CULTO À CABEÇA ............................................ 37 Wikicommons ÍNDICE
OBSERVATÓRIOS MEGALÍTICOS.................... 38
HENGES ........................................................... 39
STONEHENGE.................................................. 39
OGHAM............................................................. 41
OS FESTIVAIS CELTAS DO FOGO.................... 42
SAMHAIN - O ANO NOVO CELTA .................... 42
IMBOLC ............................................................ 42
BELTANE ......................................................... 42
LUGHNASADH ................................................ 43
3. MITOLOGIA....................................................... 46
VIAGENS.......................................................... 47
CONTOS FOLCLÓRICOS ................................... 47
TUATHA DE DANAN ........................................ 48
A LENDA DE TUAN MACCARELL ................... 49
OS DESCENDENTES DE NEMED..................... 51
OS FILHOS DA DEUSA DANA .......................... 52
OS MILESIANOS ............................................. 53
MABINOGION................................................... 54
TRÍADES GALESAS......................................... 55
QUATRO RAMOS DO MABINOGION ................. 55
PWYLL, PRÍNCIPE DE DYFED ....................... 55
BRANWEN, FILHA DE LLYR ........................... 56
MANAWYDDAN, FILHO DE LLYR ................... 57
MATH, FILHO DE MANTHONWY..................... 60
4. DEUSES, DEUSAS, HERÓIS E HEROÍNAS ....... 64
Wikicommons
OS CELTAS Shutterstock.com
A nação celta era formada por
diversas tribos estabelecidas
ao sul do Reno, desde sua
nascente, até a Irlanda.
Sua cultura guerreira era
semelhante à dos germânicos;
os romanos reconheciam
muitos dos seus deuses nas
entidades por eles cultuadas
6
Embora os fenícios tenham sido os primeiros a frequen- Textos de Claudio Blanc Wikicommons
tar as Ilhas Britânicas para se abastecer de estanho,
séculos antes dos gregos, os escritores helênicos são Broche celta, século 4 a.C.
a mais antiga fonte do conhecimento sobre os celtas,
ou hiperbóreos, como eles os chamavam. Hecateu de Mileto, República da Irlanda, a matriz da cultura celta era a área alpina
no século 6 a.C., foi o primeiro a registrar informações sobre e o sul da Alemanha. Essa cultura se desenvolveu em duas
os celtas. Ele situou o país dos hiperbóreos ao norte dos Alpes fases durante a Idade do Ferro europeia: a cultura Hallstatt (c.
– um fato confirmado pela arqueologia. 900 – 400 a.C.) e a La Tène (c. 550-15 a.C.).
Um século depois, Heródoto, o grande historiador grego,
estendeu o domínio da civilização celta aos Pirineus e identifi-
cou sua presença até o oeste da Península Ibérica, onde hoje
é Portugal. O filósofo Aristóteles se referia a eles como keltos
e dá conta que eram belicosos e que mergulhavam os bebês
recém-nascidos na água gelada para fortalecê-los. Outro gre-
go que deixou relatos sobre os celtas foi Éforo, que escreveu
no século 6 a.C. Segundo Éforo, os hiperbóreos multavam os
homens gordos demais. Para isso tinham um padrão autoriza-
do que determinava a largura da cintura. Esse autor também
informa que os celtas habitavam os Países Baixos e que, se-
gundo Olivier Launay, em seu livro A Civilização dos Celtas
“não tinham medo de nada.”
As descobertas modernas confirmam as afirmações de
Hecateu de Mileto e de outros escritores antigos sobre a loca-
lização do “país celta”. Embora tenha dominado toda a área
correspondente à França, Península Ibérica, Ilhas Britânicas e
A cidade de Hallstatt
Wikicommons
7
A CIVILIZAÇÃO DOS CAMPOS HALLSTATT
E DOS BOSQUES
Hallstatt é uma pequena cidade austríaca, a trinta quilôme-
Os celtas chegaram à Europa, durante o se- tros de Salzburg, onde foram encontradas as primeiras evidên-
gundo milênio antes de nossa era, para ocupar cias arqueológicas de objetos que caracterizam a cultura celta.
nela uma paisagem que tinha sido modelada, Nesse primeiro estágio da cultura celta, onde se vivia em casas
ao longo de dezenas de séculos de duro labor, feitas de troncos e os animais domesticados eram os porcos,
com instrumentos de pedra e madeira, pelos carneiros, gado, cães e cavalos, os ritos funerais eram consti-
camponeses do neolítico. Eles pouco a modifica- tuídos de cremação, embora enterros não fossem incomuns.
ram, embora edificassem nela a sua sociedade.
Essa paisagem apresentava então, como hoje, Wikicommons
três aspectos principais: nas grandes planícies do
Reno, do Meuse, do Tâmisa, do Sena, uma pai-
sagem de campos abertos, cujas longas tiras que
nada separam irradiam ainda ao redor de certas
cidades; as grandes florestas da cadeia herci-
niana às Ardenas e à Brocéliande; o basquete,
de taludes e cercas-vivas nas regiões graníticas,
xistosas ou vulcânicas do Oeste e do Norte. Os
celtas desenvolveram ali uma civilização dos
campos e dos bosques, que não era a dos selva-
gens vestidos de peles de animais dormindo so-
bre as árvores, mas de camponeses habilidosos
que tinham sabido organizar e aperfeiçoar seu
modo de vida sem construir cidades. Efetuavam
cálculos de distância e de superfície. As palavras
francesas arpent e lieue vêm da língua deles
(arepennis, leuga). Os romanos, na Gália e na
Bretanha, edificaram cidades nas encruzilhadas
comerciais e vilas, com aquecimento central, nos
centros agrícolas. Mas, na Gália, o vasto povo
de mãos barrentas permaneceu em seus cam-
pos e, desde a partida dos Romanos da grande
ilha celta, os bretões por seu lado abandona-
ram fóruns, termas e pretorias às raposas e aos
morcegos, para voltar a suas campinas e seus
pequenos burgos.
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas
O termo “celta” engloba Escudo ritual com padrões decorativos La Tène
todo o conjunto de povos
que se espalhou por
grande parte do oeste
ĞƵƌŽƉĞƵ͕ƋƵĞƟŶŚĂƐĞƵƐ
idiomas pertencentes à
família indo-europeia, a
qual inclui as principais
línguas da Europa, Irã,
norte da Índia
e Ásia Central
8
Os celtas da cultura Hallstatt não restringiram seu domínio ƉĂƌƟƌĚŽƐĂŶŽƐϮϬϬϬĂ͕͘͘ Wikicommons
apenas ao Sul da Alemanha. A moderna arqueologia sustenta ŽƐĐĞůƚĂƐĂƟŶŐŝƌĂŵƐƵĂƐ
que, no seu último século de desenvolvimento, os celtas já ha- ĐĂƌĂĐƚĞƌşƐƟĐĂƐƉƌŝŶĐŝƉĂŝƐ͘
viam penetrado e se instalado na Península Ibérica, Bretanha,
Ilhas Britânicas e Escandinávia. E é sobre os desenvolvimentos Tratava-se de um povo com
produzidos durante a fase Hallstatt que surge a cultura La Tène cultura complexa, que habitava
– a segunda Idade do Ferro da Europa Central e Ocidental. Em pequenas aldeias lideradas por
La Tène, uma pequena cidade suíça, foram descobertas as pri-
meiras instâncias de uma evolução cultural baseada no período chefes guerreiros
anterior, isto é, o Hallstatt. O estilo La Tène tem marcas claras
dos padrões decorativos gregos, etruscos e citas, com que os fato originou uma escola de pensamento que afirma que a
celtas mantinham contatos comerciais. língua e a cultura celta se espalhou nessas áreas por meio do
contato e não por invasões. Os imigrantes, e em alguns casos
LA TÈNE invasores, que vinham com a “onda celta” se miscigenavam
Foi durante o período La Tène que os celtas atingiram sua com a população que já estava instalada nos locais onde se es-
máxima extensão cultural. A sociedade celta era organizada tabeleciam. O cronista romano Amiano Marcelino, que escre-
em torno da guerra – uma estrutura característica de culturas veu no século 4 d.C., confirma, por exemplo, que “uma parte
em processo de migração. Poderosos guerreiros, habilidosos da população (da Gália) era nativa, mas alguns haviam vindo
cavaleiros, ferreiros, sitiaram e saquearam a cidade de Roma de ilhas e terras além do Reno, deixando seus lares originais
em 390 a.C., e invadiram a Ásia Menor. Também invadiram a por conta de guerras e de invasões”.
Península Itálica e fundaram Mediolanum, hoje, Milão. Tribos
de cultura La Tène chegaram até o sul da Rússia, mas seu No final do século 5 a.C., os celtas já haviam se instalado às
grande movimento foi em direção ao oeste, onde ocuparam margens do Reno e do Elba, e no começo do quarto século an-
os antigos centros dos celtas Hallstatt. tes de Cristo, a tribo dos bretões (Brythons) e a dos goidélicos
(vindos do Norte da Espanha) cruzaram o Canal da Mancha e
No entanto, não há evidência arqueológica de invasões mi- ocuparam a Inglaterra e a Irlanda. A Gália, a Espanha e o nor-
litares em larga escala em outras áreas do Oeste europeu. Esse te de Portugal também foram ocupados por grupos tribais de
cultura La Tène. Os nomes de algumas tribos celtas continuam
Cada chefe gaulês era cercado de vassa- a determinar etnias até hoje, como é o caso dos lusitanos e os
los, que formavam com ele uma fraternidade galegos, em Portugal e na Espanha. Todo o centro e o Oeste
de combate. O vassalo na Irlanda é um cele, da Europa viram florescer uma poderosa cultura que, apesar
denominação cujo sentido é “associado”. Os das inegáveis influências gregas, itálicas e do Oriente Médio,
esposos são ceIe um do outro e não, como no era, nas palavras do mitólogo americano Joseph Campbell
Sul, a mulher propriedade do marido. César (1904 – 1987), basicamente “bárbara”.
pretende que a condição dos vassalos gauleses
era próxima da escravidão. Pode-se duvidar Moeda cunhada pela tribo gaulesa parisi
pois tinham o direito de voto para escolher o
chefe de guerra. Havia, em realidade, na Gália,
duas classes de vassalos. Uns, os ambactes,
camaradas de combate, que eram os vassalos
francos. Os outros, pastores, tarefeiros, eram
os predecessores dos servos, em geral desclas-
sificados considerados provavelmente por seus
contemporâneos o rebotalho da tribo. Havia,
também, escravos, mas eram poucos, pois os
celtas não faziam prisioneiros: preferiam cortar a
cabeça dos vencidos e ignoravam a piedade. Os
trabalhos mais desagradáveis eram reservados
aos escravos. Pois o trabalho propriamente dito
não era uma ocupação nobre. Nobre era a ação
desinteressada, o jogo, a guerra, o amor, a obra
de arte, a especulação intelectual, as funções re-
ligiosas, a ascese. A sociedade irlandesa dividia-
-se em oito cate gorias, desde o rei supremo até
o plebeu ou servo.
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas
9
Brenn e sua parte no butim,Wikicommons
de Paul Jamin (1893)
10
A SOCIEDADE CELTA
Os celtas não eram uma raça Wikicommons
homogênea, mas, sim, uma nação
com uma cultura comum, dividida
em tribos diferentes. O que unia
essas sociedades tribais era a língua,
o comércio, instituições políticas
semelhantes e a religião. No
entanto, cada tribo tinha seu próprio
corpo de tradições locais
Otermo “celta”, se refere a qualquer membro de um Ornamentos de ouro para sapatos, c. 530 a.C. Wikicommons
dos povos europeus que usavam a lingual celta –
do ramo linguístico indo-europeu – e que compar- comuns. Nos tempos históricos, na Irlanda, sabe-se que os reis
tilhavam de uma arte e religião comuns. eram eleitos por meio de um sistema de sucessão.
A sociedade era tribal e baseada no parentesco. A identi-
dade étnica era sedimentada principalmente no grupo tribal Embora a sociedade celta fosse guerreira e assim estrutura-
maior, chamado pelos celtas irlandeses, os goidélicos, de tua- da, a promoção de guerras não era um processo organizado
th, ou “povo”. Essa identidade era, por sua vez, determinada de conquista territorial. A guerra era travada de uma forma
pela unidade familiar, o clã, cenedl, isto é “aparentado”, em semelhante a dos índios brasileiros e americanos, isto é, incur-
irlandês. Além de identidade, o clã garantia proteção: as dis- sões guerreiras motivadas principalmente por vingança, con-
putas entre os indivíduos sempre irradiavam para a esfera do quista de glória militar ou busca de butim ou de saque. Mas
clã. E como era obrigação do clã proteger os seus, os crimes quando os celtas passaram a ter maior contato com os roma-
contra um dos protegidos eram considerados ofensas contra nos, eles modernizaram e adaptaram suas táticas de guerra a
todo o clã. Um dos principais princípios éticos celtas era a con- fim de poder enfrentar exércitos maiores.
tenda de sangue; um assassinato ou insulto qualquer exigia
que cada membro do clã buscasse vingança. A contenda de Cerâmica celta
sangue era tão comum que surgiu uma classe de mediadores
profissionais, chamados na Irlanda de brithem.
Os clãs que formavam as tribos eram liderados por reis,
embora tenham surgido repúblicas oligárquicas em áreas que
tinham contato próximo com a cultura romana. Normalmente,
a sociedade celta se dividia em três classes: a aristocracia de
guerreiros, a classe intelectual, formada pelo clero, pelos poe-
tas, juristas e outros, e o povo comum.
Júlio César, o primeiro imperador de Roma, é o cronista da
época que mais detalhadamente descreve os costumes dos
celtas La Tène. César combateu os celtas na Gália, a atual
França, e registrou suas impressões sobre eles na sua obra As
Guerras da Gália. César confirma a existência de três classes
entre os celtas da Gália, os gauleses. As pessoas comuns eram
tratadas praticamente como escravos. “A maior parte deles”,
escreveu César, “oprimida por dívidas, pelo peso dos tributos
ou pelas injustiças dos poderosos, permite-se escravizar pe-
los nobres”. César descreveu duas classes superiores, a dos
Cavaleiros e a dos Druidas. Aos primeiros, liderados por um
rei, cabia a defesa da tribo durante as guerras – e os celtas das
diferentes tribos combatiam muito entre si. Eram os cavaleiros
que amealhavam poder e influência política sobre as pessoas
11
FOSTERAGEWikicommons
Wikicommons
A educação das crianças: o “fosterage” Entretanto, essa
Iiberdade não obnubilava em nada o senso de responsabi-
lidade social. Uma instituição, que não foi somente céltica,
mas que adquiriu entre os celtas importância considerável,
a do fosterage, mostra que nossos ancestrais tinham sobre
a educação das crianças ideias mais profundas do que nós.
Era difundido o hábito de confiar a educacão das crianças a
um pai nutridor, um pai que se houvesse destacado por suas
aptidões educativas. Quando a pensão era paga, um rei pa-
gava até 30 animais de chifre ao preceptor de seu filho, mas
um plebeu somente três. Os rapazes aprendiam os esportes;
as moças, costura. Se o pai nutridor era um filé, um sábio-
-poeta, o caso assumia outra dimensão. Vejamos os escritos
hindus: “Quando um pai e uma mãe, unindo-se por amor,
dão a vida a um filho, não se deve considerar esse nasci- Um torque de ouro, colar típico dos celtas
mento como outra coisa senão um fato humano, porque o
filho se forma na matriz. Mas a vida que lhe comunica o pai
espiritual é a verdadeira vida, que não está sujeita à velhice Os autores antigos registram que, durante os combates,
nem à morte.” o estágio terminava, para os rapazes, aos 17 os celtas se postavam diante do exército inimigo, gritando
anos, para as moças aos 14. Rapazes e moças regressavam e batendo as lanças e espadas nos seus escudos. Em geral,
a suas famílias, ricos com o que haviam aprendido e forta- combatiam nus, com o corpo pintado de azul e com cabeças
lecidos por uma educação que não sofrera por causa das dos inimigos que abateram em outras batalhas amarradas
fraquezas maternais. As crianças conservavam obrigações à cintura. Então disparavam a correr em direção dos seus
de caráter filial em relação a seus pais nutridores. Deviam opositores, berrando durante todo o percurso. Ante a visão
a eles auxílio e assistência. Do mesmo modo, os irmãos-de estarrecedora de um bando de selvagens assassinos, os ini-
leite” permaneciam estreitamente unidos e solidários, o que migos, muitas vezes, abandonavam suas fileiras e fugiam.
nem sempre acontecia entre irmãos pelo sangue. Em gaélico, Os celtas, então, se valiam da vantagem proporcionada por
eram chamados de comaltae. A mes ma palavra em galês um exército em fuga. Se, porém, as forças contrárias não
significa, hoje, amigo” e em bretão, sócio”. rompessem suas fileiras, os celtas paravam perto do exército,
retornavam a sua posição original e repetiam o processo.
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas A segunda classe descrita por César é a dos druidas, os
quais se ocupavam dos cultos, dos sacrifícios – tanto públicos
como privados – da interpretação de desígnios.
Os druidas gozavam de grande prestígio entre
os celtas, assumindo igualmente o papel de
conselheiros e juízes, decidindo sobre crimes
e disputas de propriedade. “Se uma pessoa ou
pessoas não se atêm às suas decisões”, regis-
trou César, “os druidas os proíbem de fazer
sacrifício, o que constitui sua maior punição”.
Outros escritores da Antiguidade indicam
a ordem religiosa também se dividia em três
classes. Estas pertenceriam, segundo alguns
autores, à ordem druídica. Estrabo afirma na
sua obra Geographica, que “entre todos os
povos da Gália, falando de forma geral, há três
tipos de homem tidos na mais alta honra: os
bardos, os vates e os druidas.” Estrabo segue
explicando que “os bardos eram cantores e
poetas; os vates, adivinhos e filósofos naturais;
e os druidas, além da filosofia natural, também
estudavam filosofia moral”. Os bardos cele-
bravam os feitos dos heróis compondo “ver-
sos épicos”, os quais recitavam acompanhados
O Gaulês Moribundo, cópia em mármore de um original em bronze pela lira, enquanto os vates procuravam expli-
do século 1 ou 2 d.C., retrata a morte de um guerreiro celta ferido car os grandes mistérios da natureza. É deles
em batalha. A escultura enfatiza a bravura do combatente bárbaro que deriva o verbo “vaticinar”.
12
Em termos econômicos, a sociedade celta não se basea- BOADICEA
va no comércio. Havia escambo, mas o princípio econômico
predominante era a reciprocidade. Na economia de recipro- Boadicea, ou Boudica, rainha da tribo dos icenos, que vivia
cidade, os bens e serviços não são trocados por outros bens no Leste da Grã-Bretanha, liderou um insurreição de diver-
ou serviços, mas são distribuídos de acordo com relações de sas tribos contra os invasores romanos. Quando o marido de
parentesco e obrigações. Boadicea, o rei Prasutagus, morreu, os romanos anexaram seu
reino e humilharam a rainha e suas filhas.Os invasores açoita-
Por outro lado, evidências arqueológicas sugerem que os ram Boadicea e estupraram as moças.
celtas anteriores à invasão romana desenvolveram um com-
plexo de rotas comerciais que chegava a Eurásia. O território Boadicea incendiou toda Inglaterra. Ela liderou uma alian-
ocupado pelos celtas tinha zinco, chumbo, ferro, prata e ouro. ça de diversas tribos que, entre 60 e 61, ameaçou a perma-
Os ferreiros e ourives celtas criavam armas e joias para o co- nência dos romanos na Grã-Bretanha. O exército de Boadicea
mércio, particularmente com os romanos, mas também com destruiu as colônias de Camulodunum, atual Colchester,
outros povos. Peças de ouro produzidas na Irlanda pré-romana Londinium, a moderna Londres, e Verulamium, presentemente
foram descobertas em sítios arqueológicos da Palestina. Saint Albans, deixando em seu caminho um rastro de destrui-
ção que fez cerca de oitenta mil vítimas. O imperador Nero
MULHERES chegou até mesmo a considerar retirar as forças romanas da
Contrárias às gregas e romanas, as mulheres celtas tinham ilha. No entanto, Boadicea foi finalmente derrotada na Batalha
uma participação efetiva na sua sociedade. Apesar de ser uma de Watling Street, pelas forças consideravelmente menores do
cultura centrada na aristocracia guerreira, descobertas arque- governador Suetonio.
ológicas indicam que as mulheres podiam gozar de elevado
status social. Antes da fusão da cultura celta com a romana, Quando a revolta começou, o legado Caio Seutônio
as mulheres tinham direito de exigir divórcio e deixar o ca- Paulino, com duas das quatro legiões estacionadas na pro-
samento com as propriedades que possuía quando solteira. víncia, tinha acabado de capturar a ilha de Mona (a moderna
Além disso, elas tinham todo o direito de se casar de novo. Anglesey), o centro principal do culto druídico. Esta foi uma
Há registros sobre mulheres que tomavam parte na guerra e das poucas religiões ativamente perseguidas pelos romanos,
no governo do seu povo, embora fossem a minoria. Talvez o que não aprovavam o papel de relevo dos sacrifícios huma-
melhor exemplo seja o de Boadicea. nos nos rituais druídicos e que também tinham consciência
de que a religião promovera a união de elementos contrários
Wikicommons aos romanos na Gália e na Bretanha.
Enquanto Paulino estava ocupado com a invasão de Mona e
com o massacre dos druidas e dos seus seguidores, a rebelião
no leste da província teve tempo de se intensificar. A colônia
de Camuloduno (Colchester) foi o primeiro alvo dos rebeldes,
pois os locais ressentiam a confiscação das suas terras para
serem dadas aos veteranos romanos lá estabelecidos no final
do seu serviço militar. Alguns dos veteranos conseguiram re-
sistir durante dois dias no grande Templo de Cláudio, mas a
colônia não tinha fortificações apropriadas nem condições de
se defender daquela força. A fúria dos bretões levou a atos de
tortura e mutilação, quando massacraram toda a população
da cidade. Nas semanas seguintes Verulamium (St Albans) e
Londinium (Londres) sofreram o mesmo destino.
Boadiceia, por John Opie (c. 1793) César disse que [a poliandria] se praticava
na Bretanha. Isso explicaria por que a palavra
“gwely” (leito) adquiriu, em bretão insular, o
sentido de “família”. Não há fumaça sem fogo.
A lenda irlandesa nos mostra Clothru, esposa si-
multânea de seus três irmãos e, em consequên-
cia, mãe de Lugard, rei supremo - que tem três
pais no ciclo de Cuchulainn - e que ela esposa a
seguir para ter dele um filho que será rei por seu
turno. Certamente, não se deve tomar ao pé da
letra essas histórias, que aliás se contradizem,
mas elas dão certa credibilidade a São Jerônimo
quando deplorava que os irlandeses fizessem
amor com liberdade total.
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas
13
Os Gauleses tinham vici, cidades não cercadas A primeira resposta significativa do exército romano foi di- Wikicommons
de muros, feitas de casas isoladas, de pedra tra- rigida para o lugar de onde a rebelião se irradiava, esperando
balhada com argila e cobertas de colmo ou de ta- quebrar a resistência dos bretões com uma demonstração de
buinhas, e de oppida, isto é, cercados fortificados, força. Em lugar disso, os romanos encontraram um exérci-
refúgios para as populações em tempo de guerra, to muito mais poderoso do que anteciparam. Talvez numa
mas já também esboço de cidades permanentes, se emboscada, ou possivelmente num ataque noturno ao seu
podemos chamar assim a simples aglomerações de acampamento, quase todos os legionários foram mortos e
cabanas ou casinholas rústicas, dispostas sem or- apenas o legado e alguns membros da cavalaria conseguiram
dem e sem serviços públicos. A nação dos helvécios fugir do desastre. Paulino pôde chegar a Londinium antes de
tinha 400 vici e 12 oppida. Os biturígios tinham a cidade cair, mas tinha apenas um pequeno corpo da cava-
menos vici, mas 20 oppida. Os lexovianos tinham laria sob seu comando, pois tinha deixado a maior parte do
um oppidum de 160 hectares. A maioria não era exército para trás. Alguns refugiados conseguiram alcançar
tão vasta, muitas não tinham mais do que cinco, a proteção do governador e da sua cavalaria, mas a maior
10 ou 30. A Irlanda tinha também seus raths ou parte da população foi massacrada. Quando retirou-se para
duns. A predileção dos celtas por uma vida atlética encontrar o exército principal, Paulino reuniu algo em tor-
ao ar livre, apesar dos rigores hibernais do clima, no de dez mil homens. A Legio IX tivera muitas baixas para
explica que cuidassem da aparência exterior até a continuar a tomar parte na campanha, mas o governador
faceirice, sendo apaixonados pelas roupas de cores tinha enviado mensageiros com ordens de chamar a outra
vivas e pelas joias preciosas, faziam vir de longe legião estacionada na Bretanha, II Augusta, da sua base no
objetos de arte que sabiam apreciar, decoravam sudoeste para reunir-se a ele. Seu comandante, o prefeito
com gosto e habilidade suas armas, mas se conten- Poênio Póstumo, por algum motivo desconhecido, recusou-
tavam, em matéria de casas, com simples abrigos -se a obedecer as ordens de Paulino. Desse modo, foi forçado
noturnos, onde a fumaça saía por um buraco, a confrontar Boadicea cujo exército era muitas vezes maior,
através do teto. Contudo, nas aglomerações mais apenas com suas próprias tropas.
próximas dos centros de civilização greco-romana,
se revela uma evolução do gosto: melhora-se o ha- O general romano Júlio César, que subjugou
bitat, constroem-se moradias mais vastas, templos, os celtas da Gália, perseguiu os druidas
piscinas, ruas lajeadas. Quanto mais se subia para e escreveu a respeito desse povo
o norte, mais o modo de vida era rude e rústico.
Quando veio a conquista romana, nem os vídu-
casses (os que combatem com a madeira), nem os
eburões (os homens do teixo, a árvore sagrada)
estavam ainda atingidos pelo mal da cidade. Na
Irlanda, as mais antigas cidades, Dublin, Waterford,
Limerick foram construídas pelos Vikings; outras,
mais tarde, pelos conquistadores normandos.
Mesmo na Pequena Bretanha moderna, Brest,
Lorient e, sobretudo, Saint-Nazaire são criações
artificiais. As cidades da Terra Céltica moderna, à
parte as zonas da alta indústria, permaneceram
pequenas e participam intimamente da vida rural.
A paisagem celta: algo semi-sagrado Essa é a razão
do apego do celta a suas paisagens. Estas são o
quadro onde há 10 ou 15 séculos ele luta pela
existência, agarrado desesperadamente a cada
palmo de terreno, a cada campo, a cada rocha, a
cada árvore. É o caso de se falar de osmose. Essa
é a chave do amor passional que o irlandês dedica
a suas verdes campinas, o escocês a seus lochs, os
galeses a suas montanhas e o bretão da França a
suas matas, embora muitas destas, hoje, tenham
dado seu lugar a culturas. As causas muito antigas
desse sentimento não agem mais diretamente, mas
marcaram a hereditariedade psíquica. Como a terra
pertencia à tribo ou a uma família, era impossível
doá-Ia sem doar os homens que estavam sobre ela.
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas
14
Wikicommons A Terceira Guerra Sanita, o nome pelo qual o conflito pas-
Wikicommonssou para a história, pôs um fim à supremacia celta. Mesmo
Estátua de Boadicea, em Londres assim, os últimos reinos celtas independentes da Itália só
vieram a cair completamente em 192 a.C. No século 1 a.C.,
Paulino escolheu um local onde um desfiladeiro coberto os romanos conquistaram, sob Júlio César, a Gália celta.
por bosque oferecia proteção aos seus flancos e retaguar- O golpe final foi desferido no século 1 d.C. pelo impera-
da. O modo como colocou suas forças em formação, com dor Cláudio, que estendeu o poder de Roma até algumas
as legiões no centro, a infantaria auxiliar nos partes da Ilhas Britânicas, particularmente onde hoje é a
flancos e a cavalaria nas alas, era totalmente Inglaterra. A partir de então, os celtas se tornaram romani-
convencional. Como Mário em Águas Sextias zados. A língua oficial nesses lugares passou a ser o latim,
e César contra os helvéticos, ele manteve e a administração, a arquitetura, os usos, enfim, passaram
seus homens parados e silenciosos enquanto a ser o dos romanos. Após a invasão romana da Gália e
a massa de bretões avançava em sua direção. da Inglaterra, muito dessa cultura se perdeu, ou melhor, se
Foi apenas no último minuto que ordenou mesclou com a influência romana. Uma nova cultura surgiu
que seus homens arremessassem seu pila e baseada no sincretismo celto-romano, ou galo-romano.
atacassem. A chuva dos dardos pesados di-
minuiu a velocidade dos britânicos, mas os Houve, porém, lugares onde a influência de Roma não che-
guerreiros estraram numa formação tão den- gou e onde a essência da cultura celta foi mantida até os dias
sa ao penetrarem no desfiladeiro para atacar de hoje. São os chamados países celtas modernos. A Irlanda,
seus inimigos que não puderam se retirar. a Escócia e o País de Gales são os que melhor preservaram a
Como o exército romano em Canas, tinham literatura celta, a qual nos ajuda a reconstituir a vivência e as
se tornado uma grande massa incapaz de crenças desse povo tal como ela era. Os mitos preservados
manobrar ou de combater com eficiência. se instilaram no folclore dessas áreas. Principalmente nesses
Lenta e continuamente, foram abatidos pe- países, ainda é possível constatar o espírito, a disposição, os
los romanos, embora estes tenham pagado modos e maneiras dos antigos celtas.
um alto preço pela sua vitória. As forças de
Paulino tiveram poucas baixas. Num único
dia de luta, a espinha dorsal da rebelião foi
quebrada. Boadiceia fugiu, mas logo depois
suicidou-se tomando veneno. Paulino e seus
homens promoveram uma campanha cruel ao
longo do inverno para extinguir todas as bra-
sas que ainda restavam da resistência, o ódio
resultante das atrocidades que os bretões co-
meteram era profundo.
A CULTURA GALO-LATINA
Após dominarem a Europa Ocidental e co-
mandarem incursões até a Ásia Menor, no
século 3 a.C., as forças da coalizão sanita,
celta e etrusca foram derrotadas por Roma.
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OS GAULESES
Os celtas que ocupavam o norte da Itália, a França
As tribos gaulesas viviam na região e o Norte da Espanha eram os gauleses. Primeiro
da atual França e chegaram a saquear inimigos, os gauleses acabaram sendo conquista-
dos pelos romanos e passaram a constituir duas
Roma, no período da república. importantes províncias, a Gália Cisalpina, “Gália aquém dos
Conquistados por Júlio César, Alpes” – a região da Itália habitada pelos gauleses e que hoje
foram colonizados pelos romanos, corresponde ao norte da Itália – e Gália Transalpina, que en-
submetidos à sua política e legislação globava os atuais territórios da Bélgica, França e Suíça. Em al-
guns períodos, a Gália Transalpina chegou a cobrir parte do
Norte da Itália e Centro-Norte da Espanha.
As tribos gaulesas, como todas as outras da nação celta, eram
Wikicommons guerreiras, e sua sociedade se organizava em torno da guer-
ra. Invariavelmente, os cavaleiros do exército gaulês, eram os
membros mais ricos e aristocráticos da tribo, que podiam com-
prar um cavalo e o equipamento adequado. A cavalaria gaulesa
era, em geral, bem formada – os romanos iriam, posteriormen-
te, copiar muitos dos arreios dos cavalos e do treinamento dos
cavaleiros gauleses –, e seus membros eram extremamente co-
rajosos, embora sem sofisticação tática. Esses homens tinham
de justificar sua posição honrada na sociedade demonstrando
coragem na guerra. Por isso, valores como honra e bravura
eram muito considerados entre esse povo.
Os gauleses saquearam Roma em 390 a.C. e a ameaçaram
de novo em 225 a.C., até que, com muita sorte, mais do que
planejamento, os dois cônsules daquele ano conseguiram ata-
car o exército inimigo, um de cada lado, em Telamon. Em 216,
no vale do rio Pó, uma coalizão formada por tribos gaulesas
emboscou e dizimou um exército de duas legiões e duas alas.
Entre os mortos estavam o comandante romano, o pretor
Lúcio Postúmio Albino, um homem muito experiente que já
havia sido cônsul duas vezes e acabava de ser eleito, na sua
ausência, para um terceiro mandato no ano seguinte. Esta foi,
talvez, a derrota de Roma mais espetacular nessa região, ape-
sar de não ter sido a única.
A ameaça gaulesa só terminou quando Júlio César derro-
tou o maior líder gaulês, Vercingetórix, comandante da últi-
ma grande rebelião gaulesa. César também é responsável por
grande parte do conhecimento que temos sobre esses povos,
uma vez que o general romano cuidou de registrar seus usos e
costumes no seu livro As Guerras Gálicas.
Guerreiro galo-romano, século 1 d.C. A REBELIÃO GAULESA
As intervenções iniciais de César na Gália tinham sido reali-
zadas a pedido dos líderes das tribos gaulesas aliadas. Embora
os povos gauleses compartilhassem uma língua e cultura co-
muns, as tribos eram ferozmente independentes e quase sem-
pre hostis. Nenhuma tribo nem seus chefes que buscavam do-
minar seu próprio povo tinham escrúpulos e buscavam auxílio
externo contra os inimigos ou rivais.
Mas, por volta do inverno de 53-52 a.C., um ressentimen-
to generalizado contra a presença romana havia surgido. Um
grupo de nobres de muitas tribos reuniu-se secretamente e
planejou uma rebelião coordenada. Muitos desses líderes es-
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Wikicommonsperavam que a glória obtida ao derrotar Roma lhes traria influ-Mapa das campanhas de Júlio César
Wikicommonsência política entre sua própria tribo e outras.
O avanço das legiões atraiu Vercingetórix, que buscou se
O homem que logo emergiu como principal líder da rebelião aproximar do inimigo. César tinha acabado de aceitar a ren-
foi Vercingetórix, da tribo dos arvernos. Vercingetórix formou um dição de outra cidade murada, Novioduno, quando o exército
exército recrutado não apenas entre os membros de sua própria gaulês surgiu, reacendendo o entusiasmo dos habitantes da
tribo, mas da maioria dos povos da Gália ocidental e central. cidade para continuar a resistir.
Comparada com os exércitos tribais normais, a força que ele reu-
niu era maior e bem mais organizada e disciplinada, ainda que As cavalarias dos dois exércitos começaram a lutar, com
inferior aos romanos em termos de organização e disciplina. a vantagem passando ora para um lado, ora para outro, do
modo usual de tais combates. Finalmente, César enviou seus
A primeira irrupção da rebelião aconteceu bem no início do cavaleiros germânicos e essa reserva, combinada com a signi-
ano de 52 a.C., em Cénabo, na terra dos carnutos, onde dois ficativa vantagem moral que os guerreiros germânicos tinham
chefes tribais e seus seguidores massacraram todos os merca- sobre seus pares gauleses provocou a fuga do inimigo.
dores romanos que encontraram na cidade. César, o governa-
dor da Gália Cisalpina, ao saber da rebelião, levou as forças à A cidade se rendeu mais uma vez, e as legiões continuaram
sua disposição à Gália Transalpina para enfrentar os rebeldes. sua marcha para atacar Avárico, uma das comunidades mais
prósperas e importantes dos biturígios. César estava confiante
Ainda era inverno e o passo principal nos Alpes era con- que a captura dessa cidade, após suas recentes vitórias, seria
siderado impraticável, por isso os arvernos não esperavam suficiente para persuadir a tribo a capitular.
represálias. Mas César levou seus homens através do passo,
limpando as trilhas cobertas com até dois metros de neve e Vercingetórix decidiu que era melhor, naquele momento,
lançou um ataque contra o inimigo. A surpresa foi completa e, evitar o confronto direto com os romanos e, em lugar disso
durante dois dias, a coluna romana saqueou e destruiu à von- desgastar as legiões, promovendo um bloqueio nas suas linhas
tade, com a cavalaria auxiliar galopando à frente para espalhar de abastecimento. Ele acampou a cerca de 25 quilômetros de
pânico através da maior área possível. Avárico e ordenou que sua cavalaria acossasse os grupos de
forrageadores romanos. O comandante gaulês persuadiu os bi-
Logo, Vercingetórix recebeu incontáveis mensagens turigios a retirar ou abater seus animais e destruir seus depósitos
de seus conterrâneos exigindo auxílio imediato. Quando de alimentos para evitar que caíssem nas mãos dos inimigos.
Vercingetórix avançou para sitiar Gorgobina, a aldeia princi- Assim, muitas das suas aldeias e plantações foram incendiadas.
pal da tribo dos boios, aliados dos romanos e que tinham re-
cebido permissão para estabelecer-se em território dos éduos Perseverando, apesar dos revezes, César sitiou Avárico, or-
em 58, César enfrentou um dilema. Seu exército não tinha denando a construção de uma grande rampa de cerco através
provisões para uma campanha longa e não podia esperar do vale entre seu acampamento e a cidade, que era situada no
obter quantidades significativas de suprimentos no inverno. alto de uma colina.
Contudo, se ele não fosse proteger as tribos aliadas, isso es-
timularia a deserção para o lado inimigo. Na medida em que o cerco continuava, o exército gaulês
também começou a enfrentar a falta de provisões. A autorida-
O general romano decidiu que era melhor assumir imediata- de de Vercingetórix sobre o exército não era, de modo algum,
mente a ofensiva. Ele ordenou aos éduos que reunissem grãos
e levassem a ele tão logo quanto possível e avançou imediata-
mente em auxílio dos boios, tomando qualquer fortaleza hostil
pela qual passava em sua rota e confiscando todos os supri-
mentos e animais de carga que encontrava.
Capacete decorado com triskeis,
importante símbolo celta
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Wikicommons
Vercingetórix depõe suas armas diante de César, por Lionel Royer (1899)
absoluta, e os outros chefes foram contra sua decisão de apro- as proximidades da cidade, ergueu acampamento e esperou
ximar-se da cidade e tentar libertá-la. Vercingetórix conseguiu uma oportunidade.
enviar dez mil guerreiros para reforçar a cidade sitiada, mas
não foi capaz de libertá-la. Durante os dias seguintes, houve frequentes escaramuças
entre a cavalaria e as tropas ligeiras dos exércitos rivais. Então,
Os gauleses perceberam agora que sua defesa não era pos- depois de algum tempo, César resolveu realizar um grande
sível, porém, uma tentativa feita pelos guerreiros para romper ataque contra uma parte exposta da serra na qual o exército
o cerco foi frustrada. Na manhã seguinte, durante uma pesada gaulês estava acampado.
tempestade, quando o inimigo menos esperava um ataque,
César ordenou que seus legionários tomassem a cidade. As Por meio de um estratagema, César realizou um ataque-sur-
muralhas foram rapidamente conquistadas e romanos se con- presa. O ataque foi bem-sucedido e rápido. Surpreendidos,
centraram em tomar os pontos principais das defesas. Os gau- os gauleses, não ofereceram nenhuma resistência. Os legio-
leses entraram em pânico. nários, desobedecendo ordens, atacaram, então, as muralhas
de Gergovia. Num primeiro momento, parecia que o ataque
O saque da cidade foi brutal ao extremo, uma vez que os impetuoso e mal organizado seria bem-sucedido devido ao
cansados legionários deram vazão à sua frustração depois do
seu trabalho prolongado e difícil e produziram outra vingan- Wikicommons
ça por Cenabum. Virtualmente todos os homens, mulheres e
crianças foram massacrados. O exército permaneceu na cida-
de por vários dias para se recuperar, e César teve o prazer de
descobrir grandes depósitos de grãos dentro das muralhas.
UM GRANDE GENERAL Um carnyx, trombeta de guerra gaulesa
Apesar da perda de Avárico, que ele havia se mostrado con-
trário a defender, a influência de Vercingetórix foi reforçada
por esse episódio e ele foi capaz de persuadir mais tribos a
participarem da aliança. No entanto, a rápida ação de César
conseguiu sufocar rapidamente a insurreição.
O exército gaulês principal estava acampado no cume de
uma serra, próxima a Gergovia. César levou seu exército até
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forte entusiasmo e ao pânico que se espalhou entre os poucos ligeira gaulesa, abandonada pela cavalaria, foi quase que in- Wikicommons
defensores da cidade. teiramente massacrada.
No entanto, os gauleses rapidamente começaram a se re- No dia seguinte, os gauleses atacaram à meia noite. Os
cuperar, e grandes números de guerreiros foram tentar deter guerreiros celtas atacaram em massa, desviando-se dos obstá-
a incursão, entrando em formação em densos blocos por trás culos e passando por sobre as valas, enquanto lançavam uma
das muralhas. Os gauleses massacraram muitos soldados ro- barragem de pedras, flechas e dardos era lançada contra o
manos. César, então, retirou suas forças. baluarte. Os romanos responderam com dardos e pedras. A
luta foi feroz e confusa, pois a escuridão dificultava o controle,
A ÚLTIMA BATALHA mas os ataques acabaram sendo, finalmente, repelidos.
Depois de suas vitórias, os gauleses rebeldes enviaram pe-
quenos grupos de cavalaria para ameaçar as linhas romanas Na manhã seguinte, os gauleses concentraram-se principal-
de suprimento que vinham da Gália Transalpina. César tinha mente contra a seção mais vulnerável da linha de defesa. Mas
perdido a iniciativa em Gergovia, e seu revés fora suficiente Vercingetórix não estava em contato com o exército de refor-
para encorajar a maioria das tribos gaulesas a juntar-se aos ço. No final, os gauleses foram repelidos mais uma vez.
rebeldes. Para compensar, ele lançou uma contraofensiva.
No dia seguinte, enviados gauleses foram até o acampamen-
Enquanto isso, Vercingetórix foi capaz de aumentar o núme- to romano e aceitaram a exigência de rendição incondicional
ro de guerreiros do seu exército principal e encorajou outras estipulada por César. De acordo com Plutarco, Vercingetórix
tribos gaulesas a atacar os romanos onde quer que pudessem. envergava sua melhor armadura e cavalgava seu mais belo
Vercingetórix reuniu uma grande força de cavalaria para ata- cavalo de batalha. Depois de cavalgar ao redor do tribunal,
car o exército romano em marcha. ele desmontou, depositou suas armas no chão e sentou-se na
grama esperando em silêncio, para ser levado dali.
Mas, durante a batalha, a cavalaria romana derrotou seus
oponentes, provocando a retirada do resto da cavalaria gau- O número de cativos era enorme – cada soldado do exército
lesa. Desencorajados pelo fracasso de um ataque executado recebeu um prisioneiro para vender como escravo - aumen-
pelo que eles achavam ser sua arma mais forte, Vercingetórix tando o já grande número de homens aprisionados por César
e o exército gaulês retiraram-se para a cidade de Alesia. durante as campanhas na Gália. Plínio acreditava que mais
de um milhão de pessoas foram vendidas como escravos, em
César os perseguiu, acossando a retaguarda gaulesa, infli- consequência das conquistas.
gindo pesadas baixas. Na manhã seguinte, toda a força ro-
mana dirigiu-se a Alesia, onde encontraram o exército gaulês César tratou os arvernos como e os éduos com clemência,
acampado no terreno elevado fora da cidade. permitindo que os guerreiros capturados retornassem às suas
terras, em vez de serem vendidos como escravos.
Com seu exército agora concentrado e bem provisionado,
dessa vez César não hesitou em iniciar o bloqueio da cidade e A atitude de César muito contribuiu para conquistar uma dis-
do acampamento de Vercingetórix. Enquanto sua cavalaria pro- posição amistosa das tribos gaulesas. Quanto a Vercingetórix,
tegia os trabalhos e travava diversas escaramuças com os cava- do mesmo modo que muitos outros líderes que tinham enfren-
leiros gauleses, os legionários começaram a construir uma linha tado Roma, ele não recebeu clemência. Foi mantido prisioneiro
de fortificações de cerca de dezessete quilômetros de compri- durante alguns anos. Então, acompanhou a procissão triunfal
mento com 23 fortes ligados por uma vala e um baluarte. de César e, no final da celebração, foi ritualmente estrangulado.
Antes de o circuito ser completado, o comandante gau- Camponesa celta em relevo romano (c. século 1 d.C.)
lês ordenou que sua cavalaria se dispersasse, instruindo cada
contingente a retornar às suas tribos e arregimentassem tro-
pas, formando um grande exército de reforço que retornaria
e derrotaria o inimigo.
O comandante romano soube da retirada da cavalaria ini-
miga e da determinação de Vercingetórix de resistir ao cerco.
César aumentou ainda mais a construção das fortificações,
dobrando em escala. Embora Vercingetórix tenha tentado lan-
çar ataques com o objetivo de atrapalhar as obras, não foi
capaz de evitar que as mesmas fossem concluídas. Quando a
fortificação terminou, o exército de César ficou protegido de
ataques de qualquer direção.
Entrementes, as tribos gaulesas estavam reunindo reforços.
Quando essa força chegou Vercingetórix posicionou seus ho-
mens para a batalha e ordenou que os guerreiros que estavam
dentro da cidade saíssem e se unissem a eles.
César dividiu suas tropas para defender-se de um ataque
de qualquer direção e, então, enviou sua cavalaria para lutar
com os cavaleiros gauleses. A cavalaria germânica, uma tro-
pa auxiliar que combatia ao lado dos romanos, foi superior
aos cavaleiros gauleses, desbaratando o inimigo. A infantaria
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OS HELVÉCIOS
Wikicommons Os helvécios eram a tribo celta que
habitava a região da atual Suiça.
Mais uma vez, Júlio César descreve
este povo, nos permitindo
conhecê-lo melhor
Os helvécios, uma tribo celta originária do Sul da
atual Alemanha, estabeleceu-se na região da Suíça
por volta do século 1 a.C. Na medida em que sua
população aumentava, os helvécios empreenderam
novas migrações e acabaram entrando em choque com os ro-
manos. Em 58 a.C., foram repelidos por Júlio César e volta-
ram à Suíça. Décadas depois, a partir de 15 a.C. O Império
Romano fundou colônias na região, estabelecendo a província
da Helvécia. Em 260 a.C., tribos germânicas cruzaram as fron-
teiras e expulsaram os romanos.
Segundo os autores antigos, os helvécios se subdividiam em
outras tribos, como os verbigenos, os tigurinos e os töygenoi.
Como muitas outras tribos celtas, na época em que enfrentaram
Mapa da Gália, com o país dos helvécios ao Norte No mapa com os nomes originais, em latim, das tribos
gaulesas em cerca de 15 d.C.; os helvécios estão na
região denominada pelos romanos de Gália Belga
Wikicommons
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César, os helvécios não possuíam reis. Eram lide- Wikicommons
rados por uma classe de nobres, a qual os roma-
nos comparavam com a sua classe de cavaleiros,
os équites, a mais baixa das duas classes aristo-
cráticas romanas, abaixo da ordem senatorial.
De fato, segundo César, os helvécios pare-
ciam abominar a instituição real. O general ro-
mano registrou a história de Orgetórix, um dos
nobres helvécios mais proeminentes e ambicio-
sos de seu tempo. Quando Orgetórix tornou-se
rei das tribos helvécias, foi preso, condenado
como traidor e executado.
A MIGRAÇÃO
DOS HELVÉCIOS
No começo da primavera de 58 a.C., os hel-
vécios começou a migrar, seguindo uma rota
que os levaria através do rio Reno e da provín-
cia romana da Gália Transalpina. A migração foi
motivada pelo crescimento da população que
precisava de terra fértil e extensa para cultivar.
Muitas das tribos, especialmente do Sul e do
centro da Gália, estavam evoluindo do sistema
de liderança tribal para Estados organizados
governados por magistrados eleitos. Contudo,
alguns indivíduos da nobreza ainda detinham
considerável poder, baseado nos guerreiros sob
seu comando e apoiados por homens a eles li-
gados por laços de sangue ou por dívidas.
Um desses homens, Orgetorix, que havia
habilmente casado suas parentes com nobres
poderosos das tribos vizinhas para conquistar
influência, originalmente inspirou os helvécios
a migrarem em 61 a.C. No entanto, enquanto
os helvécios preparavam-se para migrar, as am- Os helvécios obrigam os romanos a passar sob o jugo, de Charles Gleyre (1858)
bições de Orgetorix o puseram em conflito com
os magistrados da tribo.
Depois de uma tentativa fracassada de intimidá-los com uma agem leve, impressionou seus contemporâneos. Ele estava de-
mostra da força à sua disposição, ele foi julgado e executado. terminado a evitar qualquer incursão de bárbaros ao território
Mesmo assim, pelo menos um dos associados de Orgetorix, romano, o que os cidadãos de Roma consideravam uma gran-
seu genro, um nobre da tribo dos éduos chamado Dumnorix, de ameaça. Para atrasar os helvécios, enquanto reunia mais
ajudou a liderar os helvécios durante sua migração. forças, César ordenou que a ponte sobre o Reno, próxima de
Como a determinação de não voltar, incendiaram suas próprias Genebra, fosse destruída.
aldeias e fazendas antes de partir. César afirma que cerca de 368 Uma embaixada dos helvécios foi ao encontro de César
mil pessoas migraram, sustentando que tal número era baseado para pedir permissão para passar através de parte da província
em registros mantidos pelos helvécios e escritos com caracteres romana durante sua jornada, prometendo não causar danos
gregos, os quais seus legionários capturaram no final da sua cam- enquanto atravessavam o território.
panha. Mas não há como comprovar essa estimativa. O general romano pediu tempo para considerar sua res-
Os helvécios, como as outras tribos bárbaras em migração, posta e ordenou aos seus soldados que construíssem uma
não viajavam numa única coluna, mas em diversos grupos se- linha de fortificações que se estendia por cerca de trinta qui-
parados espalhados por uma grande área. É possível imaginar lômetros a partir do lago Genebra até as Montanhas Jura
a extensão da horda em movimento por um relato de César. - uma cordilheira ao norte dos Alpes, na fronteira entre a
O general romano observa que os helvécios demoraram três França, Suíça e Alemanha.
semanas de travessias ininterruptas para cruzar um rio. Quando os enviados dos helvécios retornaram, César in-
César recebeu um relatório da migração enquanto ainda formou não lhes daria permissão para passar pelo território
estava em Roma e partiu imediatamente à Gália Cisalpina. A romano e que resistiria a qualquer tentativa que eles fizessem
velocidade com que viajou, tanto cavalgando como em carru- de cruzar a província.
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Wikicommons
Júlio César e Divico negociam, depois da Batalha do Saône
Com a cooperação de Dumnorix, os helvécios tomaram uma guintes seguiu o inimigo, com sua vanguarda permanecendo
rota alternativa através das terras dos sequanos, outra tribo a cerca de dez quilômetros atrás da tribo mais próxima.
gaulesa que vivia na cordilheira do Jura. César, por sua vez, re-
tornou à Gália Cisalpina para buscar reforços e, então, voltou A certa altura, os batedores de César reportaram que os
pela rota mais curta. helvécios tinham acampado à noite numa planície dominada
por terreno elevado a cerca de quinze quilômetros do acam-
Os helvécios continuavam a avançar, saqueando as terras pamento romano. Uma patrulha foi enviada para examinar
das tribos aliadas de Roma. Assim que cruzou o Reno, César essas colinas e as trilhas que levavam a elas. Descobriu-se
avançou contra os migrantes, alcançando as colunas mais à que eram fáceis de atravessar, e César decidiu lançar outro
retaguarda, constituídas principalmente pelos tigurinos, às ataque surpresa sob a proteção da escuridão. César armou
margens do Saône. uma emboscada. Ordenou que seu legado, um general do
exército romano, Tito Labieno, e duas legiões, guiados por
À frente das três legiões, o general romano deixou o acam- homens que tinham tomado parte na patrulha anterior, ocu-
pamento durante a noite e lançou um ataque repentino. A passem uma área de terreno elevado. Labieno recebeu or-
surpresa foi completa, e os helvécios foram massacrados ou dens estritas para não entrar em batalha até que ele visse o
dispersados com poucas perdas para os romanos. resto do exército chegando para a operação. O próprio César
comandou a força principal.
O exército romano cruzou, então, o rio Saône e seguiu o
corpo principal dos helvécios. Enviados das tribos helvécias pe- Ao amanhecer, Labieno já tinha dominado o térreo eleva-
diam agora que os romanos lhes concedessem terras, afirman- do e César estava a mais de dois quilômetros de distância.
do que se estabeleceriam com prazer onde quer que tais terras Os helvécios, que, como muitos exércitos celtas, moviam-
lhes fossem dadas. No entanto, recusaram de imediato a exi- -se desordenadamente e tomavam poucas precauções para
gência que César fez de receber reféns em troca da concessão. proteger-se de ataques surpresa, ainda não tinham percebido
a presença das forças romanas.
No dia seguinte, os helvécios retiraram-se, porém, sua
cavalaria em número inferior à dos romanos, infligiu uma Mas a tentativa de surpreender o acampamento inimigo fra-
derrota vergonhosa nos cavaleiros auxiliares de Roma que cassou por um problema de comunicação entre César e seu le-
os perseguiram sem tomar as devidas precauções. Houve ru- gado Labieno, que atrasou o ataque e permitiu que os helvécios
mores de que o ataque foi liderado por Dumnorix e seus ho- em marcha prosseguissem, escapando, sem saber, da cilada.
mens. Encorajados, alguns dos helvécios se detiveram para
oferecer batalha. César declinou e pelas duas semanas se- Àquela altura, o exército romano estava ficando com
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pouquíssimos suprimentos e, como os éduos não tinham provisado, enquanto outros arremessavam objetos entre as
ainda entregue os grãos prometidos, César resolveu levar o rodas, mas no final os legionários forçaram essa defesa e a
exército até o local onde estavam os suprimentos, marchan- romperam.
do para a sua principal cidade, Bibracte, a cerca de trinta As baixas romanas foram bastante pesadas. Os romanos
quilômetros de onde estava. passaram os três dias seguintes cuidando dos feridos e enter-
As notícias dessa mudança foram levadas aos helvécios por rando os mortos. As baixas gaulesas foram, como é comum
alguns cavaleiros auxiliares gauleses que desertaram o exército para um exército derrotado, consideravelmente maiores e
romano. Os celtas interpretaram a manobra como medo dos diversos prisioneiros distintos caíram nas mãos dos romanos,
romanos e decidiram que agora era o melhor momento de inclusive uma das filhas de Orgetorix.
livrar-se de seu perseguidor. Assim, os helvécios passaram a Os helvécios retiraram-se até o território dos lingones, mas
seguir os romanos, atacando repetidamente a retaguarda. César havia enviado mensageiros até estes instruindo-os a não
César levou seus homens a uma colina e, enviando a cava- prestar qualquer auxílio ou dar alimentos aos fugitivos, do con-
laria para atrasar o inimigo, colocou suas legiões em formação trário teriam de enfrentar um ataque romano. Ameaçados pela
de batalha. César, montado em seu cavalo, colocou-se bem à fome, os helvécios mandaram enviados para pedir a paz e dessa
vista de todos e fez um discurso encorajador – provavelmente, vez submeteram à exigência de deixar reféns com os romanos.
várias vezes, pois não teria sido possível dirigir-se à toda a O poder dos líderes nas sociedades tribais raramente era
linha simultaneamente. absoluto, e, pode ter sido essa independência de espírito
Conforme os romanos preparavam-se para batalha, os que estimulou um grupo de cerca de seis mil pessoas a fugir
helvécios formaram uma densa linha de guerreiros aos pés durante a noite. César enviou mensageiros informando as
da colina. Atrás dos guerreiros estavam seus familiares em tribos por cujas terras os fugitivos passassem para prendê-
carroças para observar a luta e testemunhar o comporta- -los. César afirma que todos foram detidos e enviados a eles
mento de seus homens. e vendidos como escravos.
Os helvécios estavam extremamente confiantes e avança- O remanescente dos helvécios recebeu instruções de retor-
ram de pronto colina acima para atacar a linha romana que nar às suas terras de origem. Os alóbroges, um povo celta vi-
aguardava. Os legionários esperaram até que estivessem ao zinho que vivia dentro da província romana, receberam ordens
alcance de seus pesados dardos, chamados pila (singular pi- de dar aos helvécios uma quantidade considerável de grãos
lum), e, então, os arremessaram. As pequenas pontas em for- para sustentá-los enquanto reconstruíam suas comunidades e
ma de pirâmide das armas pesadas perfuravam os escudos, e semeavam plantações para o ano seguinte.
as longas e finas hastes passavam através do orifício e atin- César afirma que apenas 110 mil helvécios retornaram
giam o guerreiro. aos seus lares, porém, devido ao desejo dos romanos de
Alguns helvécios foram mortos ou gravemente feridos, e mensurar o sucesso militar com números espetacularmente
muitos outros tiveram seus escudos cravados com o pesado grandes e aparentemente precisos dos mortos e capturados,
pilum, que não podia ser retirado com facilidade, fazendo o historiador militar britânico Adrian Goldsworthy observa
com que os largassem e lutassem sem proteção. que “devemos tratar com extremo ceticismo a implicação
A combinação do avanço morro acima e o devastador de que cerca de 258 mil pessoas pereceram ou foram escra-
lançamento de dardos dos romanos tinha quebrado a for- vizadas na campanha”.
mação dos helvécios e tirado muito do ímpeto
do seu avanço. Quando os romanos sacaram
suas espadas e atacaram morro abaixo em Wikicommons
formação ordenada, tinham uma vantagem
marcante.
Mesmo assim, demorou algum tempo até
que os helvécios começassem a desistir. Eles
recuaram cerca de oitocentos metros, e as
legiões avançaram para retomar a batalha.
Contudo, os romanos encontraram, de repen-
te, uma nova ameaça. Os boios e os tulingos,
dois subgrupos gauleses que acompanhavam
os migrantes, tinham formado a retaguarda
e, em função disso, chegaram mais tarde na
batalha. Agora, eles ameaçavam o flanco ex-
posto dos romanos.
Segundo César, a luta continuou por cer-
ca de cinco horas, os romanos gradualmente
forçando os helvécios cada vez mais morro
abaixo. Os boios e os tulingos conseguiram
chegar às carroças de carga, onde as usaram
para formar uma barricada. Alguns guerreiros
lançaram dardos do alto desse baluarte im- Soldado romano retratado na Coluna de Trajano
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A RELIGIÃO
CELTA
Wikicommons
Três deusas celtas em relevo O POLITEÍSMO
na fonte Coventina
O politeísmo celta, como o próprio termo sugere, é o conjunto de
O mundo celta era povoado crenças, práticas e representações religiosas dos antigos povos celtas,
de criaturas sobrenaturais, localizados por várias das regiões da Europa Ocidental, que viriam a se
como as fadas que habitam os tornar a Irlanda, País de Gales, Escócia, Grã-Bretanha, como também por
bosques e os leprecaus que regiões da Alemanha, Bélgica, Holanda, Dinamarca, França e Espanha.
guardam seu pote de ouro no
fim do arco-íris. Um universo Apesar das origens dos povos celtas serem controversas, devido à es-
mágico, no qual os deuses cassa quantidade de documentos originais, é fundamentada, contudo, a
interagem com os homens afirmação de que os povos celtas são ainda mais antigos do que os pró-
por meio dos elementos e prios gregos e romanos antigos, datando desde, aproximadamente, 4000
dos seres que os cercam. anos a.C., sendo o primeiro povo civilizado da Europa desde 1800 a.C.
Os celtas acreditavam na
imortalidade da alma e na O politeísmo celta era animista (do latim animus, “alma”), ou seja,
transmigração do espírito acreditava que animais, plantas, rochas e fenômenos climáticos possuí-
de um corpo para outro e am uma essência espiritual. Os ritos eram quase sempre realizados ao ar
observavam os desígnios dos livre, pois viam a natureza como a manifestação mais sublime da Deusa-
homens no caminhar dos Mãe, divindade mais profunda de todas. Esta filosofia animista visava o
equilíbrio. Para alcançá-lo, a vida humana deveria conectar-se à fonte
astros através do céu espiritual, através do contato com a Natureza.
Como a essência-prima era feminina, enxergavam na mulher um
ser com maior domínio sobre as forças da natureza, embora a cultura
celta não fosse matriarcal.
Os povos celtas eram muito variados entre si, conforme localização
e etnia, e também as práticas religiosas diferiam para cada um destes
“subpovos”, apesar de existirem características em comum a todos estes.
Os celtas perderam seu poder após a invasão dos romanos, durando
cerca de dois séculos, do séc. 1 a.C. ao 1 d.C. Após tal período sangrento
de resistência e conflitos, já no início da Idade Média, a cultura e arte
celtas ressurgiam, porém agora em ambiente católico e cristão.
24
Wikicommons -se arte e conhecimento. Os manuscritos ornamentados com
iluminuras são a principal síntese da onda cultural desse tempo,
a Renascença Celta. A maior figura do esforço missionário do
cristianismo celta foi São Patrício, o Apóstolo da Irlanda
São Patrício em vitral da igreja de Nossa SÃO PATRÍCIO
Senhora Stela Maris, em Cork, Irlanda São Patrício, o Apóstolo da Irlanda, escreveu na sua auto-
biografia, Confissão, ter nascido em 377, num lugar chamado
O CRISTIANISMO CELTA Bonaven Taberniae – uma aldeia não identificada pelos historia-
dores, talvez na França ou Escócia. Membro de uma família de
Ao mesmo tempo em que o cristianismo se espalhava pelo clérigos (naquela época os padres podiam casar), admitiu que
Império romano, populações de áreas não conquistadas da não se sentia inclinado à vida religiosa. Isso mudou quando,
Escócia, Irlanda e País de Gales passaram a adotar espontanea- ainda adolescente, foi raptado por piratas e vendido como es-
mente o cristianismo. Era, porém, uma versão própria da religião cravo. Então, a solidão e o desamparo do cativeiro o fizeram se
de Jesus, independente da Igreja de Roma, uma forma conheci- voltar a Deus. Seu senhor, Milchu, era um grande druida, e, nos
da como cristianismo celta. A conversão dos habitantes celtas ao seis anos que passou escravizado, Patrício se familiarizou com a
cristianismo, a fundação de mosteiros e de escolas monásticas língua e o misticismo celta. A Igreja Irlandesa que fundou tem,
e o uso da escrita trouxeram grande expansão cultural às Ilhas segundo diversos autores, muitas reminiscências do druidismo.
Britânicas. Durante os séculos 6 e 7 d.C., essas escolas estavam
entre as mais importantes do mundo ocidental. Estudantes de Patrício fugiu do cativeiro, reencontrou a família, mas foi cap-
toda a Europa iam para a Irlanda em busca de conhecimento, turado e vendido como escravo por mais duas vezes. Depois
pois o continente, pilhado e saqueado pelos bárbaros depois da do último cativeiro, ele foi viver na abadia de São Martinho de
queda de Roma – em 476 –, iniciava sua Idade das Trevas. Nos Tours, onde passou quatro anos. Foi aí, por inspiração divina, se-
mosteiros irlandeses independentes da Igreja romana, produzia- gundo contou na sua Confissão, que ele decidiu ir catequizar a
Irlanda. O abade do mosteiro recomendou-o, e Patrício embar-
cou para a ilha para substituir seu antecessor, o bispo Paládio,
assassinado pelos “hereges”. O futuro santo, apesar da opo-
sição dos druidas, acabou tendo sucesso. Seus conhecimentos
de druidismo o ajudaram. Segundo alguns estudiosos, Patrício
simplesmente revestiu os preceitos místicos dos celtas com sím-
bolos cristãos. Prova disso é que seus mais fiéis discípulos eram
bardos – os antigos poetas e músicos celtas. Uma precondição
para se tornar druida era ser um bardo – os guardiões da tradi-
ção e conhecimentos celtas. De fato, muitos mosteiros funda-
dos por Patrício acabaram se tornando centros de poesia celta.
Patrício não morreu mártir, mas em paz, no dia 17 de março
de 461, depois de 30 anos de apostolado na Ilha dos Santos –
como a Irlanda veio a ser chamada depois dele. Solidificada, a
obra de Patrício continuou por si só. A fundação de mosteiros
e de escolas monásticas e o uso da escrita trouxeram grande
expansão cultural ao país. Durante os séculos 6 e 7, essas es-
colas estavam entre as mais importantes do mundo ocidental.
Por influência de Patrício, enquanto todo o resto da Europa vi-
via a Idade das Trevas, a Irlanda passava pela sua Era de Ouro.
A ERA DE OURO DA IRLANDA
No século 6 d.C., a Irlanda viveu sua Era do
Ouro. Estudantes de toda a Europa iam para a
Irlanda em busca de conhecimento, evitando
ou fugindo dos bárbaros que saqueavam os
despojos de Roma e de suas colônias na Europa
Central e Ocidental. Nos mosteiros irlandeses,
que eram independentes da Igreja Romana,
produzia-se arte e conhecimento. Os manuscri-
tos ornamentados com iluminuras são a principal
síntese da cultura desse tempo.
25
TEMPLOS rando seus galhos de forma que fossem se entrecruzando na
medida em que cresciam. Nos dias de festa, os aldeões içavam
Embora seja comum a ideia de que os povos celtas não plataformas de madeira e as colocavam sobre os galhos. E era
construíam templos e que suas práticas religiosas ocorriam sobre esses tablados em meio às árvores que a festa, a música
apenas em altares e bosques, arqueólogos encontraram vá- e as danças aconteciam.
rias estruturas de templos em regiões da Irlanda, País de Gales
e outras regiões, outrora povoadas pelo povo celta. Após a CULTO ÀS ÁRVORES
invasão romana, templos celto-romanos surgiam com caracte- Normalmente, a forma mais comum de se venerar uma ár-
rísticas mescladas de ambas as culturas. vore sagrada em particular era nela amarrar faixas, fitas ou
panos. Quase sempre isso era feito por aqueles que buscavam
A vida ritualística celta era centrada quase sempre em luga- a cura para algum mal. A oferenda tinha de ser amarrada à ár-
res da natureza. A paisagem tinha uma influência muito gran- vore com lã crua, pois os celtas acreditavam que esse material
de na mística desse povo. Havia templos, mas não eram tão era capaz de absorver substâncias maléficas. Algumas vezes,
comuns quanto as catedrais naturais, isto é, bosques, nascen- porém, as fitas ou panos eram pregados na árvore.
tes e poços, onde realizavam seus cultos. As fontes e florestas
eram os locais mais cultuados. O poder contido na natureza se Há no folclore irlandês um exemplo famoso dessas árvo-
relaciona, também, a um dos aspectos mais proeminentes da res votivas. O Carvalho de Maelrubha era coberto de pregos,
religião dos celtas: o culto às árvores. Vistas como deusas – as nos quais se fixavam faixas. Mas também havia moedas, me-
árvores sagradas eram guardadas por fadas – cada tipo de ár- dalhões, fivelas e ferraduras pregados nessa árvore lendária.
vore tinha determinado atributo e poder. Eram habitadas por Também entre os gauleses havia o célebre carvalho Lapalud.
um espírito da natureza que, como tal, passava de um ser a Todos os homens cuja ocupação empregava o martelo, isto é,
outro, ou de um elemento da paisagem – rocha, fonte, cascata ferreiros, carpinteiros ou pedreiros, cravavam um prego em
– a outro. Venerar a árvore equivalia a honrar a divindade que Lapalud quando passavam por ele pela primeira vez. De acor-
a habitava e cultuar o poder que ela incorporava. Os nomes do com Nigel Pennik, um correspondente de Lapalud, chamado
de reis e heróis irlandeses, muitos ainda em uso, dão teste- “Stock-im-Eisen, é preservado até hoje, ainda cheio de pregos,
munho ao caráter divino que as árvores evocavam: MacCuill, numa redoma de vidro no pátio de um edifício de Viena”.
um rei lendário, quer dizer “Filho da Aveleira”, outro herói,
McCulinn, é o “Filho do Azevinho.” O espírito que habita a árvore não é, necessariamente, o
Espírito da Vegetação. Um dos locais que os celtas conside-
O culto às árvores fez surgir construções que as incluíssem ravam mais sagrados e onde normalmente buscavam a cura
como elementos arquitetônicos Na Inglaterra, o folclore de de alguma doença, eram os poços, olhos-d’água e nascentes.
certas regiões preserva relatos de palácios ou templos cons- Essas fontes naturais eram manifestação de alguma divindade.
truídos em torno de árvores sagradas. Também costumavam A água estava, assim, imbuída do poder daquele espírito. No
plantar o que o escritor Nigel Pennik chamou de “aldeia-ár- entanto, quando um poço sagrado era profanado, ele secava.
vore” . Na região oeste da Inglaterra, a que mais preserva A divindade migrava, então, para uma árvore nas proximida-
a influência celta, plantavam-se carvalhos e olmeiros, amar-
Monumento funerário Wikicommons
celta na Alemanha
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des e passava a habitá-la. Dessa forma, as árvores absorviam Wikicommons
o poder das fontes e se tornavam “árvores-poço”.
Entre todas as árvores, o carvalho era a mais sagrada. De acor-
do com James Frazer, autor do monumental O Ramo Dourado,
o carvalho “não era apenas a árvore sagrada, mas o principal
objeto de culto dos celtas”. Durante as festividades e cerimônias
cujo objeto era a fazer o sol brilhar e os frutos da terra crescerem,
os celtas acendiam e alimentavam os fogos cerimoniais com ma-
deira de carvalho. Ainda é comum hoje em dia, fazer fogueiras de
carvalho durante os festivais de verão, como os Fogos de Beltane
que continua a acontecer todo dia 1 de maio, na Escócia.
BOSQUES SAGRADOS Cruz céltica
Os bosques, ainda mais do que os lagos e Associado ao culto do carvalho, estava a importância do vis-
rios, eram lugares de presença divina. Lucain co. Trata-se, na verdade, de um parasita do carvalho. O visco
conta como César arrasou, perto de Marselha, que cresce nos carvalhos era visto como o espírito da árvore.
um bosque sagrado, onde troncos de árvo- Se alguma coisa acontece com a alma, o corpo é afetado. A
res eram esculpidos para representar deuses. lenda de Balder – um símbolo do carvalho –, que, apesar de
Empenhado em fornecer a seus compatriotas ser nórdica, é congruente com a visão celta, ecoa essa crença.
um álibi civilizador, acrescenta que ali se prati- Nada podia afetar o supostamente invulnerável Balder, a não
cavam ritos bárbaros e que as árvores estavam ser o visco. O significado disso é que “a matéria é afetada pelo
salpicadas de sangue humano. Por toda parte espírito”. De fato, Balder é abatido por um ramo de visco.
onde os romanos descobriam um bosque onde
os celtas se reuniam para celebrar seu culto, A ideia do visco como a alma que sustenta o carvalho vem
eles o destruíam. O que restou não foi poupado de uma percepção singela. Enquanto o carvalho perde as folhas
pela Igreja cristã, embora às vezes de maneira durante o outono e o inverno, o visco sobre ele permanece sem-
mais diplomática. Certo magnífico carvalho da pre verde. “No inverno, a visão das suas folhas verdes entre os
floresta bávara, objeto de fervor popular, que galhos nus deve ter sido cultuado pelos fiéis como um sinal de
os marcomanos haviam herdado dos helvécios, que a vida divina, a qual tinha parado de animar os galhos, ainda
torna-se docemente o “Carvalho de Maria” sobrevivia no visco, como o coração daquele que dorme que con-
e está hoje coberto de piedosos ex-votos. O tinua a bater enquanto o corpo permanece imóvel”. O visco está
bosque estava tão intimamente ligado à cultura intrinsecamente associado aos druidas, os quais se embrenhavam
dos celtas que não lhes era possível dissociá-Io nos bosques com suas foices de ouro em busca dessa planta. Era,
de seu afã de repelir o estrangeiro. Os romanos portanto, justamente o visco que conferia ao carvalho seu lugar
o tinham compreendido imediatamente: abater de destaque no culto às árvores. Ao observá-lo crescendo sobre
os santuários florestais dos celtas era tão impor- o carvalho, os celtas – e outros povos europeus – concluíam que
tante como desbaratar suas tropas no campo a árvore “não só era imortal, mas invulnerável.”
de batalha. Em sua desesperada luta contra os
Saxões, no século 6, os bretões do norte apela-
ram para o Criador. “Tornaí a forma de árvores”,
respondeu-Ihes ele, “e ficai em linha de batalha,
para assim frustrar os inimigos no terrível corpo-
-a-corpo.” Então eles foram transformados em
árvores e, à espera de se tornarem de novo eles
mesmos, ergueram a voz em ondas de harmo-
nia, em pleno combate. Os amieiros à testa da
tropa formavam a vanguarda, os salgueiros e
sorveiras se dispunham em ordem a seguir. “ ...
O espinheiro armado com seus espinhos feria as
mãos, a faia cortava as cabeças e foi ela própria
podada na confusão ... O rápido carvalho, em
sua marcha, fazia tremer a terra ... “ Foi o com-
bate de Godeu, que teve seu igual na Irlanda.
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas
27
Além da imortalidade e invulnerabilidade, o carvalho também Wikicommons
estava vinculado à ideia de justiça. No templo do deus Essus, o
deus gaulês que elaborava e mantinha as leis, crescia um car-
valho através de uma abertura no teto do templo, no qual os
criminosos que incorreram em faltas repetidamente eram exe-
cutados. O culpado era pendurado num dos ramos do carvalho
e seu ventre era cortado de forma a expor o estômago.
A falsa ideia de que os celtas não construíam templos prova-
velmente se deve ao fato de que a maioria dos ritos religiosos
acontecia em altares fundados em bosques e florestas.
As árvores eram contempladas e consideradas sagradas. O
azevinho, por ser de coloração vermelha, era comparado ao
sangue menstrual, assim como o as brancas frutas do visco
simbolizavam o sêmen.
A importância das árvores na religião celta é nítida. São
vários os desenhos de árvores, entrelaçados pelos nós celtas,
assim como também são várias as reverências a tais plantas.
RITOS Triskell, um importante grafismo celta Wikicommons
O rito, nas religiões antigas, não proporcio- Enxergavam nelas, além da essência da vida, formas para
nava uma expansão da alma. Era o desenrolar de prever o futuro, levando em conta a inteligência suprema da
uma técnica comprovada, criada para obter o fe- natureza, observando como a queda das folhas gerava, para-
nômeno desejado. O sacerdote pagão não pedia doxalmente, os melhores brotos.
fé no dogma, mas respeito ao rito. A prece, que,
no nível superior, é a busca de uma união mística As árvores proporcionavam o lar, sombra, lenha e o sustento
e, no nível inferior, o apelo à misericórdia divina, de aves que poderiam vir a ser alimento a tribo.
era desconhecida. A união com o cosmos era
percebida sem esforço em todos os atos da vida, OS RITOS CELTAS
e a submissão às forças naturais sem discussão Os rituais celtas consistiam em três leis principais:
nem recurso. Os modestos monumentos mate- z Cultuar os deuses;
riais do culto druídico nos são conhecidos. São z Não praticar o mal;
pequenos templos de madeira, uma peça simples z Ser forte e corajoso.
contendo uma efígie divina, cercada por um
peristilo, o fanum, amiúde estabelecidos sobre Prendedor de capa gaulês
uma elevação e circundados por uma paliçada ou
um fosso. Eram mais abrigos do que igrejas. As
cerimônias do culto se efetuavam nas clareiras de
bosques consagrados, que tomavam o nome de
nemeton, santuários. Uma floresta dos arredores
de Ouimper ainda tem esse nome: Névet. O ato
cultual por excelência era o sacrifício.
Outras cerimônias tinham um colorido mágico
que as apartava um pouco da religião propria-
mente dita. O deus Borvo se associava às águas
termais, como testifica Bourbonne-Ies-Bains.
Sua cabeça, achada na Inglaterra, contém uma
cavidade no topo, provavelmente destinada a
libações simbólicas. A palavra “cantaan”, que se
acha nas estelas funerárias, pode ser o nome de
uma cerimônia funerária, pois, na Irlanda, todas
as fórmulas encantatórias eram cantadas. Em
bretão, kentel tomou o sentido de lição, pois na
origem as lições eram cantadas. Aqui, a linguística
lança suas luzes sobre a arqueologia.
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas
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A Defesa das Gálias, Wikicommons
de Theodore Chasseriau (1855)
A tese de que aconteciam sacrifícios durante os ritos celtas NUDEZ
é duvidosa – ao menos em larga escala – visto que esta se ba-
seia em escritos romanos. Muitos historiadores atuais, contudo, A nudez tinha papel relevante nos ritos celtas, embora não
creem que os sacrifícios eram extremamente raros. Afinal, a ar- com certeza entre os druidas, que são inseparáveis de suas
queologia tem informações extremamente escassas quanto aos túnicas brancas. Contudo, metade dos deuses que a estatuária
sacrifícios, insuficientes para afirmar tal suposição com certeza. celta sobrevivente representa estão nus. O deus Cernuno de
Gundestrup está vestido, mas o deus de Bouray não. O histo-
A cultura celta não é considerada uma cultura histórica por riador e geógrafo grego Políbio (203 – 120 a.C.), ao narrar a
não ter uma história escrita. Sua escrita era rudimentar, basea- Batalha de Telamon, descreve os Gesates marchando nus para
da em traços horizontais e verticais. o combate, brandindo os escudos. “Trata-se provavelmente
de um ritual, concedendo à nudez um poder de imunização
Suas histórias eram transmitidas oralmente. O historiador contra os ferimentos e a morte. Infelizmente, não teve êxi-
Estrabo descreveu os cronistas celtas como “vates”, cujo signifi- to”, observa o historiador francês Oliver Launay. Na lenda de
cado é “inspirado”. Cuchulainn, mais de uma vez mulheres nuas são enviadas a
Algumas de suas histórias eram repassadas através da músi-
ca, facilitando a memorização das palavras exatas em questão.
29
AS MULHERES ENSINAM Gália. São eles, prossegue César, “que decidem quase todas as
A GUERRA disputas; e se algum crime foi cometido, ou assassinato, ou se
há alguma disputa sobre herança e propriedade, eles também
No mundo celta, há uma relação entre o decidem isso, determinando recompensas e penalidades.” Os
guerreiro e a mulher, a guerra e a união sexual. druidas, porém, tinham um líder, o grão-mestre – a maior au-
As mulheres guerreiras não são excepcionais na toridade da ordem. Quando este morre, “qualquer um que
Terra Céltica, mas constituem uma sociedade seja proeminente o sucede, ou, caso haja vário na mesma
à parte, como as mulheres-sacerdotisas, com a posição, eles são eleitos pelo voto de outros druidas ou, até
diferença que a vocação para matar concedida mesmo, disputam a posição pelas armas”, relatou César.
a seres cujo destino natural é ter filhos, as dota
de um caráter anormal e inquietante. Elas são Os druidas costumavam ter reuniões anuais, onde decidiam
olhadas como feiticeiras. Mas junto a este título questões sobre a ordem e ouviam as reclamações do povo. Os
elas possuem aptidões tais, que os melhores dos encontros eram determinados pelo movimento dos astros nos
jovens guerreiros vêm a elas para aperfeiçoar céus, assim como eram os festivais que eles realizavam. “Em
seus conhecimentos das armas. É entre elas certas épocas dos anos, esses druidas se reúnem próximos a
que Cuchulainn adquire sua ciência temível. Ele Carnutes (a moderna cidade francesa de Chartres), cujo territó-
vai primeiro a Dordmair, que lhe ensina difíceis rio é tido como o centro da Gália e têm um conclave num lugar
proezas, como equilibrar-se sobre a ponta de sagrado”, diz César. “Para ali vão todos aqueles que têm dis-
uma espada sem se ferir. Mas, quando ela quer putas e eles obedecem às decisões e julgamentos dos druidas.”
dar a seu curso um caráter mais íntimo, ele a
repele, pois “com seus grandes joelhos, seus César também dá conta dos privilégios que os druidas goza-
calcanhares para a frente e seus pés atrás”, ela vam e relata sobre o treinamento que recebiam. “Normalmente
era horrorosa. Estamos inclinados a acreditar os druidas se mantêm distantes das guerras e não pagam im-
que sim. Tendo ouvido dizer que a feiticeira que postos de guerra; são dispensados do serviço militar e isentos de
sabia mais que todas as outras era Scatach, na todas as obrigações. Atraídos por essas grandes compensações,
Escócia, ele se apresenta a seguir em casa dela. muitos jovens buscam ser treinados nessa ordem; outros são
Mas é preciso primeiro passar por uma ponte. enviados por seus pais e familiares.” O treinamento dos druidas
“Quando se saltava sobre ela, ela se encolhia era tão rigoroso quanto longo. “Os relatos dizem que nas es-
até ficar tão estreita como um fio de cabelo e colas dos druidas eles decoram um grande número de versos e,
tão escorregadia como uma unha.” Entretanto, portanto, algumas pessoas ficam vinte anos sendo preparadas”,
consegue superar a ponte, que, tendo encontra-
do seu senhor, o deixa passar. Wikicommons
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas
ele para acalmar sua fúria e se opor à carnificina. Em outra
aventura desse herói irlandês, uma velha, Riches, que, para
vingar seu filho, se despe diante do melhor guerreiro da tribo
dos ulates, no momento em que Cuchulainn ataca. Ele, porém,
é detido. Cuchulainn exclama: “Enquanto essa mulher estiver
nessa postura, não poderei levantar-me!” Ele teria morrido,
se seu fiel cocheiro não tivesse partido os rins da mulher com
uma pedra que atirou. Liberto, Cuchulainn se lança contra seu
adversário e corta sua cabeça.
OS DRUIDAS Arqui-druida em ilustração de 1815
Júlio César, um dos mais importantes cronistas a relatar os
costumes dos celtas da Gália, registrou a proeminência da or-
dem druídica entre esse povo. Os druidas representavam o
clero organizado e exerciam grande poder sobre a sociedade,
julgando questões de propriedade e de direito, mantendo a
relação entre as esferas da sociedade e cuidando do aspecto
espiritual em geral
Os druidas “se ocupam com o culto divino, a correta execu-
ção dos rituais, tanto públicos como privados, e a interpreta-
ção de questões rituais”, escreveu César em seu As Guerras da
30
Wikicommons Apesar de não conhecermos os nomes dos antigos deuses
celtas, a não ser os preservados pela literatura mítica irlandesa
e escocesa, César também registrou a devoção que os celtas
dirigiam às suas divindades. O general romano usou, porém,
o nome em latim correspondente para se referir ao panteão
celta. Assim, sabemos que “entre os deuses, o mais cultua-
do é Mercúrio”. Esse deus, correspondente ao grego Hermes,
era excepcionalmente esperto e eloquente; deus dos ladrões,
protetor dos viajantes e dos mercadores, era ele quem condu-
zia as almas à sua morada final. Depois do romano Mercúrio,
identificado por Tassilo Orpheu Spalding como o celta Dumias,
os deuses mais cultuados pelos gauleses eram, segundo César,
“Apolo [o deus gaulês Belenos], Marte, Júpiter e Minerva”.
César confirma também a semelhança entre essas divindades
e suas contrapartidas greco-romanas: “sobre esses deuses, ele
têm quase as mesmas ideias mantidas pelas outras nações:
Apolo [Belenos] traz a cura de doenças, Minerva fornece os
primeiros princípios das artes e profissões, Júpiter mantém o
império dos Céus e Marte controla a guerra”.
Os druidas também sustentavam que os homens descen-
diam de um pai comum, Dis, a quem os romanos chamavam
de Dis Patter. De acordo com César, como Dis é senhor do
submundo, seu culto “determina todos os períodos de tempo
A druidisa, de Alexandre Cabanel (s/data) Na tradição druídica as
ƐĂĐĞƌĚŽƟƐĂƐ͕ŽƵĚƌƵŝĚŝƐĂƐ͕ĞƌĂŵ
atesta César. Era importante que os druidas conservassem os
ensinamentos, fórmulas mágicas e poemas na memória, pois altamente respeitadas pelos
nada do conhecimento druídico era escrito. De acordo com o celtas, pois conheciam o poder
escritor britânico Robert Graves (citando a maior autoridade ĚĂƐƉĂůĂǀƌĂƐ͕ƉĞĚƌĂƐĞĞƌǀĂƐ͘
sobre os celtas antigos, o general romano Júlio César), “eles ƐƐĂĐĞƌĚŽƟƐĂƐĐĂŶƚĂǀĂŵĂŽƐ
não julgam apropriado registrar as palavras (do seu conheci- moribundos para os adormecer,
mento) por escrito, embora para praticamente todos os outros
assuntos, nos seus registros públicos e privados, eles usam letras faziam encantamentos,
gregas”. Não se sabe exatamente o motivo desse costume. A ƉƌŽĨĞĐŝĂƐ͕ĨĞŝƟĕŽƐ͕ĂũƵĚĂǀĂŵ
história demonstrou que as grandes doutrinas foram corrompi- nos nascimentos e faziam curas
das depois de terem sido escritas. Grandes mestres espirituais,
notadamente Buda e Jesus de Nazaré não escreveram seus ensi- pelo número de noites, em vez de pelo número de dias, e na
namentos para preservá-los na sua forma mais pura. Foram seus sua observação dos aniversários e o começo dos meses e dos
discípulos – Ananda, no caso do primeiro, e os seguidores de anos o dia sucede a noite.”
Jesus, inclusive Maria Madalena – que registraram aquilo que
seus professores pregavam. Depois de escritas, tanto a doutrina A doutrina druídica já foi comparada à de Pitágoras e à bra-
budista como a cristã foram interpretadas de formas diferentes, mânica, uma vez que as três têm traços comuns. O ponto con-
originando diversas seitas. César declara sua opinião pessoal gruente dessas tradições de sabedoria diz respeito à imortalida-
para explicar porque os druidas não utilizavam a escrita para de da alma e da transmigração. “A doutrina principal que eles
documentar sua tradição de sabedoria: “creio que eles adota- [os druidas] ensinam é a de que a alma é imortal e que, após
ram essa prática por dois motivos – porque eles não querem que a morte [do corpo físico], passa para um outro corpo; eles sus-
sua regra se torne propriedade comum e porque não querem tentam que essa crença, porque o medo da morte é deixado de
que aqueles que aprenderam a regra confiem na escrita a ponto lado, é um grande incentivo à bravura.” , escreveu César
de negligenciar o cultivo da memória; e, de fato, normalmente
acontece que a ajuda da escrita tende a relaxar a diligência da A mesma identificação da crença druídica da imortalidade
ação da memória.” com o ensinamento pitagórico foi feita por Valius Maximus
na primeira metade do século 1 d.C. “Um velho costume dos
gauleses”, escreveu ele, “é emprestar somas em dinheiro que
serão pagas no próximo mundo, tão convencidos eles estão de
que as almas dos homens é imortal; e eu diria que são tolos, a
31
AS ARMAS DRUÍDICAS não ser pelo fato de esses bárbaros de calças crerem na mesma
fé do grego Pitágoras.”
O fogo [druídico] era uma arma poderosa nas
pequenas guerras entre reinos vizinhos. Assim o Hipólito, que registrou seu relato por escrito no século 3
Rei Cormac pede a seu druida Cithruadh que aju- d.C., atesta que os druidas entraram em contato com a dou-
de seus exércitos. “Nada te socorrerá”, responde trina de Pitágoras por meio de um dos seus discípulos. “Os
Cithruadh, “senão um’ fogo druídico. - E como?, druidas celtas se aplicavam fielmente à filosofia de Pitágoras,
diz Cormac. - Ouça: que teus soldados vão à tendo sido incitados nessa busca por Zamolxis, o escravo trá-
floresta e de lá tragam madeira de sorveira, pois é cio de Pitágoras, que foi dar nessa região após a morte do seu
com ela que se fazem nossas melhores fogueiras. mestre e lhes deu a oportunidade de estudar esse sistema.”
E é provável que do sul nos respondam da mes-
ma maneira. Quando os fogos começarem a luzir, Clemente de Alexandria vai além. Segundo ele, foi Pitágoras
cada um observará o seu. E se for para o sul que que instilou o conhecimento místico que amealhou em suas
os fogos se voltam, será preciso perseguir as gen- viagens e iniciações não só entre os druidas, mas em diver-
tes de Munster. Se for para o norte, parti também sas outras ordens espirituais da Antiguidade. “Alexandre, no
vós, pois sereis vencidos, mesmo que resistais.” O seu livro Sobre os Símbolos Pitagóricos relata que Pitágoras foi
vento druídico era outra arma temível. Mog Ruith um discípulo de Nazaratus, o Assírio... e afirmou, igualmente,
se vale dela para destroçar o exército inimigo. que Pitágoras aprendeu com os galatas e os brâmanes... Dessa
“Ele começou a soprar sobre a colina: nenhum forma, a filosofia, uma ciência da maior utilidade, floresceu
guerreiro do norte podia aguentar sob sua tenda, na antiguidade entre os bárbaros, derramando sua luz entre
tão forte tempestade ... Sempre soprando sobre a as nações. Chegou à Grécia; e os primeiros em suas cadeiras
colina, Mog Ruith diz estas palavras: ‘Eu giro, eu foram os profetas do Egito; e os caldeus, entre os assírios; e os
volto ... etc.’ A colina então desaparece, e volta druidas entre os gauleses; e os samaneanos, entre os báctrios;
em nuvens negras. O grosso do exército foi assal- e os filósofos dos celtas; e os magos dos persas...”.
tado pelo pavor quando ouviu os gritos da tropa,
o tumulto dos cavalos e dos carros que estrugiu Outro tema central do druidismo, como de diversas outras
quando a colina foi golpeada na base. Parte do classes sacerdotais da Antiguidade, como os sumérios, babi-
exército sucumbiu aos terrores da agonia, outra lônicos, egípcios e hindus, era o da profecia, principalmente,
mergulhou no desalento e na desordem ... “ É de através da observação das estrelas. “Eles [os druidas] mantêm
crer que nem todos os druidas eram capazes de muitas discussões sobre as estrelas e seus movimentos, sobre o
tal desempenho, pois sabe-se que um deles se tamanho do universo e o da Terra, a ordem da natureza e sobre
transformou em vaca e chegou ao campo inimigo a força e o poder dos deuses imortais”, testifica Júlio César. Para
onde a vaca foi sacrificada. Mas foi o bastante estudar o ciclo dos astros, eram construídos e mantidos grandes
para que seu partido conquistasse a vitória. A observatórios de pedra e madeira. O maior e mais conhecido
Batalha de Mag Tured é uma narrativa mítica e as desses é o de Stonehenge, em Avebury, Inglaterra. Embora não
palavras que pronuncia o druida que promete seu tenham sido os celtas, nem seus druidas, que iniciaram a cons-
auxílio contra os demônios Foimoré nada têm de trução desse templo observatório, eles certamente terminaram
histórico. Revelam, porém, que elevado conceito de erigi-lo e o utilizaram em seus rituais e festivais.
de si mesmos os druidas gostavam de propalar.
“Serei a causa de três tempestades de fogo se Os druidas, ou “adoradores de carvalhos”, eram sacerdotes
abaterem sobre da Escócia. Colocava-o num e sacerdotisas que realizavam seus ritos em florestas de natu-
dilema, pois uma proibição sagrada, um geis, im- reza intocada, principalmente próximos a carvalhos, originan-
pedia Caier de separar-se dele. Diante de sua re- do o emprego de tal termo. Tratava-se de pessoas com eleva-
cusa, consternada, Nede fez um glam dicinn con- do prestígio na sociedade celta. Eram encarregados de tarefas
tra ele: ‘Mal, morte, curta ‘vida a Caier ... Caier de aconselhamento, medicina, educação, filosofia e direito.
sob muros, sob a terra, sob a pedra ... ‘ Caier no
dia seguinte foi mirar-se na fonte e encontrou Recusavam-se a escrever; a sabedoria druídica era transmi-
sob sua mão três brotoejas que eram pressiona- tida oralmente, através de cânticos filosóficos, fórmulas má-
das contra seu rosto depois da sátira: Mancha, gicas e encantamentos. Todo o conhecimento que ainda se
Condenação e Fealdade, vermelho, verde e tem a respeito dos druidas é, portanto, baseado em relatos de
branco, as cores consagradas. Perdera ao mesmo romanos, sob a ótica cristã.
tempo seu direito de reinar. Envergonhado, fugiu
e foi se esconder ... “ A música entrava também A CONVERSÃO DOS DRUIDAS
na ronda da magia, principalmente a da harpa. O cristianismo se espalhou por várias das regiões povoadas
Certas árias podiam adormecer, fazer rir ou chorar pelos celtas, principalmente após o século 4 d.C.
e também, o que era uma antecipação sobre as
descobertas mais recentes da moderna zootecnia, St. Patrick (ou São Patrício) o santo padroeiro da Irlanda, foi
triplicar o leite das vacas. quem converteu os druidas. Sua lenda é muito famosa, devido
ao grande número de escritos durante a Era Medieval.
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas
Após ser raptado por piratas, quando criança, foi libertado,
se tornando bispo, a fim de responder um chamado divino
para converter seus sequestradores.
A partir de então, estendeu o processo de conversão aos
druidas para o cristianismo.
32
Wikicommons Druidas incitando os bretões
a impedir o desembarque romano,
em gravura do final do século 19
33
Wikicommons O druidismo, ao contrário
do que se crê, não era
uma religião, mas sim
ƵŵĂĮůŽƐŽĮĂĂŶŝŵŝƐƚĂ͘
Os druidas presidiam os
rituais, mas não eram
mediadores entre os
ĚĞƵƐĞƐĞŽŚŽŵĞŵ͘
Apenas conduziam o
direcionamento dos ritos
Soldados romanos assassinando druidas aqueles acometidos de doença grave ou os que
e incendiando seus bosques sagrados, enfrentam os perigos das batalhas sacrificam
ĞŵŐƌĂǀƵƌĂĚĞDŽƐĞƐ'ƌŝĸƚŚƐ vítimas humanas ou juram fazer isso, empre-
gando os druidas como ministros para tais sa-
Sua importância é tão notável ao ponto de cada último do- crifícios”, relatou César. Mas César não anotou
mingo do mês de julho, milhares de irlandeses se reunirem apenas aquilo que viu dos costumes gauleses;
para saudá-lo. ele incorporou às suas observações os relatos
do explorador grego Posidônio, que viajara
SACRIFÍCIOS HUMANOS através da Gália no final do século 2 a.C., isto é,
Autores gregos e romanos testificam que os celtas pratica- meio século ante de César ter invadido a área.
vam sacrifícios humanos. Nosso olhar moderno condena es- O geógrafo Estrabo e o historiador Deodoro
sas práticas imediatamente, sem considerar que aqueles que também relataram os sacrifícios humanos prati-
a executavam estavam num outro estágio de evolução social cados pelos celtas. A combinação das narrativas
e cultural. Aubrey Burl, no seu Rites of the Gods (Ritos dos traz, portanto, uma boa ideia sobre como esses
Deuses), afirma que “o sacrifício humano não pode ser com- ritos eram executados. Conforme James Frazer
parado com nossa atitude moderna com relação ao assassina- afirma em seu O Ramo Dourado, há também
to”. Para Burl, esses rituais “simbolizam alguma necessidade traços desse costume instilado no folclore dos
da sociedade, cuja urgência era afirmada com mais veemência países celtas modernos, confirmando esse uso
se o símbolo escolhido fosse um ser humano”. na Antiguidade.
Julio César foi um dos primeiros a descrever os Holocaustos O método mais comum de se sacrificar pes-
executados pelos gauleses. “Toda a nação dos gauleses é soas era por meio do fogo. As vítimas, porém,
muito devotada à observação dos rituais, e, por esse motivo, também podiam ser abatidas a flechadas ou im-
paladas em locais sagrados. Os criminosos eram
invariavelmente reservados para esse fim. Os celtas “creem
que a execução daqueles capturados roubando ou cometendo
qualquer outro crime é mais agradável para os deuses”, regis-
trou César. Quando não havia criminosos em número suficien-
te, os celtas lançavam mão de prisioneiros de guerra.
Os bardos eram aspirantes a
druidas, dedicando-se às artes
ĞĂŽĐŽŶŚĞĐŝŵĞŶƚŽ͘ƚƵĂǀĂŵ
como conselheiros dos reis,
além de entreter os homens
ĐŽŵŵƷƐŝĐĂĞƉŽĞƐŝĂ͘ůĠŵĚŽƐ
druidas, os bardos também
lidavam com magia e rituais
34
Havia seis tipos de druidas, distintos de acordo Segundo Diodoro Sículo, um
com suas funções: historiador grego que viveu
Druida-Brithem - eram os juízes na sociedade ŶŽƐĠĐƵůŽ/Ă͕͘͘ŽƐŽǀĂĚŽƐ
celta, pois eram os únicos conhecedores das leis, ŽƵŽǀĂƚĞƐĞƌĂŵĮůſƐŽĨŽƐ
que não eram escritas. ŶĂƚƵƌĂŝƐĞĂĚŝǀŝŶŚŽƐ͘ƌĂŵ
Druidas-Filid - representavam a mais sublime
classe dos druidas. A função destes era ter con- considerados profetas e
tato direto com os deuses cósmicos. ƉŽƐƐƵşĂŵŚĂďŝůŝĚĂĚĞƐŝŶƚƵŝƟǀĂƐ
Estes mestres tinham uma consciência tão
elevada ao ponto de não morrerem, e apenas va numa pessoa especial, muitas vezes um “rei”. No entanto,
desencarnarem, tornando-se ancestrais diviniza- esse rei não tinha um caráter político, mas sim ritualístico. Como
dos na energia cósmica. a vegetação, que precisa ser ceifada, e como a semente que tem
Druida-Liang - eram os médicos e curandeiros. de descer à escuridão do solo, enfrentar, portanto, seu túmulo,
Dedicavam-se por mais de 20 anos em seus o rei da vegetação era sacrificado. O sacrifício do deus, isto é,
estudos antes de exercerem a profissão. Eram da sua encarnação humana, era um passo necessário para a sua
profundos conhecedores de ervas medicinais ressurreição numa forma melhor. Conforme James G. Frazer, ele
que possuíam especializações entre si, tais como “tinha de ser morto para que o espírito divino nele encarnado
os atuais médicos o fazem. fosse transferido ao seu sucessor em pleno vigor.” Como o cor-
Muitos destes druidas eram aptos cirurgiões, po onde a força divina estava encerrado é sujeito a decadência
curando os gravemente enfermos. e corrupção física, a vítima tem de ser sacrificada ainda jovem
Druida-Scelaige - eram contadores de histó- e saudável. Posteriormente, na medida em que as sociedades
rias. Como a escrita era proibida, precisavam foram se desenvolvendo, o Rei da Vegetação passou a ser outro
decorar todas as histórias e canções, sob o risco homem, criminoso ou prisioneiro de guerra.
de perder tal título. Recontavam as histórias
contadas por outros scelaige, assim como as
vivências dos druidas-senchas
Druida-Sencha - percorriam as terras celtas
para acrescentar novas histórias aos druidas-
-scelaige. Recebiam o prestígio de pesquisadores
e guardiões dos segredos.
Druidas-Poetas - decoravam as histórias conta-
das pelos druidas-scelaige. Porém, ao contrário
destes últimos, que repassavam as histórias
apenas aos druidas, eles contavam ao povo,
utilizando de mecanismos da poesia. A função
principal desta classe era fazer com que a cultu-
ra celta perdurasse.
Apesar de muitos sacrifícios terem lugar anualmente, o Wikicommons
maior festival sacrifical acontecia a cada cinco anos. Nessa
ocasião, imagens colossais dos deuses feitas de madeira e vime Dois Druidas, gravura de Bernard de Montfaucon (1719)
eram construídas. Dentro delas, encerravam um número enor-
me de dádivas às divindades, isto é, humanos, gado, cavalos,
gatos ou raposas. Em seguida, os druidas que conduziam a ce-
rimônia ateavam fogo nas imagens, e o fogo consumia tudo,
levando na sua fumaça a essência das vítimas, pronta para ser
absorvida pelas divindades.
O sentido de tal prática era o de obter fertilidade para a terra
e para o povo. Os homens e animais sacrificados representavam
o Espírito da Vegetação e eles eram mortos dessa forma para fa-
zer com que o sol brilhasse e as colheitas fossem abundantes. O
Espírito da Vegetação tinha o poder de fazer as árvores frutifica-
rem, as colheitas crescerem e garantia a fertilidade dos animais
e homens. Inicialmente, não só entre os celtas, mas nas antigas
sociedades agrícolas em geral, o Espírito da Vegetação encarna-
35
Gravura do século 18 mostra Wikicommons
os homens de vime usados
pelos celtas em seus sacrifícios
36
Esse costume celta acabou se instilando no folclore de Wikicommons
vários países habitados anteriormente por esse povo. Ainda
hoje, são celebrados festivais que incluem gigantescas fo-
gueiras, como os Fogos de Beltane, na Escócia. Em diversas
regiões da Grã-Bretanha e da França, durante os festivais
de verão, são construídas grandes figuras de vime, quase
sempre representando um guerreiro, que, depois de uma
procissão, são queimadas. Até meados do século 20, po-
rém, em partes da França e da Alemanha, costumava-se
queimar gatos nas fogueiras dos festivais de verão, e na
Rússia, sacrificava-se um galo branco. Em Luchon, uma ci-
dade dos Pirineus, costumava-se prender serpentes dentro
das imagens de vime queimadas nos festivais de verão. No
entanto, provavelmente o uso de serpentes é um elemen-
to introduzido pelo cristianismo, pois, diferentemente das
serpentes, os animais sacrificados pelos druidas – cavalos,
bois, raposas, galos – as cobras não são símbolos do espí-
rito do grão que deverá germinar as plantações. As ser-
pentes, por sua vez, são vistas pelos cristãos como uma
representação do mal.
O conjunto dos sacrifícios humanos pra- Homem de vime usado no neopaganismo
ticados pelos Celtas na época histórica devia
ficar muito atrás das hecatombes sacrificiais CULTO À CABEÇA
praticadas pelos Astecas, 15 séculos depois.
O que é certo é que em diversas circuns- Outra forma de sacrifício cultuada pelos antigos celtas es-
tâncias os druidas sacrificavam um ou dois tava relacionada ao Culto da Cabeça. O pesquisador Paul
touros brancos quando da colheita do agárico Jacobsthal afirma que “entre os celtas, a cabeça humana é ve-
e da festa do deus-touro. Eles oficiavam, na nerada acima de tudo, pois para eles a cabeça é a alma, o cen-
Gália como na Irlanda, com vestes brancas. tro das emoções e a própria vida; um símbolo do divino e dos
Aliás, tomavam cuidado para que as vestes poderes sobrenaturais.” O culto da cabeça está documentado
litúrgicas não Ihes faltassem. Seu confrade tanto em representações esculturais da arte La Tène, como em
Mog, em troca de seus préstimos, pedira aos mitos sobreviventes, como o de Brân. Os heróis dessas histó-
habitantes de Munster “50 túnicas, belas, rias têm suas cabeças decepadas. Longe, porém, de morrer, as
brancas e fofas”. Mas é preciso confessar cabeças separadas do corpo mundano adquirem a capacidade
também que as imputações de sacrifícios hu- de enxergar outra realidade, uma dimensão mítica.
manos não têm todas o colorido de fábula. O
costume de sepultar o cadáver de uma vítima Diodoro Sículo, que no século 1 d.C. escreveu sua obra História,
nos alicerces de uma muralha conservou-se registrou que os celtas “decepam as cabeças dos inimigos mortos
por mais tempo do que seria bom. E a tradi- em combate e as amarram aos pescoços dos cavalos. Os despo-
ção dos sacrifícios humanos se perpetuou na jos ensanguentados eles entregam aos seus atendentes e pregam
Lenda dourada dos celtas cristãos. Lê-se na esses frutos nas suas casas, da mesma forma como fazem os que
história de São Columban que, no momento exibem certos animais que caçam. Eles embalsamam as cabeças
de tomar posse do chão da ilha de lona para dos inimigos mais distintos em óleo de cedro, as guardam cuida-
lá construir um mosteiro, no século 6, exa- dosamente num baú e as exibem orgulhosamente aos estranhos,
tamente em 563, ele convidou um de seus dizendo que por aquela cabeça um dos seus ancestrais, seu pai,
discípulos para fazer-se enterrar no solo a fim
de santificá-Io. Odran se apresentou como
voluntário e, em recompensa, sua alma voou
direto ao céu. Outro exemplo de sacrifício
voluntário é dado por Eimine Ban, que se
sacrificou com 49 de seus monges: para sal-
var o rei de Leinster e 49 outros chefes que
queiram a paz em seus domínios, cedo
o compreenderam.
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas
37
Wikicommons Fábula Celta, de
Paul Serusier (1894)
ou ele mesmo, recusou uma grande soma em dinheiro. Alguns OBSERVATÓRIOS MEGALÍTICOS
bravateiam que recusaram o peso da cabeça em ouro.”
O conhecimento astronômico dos celtas também é notório.
Como a cabeça era a sede da alma, possuir o crânio de um O complexo de Stonehenge, em Avebury, Inglaterra, embora
inimigo, honradamente ganha em batalha, era um troféu pres- não tenha sido iniciado pelos celtas, mas pelos aquitânios, que
tigioso para qualquer guerreiro. Os celtas creditavam que se ali viviam antes da chegada dos imigrantes ou, em alguns casos,
cravassem a cabeça decepada em um maestro ou na cerca dos invasores, foi concluído e utilizado pelo povo que tomou
de sua casa, a cabeça começaria a gritar quando um inimigo o lugar. Trata-se de um verdadeiro observatório astronômico,
estivesse se aproximando. Se a cabeça fosse de um inimigo usado para marcar a passagem dos astros no céu e cronometrar
considerado particularmente importante, ela era colocada a vida da Terra com relação aos movimentos estelares e onde
num santuário e venerada. Para os antigos celtas, a cabeça rituais eram executados com base na posição dos astros
decepada era uma fonte de contínuo poder espiritual.
38
Um calendário celta – ainda pedra, a nordeste, a Pedra Altar, onde, especula-se, executava-
mais preciso que o dos -se sacrifícios de sangue. Os solstícios de inverno e verão e as
posições norte e sul são particularmente marcadas e os dois
ƌŽŵĂŶŽƐʹĞƌĂŽĚĞŽůŝŐŶLJ͘ círculos internos permitem contar meses lunares com precisão.
O conhecimento astronômico
A teoria do templo-observatório, desenvolvida pelo finado
dos celtas denota que professor Alexander Thom, é a mais aceita. Pesquisas recentes
ĞůĞƐƟŶŚĂŵƵŵĂƌĂnjŽĄǀĞů demonstraram que Stonehenge começou como um santuário
ĐŽŵƉƌĞĞŶƐĆŽŵĂƚĞŵĄƟĐĂ lunar, mas, com o tempo, foi modificado para o culto do sol.
A entrada original do templo se alinhava com o surgimento
HENGES mais setentrional da lua no século. Essa preocupação com a
lua tem, provavelmente, ligação com rituais de morte. No en-
Henges são solitários e evocativos templos pagãos, que, ao tanto, conforme as escavações indicam, os sacerdotes-astrólo-
contrário de outros monumentos megalíticos, só existem nas gos acabaram mudando a entrada do templo 9 graus ao sul,
ilhas britânicas. Cerca de cem deles ainda desafiam o tem- alinhando-a, assim, com o surgimento do sol no solstício de
po, erguendo-se espalhados desde o Arquipélago Orkney, verão. Enquanto executava os rituais, exatamente no centro
na Escócia, à Cornualha, no sul da Inglaterra. São estruturas do círculo de pedra, o sacerdote veria o sol nascer exatamente
circulares ou ovais, definidas por um aterro e uma vala, para na pedra-portal, chamada de Heel Stone, ou Pedra Calcanhar.
onde há uma ou duas entradas. O aterro é, geralmente, fora
da vala, formando desse modo a fronteira para um espaço sa- STONEHENGE
grado, separado física e espiritualmente do mundo cotidiano. Com a propaganda que os romanos fizeram dos antigos ha-
bitantes das ilhas britânicas, a associação com sacrifícios de
O mais famoso henge é, sem dúvida, Stonehenge, perto da sangue sempre aparece quando se fala da primitiva Inglaterra.
cidade de Avenbury, Inglaterra. Parece que sua construção co- Stonehenge não escapa do estigma. Pelo contrário. Fornece tes-
meçou há mais de cinco mil anos e continuou pelos 1700 anos temunho. De acordo com os arqueólogos, a área está cheia de
seguintes, ficando mais complexa a medida que o conhecimen- evidências. A três quilômetros de Stonehenge, na direção nordes-
to astronômico aumentava. São círculos de pedra, buracos e te, foi encontrado o túmulo raso de uma menina de três anos e
dolmens que serviam de marco para se observar o surgimento meio, voltada para o nascente e para a entrada do templo. Seu
do sol ou da lua contra uma reta formada com algum ponto no crânio tinha sido, visivelmente, partido em dois por um machado.
horizonte. O que resta hoje desse espetacular templo-obser-
vatório astronômico são só ruínas, mas podem nos dizer algu- Esses sacrifícios feitos na fundação de uma construção eram
ma coisa sobre ele. Há três círculos: o externo tem 56 posições comuns. Como medida de proteção, costumava-se enterrar
marcadas e os dois internos, 30 e 29. Há também uma grande cabeças junto à pedra fundamental de templos e fortalezas.
Outros desses “sacrifícios de fundação” se encontra no santu-
ário de Avenbury, próximo de Stonehenge. Um adolescente de
Wikicommons
O círculo de pedras de Castlerigg: perímetro sagrado
39
quatorze anos marcava um importante alinhamento das colinas Wikicommons
artificiais, quando esse templo foi reconstruído pela última vez.
Aubrey Burl, no seu Rites of the Gods (Ritos dos Deuses),
afirma que “o sacrifício humano não pode ser comparado com
nossa atitude moderna com relação ao assassinato”. Para Burl,
esses rituais “simbolizam alguma necessidade da sociedade,
cuja urgência era afirmada com mais veemência se o símbolo
escolhido fosse um ser humano”.
Uma famosa história desenterrada no local é o “assassina-
to de Stonehenge”. Em 1978, o corpo de um homem forte,
de aproximadamente 27 anos, datando do início da Idade do
bronze, foi encontrado na vala do henge. Havia três pontas de
flecha no cadáver, no peito e nas costelas. A vítima foi alvejada
de uma distancia curta e, então, tratada com desprezo, sendo
jogada numa cova aberta às pressas, com as flechas ainda cra-
vadas no seu corpo. Quando foi encontrado, ele ainda tinha
sua proteção de pulso feita de couro, o que indica que ele era,
provavelmente, um arqueiro.
O sacrifício podia ter três motivações. O Conforme uma das muitas lendas sobre este
dom humano era oferecido em contrapartida círculo de pedra, um gigante ajuda Merlin
do dom divino. Neste caso, a vítima, sempre a construir Sonehenge, conforme ilustrado
voluntária, era honrada pelo mesmo título que neste manuscrito inglês do século 14
o guerreiro que perde a vida para defender
a pátria. Se o sacrifício atingia criminosos ou Há ainda outros símbolos intrigantes revelados pelos arque-
prisioneiros de guerra, o pensamento era outro. ólogos. Um chefe guerreiro, por exemplo, enterrado numa das
As vítimas concentravam sobre si mesmas, colinas funerárias que cercam Stonehenge, levou com ele para
além da mancha de ser um criminoso ou um o Além as insígnias do seu poder terreno: uma clava feita de
inimigo, todas as manchas da tribo. Como os um tipo raro de calcário, um machado de bronze e duas ada-
judeus carregavam com seus pecados o bode- gas de bronze e cobre, uma delas com o punho ornado com
-expiatório, o rito então se tornava purificador. incrustações de ouro. Sua riqueza também estava expressa no
Por último, César nos diz que se sacrificava cinturão ornado com ouro marchetado encontrado no túmulo.
uma vida em troca de outra, para apaziguar os
deuses. Um manuscrito cristão, o Dindshenchas As maças e machados cerimônias de pedras semi-preciosas,
precisa que, justamente no tempo de São como a jadeíta, tinham um papel central nos ritos e empresta-
Patrício, sacrifícios humanos eram perpetrados vam autoridade aos sacerdotes. Muitas delas foram encontra-
ao pé do ídolo de ouro de Cromm Cruaich, das no templo, bem como bolas de greda e bastões de sílex,
que tinha em torno dele 12 ídolos de pedra. os quais o pesquisador Burl acredita serem símbolos fálicos. O
É a ele que eram oferecidos os primogênitos significado menos óbvio é o das taças encontradas no local.
de cada ninhada e os primeiros rebentos de Provavelmente, são emblemas da sexualidade feminina.
cada clã. É a ele que veio Tigernmas, filho de
Follach, rei da Irlanda, em Samain, com os Stonehenge é envolvido em mistério e lenda e o próprio lu-
homens e as mulheres da Irlanda para adorá- gar onde o monumento foi erguido, com suas colinas funerárias
-Io e todos se prosternaram diante dele. O alto abrigando os restos de heróis neolíticos, exerce um entusiasmo
de suas testas, as cartilagens de seus narizes indescritível. Esse feito da engenharia pré-histórica foi constru-
e as pontas de seus joelhos se quebraram, de ído, provavelmente, pelos pictos, o primeiro povo a habitar as
modo que três quartos dos homens da Irlanda Ilhas Britânicas e que se retirou para a atual Escócia, conforme a
morreram nessas prosternações ... Em suma, Inglaterra era invadida por sucessivas levas de diferentes povos.
bastante para desgostar definitiva mente os ca- Mas o mistério de Stonehenge está associado aos druidas celtas,
tecúmenos do paganismo. Essas prosternações que certamente usaram o observatório nos seus estudos e práti-
sacrificiais repousam, contudo, sobre um fato cas religiosas, embora não o tenham construído. Há até uma len-
real. Sabemos que os irlandeses praticavam da que diz que Stonehenge foi trazida da Irlanda para a Inglaterra
prosternações, sem dúvida menos vigorosas, de por Merlin, o mais famoso druida, num passe de mágica. Na ver-
joelhos, os antebraços colados ao chão, palmas dade, foi preciso bem mais que mágica para construí-lo. Pedras de
para baixo, a face vindo a tocar a terra. até 50 toneladas foram transportadas de distâncias por terra de
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas
40
Wikicommons
Stonehenge
até 50 km, superando obstáculos naturais que exigiam o esforço
de até 600 homens. As pedreiras, acreditam os pesquisadores,
ficavam a 290 km de Stonehenge, nas Montanhas Prescelly, mas
o trajeto que os pré-históricos faziam era, provavelmente, de 360
km, a maior parte dos quais através de rios e canais navegáveis.
As pedras do templo, chamadas “pedras azuis”, são, na verdade,
doleritas, uma rocha preferida nas construções de santuários pré-
-históricos. Os ancestrais dos modernos ingleses acreditavam que
esse mineral tinha poderes curativos.
De todas as estruturas semelhantes a Stonehenge, nenhuma
é tão complexa ou impressionante. Não se sabe nada além do
que os vestígios nos contam, mas seja lá qual for a respos-
ta para os mistérios de Stonehenge, com suas pedras monu-
mentais, suas colinas funerárias e o impressionante horizonte
que envolve esse templo-observatório, logo se sente que foi e
sempre será um lugar de honra ao deus Tempo.
OGHAN O alfabeto ogam Wikicommons
O alfabeto Ogham da Irlanda e da Escócia tinha um caráter
mais mágico do que prático, sendo usado como oráculo, em
cerimônias e na gravação de túmulos e em pedras mágicas
A tradição era mantida e passada adiante oralmente. Há ra-
ros registros pré-cristãos escritos em língua celta. Os poucos que
restaram lançam mão das letras gregas e latinas. No entanto, no
Sudeste da Irlanda e nas penínsulas britânicas do Sudoeste, foram
descobertas um total de 360 estelas funerárias, datando dos sé-
culos 5 e 6 de nossa era, que traziam inscrições numa escrita até
então desconhecida. Essa escrita era feita de entalhes regulares,
de um lado e de outro ou atravessando a partir de uma das ares-
tas da pedra. A decifração foi fácil graças às inscrições latinas que
muitas vezes acompanhavam as inscrições.
Uma lenda irlandesa indica que, antes de se tornar uma escrita
profana e pública, o ogam, ou ogham, era secreto e reservado só
aos iniciados. “Core, filho de um rei irlandês, expulso pelo pai,
desembarca na Escócia, onde Gruibne, filho do Rei Fedarach, que
é poeta e iniciado, lhe dá boa acolhida, pois certa vez Core lhe
salvara a vida”, diz a narrativa. “Mas repara numa inscrição com
41
Os sinais do ogam dispunham-se em Segundo Christian Roy, autor renomado sobre antigos festi-
famílias de cinco (os cinco dedos da mão, um vais, grande parte da tradição do Halloween se deve ao Samhain,
elemento de conta sumamente arcaico), e pois os celtas acreditavam que, nos dias próximos ao festival, as
cada letra levava o nome de uma árvore ou de almas dos mortos retornavam a suas casas para visitar os familia-
uma planta, o que a ligava ao mundo vivo, ao res, alimentar-se e aquecerem-se no fogo da lareira.
sagrado. A era “pinheiro” (eilm}, B “bétula
“ (bethe), C “aveleira” (coti), etc. O carva- Nesta época, os celtas diziam conseguir ver elfos, além de
lho, para os druidas que sobre ele colhiam o outras entidades sobrenaturais, pois a fronteira com o Outro
agárico, era particularmente sagrado. Uma lei Mundo desaparecia.
de Marie de France, no século 12, menciona
o galho de aveleira talhado e esquadriado por IMBOLC
Tristan, sobre o qual ele gravou o nome para O Imbolc é o festival em que se comemorava o início da
advertir Yseult: é a tradição do ogam. primavera, sendo realizado nos primeiros dias de fevereiro.
Historicamente, o festival de Imbolc foi observado na Irlanda,
caracteres ogam sobre o escudo que ostenta o proscrito e lê es- Escócia e Ilha de Man.
tupefato: ‘Se chegares um dia à casa de Feda, que tem cortem a
cabeça ao anoitecer, e se for noite, que cortem ao amanhecer.’ Este festival já era citado nas primeiras literaturas irlandesas,
Gruibne não hesitou, explicou ao pai que o agam lhe ordenava o que confirma que esta data era comemorada desde os tem-
dar a filha em casamento ao recém-chegado.” pos antigos. É associado à deusa Brighid, também conhecida
como “Deusa da Tríplice Chama”.
O ogam servia também de meio de expressão a uma lingua-
gem secreta. Outra lenda conta que “Lomma, truão de Finn Os cristãos irlandeses comemoram, nessa data, o dia de
MacCool, quer revelar-lhe a infidelidade de sua mulher. Para Santa Brígida.
assegurar a discrição da comunicação, serve-se de uma vari-
nha de quatro faces, que entalha com sinais ogâmicos. Finn lê: Nesta comemoração utilizavam de várias cruzes. A deusa
caule de amieiro numa barreira de prata, heléboro no agrião, Brighid é representada em forma de boneca, sob a qual eram
o marido de uma mulher louca, louco entre os Feni instruídos, colocadas diversas oferendas e orações.
são urzes sobre as alturas nuas de Luaigne.” Finn compreende
imediatamente de que se trata e age de acordo. BELTANE
O Beltane é o festival mais alegre dos quatro festivais do
Os pesquisadores não concordam sobre as origens do fogo. Os celtas comemoravam o início do verão, dançando
ogam. O mais provável é que já existia, nos tempos pré-his- alegremente em volta de inúmeras fogueiras. A cerimônia era
tóricos, um sistema mnemônico por pequenos talhes sobre — e continua sendo — realizada no dia 1 de maio.
uma varinha. Em seguida, o sistema ogâmico, paralelamente
ao sistema rúnico dos germânicos, foi adaptado ao alfabeto Segundo Kevin Danaher, esta cerimônia alude à união das
greco-romano, que os druidas conheciam bem, para escrever energias masculina e feminina, a fertilidade da terra e aos fo-
palavras, servindo-se de entalhes em lugar de letras. Resultou gos do deus Belenos.
uma escrita congestionante e pouco prática, mas difícil de
decifrar, o que era o objetivo. Quando ela foi proscrita pela ůĠŵĚŽƐĨĞƐƟǀĂŝƐĚŽĨŽŐŽ͕
Igreja, foi progressivamente abandonada. ŚĄƚĂŵďĠŵŽƐĨĞƐƟǀĂŝƐ
OS FESTIVAIS CELTAS DO FOGO ƐŽůĂƌĞƐ;ƐŽůƐơĐŝŽƐĚĞŝŶǀĞƌŶŽ
ĞǀĞƌĆŽĞĞƋƵŝŶſĐŝŽƐĚĞ
(Texto de Rodrigo Andrade)
As celebrações celtas utilizam simbolismos para integrar a primavera e outono), embora
não hajam evidências que
energia dos participantes às estações do ano. Os aclamados comprovem que os celtas os
festivais celtas do fogo são assim denominados devido ao mo-
vimento de translação terrestre em torno do Sol, comemoran- ĐŽŵĞŵŽƌĂƐƐĞŵ͘ŵďŽƌĂĞůĞƐ
do, portanto, o início/fim das estações do ano. os atribuíssem a deuses, não
ŚĂǀŝĂĐŽŵĞŵŽƌĂĕƁĞƐĨĞƐƟǀĂƐ
Estas comemorações são ainda praticadas por muitos neo- para celebrar tais fenômenos
pagãos e wiccanos, embora não sejam celebradas pela maio- ĂƐƚƌŽŶƀŵŝĐŽƐ͘dŽĚŽƐŽƐŽŝƚŽ
ria das pessoas, como eram nos tempos antigos. Os quatro ĨĞƐƟǀĂŝƐƐĆŽĐŽŶŚĞĐŝĚŽƐĐŽŵŽ
festivais do fogo dividem-se em quatro cerimônias: Samhain,
Imbolc, Beltane e Lughnasadh sabbats, sendo também
chamados de “A Roda do Ano”
SAMHAIN - O ANO NOVO CELTA
Samhain [literalmente “fim do verão”] é o festival do fogo
em que os celtas comemoravam a virada do ano, no dia 30 de
abril, marcando o início do inverno.
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Entre os celtas, maio era Wikicommons
um mês de liberdade sexual
em honra da Grande Mãe Bonfire em celebração ao Sanhain,
em Calton Hill, Escócia
e do “O dos Chifres” dos
ŽƐƋƵĞƐ;ĞƌŶƵŶŽͿ͘WŽĚŝĂŵ O fogo era o elemento principal dos Beltanes, mas também
ser contraídos casamentos a alegria, coroas de flores, danças e banquetes com alimentos
à experiência pelo prazo de típicos do verão sempre estavam presentes.
um ano e um dia; o casal se
ŵŽƐƚƌĂƐƐĞŝŶĐŽŵƉĂơǀĞů͕͕ŽƐ LUGHNASADH
ƉĂƌĐĞŝƌŽƐƉŽĚŝĂŵ͕ĂŽĮŵĚĞƐƐĞ O Lughnasadh encerra os quatro festivais celtas do fogo,
tempo, simplesmente seguir os comemorando o início do outono, no dia 1 de agosto.
ƐĞƵƐĐĂŵŝŶŚŽƐƐĞƉĂƌĂĚŽƐ͘
Este sabbat é uma festa de gratidão aos deuses por toda a
AS GRANDES FESTAS CÍCLICAS colheita, além de todos os acontecimentos no decorrer do ano.
As grandes assembleias populares por oca- Bonecos de palha representavam os deuses, servindo de
sião das festas cíclicas eram também de caráter amuletos de proteção, devendo ser preservados até o ano se-
religioso. Havia quatro principais. Conhecemos guinte, durante o próximo Lughnasadh, sendo queimados e
seus nomes em irlandês. A 1.° de fevereiro, substituídos pelos novos.
a festa de Imbolg, mais tarde absorvida pelo
aniversário de Santa Brígida. Servia-se nela cada RESQUÍCIOS MODERNOS
alimento segundo a ordem”. A 1.° de maio, a
festa de Beltaine cujo cardápio era: “cerveja, Atualmente, as crenças celtas ainda têm forte
couve, leite doce e leite coalhado sobre o fogo”. influência não somente nas mesmas regiões que
A 1.° de agosto, a festa de Lugnasad, “o casa- estes povos habitaram, mas também em outros
mento de Lug “, onde se provava cada fruta e lugares do mundo.
cada legume, mas, sobretudo, onde se davam as
célebres corridas de cavalos ... e de mulheres. A O Samhain — “festa dos mortos” — ocorria
paixão dos irlandeses modernos pelo turfe tem no dia 1º de novembro. A festa cristã de Todos
seus antecedentes A 1.° de novembro, a festa os Santos deriva dessa data comemorativa celta.
de Samhain era o aniversário da grande batalha
dos deuses em Mag Tuired. Dizia-se que nessa No século 19, muitos autores franceses do
noite as comunicações se estabeleciam livre- romantismo procuraram resgatar a cultura celta
mente entre o domínio do além e a terra dos em suas histórias, visando fortalecer tais origens
mortais. Era a noite quando os mortos voltavam, através da literatura.
conservada pelo calendário cristão. Era a noite
da fraternização por sobre todas as barreiras do Atualmente muitos festivais ocorrem na
destino, da aventura total, em que a embriaguez Europa Ocidental sob a temática celta, através
era santificada. Nela eram sacrificados pequenos de danças, vestuários e artes ali dispostas.
animais domésticos. Era a festa das crenças célti-
cas mais típicas e nela bebia-se cerveja, comia- Muitos músicos estão adotando elementos
-se chouriço e nozes, à saciedade. célticos em suas composições, como, por exem-
plo, Alan Stivell e o grupo holandês Omnia.
Os jogos que se disputavam ao ensejo das
festas principais e das festas secundárias, ainda Outro exemplo é o fato da renomada banda
mais frequentes, tinham muitas vezes um sentido de rock progressivo inglesa King Crimson contar
simbólico ou religioso ritual. Devia ser esse o caso com a imagem de um nó celta no encarte de
das corridas das mulheres de Lugnasad ou da seu álbum de 1981, Discipline.
dança das espadas que permaneceu na Escócia,
mas perdeu seu caráter de iniciação guerreira.
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas
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Wikicommons
Festa na noite de Halloween na Irlanda,
retratada por Daniel Maclise (1833)
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MITOLOGIA Wikicommons
Cuculan, herói do ciclo
mitológico irlandês, resgata
Ferdiad, ferido em batalha
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A mitologia irlandesa é o mais completo ramo da mitolo- Convém dizer que o conceito de “rei” para os celtas era
gia celta, entre os que atualmente se conhece. Apesar muito diferente do que para outras culturas. Os reis celtas
de parte de seu material ter desaparecido com a cristia- eram escolhidos de acordo com a sabedoria e valor. Deveriam
nização, é o mais abrangente e detalhista material da ser seres absolutamente íntegros, com nobres virtudes de co-
religião celta a ser estudado, escrito pela literatura medieval ir- nexão com a natureza.
landesa, rica em detalhes e com menor influência romano-cristã.
Um texto importantíssimo deste ciclo é a “Loucura de
Através de pesquisas de diversos historiadores, notam-se Suibhne”, onde o rei Suibhne, o Louco, desafia um santo cris-
quatro períodos de registros da mitologia celta irlandesa, mais tão e acaba sendo amaldiçoado por ele, transformando-se em
comumente chamados de Ciclos Mitológicos Irlandeses: um pássaro, voando pelos bosques irlandeses e recitando po-
emas às consagradas árvores.
z Ciclo Mitológico Irlandês;
z Ciclo de Ulster; VIAGENS
z Ciclo Feniano; As viagens, ou immrama, são histórias de jornadas no mar
z Ciclo dos Reis (ou Ciclo Histórico Irlandês). e as maravilhas ali vistas. Historiadores creem que estes con-
tos surgiram de experiências de pescadores com elementos do
O Ciclo Mitológico Irlandês contém os mais importantes re- “Outro Mundo”, ao oeste da Irlanda.
latos da mitologia celta irlandesa. O exemplo mais consagrado
de todos estes escritos é o “Livro das Tomadas da Irlanda” Somente três immramas não se perderam: “A Viagem de Mael
(Léabhar Gábhala na Eireann), também conhecido como Dúin”, “A Viagem de Uí Chorra” e “A Viagem de São Brandão”.
“Livro das Invasões”.
CONTOS FOLCLÓRICOS
Esta é uma obra complexa, que durou várias décadas para Muitos escritores do século 19, como Darby O’Gill, Herminie
ser completada, com vários autores diferentes redigindo-a ao T. Kavanagh e Lady Gregory, reuniram histórias folclóricas da
longo dos anos. Descreve a chegada de vários seres míticos à cultura celta, contribuindo para a preservação de suas lendas.
Irlanda – de forma bem similar à cristã Bíblia Sagrada. Ademais,
seres bíblicos também aparecem, como Adão e Eva, por exem-
plo, apesar do foco direcionar aos druidas e deuses celtas.
Neste livro aparecem também os Tuatha de Danann, consa-
grados seres vindos do oeste (ou “Outro Mundo”) que, ao de-
sembarcarem na Irlanda, chegaram a eclipsar o sol por três dias.
O Ciclo de Ulster refere-se a uma das cinco províncias irlan-
desas, localizada ao norte do país, chamada “Ulster”. Também
conhecido como o “Ciclo do Ramo Vermelho”, o qual man-
tém suas histórias preservadas até hoje, com personagens
presentes no folclore da Irlanda e da Escócia, como os heróis
Cuchulainn, Conchobhar mac Nessa e Fergus mac Roich, além
das poderosas mulheres Fedelm, Maedbh e Macha.
Neste período, são retratados com detalhamento os costu-
mes celtas, como irmandade tribal, riqueza representada pela
posse de gado e sociedades guerreiras em busca de prestígio.
Há muitos escritos que evidenciam isto, sendo, provavelmen-
te, a obra “O Roubo do Gado de Cooley” como a mais im-
portante destes.
O Ciclo Feniano alude aos Fianna Eireann, grupo de guerrei-
ros mitológicos liderados por Fionn mac Cumhail, herói consa-
grado pela mitologia irlandesa.
Retrata, sobretudo, a chegada do cristianismo à religião cel-
ta. Um exemplo clássico é encontrado no livro “Colóquio dos
Anciães”, onde o filho de Fionn argumenta com São Patrício,
visando à preservação da cultura celta, defendendo virtudes
como coragem, generosidade, hospitalidade e liberdade.
A mitologia celta, por ser muito ampla, é comumente divi-
dida em três grupos principais, de acordo com suas regiões:
z Britânica Continental – Europa continental Wikicommons
z Britânica Insular – País de Gales e Cornualha.
z Goidélica – Irlanda e Escócia
O Ciclo dos Reis relata os feitios de diversos reis de peque- A lança mágica de Lugh, em ilustração
de H.R. Millar (1905)
nos reinos da Irlanda.
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TUATHA DE DANAN O Ciclo Mitológico, um dos quatro que com- Wikicommons
põe a literatura mítica e lendária irlandesa (os
Os Tuatha De Dana (ou Danann, ou Danu), ou o “povo da outros são, Ciclo das Invasões, Ciclo Ultoniano
Deusa Dana”, são os povos retratados no “Livro das Tomadas ou de Conorian e o Ciclo Ossianico ou Feniano)
da Irlanda” como seres emigrantes do Outro Mundo à Irlanda. traz a história da disputa entre diversos povos
O livro relata que, quando eles ali chegaram, foram acompa- invasores pela posse da Irlanda. Os primeiros
nhados de uma gigantesca nuvem negra, fazendo com que a chegar são povos etéreos, habitantes de um
um eclipse solar durasse por três dias mundo sobrenatural.
Estes povos aprenderam as grandes ciências com os mes- Inicialmente, os Partolanos tomam a ilha.
tres de quatro cidades: Falias, Gorias, Findias e Murias. Destas Então, imigram os fomorianos e o povo de
cidades, levaram quatro respectivos dons mágicos, talismãs Nemed; em seguida, os firbolgs e, após estes,
como a Pedra do Destino, por exemplo, sobre a qual muitos o Tuatha De Danann, O Povo da Deusa Dana,
reis se assentaram. Ao sentarem sobre ela, a pedra indicaria se presente ainda hoje na cultura ocidental em seres
aquele indivíduo deveria ser rei ou não. como fadas e duendes. Finalmente chegam os
humanos, os Filhos de Miled, vindos da Espanha.
Pesquisadores estimam que eles simbolizavam divindades Os Milesianos, ou Povo de Gael, acabam por
dos celtas goidélicos, indo em contrapartida às traduções de derrotar o Tuatha De Danann e tomam posse da
cristãos, que os representam como heróis. E, de fato, tal tese ilha. Historicamente, os milesianos, ou gaélicos,
tem fundamento: personagens da deusa Danu são associados são os celtas goidélicos, que, segundo a lenda,
a deuses celtas, como Nuada o é em relação ao deus Nodens, chegaram à Irlanda via Península Ibérica.
Lug ao deus Lugus, Tuireann ao deus Taranis, além de uma O rei irlandês Lyr, na versão de H.R. Millar (1905)
infinidade de comparações que fortalecem esta afirmação.
Os povos da Deusa Danu chegaram à Irlanda liderados pelo
rei Nuada, e travaram a Primeira Batalha de Magh Tuiredh,
derrotando os Fir Bolg, povo, que apesar de invasor, era inex-
periente em guerras. Diz-se que Nuada perdeu um braço nes-
ta batalha; como reis deveriam ser perfeitos, ele foi deposto.
Após certo tempo, um curandeiro substituiu seu membro cor-
tado por um braço de prata, tornando-o novamente rei.
Durante a Segunda Batalha de Magh Tuiredh, agora contra
os Fomorians, Nuada foi morto por Balor, rei do povo adver-
sário, mas Lug assassinou Balor, tornando-se o novo rei dos
Tuatha De Dannan.
A Terceira Batalha ocorreu contra os Milesianos, povos do
noroeste da Península Ibérica, porém os povos da Deusa Danu
desta vez foram derrotados. Forçados a retirar-se, caminha-
ram às colinas subterrâneas (montes do Sídhe), liderados por
um novo rei: Bodb Dearg, o Vermelho. Diz-se que Bodb era
iniciado em todos os encantamentos e mistérios, apesar de
alguns deuses não enxergarem Bodb como o rei ideal para os
filhos de Danu.
Os Tuatha De Dannan são aclamados como “Os Que
Sempre Vivem” — alusão ao domínio da imortalidade.
Possuíam o Banquete da Idade, triunfando sobre o envelhe-
cimento através do consumo de porcos mágicos e cerveja fa-
bricada pelo deus Goban, o Ferreiro, cujas armas eram vistas
como sagradas.
Eles ainda contavam com o médico Diancecht, guardião da
fonte da saúde. Qualquer ferido ou morto era colocado junto
à fonte para regenerar-se. Consideram Diancecht como o sal-
vador da Irlanda, pois advertiu que a criança que Morrighan
deu a luz possuía três serpentes em seu coração. Se estas ser-
pentes crescessem, toda a Irlanda seria destruída.
Uma história muito conhecida dos Tuatha De Dannan cel-
ta é a origem de dois dos principais rios da Irlanda, Boyne
e Shannon, que possuem estas denominações devido a duas
deusas celtas: Boann e Sionnan, respectivamente.
Boann é a deusa da fertilidade, casada com Nechtan, uma
divindade da água. A lenda diz que ela traiu-o com Dagda,
“Deus Supremo e Pai de Todos”, gerando um bastardo. Para
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Wikicommons
Bom povo: os Tuatha De Danann na visão de John Duncan (1911)
esconder a traição de seu marido, ela e seu amante fizeram o Conforme César registrou, os celtas acreditavam descender
Sol parar por nove meses, fazendo com que o filho Aengus do Deus do Submundo, o Deus dos Mortos, o gaulês Dis Pater,
fosse concebido, gestado e nascido em um só dia. ou o irlandês Bress ou Breasil. De acordo com esses antigos
mitos, Bress e seus súditos viviam em Hy Brazil ou Hy Breasil,
Certo dia, Boann aproximou-se do poço de Segais, circun- às vezes chamada de Moy Mel ou Tir Na Nog, uma ilha move-
dado de aveleiras, as quais constantemente derrubavam suas diça a oeste da Irlanda. Em Hy Breasil a Terra Abençoada, ou
avelãs nestas águas, sendo comidas pelos salmões — peixes Terra dos Mortos Felizes, a verdade era dúbia e não havia nem
que simbolizam a Sabedoria na cultura irlandesa. Resolveu de- juventude nem velhice, pena ou tristeza, bem ou mal.
safiar o poder do poço caminhando em sentido anti-horário ao
redor dele. Isto fez com que suas águas se agitassem violenta- Foi de Hy Breasil que Partholan emigrou. E é Partholan
mente, correndo em direção ao mar, originando o Rio Boyne e quem mantém viva a saga da conquista da Irlanda e suas
arrancando três membros da deusa: perna, braço e olho. muitas batalhas, uma vez que ela a testemunhou por com-
pleto, durante as muitas vidas que viveu. Partholan chegou
A lenda encerra uma metáfora: não se deve procurar o co- à Irlanda no dia do deus da morte acompanhado de sua mu-
nhecimento para satisfazer o ego. Isto sufocará aquele que lher, Dalny (Dealgnaid, em gaélico), e de vários colonos e
não estiver preparado para recebê-lo. Boann foi aceita pelo suas esposas. Na época, havia apenas três lagos, nove rios e
guardião do poço, mas foi obrigada a sacrificar seu ego e iden- uma planície no país. Num papel que corresponde, até certo
tidade para o bem de algo maior. ponto, ao dos titãs gregos, durante o reino dos partolanos,
eles fizeram surgir outros rios, lagos e planícies. O Lago Rury,
A LENDA DE TUAN MACCARELL por exemplo, surgiu quando se cavava o túmulo de Rury,
Tuan macCarell foi um rei irlandês do século 6 d.C., época filho de Partholan.
em que os sacerdotes cristãos viajavam pela ilha, procurando
converter os celtas à nova religião. Certo dia, São Finnen passou A Irlanda foi, então, invadida por outro povo. Violentos
pelo reino de Tuan para pregar a nova religião. Tuan, porém, e cruéis, os fomorianos eram liderados por Cenchos, o Sem
declinou a nova doutrina. Não aceitaria a nova religião. Não ele, Pés. As lendas os descrevem como verdadeiros demônios que
que tinha visto e vivido todas as invasões da Irlanda. Em lugar macularam a ilha com o mal que trouxeram. Na verdade, os
de se converter, ele contou a São Finnen a saga que presenciara, fomorianos simbolizam as forças ingovernáveis da natureza.
e o santo a registrou tal como a ouviu numa obra que chamou Partholan e o seu povo lutaram ferozmente contra os invaso-
de Livro das Invasões, preservando assim a fantástica memória res e conseguiram expulsá-los para os mares do norte. Do seu
e os mágicos povos que determinaram, com suas crenças, cul- refúgio, os fomorianos atacavam ocasionalmente a Irlanda,
turas, modos e maneiras, a pré-história irlandesa. saqueando os cada vez mais enfraquecidos portolanos.
Finalmente, mais uma vez no dia do deus da morte, uma peste
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Guerreiros gauleses em
batalha, por Theodore
Chasseriau (s/data)
implacável irrompeu por toda ilha. Partholan e os seus leva- Sozinho, Partholan refugiou-se em fortalezas abandonadas,
ram os milhares de mortos para a Planície de Senmag, para lá grutas, árvores ocas, tentando fugir dos lobos famintos que o
enterrá-los. Mas a peste acabou atingindo a todos. À exceção caçavam. Durante vinte e dois anos ele viveu assim, sozinho,
de Partholan, ninguém sobreviveu. habitando locais desolados. O tempo e a aspereza dos ele-
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posse da ilha, e naquela mesma noite, Partholan adormeceu e
não acordou mais como Partholan. Quando despertou, era um
cervo, jovem e cheio de vigor. E foi como cervo que Partholan
assistiu ao apogeu e ao fim da raça de Nemed.
OS DESCENDENTES DE NEMED
Na sua memória, Partholan manteve vivo através do
tempo o momento em que Nemed chegou à ilha deserta.
Quando zarpou de seu longínquo país, ele liderava 32 bar-
cos, cada qual com trinta homens e mulheres. Passaram um
ano e meio no mar. E durante esse tempo, em meio às tem-
pestades e à vastidão do oceano, quase todos se perderam,
naufragaram ou padeceram de fome e sede. Apenas nove
pessoas chegaram à Irlanda: Nemed, e mais oito – quatro
homens e quatro mulheres. E esses cinco homens e quatro
mulheres se multiplicaram ao longo das gerações, povoan-
do a ilha com 8.060 pessoas.
Como os partolanos antes deles, os nemedianos também ti-
veram de enfrentar as forças antagônicas dos fomorianos, que
continuavam a atacar a ilha. Nemed saiu vitorioso em quatro
importantes batalhas. Após essas vitórias, porém, uma peste ir-
rompeu entre os nemedianos, e quase todos, inclusive o próprio
Nemed, morreram. Os fomorianos puderam, então, estabelecer
seu domínio de terror na Irlanda. Liderados por dois reis, Conann
e Morc, cobravam como tributo dos nemedianos sobreviventes
dois terços do leite que produziam e dois terços das crianças que
Wikicommons
mentos o erodiram, transformando-o num decrépito, numa Moy Mel, em ilustração de Stephen Reid (1910)
ruína humana.
E foi nessa condição que Partholon viu aportar nas praias
da ilha o barco de Nemed, filho de Agnoman. Nemed tomou
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