theoretically “space”
as a keyword, by associating the tripartite approach absolute-relative-
relational space with Lefebvre’s view of perceived, conceived and
lived spaces (also called material or experienced space, conceptua-
lized space and spaces of representation)
Keywords: absolute space; relative and relational space; material
space; conceptualized and lived space.

Introdução

Se Raymond Williams (2007) retomasse hoje a lista das entradas
de seu célebre livro sobre Keywords (palavras-chave), ele certamente inclui-
ria a palavra “espaço”. Ele poderia muito bem inclui-la na curta lista de
conceitos que, como “cultura” e “natureza”, estão “entre as palavras mais
complicadas da nossa língua.” (WILLIAMS, 1985). Como, então, podemos

..............................................................................
* Original: Harvey, D. Space as a keyword. In: CASTREE, N.; GREGORY, D. (org.). David Harvey: a critical reader. Mal-
den e Oxford: Blackwell. Tradução livre: Letícia Gianella. Texto publicado no v.14, edição de nº28 (2012) da revista
GEOgraphia (do Programa de Pós-Graduação em Geografia, da Universidade Federal Fluminense) e cedido para
esta edição da Em Pauta: teoria social e realidade contemporânea.
** Geógrafo britânico e marxista formado na Universidade de Cambridge. Professor de antropologia da pós-graduação
da Universidade da Cidade de Nova York (The City University of New York – Cuny).

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126 Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

} O ESPAÇO COMO PALAVRA-CHAVE - HARVEY, D. }

decifrar o espectro de significações dadas à palavra “espaço” sem nos perder-
mos em um labirinto (metáfora espacial interessante) de complicações?

A palavra “espaço” suscita, frequentemente, modificações. Com-
plicações às vezes surgem dessas modificações (muito frequentemente omi-
tidas na fala ou na escrita), mais do que de uma complexidade inerente à
própria noção de espaço. Quando, por exemplo, referimo-nos ao espaço
“material”, “metafórico”, “liminar”, “pessoal”, “social” ou “psíquico” (usando
somente alguns exemplos), indicamos uma variedade de contextos que,
assim, contribuem para construir o significado de espaço contingente se-
gundo esses contextos. De forma similar, quando construímos expressões
como espaços do medo, do jogo, da cosmologia, dos sonhos, da raiva, da
física das partículas, do capital, da tensão geopolítica, da esperança, da
memória ou da interação ecológica (mais uma vez, somente para indicar
alguns dos desdobramentos aparentemente infinitos do termo), os domínios
de aplicação são tão particulares que tornam impossível qualquer definição
genérica de espaço. Dentro do que se segue, contudo, irei deixar de lado
essas dificuldades e arriscar uma decifração genérica do significado do ter-
mo. Espero, assim, dispersar um pouco a névoa da falta de comunicação
que parece atormentar o uso da palavra.

O ponto de partida que escolhemos para esta investigação não é
inocente, todavia, já que ele inevitavelmente define uma perspectiva par-
ticular que destaca alguns tópicos enquanto encobre outros. Certo privilégio,
naturalmente, é concedido à reflexão filosófica, uma vez que a filosofia as-
pira estar acima dos vários e divergentes campos das práticas humanas e
dos conhecimentos parciais, a fim de atribuir significados definitivos às
categorias às quais podemos recorrer.

Parece-me que há suficiente dissenso e confusão entre os filósofos
quanto ao significado de espaço para que ele possa constituir um ponto de
partida não problemático. Além disso, já que não sou de modo algum qua-
lificado para refletir sobre o conceito de espaço a partir do interior da tra-
dição filosófica, parece preferível começar do ponto que conheço melhor.
Por isso parto do ponto de vista do geógrafo, não porque este seja um pon-
to de vista privilegiado que de algum modo disporia de um direito de pro-
priedade (como alguns geógrafos às vezes parecem reivindicar) sobre o
uso dos conceitos espaciais, mas porque é aí que se passa a maior parte do
meu trabalho. É nesta arena que me deparei mais diretamente com a com-
plexidade que envolve o significado da palavra “espaço”.

Tenho, obviamente, com frequência, inspirado-me no trabalho
de autores que operam em vários campos da divisão acadêmica e intelectual
do trabalho, bem como no trabalho de muitos geógrafos (demasiados para
serem reconhecidos em um breve ensaio como este) que, ao seu modo,
têm se engajado ativamente na exploração desses problemas. Não tentarei
fazer aqui nenhuma síntese de todo esse trabalho. Farei uma colocação
puramente pessoal de como meus pontos de vista têm evoluído (ou não)

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Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro 127

} O ESPAÇO COMO PALAVRA-CHAVE - HARVEY, D. }

conforme busco significações operatórias, tão satisfatórias quanto possível,
em relação às temáticas teóricas e práticas que constituíram minhas preo-
cupações básicas.

1. O espaço: absoluto, relativo e relacional

Comecei a refletir sobre este problema há muitos anos. Em Social
justice and the city, publicado em 19731, argumentei que era crucial refletir
sobre a natureza do espaço se estávamos buscando entender os processos
urbanos sob o capitalismo. Trabalhando sobre ideias previamente selecio-
nadas de um estudo de filosofia da ciência, e parcialmente exploradas em
Explanation in geography, identifiquei uma divisão tripartite no modo como
o espaço poderia ser entendido:

Se considerarmos o espaço como absoluto ele se torna uma ‘coisa
em si mesma’, com uma existência independente da matéria. Ele
possui então uma estrutura que podemos usar para classificar ou distin-
guir fenômenos. A concepção de espaço relativo propõe que ele se-
ja compreendido como uma relação entre objetos que existe pelo
próprio fato dos objetos existirem e se relacionarem. Existe outro
sentido em que o espaço pode ser concebido como relativo e eu pro-
ponho chamá-lo espaço relacional – espaço considerado, à maneira
de Leibniz, como estando contido em objetos, no sentido de que um
objeto pode ser considerado como existindo somente na medida em
que contém e representa em si mesmo as relações com outros objetos.
(HARVEY, 1973, p. 13).

Considero que esta divisão tripartite é bem sustentada. Assim,
começarei com uma breve elaboração sobre o que cada uma dessas cate-
gorias pode implicar.

Espaço absoluto é fixo e nós registramos ou planejamos eventos
dentro da moldura que o constitui. Este é o espaço de Newton e Descartes
e é usualmente representado como uma grade pré-existente e imóvel que
permite padronizar medições e está aberto ao cálculo. Geometricamente é
o espaço de Euclides e, portanto, o espaço de todas as formas de mapeamento
cadastral e práticas de engenharia. É o espaço primário de individuação –
a res extensa, como afirma Descartes – e refere-se a todos os fenômenos
discretos e delimitados, e do qual você e eu fazemos parte enquanto pessoas
individuais. Socialmente, é o espaço da propriedade privada e de outras
entidades territoriais delimitadas (como Estados, unidades administrativas,
planos urbanos e grades urbanas). Quando o engenheiro de Descartes con-
templa o mundo com um sentido de domínio, trata-se de um mundo de
espaço (e de tempo) absoluto, onde todas as incertezas e ambiguidades

..............................................................................
1 No Brasil, publicado como A justiça social e a cidade (HARVEY, 1980).

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128 Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

} O ESPAÇO COMO PALAVRA-CHAVE - HARVEY, D. }

podem em princípio ser banidas e onde o cálculo humano pode florescer
sem entraves.

A noção de espaço relativo é associada principalmente ao nome
de Einstein e às geometrias não euclidianas que começaram a ser mais
sistematicamente construídas no século XIX. O espaço é relativo em dois
sentidos: de que há múltiplas geometrias que podemos escolher e de que o
quadro espacial depende estritamente daquilo que está sendo relativizado
e por quem. Quando Gauss estabeleceu pela primeira vez as regras da
geometria esférica não euclidiana para lidar com os problemas da descrição
precisa da superfície curva da Terra, ele também afirmou a declaração de
Euler de que um mapa com escala perfeita de qualquer porção da superfície
terrestre é impossível. Einstein tomou o argumento mais tarde pontuando
que todas as formas de medição dependem do modelo de referência do
observador. A ideia da simultaneidade no universo físico, ele disse, deve
ser abandonada.

Deste ponto de vista, é impossível compreender o espaço indepen-
dentemente do tempo, e isto implica uma modificação importante na lin-
guagem, com uma passagem do espaço e do tempo ao espaço-tempo ou
espaço-temporalidade. Isto foi, claro, a realização de Einstein para chegar
com termos exatos para examinar fenômenos como a curvatura do espaço,
ao examinar processos temporais operando na velocidade da luz (OSSER-
MAN, 1995). Mas no esquema de Einstein o tempo permanece fixo enquanto
é o espaço que dobra de acordo com certas regras observáveis (da mesma
maneira que Gauss elabora a geometria esférica como um modo de in-
vestigar através da triangulação a superfície curva da Terra).

Em um nível bem trivial da atividade do geógrafo, nós sabemos
que o espaço das relações parece ser, e é, muito diferente dos espaços da
propriedade privada. O caráter único da localização e da individualização,
definido pelos territórios limitados do espaço absoluto, oferece um caminho
para uma multiplicidade de localizações que são equidistantes de, digamos,
alguma localização central da cidade. Podemos criar mapas completamente
diferentes de localizações relativas diferenciando-as entre distâncias medidas
em termos de custo, tempo, modo de transporte (carro, bicicleta ou skate)
e mesmo interromper continuidades espaciais ao olhar para redes, relações
topológicas (a rota ótima para o carteiro), e assim por diante.

Sabemos, dadas as fricções diferenciais da distância encontradas
na superfície terrestre, que a distância mais curta (medida em termos de
tempo, custo, energia gastos) entre dois pontos não é necessariamente dada
pela linha reta frequentemente imaginada. Ademais, o ponto de vista do
observador joga um papel crucial. A típica visão de Nova Iorque no mundo,
como o famoso cartoon de Steinberg sugere, desaparece rapidamente quan-
do pensamos nas terras do oeste do rio Hudson ou do leste de Long Island.
Toda esta relativização, é importante notar, não necessariamente reduz ou
elimina a capacidade de cálculo ou controle, mas indica que regras e leis

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especiais são necessárias para fenômenos particulares e processos em con-
sideração.

Dificuldades aparecem, contudo, se ambicionamos integrar co-
nhecimentos de diferentes campos em um esforço mais unificado. A espaço-
temporalidade necessária para representar fluxos de energia através de sis-
temas ecológicos adequadamente, por exemplo, pode não ser compatível
com aquela de fluxos financeiros através de mercados globais. Entender os
ritmos espaço-temporais da acumulação de capital requer um quadro bas-
tante diferente daquele necessário para entender as mudanças climáticas
globais. Tais disjunções, que tornam o trabalho extremamente difícil, não
são necessariamente uma desvantagem desde que as reconheçamos como
tais. Comparações entre molduras espaço-temporais diferentes podem ilumi-
nar os problemas da escolha política (devemos favorecer a espaço-tempo-
ralidade dos fluxos financeiros ou aquela dos processos ecológicos que
eles tipicamente destroem, por exemplo?).

O conceito relacional de espaço é mais frequentemente associado
ao nome de Leibniz que, em uma famosa série de cartas a Clarke (efe-
tivamente uma relação próxima de Newton), faz sérias objeções à visão
absoluta do espaço e tempo tão central às teorias de Newton. Sua principal
objeção é teológica. Newton dava a entender que até mesmo Deus estava
dentro do espaço e do tempo absolutos mais do que no comando da espaço-
temporalidade. Por extensão, a visão relacional do espaço sustenta que
não há tais coisas como espaço ou tempo fora dos processos que os definem
(se Deus fez o mundo, então Ele também escolheu fazer, fora de muitas
possibilidades, espaço e tempo de um tipo particular).

Processos não ocorrem no espaço, mas definem seu próprio qua-
dro espacial. O conceito de espaço está embutido ou é interno ao processo.
Esta formulação implica que, como no caso do espaço relativo, é impossível
separar espaço e tempo. Devemos, portanto, focar no caráter relacional do
espaço-tempo mais do que no espaço isoladamente.

A noção relacional do espaço-tempo implica a ideia de relações
internas; influências externas são internalizadas em processos ou coisas es-
pecíficos através do tempo (do mesmo modo que minha mente absorve
todo tipo de informação e estímulos externos para dar lugar a padrões es-
tranhos de pensamento, incluindo tanto sonhos e fantasias quanto tentativas
de cálculo racional). Um evento ou uma coisa situada em um ponto no es-
paço não pode ser compreendida em referência apenas ao que existe so-
mente naquele ponto. Ele depende de tudo o que acontece ao redor dele,
do mesmo modo que todos aqueles que entram em uma sala para discutir
trazem com eles um vasto espectro de dados da experiência acumulados
na sua relação com o mundo. Uma grande variedade de influências dife-
rentes que turbilham sobre o espaço no passado, no presente e no futuro
concentram e congelam em um certo ponto (por exemplo, em uma sala de
conferência) para definir a natureza daquele ponto. A identidade, nesta

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argumentação, significa algo bastante diferente do sentido que temos dela
a partir do espaço absoluto. Assim chegamos a uma versão ampliada do
conceito de mônada de Leibniz.

Medições se tornam mais e mais problemáticas quando nos mo-
vemos em direção a um mundo de espaço-tempo relacional. Mas por que
seria presumível que o espaço-tempo somente existe se é mesurável e quanti-
ficável em certas formas tradicionais? Isto nos leva a algumas reflexões in-
teressantes sobre o fracasso (talvez seja melhor falarmos de simples limita-
ções) do positivismo e do empirismo para desenvolver abordagens adequa-
das dos conceitos espaço-temporais para além daqueles que podem ser
mensurados.

De certo modo, concepções relacionais de espaço-tempo nos le-
vam ao ponto onde matemática, poesia e música convergem, se não mesmo
se fundem. E isto, de um ponto de vista científico (em oposição ao estético),
é um anátema para aqueles de inclinação positivista ou materialista vulgar.
Neste ponto, o compromisso kantiano de reconhecer o espaço como real,
mas somente acessível pela intuição, tenta construir uma ponte entre
Newton e Leibniz precisamente pela incorporação do conceito de espaço
à teoria do juízo estético. Contudo, o retorno à popularidade e importância
de Leibniz, não somente como o guru do ciberespaço mas também como
um dos pensadores fundamentais para abordagens mais dialéticas do pro-
blema da relação cérebro-mente e das formulações da teoria quântica, si-
naliza algum tipo de impulso para além dos conceitos absolutos e relativos
e de suas qualidades mais facilmente mensuráveis, bem como do compro-
misso kantiano.

Mas o terreno relacional é um terreno extremamente desafiador
e difícil para se trabalhar. Há muitos pensadores que, com o passar dos a-
nos, aplicaram seu talento para refletir sobre o pensamento relacional. Alfred
North Whitehead era fascinado pela necessidade da abordagem relacional
e contribuiu muito para o seu avanço2 (FITZGERALD, 1979). Deleuze (1992)
também desenvolveu muitas dessas ideias, tanto em suas reflexões sobre
Leibniz (com as reflexões sobre a arquitetura barroca e os matemáticos da
dobra no trabalho de Leibniz), quanto naquelas sobre Spinoza.

2. Usos dos modos espaço-temporais

Mas por que e como eu poderia, como um geógrafo em atividade,
considerar útil o modo de abordagem relacional do espaço-tempo? A res-
posta é simplesmente que certas temáticas, como o papel político das me-
mórias coletivas nos processos urbanos, somente podem ser abordadas desta
maneira. Não posso encerrar as memórias políticas e coletivas dentro de

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2 Tentei chegar a um acordo com as abordagens de Whitehead em Harvey (1996).

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um espaço absoluto (situá-las claramente em uma grade ou sobre um mapa),
nem compreender sua circulação em função de regras, ainda que sofis-
ticadas, do espaço-tempo relativo. Se coloco a questão: “o que significa a
praça Tiananmen ou Ground Zero [Marco Zero]3?”, o único modo de encon-
trar uma resposta é pensando em termos relacionais. Este é o problema
com o qual me confrontei quando escrevia sobre a basílica de Sacré Coeur
de Paris. Também, como mostrarei em breve, é impossível compreender a
economia política marxista sem adotar uma perspectiva relacional.

Assim, o espaço (espaço-tempo) é absoluto, relativo ou relacional?
Não sei se existe uma resposta ontológica a esta questão. No meu trabalho,
considero o espaço como sendo os três. Esta foi a conclusão a que cheguei
há trinta anos e não encontrei nenhuma razão particular para mudar de
opinião. Veja o que escrevi à época:

O espaço não é nem absoluto, nem relativo, nem relacional em si
mesmo, mas ele pode tornar-se um ou outro separadamente ou simul-
taneamente em função das circunstâncias. O problema da concepção
correta do espaço é resolvido pela prática humana em relação a ele.
Em outros termos, não há respostas filosóficas a questões filosóficas
que concernem à natureza do espaço – as respostas se situam na prá-
tica humana. A questão ‘o que é o espaço?’ é por consequência subs-
tituída pela questão ‘como é que diferentes práticas humanas criam
e usam diferentes concepções de espaço?’. A relação de propriedade,
por exemplo, cria espaços absolutos nos quais o controle monopolista
pode operar. O movimento de pessoas, de bens, serviços e informação
realiza-se no espaço relativo porque o dinheiro, tempo, energia, etc,
são necessários para superar a fricção da distância. Parcelas de terra
também incorporam benefícios porque contêm relações com outras
parcelas... sob a forma do arrendamento, o espaço relacional se torna
um aspecto importante da prática social humana. (HARVEY, 1973).

Há regras para decidir onde e quando um quadro espacial é pre-
ferível a outro? Ou a escolha é arbitrária, sujeita aos caprichos da prática
humana? A decisão de utilizar uma ou outra concepção depende cer-
tamente da natureza dos fenômenos considerados. A concepção absoluta
pode ser perfeitamente adequada para as questões de delimitação da pro-
priedade e determinação de fronteiras, mas ela não auxilia em nada na
questão sobre o que é a praça Tiananmen, Ground Zero [Marco Zero] ou
a basílica do Sacré Coeur. Por isso considero útil – ao menos a título de tes-
te interno – esboçar justificativas pela escolha de um espaço de referência
absoluto, relativo ou relacional.

Além disso, muitas vezes em minhas práticas vejo-me presumindo
que há alguma hierarquia no trabalho entre esses três espaços, no sentido
de que o espaço relacional pode incluir os espaços relativo e absoluto, o

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3 “Marco Zero” é o local onde se encontravam as Torres Gêmeas em Manhattan, Nova York.

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relativo pode incluir o espaço absoluto, mas que o espaço absoluto é apenas
absoluto. Mas, sem hesitação, não avançarei neste ponto de vista como um
princípio heurístico e, mais ainda, não tentarei defendê-lo teoricamente.
Acho mais interessante conservar os três conceitos em tensão dialética um
com o outro e pensar constantemente nas interações que eles travam entre
si.

Ground Zero [Marco Zero] é um espaço absoluto ao mesmo tem-
po em que é relativo e relacional no espaço-tempo. Deixe-me tentar colocar
essas ideias em um contexto imediato. Eu faço uma conferência em uma
sala. O alcance das minhas palavras é limitado pelo espaço absoluto de
suas paredes particulares e pelo tempo absoluto da conferência. Para me
ouvir, as pessoas devem estar presentes no interior deste espaço absoluto e
durante este tempo absoluto. As pessoas que não podem entrar na sala são
excluídas, e aquelas que chegam mais tarde não poderão me ouvir. Aquelas
que estão presentes podem ser identificadas como indivíduos – indi-
vidualizados –, cada um em função de um espaço absoluto, como, por
exemplo, o assento que ele ocupa durante este período de tempo. Mas me
encontro igualmente em um espaço relativo em relação ao meu público.
Estou aqui e ele está lá.

Tento me comunicar através do espaço por um meio – a atmosfera
– que refrata minhas palavras de modo diferenciado. Eu falo com voz baixa
e a clareza das minhas palavras se desvanece através do espaço: a última fi-
leira não escuta mais nada. Se há uma difusão da conferência por vídeo
em Aberdeen, eu posso ser escutado lá, mas não na última fileira da própria
sala. Minhas palavras são recebidas de maneira diferenciada no espaço-
tempo relativo. A individualização é mais problemática uma vez que são
muitas pessoas exatamente na mesma localização relativa que eu neste es-
paço-tempo. Todas as pessoas que se encontram na primeira fileira são
equidistantes em relação a mim. Uma descontinuidade no espaço-tempo
surge entre aqueles que podem ouvir e aqueles que não podem. A análise
do que está acontecendo no espaço e tempo absolutos da conferência na
sala parece muito diferente quando analisada através da lente do espaço-
tempo relativo.

Mas então há ainda o componente relacional. Indivíduos na au-
diência trazem ao espaço e tempo absolutos da conferência todo tipo de
ideias e experiências adquiridas a partir do espaço-tempo de suas próprias
trajetórias de vida, e tudo isto está co-presente na sala: ele não pode parar
de pensar no debate que houve durante o café da manhã, ela não pode
apagar de sua mente as terríveis imagens de morte e destruição que viu nas
notícias da noite anterior. Qualquer coisa na minha maneira de falar lembra
a cada uma dessas pessoas presentes um evento traumático perdido em um
passado distante, e minhas palavras fazem lembrar uma outra reunião po-
lítica que ela frequentava nos anos 1970. Minhas palavras expressam certa
raiva sobre o que está acontecendo no mundo. Percebo-me pensando

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enquanto falo que tudo o que estamos fazendo nesta sala é estúpido e tri-
vial. Há uma tensão palpável na sala. Por que não tentamos derrubar o go-
verno? Eu me liberto de todas essas relacionalidades, volto-me ao espaço
absoluto e relativo da sala e tento abordar o tema do espaço como palavra-
chave de maneira seca e técnica.

A tensão se dissipa e alguém na primeira fila cochila. Eu sei onde
todo mundo se encontra no espaço e tempo absolutos, mas não faço a me-
nor ideia, como diz o ditado, de “onde se encontra a cabeça das pessoas”.
Posso suspeitar que certas pessoas seguem minhas palavras e outras não,
mas nunca estou seguro. Eis aí, contudo, seguramente, o elemento mais
importante disso tudo. É aqui, sobretudo, que consiste a transformação das
subjetividades políticas. A relacionalidade é enganosa, se não mesmo im-
possível de apreender, mas nem por isso é menos essencial.

Com esse exemplo, espero mostrar que existe um limiar a respeito
da própria espacialidade, porque nós nos situamos inevitavelmente dentro
dos três quadros de referência simultaneamente, ainda que não ne-
cessariamente de maneira equivalente. Podemos acabar, muitas vezes sem
notar, favorecendo uma ou outra definição através de nossas ações. Em um
modo absoluto, vou realizar uma ação e tentar chegar a um conjunto de
conclusões; em um modo relativo, construirei minhas interpretações dife-
rentemente e farei algo a mais; e se tudo parece ser diferente através dos
filtros relacionais, vou me conduzir de um modo muito diferente.

Aquilo que nós fazemos, tanto quanto o que compreendemos, é
integralmente dependente do quadro espaço-temporal primário dentro do
qual nós nos situamos. Consideremos a maneira como isto funciona exa-
minando o mais perigoso dos conceitos sociopolíticos, a saber, o conceito
de “identidade”. As escolhas são claras no espaço e tempo absolutos, mas
elas se tornam mais fluidas quando passamos ao espaço-tempo relativo, e
muito difíceis em um mundo relacional. Mas é somente dentro deste último
quadro que nós podemos nos confrontar com numerosos aspectos da polí-
tica contemporânea, na medida em que se trata de um mundo de subje-
tividade e de consciências políticas.

Du Bois tentou, há muito tempo, formular o problema em termos
do que ele chamou de “dupla consciência” – o que significa, ele perguntou,
carregar em si mesmo a experiência de ser tanto negro quanto americano?
Podemos complicar ainda mais a questão perguntando o que significa ser
americana, negra, mulher, lésbica e da classe trabalhadora? Como todas
essas relacionalidades entram na consciência política do sujeito? E quando
consideramos outras dimensões – de migrantes, grupos de diásporas, turistas
e viajantes e aqueles que assistem à atual mídia global e parcialmente filtram
ou absorvem suas mensagens cacofônicas –, então a questão primária com
que estamos lidando é entender como todo este mundo relacional de ex-
periência e informação se internaliza no sujeito político particular (ainda
que individualizado no espaço e tempo absolutos) para suportar esta ou

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aquela linha de pensamento e de ação. Claramente, não podemos com-
preender o terreno mutável no qual subjetividades políticas se formam e
ações políticas ocorrem sem pensar sobre o que acontece em termos rela-
cionais.

Se a distinção entre as concepções absoluta, relativa e relacional
do espaço fosse o único meio para desvendar o significado de espaço como
palavra-chave, poderíamos permanecer aí. Feliz ou infelizmente, há outros
modos igualmente convincentes de tratar este problema. Muitos geógrafos,
por exemplo, recentemente sinalizaram uma importante diferença entre o
uso do conceito de espaço como elemento essencial dentro de um projeto
materialista de compreensão de geografias concretas sobre o terreno e o
emprego geral de metáforas espaciais na teoria social, literária e cultural.
Estas metáforas, além disso, foram frequentemente utilizadas para submeter
à crítica as metanarrativas (como a teoria marxiana) e as estratégias dis-
cursivas nas quais a dimensão temporal predomina. Isso provocou um imenso
debate sobre o papel do espaço na teoria social, literária e cultural.

Não tenho a intenção de entrar nos detalhes da discussão sobre o
que chamamos a “virada espacial” em geral, nem sobre sua relação com o
pós-modernismo em particular. Mas minha própria posição sempre foi bem
clara: a própria consideração do espaço e do espaço-tempo tem efeitos
cruciais sobre como teorias e abordagens são articuladas e desenvolvidas.
Isto não justifica, porém, absolutamente renunciar a toda tentativa de formu-
lação de metateorias (a consequência seria nos fazer retornar à geografia
dos anos 1950 – que é, de forma interessante, a tendência, ainda que incons-
ciente, de um significativo segmento da geografia britânica atual). Considerar
o espaço como uma palavra-chave consiste, neste sentido, em compreender
a maneira pela qual o conceito pode ser vantajosamente integrado dentro
das metateorias sociais, literárias e culturais existentes, e examinar os efeitos.

Cassirer (1994), por exemplo, elabora uma divisão tripartite dos
modos humanos da experiência espacial ao distinguir entre os espaços or-
gânico, perceptivo e simbólico.4 O primeiro designa todas as formas de ex-
periências espaciais biologicamente (logo materialmente, e registradas pelas
características específicas de nossos sentidos) dadas. O espaço perceptivo
se refere às maneiras pelas quais processamos neurologicamente a experiên-
cia física e biológica e a registramos no universo do pensamento. O espaço
simbólico, por outro lado, é abstrato (e pode supor o desenvolvimento de
uma linguagem abstrata como a geometria ou a construção de formas ar-
quitetônicas ou pictóricas). O espaço simbólico gera significações par-
ticulares através de leituras e de interpretações.

A questão das práticas estéticas aparece neste campo. Neste do-
mínio, Langer (1953.), por sua vez, distingue os espaços “real” e “virtual”.
Segundo a autora, este último consiste em um “espaço construído pelas

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4 Ver, também, Harvey (1973, p. 28).

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formas, as cores, etc.”, a fim de produzir as imagens e as ilusões intangíveis
que constituem o coração de todas as práticas estéticas. A arquitetura, diz
ela, “é uma arte plástica, e seu primeiro sucesso é sempre, inconsciente e
inevitavelmente, uma ilusão: algo de puramente imaginário ou conceitual
traduzido nas impressões visuais”. Aquilo que existe no espaço real pode
ser descrito facilmente, mas a fim de compreender o afeto que acompanha
a confrontação da obra de arte nós devemos explorar o universo muito di-
ferente do espaço virtual. E este, diz ela, projeta-nos sempre dentro de um
domínio étnico particular. Esse é o tipo de ideia que eu primeiramente
abordei em Social justice and the city.

3. O aporte de Henri Lefebvre

É a partir desta tradição do pensamento espacializado que Lefebvre
(quase certamente inspirado em Cassirer) construiu sua própria divisão tri-
partite: o espaço material (o espaço da experiência e da percepção aberto
ao toque físico e à sensação); a representação do espaço (o espaço como
concebido e representado); e os espaços de representação (o espaço vivido
das sensações, da imaginação, das emoções e significados incorporados no
modo como vivemos o dia a dia). (LEFEBVRE, 1991).

Se me concentro em Lefebvre não é porque, como supõem muitos
autores na teoria cultural e literária, ele concede o momento originário do
qual deriva todo o pensamento relativo à produção do espaço (tal tese é
manifestamente absurda), mas porque considero mais pertinente trabalhar
com as categorias dele do que com aquelas de Cassirer. O espaço material
corresponde simplesmente para nós, humanos, ao mundo da interação
tátil e sensorial com a matéria, é o espaço da experiência. Os elementos,
momentos e eventos deste mundo são constituídos da materialidade de al-
gumas qualidades. A maneira pela qual representamos este mundo é outra
coisa, mas ainda aqui nós não concebemos ou representamos o espaço de
modo arbitrário; nós procuramos as descrições apropriadas, se não exatas,
das realidades materiais que nos circundam por meio de representações
abstratas (palavras, gráficos, cartas, diagramas, imagens etc.).

Henri Lefebvre, como Walter Benjamin, insiste que nós não vive-
mos como átomos materiais flutuando ao redor de um mundo material;
nós temos igualmente imaginações, medos, emoções, psicologias, desejos
e sonhos (BENJAMIN, 1999). Estes espaços de representação são uma parte
integrante de nosso modo de viver no mundo. Podemos igualmente procurar
representar a maneira com que este espaço é emocionalmente, afetivamente,
mas também materialmente vivido através de imagens poéticas, compo-
sições fotográficas, reconstruções artísticas. A estranha espaço-temporalidade
de um sonho, de um desenho, de uma aspiração oculta, de uma lembrança
perdida ou mesmo de uma sensação ou de um tremer de medo quando

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andamos em uma rua, pode ser representada através de obras de arte que,
em última instância, têm sempre uma presença mundana no espaço e tempo
absolutos. Leibniz, igualmente, colocou a questão da existência de mundos
e de sonhos espaço-temporais alternativos como de interesse considerável.

É tentador, como no caso da primeira divisão tripartite dos termos
espaciais que evocamos, considerar as três categorias de Lefebvre ordenadas
hierarquicamente. Mas aí também parece mais apropriado conservar as
três categorias em tensão dialética. A experiência física e material da ordem
espacial e temporal é mediada, em um certo grau, pela maneira com que
espaço e tempo são representados. O oceanógrafo/físico nadando entre as
ondas pode experimentá-los de modo diferente do poeta enamorado de
Walt Whitman ou do pianista que adora Debussy. Ler um livro sobre a
Patagônia afetará a maneira como experimentaremos aquele espaço quando
formos até lá, mesmo que uma dissonância cognitiva considerável possa se
instalar entre as expectativas geradas pela escrita e o modo pelo qual a
experiência é efetivamente sentida.

Os espaços e os tempos da representação que nos envolvem e
nos rodeiam na nossa vida cotidiana afetam tanto nossas experiências diretas
quanto nossa interpretação e compreensão. Podemos nem mesmo notar as
qualidades materiais dos agenciamentos espaciais incorporados na vida
cotidiana, porque nós nos conformamos espontaneamente às rotinas. No
entanto, através das rotinas materiais cotidianas nós compreendemos o fun-
cionamento das representações espaciais e construímos espaços de repre-
sentação para nós mesmos (por exemplo, o sentimento intuitivo de segurança
em um bairro familiar ou por sentir-se “em casa”). Somente conseguimos
notar quando algo aparece completamente fora do lugar. O que quero su-
gerir é que o que realmente importa é a relação dialética entre as categorias,
mesmo que seja útil, com vistas ao entendimento, distinguir cada elemento
como um momento separado da experiência do espaço e do tempo.

Este modo de pensar o espaço me ajuda a interpretar as obras de
arte e a arquitetura. Uma pintura como O grito, de Munch, é um objeto
material, mas funciona como um estado psíquico (o espaço da representação
ou espaço vivido de Lefebvre), e tenta, através de um conjunto preciso de
códigos representacionais (a representação do espaço ou espaço concebido)
adotar uma forma física (o espaço material da pintura relacionado à nossa
experiência física efetiva) que nos diz alguma coisa sobre a maneira pela
qual Munch vivia este espaço. Este dá a impressão de ter vivido um tipo de
pesadelo horrível, o gênero de pesadelo do qual acordamos gritando. E
conseguiu exprimir algo desse sentido através do objeto físico. Muitos artistas
contemporâneos, utilizando multimídia e técnicas cinéticas, criam espaços
experienciais nos quais muitos modos de experiência do espaço-tempo se
combinam. Veja, por exemplo, como é descrita no catálogo a contribuição
de Judith Barry para a Terceira Bienal de Arte Contemporânea de Berlim
(2004):

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No seu trabalho experimental, a vídeo-artista Judith Barry questiona
sobre o uso, a construção e a interação complexa entre espaços pú-
blico e privado, mídia, sociedade e gêneros. Os temas das suas insta-
lações e de seus escritos teóricos se posicionam em um campo de
observação que evoca a memória histórica, a comunicação de massa
e a percepção. Em um intervalo que se situa entre o imaginário do
espectador e a arquitetura gerada pelas mídias, ela criou espaços
imaginários, retratos alienados da realidade profana... Na obra in-
titulada Voice Off... o espectador penetra na estreiteza claustrofóbica
do espaço de exibição, se aprofunda na obra e, forçado a mover-se
pela instalação, prova impressões não somente cinéticas, mas cines-
tésicas. O espaço de projeção dividido oferece a possibilidade de
entrar em contato com vozes diferentes. O uso e a escuta da voz co-
mo elemento principal, e a intensidade da tensão psíquica – especial-
mente do lado masculino da projeção – evoca a força deste objeto
intangível e efêmero. As vozes demonstram aos espectadores o modo
pelo qual é possível mudar através delas, como procuramos controlá-
las e a perda que sentimos quando não as ouvimos mais.

O catálogo conclui que Berry “põe em cena espaços de trânsito
que deixam irresoluta a ambivalência entre sedução e reflexão.” (TERCEIRA
BIENAL DE ARTE CONTEMPORÂNEA DE BERLIM, 2004, p. 48; 49).

Mas para compreender plenamente a descrição do trabalho de
Barry, é conveniente aportar os conceitos de espaço e de espaço-tempo a
um nível de complexidade superior. Muitos elementos desta descrição não
correspondem às categorias lefebvreanas, mas se referem mais às distinções
entre espaço e tempo absolutos (a rígida estrutura física da exposição), es-
paço-tempo relativo (o movimento sequencial do visitante através do es-
paço) e espaço-tempo relacional (as lembranças, as vozes, a tensão psíquica,
o intangível e o caráter efêmero, bem como a claustrofobia). Nós não pode-
mos, contudo, abandonar as categorias lefebvreanas. Os espaços construídos
possuem dimensões materiais, concebidas e vividas.

Proponho, por isso, efetuar um salto especulativo e colocar a
divisão tripartite entre o espaço-tempo absoluto, relativo e relacional em
relação com a divisão tripartite entre espaço experimentado, concei-
tualizado e vivido, identificados por Lefebvre. O resultado é uma matriz
(de três linhas e três colunas) cujos pontos de interseção remetem a diferentes
modalidades de compreensão dos significados do espaço e do espaço-tempo.
Seria possível objetar, com justiça, que estou aqui restringindo possibilidades
porque um modo de representação matricial está autoconfinado a um
espaço absoluto. Esta é uma objeção perfeitamente válida.

À medida que me engajo em uma prática representacional (con-
ceitualização), não posso fazer justiça às dimensões experimentadas ou vi-
vidas da espacialidade. Por definição, portanto, a matriz que eu estabeleço
e o modo como posso usá-la tem um poder revelador limitado. Mas com
tudo isso esclarecido, penso ser útil considerar as combinações que surgem
das diferentes interseções da matriz. A virtude da representação no espaço

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absoluto é que ela permite identificar os fenômenos com uma grande clareza.
E com um pouco de imaginação, é possível refletir dialeticamente através
dos elementos da matriz, de modo que cada momento é imaginado com
uma relação interna a todas as outras. Proponho ilustrar o que tenho em
mente (de algum modo condensado, arbitrário e esquemático) na Figura 1.
As entradas da matriz têm um caráter muito mais sugestivo que definitivo
(os leitores poderão querer construir suas próprias entradas para atingir
algum sentido da significação que proponho).

4. Entre história e memória

Parece-me interessante ler as categorias da matriz, vertical e hori-
zontalmente, e imaginar cenários de combinações complexas. Imaginem,
por exemplo, o espaço absoluto de um condomínio fechado (gated com-
munity) emergente na costa de Nova Jersey. Alguns de seus habitantes se
movem no espaço relativo diariamente, ao entrar ou sair do distrito fi-
nanceiro de Manhattan, onde se inserem no movimento dos fluxos de crédito
e de investimentos que afetam a vida social por todo o planeta. Eles adquirem
assim um poder financeiro que lhes permite trazer de volta para o espaço
absoluto de sua comunidade toda a energia, o exotismo alimentar e as
mercadorias maravilhosas necessárias a seu estilo de vida privilegiado. Con-
tudo, os habitantes se sentem vagamente ameaçados, porque percebem
que existe no mundo um ódio visceral, indefinível e impossível de localizar
para com tudo o que é americano – esse ódio se chama “terrorismo”. Eles
apoiam então um governo que promete protegê-los dessa ameaça nebulosa.
Mas, ao mesmo tempo, tornam-se a cada dia mais paranoicos diante da
hostilidade percebida no mundo que os rodeia e procuram reforçar seu es-
paço absoluto para se proteger, construindo muros mais e mais altos e con-
tratando vigilantes armados para proteger suas fronteiras. Enquanto isso, o
consumo descontrolado de energia para fazer funcionar seus veículos blin-
dados que os levam à cidade todo dia acrescenta uma gota que faz trans-
bordar o copo em relação ao clima global. Os padrões de circulação at-
mosférica mudam dramaticamente. Então, conforme o sedutor, mas im-
preciso, imaginário popular da teoria do caos, uma borboleta bate as asas
em Hong Kong, desencadeia um ciclone devastador que atinge a costa de
Nova Jersey e varre esse condomínio fechado do mapa. Muitos de seus
residentes morrem porque têm tanto medo do mundo exterior que não es-
cutam as mensagens de alarme que os convidam a evacuar a área. Se se
tratasse de uma produção hollywoodiana, um cientista solitário perceberia
o perigo e salvaria a mulher que ama, que até então o ignorava, mas que
agora, agradecida, cai de amores por ele...

Ao se contar uma história simples como esta, percebe-se que é
impossível confinar-se em apenas uma modalidade de pensamento espacial

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Figura 1

Figura 1. Uma matriz dos possíveis significados do espaço como palavra-chave

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e espaço-temporal. As ações empreendidas no espaço absoluto só fazem
sentido em termos relacionais. Ainda mais interessantes, portanto, são as
situações em que momentos na matriz estão em uma tensão dialética mais
explícita. Deixe-me ilustrar.

Quais princípios espaciais e espaço-temporais devem ser mobi-
lizados para se redesenhar o lugar conhecido como “Marco Zero” em Man-
hattan? Trata-se de um espaço absoluto que pode ser reconstruído mate-
rialmente e, para este fim, cálculos de engenharia (informados pela me-
cânica newtoniana) e projetos de arquitetura precisam ser feitos. Há inú-
meras discussões sobre muros de contenção e a capacidade do local de
suportar grandes transformações. Julgamentos estéticos sobre a maneira
como o espaço, uma vez transformado em um artefato material de certo
tipo, pode ser vivido, bem como concebido e experimentado, tornam-se
igualmente importantes (Kant aprovaria). O problema é organizar o espaço
físico a fim de produzir um efeito emocional e, ao mesmo tempo, com-
patibilizá-lo com certas expectativas (tanto comerciais quanto emocionais
e estéticas) sobre como o espaço poderia ser vivido. Uma vez construída, a
experiência do espaço poderia ser mediada pelas formas representacionais
(como os guias e planos) que nos ajudam a interpretar os significados pre-
tendidos do lugar assim reconstruído. Mas mover-se dialeticamente apenas
através da dimensão do espaço absoluto é muito menos recompensador
do que os insights produzidos ao se recorrer a outros enquadramentos es-
paço-temporais.

Os investidores imobiliários capitalistas estão plenamente cons-
cientes da localização relativa do sítio e julgam suas perspectivas de de-
senvolvimento comercial de acordo com uma lógica de relações de troca.
Sua centralidade e proximidade em relação às funções de comando e de
controle de Wall Street são atributos importantes, e se o acesso aos meios
de transporte puder ser melhorado ao longo do processo de reconstrução,
melhor ainda, já que isso acrescentaria valor ao terreno e à propriedade.
Para os investidores, o sítio não existe meramente no interior do espaço-
tempo relativo: a sua reestruturação oferece perspectivas de transformação
do espaço-tempo relativo, assim como perspectivas de elevação do valor
comercial dos espaços absolutos (através de melhorias no acesso a aeroportos,
por exemplo). O horizonte temporal seria dominado por considerações
relativas à taxa de amortização e à taxa de interesse/desconto aplicada aos
investimentos de capital fixo no ambiente construído.

Porém, haveria muito provavelmente objeções por parte da po-
pulação, lideradas pelas famílias daqueles que morreram naquele local,
para pensar-se e construir-se apenas com base em lógicas socioespaciais
absolutas ou relativas. Seja o que for que construírem ali, o edifício tem de
dizer algo sobre sua história e sua memória. Haverá também, provavelmente,
pressões para que se diga algo sobre os significados de comunidade e de
nação, bem como sobre possibilidades futuras (talvez mesmo a perspectiva

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de verdades eternas). Tampouco se poderia mais ignorar a questão de sua
conectividade espacial e relacional com o resto do mundo. Até mesmo os
investidores capitalistas não seriam avessos a uma combinação de seus in-
teresses comerciais mundanos com os relatos mais simbólicos e inspiradores
(que enfatizam o poder e a indestrutibilidade do sistema político-econômico
do capitalismo global que recebeu tamanho golpe em 11/9) ao erigir, por
exemplo, um imponente símbolo fálico provocador. Eles também buscam
um poder expressivo no espaço-tempo relacional.

Mas há todo tipo de relacionalidades a explorar. O que saberemos
sobre aqueles que atacaram e até onde vamos estabelecer conexões? O
sítio é – e terá – uma presença relacional no mundo, independentemente
do que ali for construído, e é importante refletir sobre como essa presença
funciona: será vivenciada como um símbolo da arrogância dos EUA ou
como um signo de compaixão e compreensão global? Considerar tais ques-
tões requer que abracemos uma concepção relacional do espaço-tempo.

Se, como se referiu Benjamin (1968), história (um conceito tem-
poral relativo) não é o mesmo que memória (um conceito temporal relacio-
nal), então temos uma escolha entre historicizar os eventos do 11 de Se-
tembro ou tentar submetê-los a um trabalho de memória. Se o lugar é me-
ramente historicizado no espaço relativo (por um certo tipo de monumen-
talidade), então isso impõe uma narrativa fixa no espaço. O efeito será o
encerramento de futuras possibilidades e interpretações. Tal fechamento
tenderá a estreitar a potência geradora que permitiria construir um futuro
diferente. Por outro lado, memória é, segundo Walter Benjamin (1968),
uma potencialidade que às vezes pode “brilhar” incontrolavelmente em
momentos de crise para revelar novas possibilidades. O modo como o
local poderia ser vivido por aqueles que o encontram se torna então im-
previsível e incerto.

A memória coletiva, um difuso, mas poderoso sentido que tanto
permeia uma cena urbana, pode desempenhar um papel significativo na
animação dos movimentos políticos e sociais. O Marco Zero não pode ser
outra coisa que não um lugar de memória coletiva, e o problema dos ar-
quitetos é traduzir esta sensibilidade difusa em um espaço absoluto de tijolos,
cimento, aço e vidro. E se, como Balzac uma vez colocou, “a esperança é
uma memória que deseja”, então a criação de um “espaço de esperança”
naquele lugar requer que a memória seja internalizada, ao mesmo tempo
em que caminhos são deixados abertos para a expressão do desejo (HARVEY,
2003)

A expressiva relacionalidade do Marco Zero em si mesma levanta
questões fascinantes. As forças que convergiram no espaço para produzir o
11 de Setembro foram complexas. Como, então, podemos considerar essas
forças? É possível que algo experienciado como uma tragédia pessoal e lo-
cal possa ser reconciliado com uma compreensão de forças internacionais
que foram tão poderosamente condensadas naqueles poucos momentos

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de fragilidade, em um lugar particular? Conseguiremos perceber neste es-
paço o ressentimento generalizado a respeito da hegemonia estadunidense
e da maneira egoísta com que ela se exerceu durante as décadas de 1980 e
1990? Conseguiremos saber que a administração Reagan desempenhou
um papel-chave na criação e apoio aos talibãs no Afeganistão, a fim de mi-
nar a ocupação soviética, e que Osama bin Laden passou de aliado dos
EUA a inimigo em razão do apoio estadunidense ao regime corrupto da
Arábia Saudita? Ou aprenderemos apenas sobre “outros” covardes, estran-
geiros e portadores do mal que odiaram os EUA e tentaram destruí-lo em
razão de tudo o que esta nação sustenta em nome da liberdade?

A espaço-temporalidade relacional do evento e do local pode
ser exumada com algum esforço de escavação. Mas a maneira de representá-
la e de materializá-la é incerta. O resultado dependerá claramente de lutas
políticas. E as batalhas mais violentas se travarão em torno do que a recons-
trução do espaço-tempo relacional irá invocar. Esse foi o tipo de questões
que encontrei quando tentei interpretar o significado da basílica de Sacré
Coeur em Paris, tendo como pano de fundo a memória histórica da Comuna
de Paris.

Isso me leva a fazer algumas observações sobre a dimensão polí-
tica do argumento. Pensar as diferentes maneiras como espaço e espaço-
tempo são usados como palavra-chave nos ajuda a definir certas condições
de possibilidade para o engajamento crítico. Isso também nos abre caminhos
para identificarmos reivindicações contraditórias e possibilidades políticas
alternativas, além de nos incitar a considerar a maneira como moldamos
fisicamente nosso meio e o modo como o representamos e vivemos.

Creio ser justo dizer que a tradição marxista não tem sido sufi-
cientemente engajada em questões deste tipo, e que essa falha geral (apesar
de existirem, é claro, numerosas exceções) tem frequentemente significado
a perda de oportunidades para certos tipos de políticas transformadoras.
Se, por exemplo, a arte realista socialista falha ao capturar a imaginação e
se a monumentalidade alcançada sob os regimes comunistas do passado
era tão pobre em inspiração; se comunidades planejadas e cidades comu-
nistas geralmente parecem tão mortas para o mundo, uma forma de se
pensar criticamente sobre tais questões seria então a de voltar o olhar para
os modos de se pensar sobre espaço e espaço-tempo e os papeis não neces-
sariamente limitadores e constringentes que tais perspectivas desem-
penharam nas práticas de planejamento socialistas.

5. O espaço na tradição marxista

Não tem havido muitos debates explícitos sobre tais questões no
âmbito da tradição marxista, ainda que o próprio Marx fosse um pensador
relacional. Em situações revolucionárias como as de 1848, Marx (1963) se

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preocupou com o fato de que o passado poderia ser um pesadelo no cérebro
dos vivos, e imediatamente colocou a questão sobre como uma poesia
revolucionária do futuro poderia ser construída naquele momento. Na
época, Marx também suplicou para que Cabet não levasse seus seguidores
comunistas para o novo mundo. Para Marx (ano), os Icarianos iriam ali
apenas reproduzir as atitudes e crenças interiorizadas da experiência do
velho mundo. Marx aconselhava que eles deveriam permanecer na Europa
como bons comunistas e lutar pela transformação revolucionária naquele
espaço, mesmo que houvesse o risco de uma revolução realizada “no nosso
pequeno canto do mundo” ser vítima de forças globais circundantes (apud
MARIN, 1984).

Lenin, claramente angustiado pelo modo de apresentação idea-
lista de Mach, procurou reforçar as concepções absolutas e mecanicistas
de espaço e tempo associadas a Newton como a única base materialista
possível para a investigação científica. Ele o fez ao mesmo tempo em que
Einstein colocava em evidência concepções relativas, mas igualmente mate-
rialistas, do espaço. A visão estrita de Lenin foi, em algum grau, atenuada
pela virada de Lukács para uma perspectiva mais flexível da história e da
temporalidade. Mas a perspectiva construtivista de Lukács na relação com
a natureza foi categoricamente rejeitada pela afirmação de Wittfogel de
um materialismo nu e cru que assumiu as características de um determinismo
ambiental. Por outro lado, nos trabalhos de Thompson, Williams e outros,
encontramos diferentes níveis de apreciação, particularmente da dimensão
temporal, embora espaço e lugar estejam também onipresentes.

No romance de Raymond Williams (1989), People of the Black
Mountains, a relacionalidade do espaço-tempo é central. Williams (1989)
a utiliza para dar uma coerência à narrativa, e enfatiza as diferentes formas
de conhecimento que acompanham os diferentes sentidos de espaço-tempo.

Se vidas e lugares vinham sendo seriamente buscados, uma poderosa
ligação a vidas e lugares era plenamente demandada. O modelo do
poliestireno e seus equivalentes textuais e teóricos mantiveram-se
diferentes da substância que reconstruíram e simularam... Em seus
livros e mapas na biblioteca ou na casa no vale, havia uma história
comum que poderia ser transposta a qualquer lugar, em uma comu-
nidade concebida em torno da busca de evidências e da racionalidade.
Mas assim que ele se mudasse para a montanha, outro tipo de men-
talidade se afirmava; obstinadamente nativo e local, apesar do al-
cance de um fluxo comum mais amplo, em que toque e respiração
substituíam arquivo e análise; não história como narrativa mas histórias
como vidas. (WILLIAMS, 1989, p. 10;12).

Para Raymond Williams (1989), a relacionalidade ganha vida à
medida que se caminha para a montanha. Estabelece-se uma sensibilidade
completamente diferente daquela construída a partir de arquivos. É interes-
sante constatar que é apenas nos seus romances que Williams parece apto

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a entrar neste problema. No seio da tradição marxiana, à exceção de
Lefebvre e dos geógrafos, falta uma compreensão mais vasta a respeito das
problemáticas de espaço e tempo. Então, como tais perspectivas de espaço
e espaço-tempo se tornam mais intimamente integradas em nossas leituras,
interpretações e usos da teoria marxiana? Deixe-me colocar de lado todas
as ressalvas preliminares e nuances para que possa apresentar um argumento
em termos mais completos.

No primeiro capítulo de O capital, Marx introduz três conceitos-
chave de valor de uso, valor de troca e valor. Tudo o que é valor de uso se
inscreve no domínio do espaço e do tempo absolutos (Figura 2). Traba-
lhadores individuais, máquinas, mercadorias, fábricas, estradas, casas e pro-
cessos de trabalho real, gastos de energia etc., podem ser individualizados,
descritos e compreendidos no âmbito do quadro newtoniano de espaço e
tempo absolutos. Tudo o que se refere a valor de troca, por outro lado, ins-
creve-se em uma perspectiva de espaço-tempo relativo, porque a troca im-
plica movimentos de mercadorias, de dinheiro, de capital, de força de
trabalho e de pessoas através do tempo e do espaço. É a circulação, o mo-
vimento perpétuo, que importa.

A troca, como observa Marx , derruba, portanto, todas as barreiras
do espaço e do tempo. Ela remodela permanentemente as coordenadas
em que vivemos nossas vidas cotidianas. Com o advento do dinheiro, esta
mudança qualitativa radical definiu um universo ainda mais vasto e fluido
de relações de troca através do espaço-tempo relativo do mercado mundial
(compreendido não como uma coisa, mas como interação e movimento
contínuos). A circulação e a acumulação do capital ocorrem no espaço-
tempo relativo. O valor é, por sua vez, um conceito relacional. Sua refe-
rência é, portanto, o espaço-tempo relacional.

Marx (1967, p. 167) estabelece (às vezes surpreendentemente)
que o valor é imaterial, mas objetivo. “Nenhum átomo de matéria entra na
objetividade das mercadorias de valor”. Em consequência, o valor “não
possui um rótulo que descreva o que ele é”, mas oculta seu caráter relacional
no fetichismo da mercadoria (MARX, 1967, p. 167). A única maneira de
aproximação é via aquele mundo peculiar em que relações materiais são
estabelecidas entre pessoas (nós nos relacionamos uns com os outros a par-
tir do que produzimos e comercializamos) e entre as coisas (preços são
definidos por aquilo que produzimos e trocamos). Valor é, em resumo,
uma relação social. Como tal, é impossível medi-lo, exceto por meio de
seus efeitos (tente mensurar qualquer relação social diretamente e você
verá que o esforço é vão). O valor internaliza toda a geografia histórica de
inumeráveis processos de trabalho condicionados por ou em relação à
acumulação de capital no espaço-tempo do mercado mundial.

Muitos se surpreendem ao descobrir que o conceito mais fun-
damental de Marx é “imaterial mas objetivo”, dado o modo como Marx é
geralmente retratado como um materialista para quem tudo o que é imaterial

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Figura 2

Figura 2. Matriz espaço-temporal para a teoria marxiana

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é abominável. Esta definição relacional de valor, noto de passagem, torna
discutíveis, senão mal colocadas, todas as tentativas de dar-lhe uma medida
direta e essencialista. As relações sociais não podem ser medidas senão por
seus efeitos.

Se minha caracterização das categorias marxianas está correta,
nenhuma prioridade pode ser conferida a um dos quadros espaço-tem-
porais. Os três quadros espaço-temporais devem ser mantidos em tensão
dialética uns com os outros, da mesma maneira que o valor de uso, o valor
de troca e o valor interagem dialeticamente na teoria marxiana. Não exis-
tiria, por exemplo, nenhum valor no espaço-tempo relacional sem trabalhos
concretos construídos em inumeráveis lugares no espaço e tempo absolutos.
Nem o valor emergiria como um “poder imaterial mas objetivo” sem os
inumeráveis atos de troca, os processos de circulação contínuos que mantêm
o conjunto do mercado mundial no espaço-tempo relativo. O valor é, por-
tanto, uma relação social que internaliza toda a história e a geografia do
trabalho concreto no mercado mundial; expressa as relações sociais (princi-
palmente, mas não exclusivamente, de classe) construídas pelo capitalismo
na escala mundial.

É crucial ressaltar a temporalidade envolvida, não apenas em ra-
zão do significado do trabalho “morto” passado (o capital fixo inclui tudo
o que está inscrito no ambiente construído), mas também por causa de to-
dos os vestígios da história da proletarização, da acumulação primitiva, do
desenvolvimento tecnológico, que são incorporados na forma valor. De-
vemos reconhecer sobretudo os “elementos morais e históricos” que sem-
pre entram na determinação do valor da força de trabalho (MARX, 1976,
p. 275).

Vemos, portanto, a teoria de Marx funcionar de maneira particular.
O tecelão injeta valor (ex.: o trabalho abstrato como determinação rela-
cional) ao tecido ao realizar o trabalho concreto no espaço e tempo ab-
solutos. A força objetiva da relação de valor é registrada quando o tecelão
é forçado a desistir de fazer o tecido e a fábrica quebra porque as condições
no mercado mundial são tais que tornam sem valor esta atividade neste es-
paço e tempo absolutos particulares. Enquanto tudo isto pode parecer óbvio,
a falha em reconhecer a interação entre os diferentes quadros espaço-tem-
porais na teoria marxiana produz uma confusão conceitual. Muita discussão
sobre as assim chamadas “relações local-global” têm se tornado uma de-
sordem conceitual, por exemplo, devido à inabilidade para se compreender
as diferentes espaço-temporalidades envolvidas. Não podemos dizer que a
relação de valor provoca o fechamento da fábrica como se se tratasse de
uma força externa abstrata. São as mudanças concretas das condições de
trabalho na China, quando mediadas através de processos de troca no es-
paço-tempo relativo, que transformam o valor como relação social, de tal
forma que levam o processo de trabalho concreto no México ao fecha-
mento.

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Até aqui, conferi atenção especial a uma leitura dialética da teoria
marxiana ao longo da coluna esquerda da matriz. O que acontece quando,
ao invés disso, eu começar a ler a matriz transversalmente? A materialidade
do valor de uso e do trabalho concreto é bastante óbvia. Mas como isso
pode ser representado e concebido? Descrições físicas são facilmente pro-
duzidas, mas Marx insiste que as relações sociais em que o trabalho é rea-
lizado são igualmente críticas.

No regime capitalista, o trabalhador assalariado é concebido (se-
gunda coluna) como um produtor de mais-valia para o capitalista, o que é
representado como uma relação de exploração. Isto implica que o processo
de trabalho é vivido (terceira coluna) como alienação. Em tipos diferentes
de relações sociais (ex. aquelas do regime socialista), o trabalho poderia
ser vivido como satisfação criativa e ser concebido como autorrealização
pelo esforço coletivo. Não precisaria nem mesmo ser modificado material-
mente para ser reconcebido e vivido de modo diferente. Essa era, afinal, a
esperança de Lenin quando defendeu a adoção do fordismo nas fábricas
soviéticas. Fourier, de sua parte, pensava que o trabalho deveria ser uma
espécie de jogo e a expressão do desejo, e ser vivido como um conten-
tamento sublime; para tanto, as qualidades materiais do processo de tra-
balho deveriam ser radicalmente reestruturadas.

Neste ponto, devemos reconhecer a variedade de possibilidades
concorrentes. Em seu livro Manufacturing consent, por exemplo, Burawoy
(1982) considerou que os trabalhadores da fábrica por ele estudada geral-
mente não vivenciavam o trabalho como alienação. Isso acontecia porque
os trabalhadores sufocavam a ideia da exploração ao tornar o local de tra-
balho um local para o desempenho de papéis e de jogos (no estilo de Fou-
rier). O processo de trabalho era realizado pelos trabalhadores de tal forma
que lhes permitia vivê-lo de modo não alienado.

Existem algumas vantagens para o capital nesse processo, já que
os trabalhadores “não alienados” geralmente trabalham de maneira mais
eficaz. Os capitalistas têm então admitido certas medidas, como atividades
aeróbicas, círculos de qualidade etc., para tentar reduzir a alienação e
enfatizar a incorporação. Eles produziram também concepções alternativas,
que insistem sobre as recompensas do trabalho duro, além das ideologias
que negam a teoria da exploração. Ainda que a teoria marxiana da ex-
ploração possa ser formalmente correta, ela nem sempre ou não neces-
sariamente se traduz em alienação e resistência política. Depende muito
da maneira como o processo é concebido. As consequências para a cons-
ciência política e a ação da classe trabalhadora são amplas.

Parte da luta de classes consiste, portanto, em um trabalho de
conscientização acerca do significado da exploração, assim como da con-
cepção apropriada sobre como o trabalho concreto é concluído no âmbito
das relações sociais capitalistas. Uma vez mais é a tensão dialética entre o

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material, o concebido e vivido o que realmente importa. Se tratamos essas
tensões de forma mecânica, estamos perdidos.

Embora o fato de refletir desta maneira seja útil, argumentei pre-
viamente que o “pensamento matricial” oferece oportunidades limitadas,
a menos que estejamos preparados para circular livremente e dialeticamente
através de todos os momentos da matriz simultaneamente. Deixe-me dar
um exemplo. A forma primária da representação do valor é o dinheiro.
Trata-se também de um conceito imaterial dotado de um poder objetivo,
mas que deve igualmente adotar uma forma material como valor de uso.
Isto é feito em primeira instância graças à emergência da mercadoria di-
nheiro (por exemplo, o ouro). Esta emergência ocorre, entretanto, através
das trocas no espaço-tempo relativo, e são essas trocas que permitem que
as formas tangíveis do dinheiro se tornem uma presença ativa no espaço e
no tempo absolutos. Tal situação cria o paradoxo de que um valor de uso
material particular (como o ouro ou o dólar) deve representar a univer-
salidade do valor, do trabalho abstrato. Além disso, isso implica que o
poder social pode ser apropriado por pessoas privadas, e daí a real possi-
bilidade de emergência do dinheiro como capital posto em circulação no
espaço-tempo relativo.

Há, como Marx aponta, antinomias, antíteses e contradições na
maneira como o dinheiro é criado, concebido, colocado em circulação e
utilizado tanto como um meio tangível de circulação, quanto como uma
representação de valor no mercado mundial. Precisamente porque o valor
é imaterial e objetivo, o dinheiro combina sempre qualidades fictícias com
formas tangíveis. Ele está sujeito a esta reversão que Marx descreve como
fetichismo da mercadoria, de forma que relações materiais possam emergir
entre pessoas e relações sociais sejam registradas entre coisas.

O dinheiro, como objeto de desejo e como objeto de contem-
plação neurótica, aprisiona-nos em fetichismos, enquanto as contradições
inerentes à forma dinheiro produzem inevitavelmente não apenas a possi-
bilidade, mas também a inevitabilidade das crises capitalistas. As ansiedades
relacionadas ao dinheiro estão frequentemente conosco e têm suas próprias
localizações espaço-temporais (a criança pobre que para diante do vasto
arsenal de mercadorias que estão perpetuamente fora de seu alcance na
vitrine da loja). O espetáculo de consumo que invade a paisagem no espaço-
tempo absoluto pode gerar sensações de privação relativa. Nós somos ro-
deados a todo o momento de manifestações do desejo fetichista de acessar
o poder do dinheiro como representação de valor no mercado mundial.

Para aqueles que não têm familiaridade com a teoria marxiana,
tudo isso parecerá, sem dúvida, bastante misterioso. O principal, no entanto,
é ilustrar como o trabalho teórico (e eu gostaria de sugerir que isso deveria
ser válido para toda teoria social, literária e cultural) implica inevitável e
necessariamente em se mover minuciosa e dialeticamente através de todos
os pontos da matriz, e além. Quanto mais circularmos, mais nossas análises

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serão profundas e de longo alcance. Não há caixas descontínuas e fechadas
neste sistema. As tensões dialéticas não só não devem ser mantidas intactas;
elas devem ser continuamente expandidas.

Conclusão

Finalizo com algumas observações cautelosas. Nos anos recentes,
muitos acadêmicos, e entre eles geógrafos, adotaram conceitos e modos de
pensamento relacionais (apesar de não muito explícitos com relação àqueles
de espaço-tempo). Este movimento, tão crucial quanto louvável, tem estado
em alguma medida associado à virada cultural e pós-moderna. Mas do
mesmo modo que a geografia tradicional e positivista limitou sua visão ao
se concentrar exclusivamente sobre os aspectos absolutos e relativos, ma-
teriais e conceituais do espaço-tempo (abstendo-se do espaço vivido e rela-
cional), há agora um sério perigo em apenas se deter ao relacional e ao vi-
vido, como se o material e o absoluto não tivessem importância. Permanecer
exclusivamente no canto inferior direito da matriz pode ser tão enganador,
limitante e mistificador quanto confinar a visão na parte superior esquerda.
A única estratégia que realmente funciona é manter a tensão em movimento
dialético através de todas as posições da matriz.

Isto é o que nos permite melhor compreender como significados
relacionais (como o de valor) são incorporados aos objetos, aos eventos e
às práticas (como o processo de trabalho concreto) construídos no espaço
e no tempo absolutos. Podemos ainda, a partir de outro exemplo, debater
indefinidamente todos os tipos de ideias e projetos que expressam a rela-
cionalidade do Ground Zero (Marco Zero), mas em algum momento algo
precisa ser materializado no espaço e no tempo absolutos. Uma vez cons-
truído, o sítio adquire a “permanência” (o termo é de Whitehead) de uma
forma física. E uma vez que o significado desta forma material está sempre
aberto a novas concepções, de modo que as pessoas podem aprender a vi-
vê-la de formas diferentes, a materialidade bruta da construção no espaço
e no tempo tem seu próprio peso e sua autoridade.

Da mesma forma, os movimentos políticos que aspiram a exercer
algum poder no mundo permanecem ineficazes até que construam uma
presença material. É muito bom e correto, por exemplo, evocar concepções
relacionais como o proletariado em movimento ou a multidão em ascensão.
Porém, ninguém sabe o que isto significa até o momento em que os corpos
reais estejam nos espaços absolutos das ruas de Seattle, Québec e Genebra
em um momento particular no tempo absoluto. Os direitos, como observa
pertinentemente Don Mitchell (2003, p. 129-135), não significam nada
sem a possibilidade de serem concretizados no espaço e no tempo absolutos:

EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 1o Semestre de 2015- n. 35, v. 13, p. 126 - 152

150 Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro


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