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"Doia - Minha Vida" é um livro que conta a vida difícil de Jacinta Teodoro de Souza.

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Published by TODAVOZ EDITORA, 2020-02-09 19:48:37

Doia Minha Vida

"Doia - Minha Vida" é um livro que conta a vida difícil de Jacinta Teodoro de Souza.

Keywords: Doia,Divinópolis,Literatura,Todavoz Editora

DOIA

Minha vida

Só Deus e eu sabemos o quanto foi duro
levar esta vida.

Teodora Jacinta de Souza

DOIA

Minha vida

1a. edição

Belo Horizonte
2018

Editora
Maria de Fátima Moreira Peres

Capa
Alex Coelho

Revisão
Imaculada Nascimento
Coordenação/Organização

Ivonice Ribeiro
Impressão
Cópia & Arte

FICHA CATALOGRÁFICA

S725d Souza, Jacinta Teodora de,
Doia – Minha Vida / Teodora Jacinta de Souza

Coord. Ivonice Ribeiro. Belo Horizonte: Todavoz Editora
2018.

104p. Il.

ISBN: 978-85-94474-02-5

1. Literatura Brasileira - Memórias I Título

CDU: 82-94 (81)

Este livro foi confeccionado artesanalmente pela Todavoz Editora
Rua Dom Lúcio Antunes, 977-301
Belo Horizonte, MG - CEP: 30535-630
[email protected]
Tel: (031) 3879-7422

SUMÁRIO

PARTE I – DÓIA MENINA

Cap. 1 – Primeiras lembranças pág. 12

Cap. 2 – O Chaves: mais lembranças pág. 15

Cap. 3 – Mudanças pág. 19

PARTE II – O TRABALHO E A MOCIDADE

Cap. 1 – Namoradinho pág. 22

Cap. 2 – Primeira profissão (Final da década de 40) pág. 24

Cap. 3 – Meados do ano de 1950 pág. 30

Cap. 4 – 1º de janeiro de 1951: primeiro passo pág. 33

Cap. 5 – 27 de janeiro de 1951: o casamento pág. 35

Cap. 6 – Vida nova. Primeira casa. Nenhum diálogo pág. 37

Cap. 7 – Uma perda pág. 39

Cap. 8 – 12 de setembro de 1952: cumprindo a promessa

pág. 41

Cap. 9 – 14 de setembro de 1953: o primeiro filho pág. 43

Cap. 10 Mudança em carro de bois pág. 46

Cap. 11 – Mudanças: Perdigão, Araújos, Perdigão pág. 48

Cap. 12 – Sábado de Aleluia: nasce o segundo filho pág. 49

Cap. 13 – Internação em Belo Horizonte pág. 52

Cap. 14 – O desespero pág. 55

Cap. 15 – 17 de dezembro de 1959: novo parto pág. 56

Cap. 16 – Outras mudanças pág. 58

Cap. 17 – Outra casa pág. 60

Cap. 18 – Agosto de 1965: Divinópolis – A cidade do divino

pág. 61

Cap. 19 – Uma vizinha, uma grande amiga pág. 64

Cap. 20 – Teodora: Dóia pág. 65

Cap. 21 – Muita luta e perseverança pág. 66

Cap. 22 – 14 de março de 1978: mudança para Barbacena

pág. 69

Cap. 23 – Barbacena: vida nova pág. 70

Cap. 24 – Noivado de Lúcia – o retorno para Divinópolis

pág. 72

Cap. 25 – Vovó Dóia – o primeiro neto pág. 73

Cap. 26 – Barbacena – formaturas pág. 74

Cap. 27 – Uma data especial. Barbacena, 12 de dezembro de 1980

pág. 75

Cap. 28 – 1982: mais formaturas pág. 77

Cap. 29 – 1983: de volta para a cidade do Divino – Divinópolis

pág. 79

Cap. 30 – 1987: casamento e viagens pág. 82

Cap. 31 – Vida que segue: uma construção pág. 84

Cap. 32 – Nascimento e casamento na família pág. 86

Cap. 33 – 18 de março de 1994: uma grande perda pág. 90

Cap. 34 – Novos tempos pág. 93

UMA BREVE ATUALIZAÇÃO pág. 97

APRESENTAÇÃO

“Doia – Minha Vida” é uma autobiografia, originalmen-
te manuscrita. Teodora Jacinta de Souza nasceu em 1930, na
cidade de Perdigão (MG), mas foi criada e educada pelos avós
maternos nascidos na década de 80 do Século XIX. Com isso,
uma linguagem que retrata, fielmente, um tempo cada vez mais
longíquo das gerações futuras.
Durante a edição, a obra foi dividida em duas partes
e cada uma delas subdividida em capítulos, mas a sequência
narrativa é original. Nessa mesma linha didática, a edição foi
organizada em parágrafos, sem alterar o estilo conciso da auto-
ra. Houve, ainda, um cuidado em checar e/ou resgatar nomes
de pessoas, datas e outros, junto a autora. O acréscimo de al-
gumas fotos da época, de seu arquivo pessoal, também foi um
investimento para preservação de suas memórias.
Teodora começou a escrever sua história em Barbacena,
por volta de 1976. A finalização foi datada e assinada em 2012,
em Divinópolis (MG), tal como foi impressa. Porém, por solicita-
ção da organizadora, ela escreveu um texto anexo como forma,
principalmente, de atualizar sua história.
Seu processo de escrita foi bastante tranquilo. Iniciou
numa fase que considera a melhor da sua vida. Ela escrevia em
um caderno, com folhas fixas, que com o tempo foram amare-
lando e se soltando. Depois de passar toda a história a limpo,
durante uma mudança para outra casa, ela jogou o caderno no
lixo com todos os seus primeiros rascunhos. Conta ainda que
um dia escrevia mais, outro menos e, às vezes, nem escrevia.
Assim, esta publicação é uma forma de ela própria con-
tar sua história aos netos. Considera sua vida um exemplo para
muitos. Adora ler e desejaria continuar escrevendo sobre outras
coisas, outras histórias talvez.
Teodora registrou uma vida cheia de emoções e senti-
mentos que agora pode ser recontada. Podemos reencontrá-la a

qualquer tempo. Viajemos com ela!

Ivonice Ribeiro
(Organizadora)

PREFÁCIO

Esta é a história de muitas vidas contada por uma
mulher apenas. É a recuperação de um ponto de vista femi-
nino tantas vezes desconsiderado. Resgate de uma voz que
esteve calada por décadas.
Teodora nos puxa pela mão para o início do século
passado, tocando porco na estrada, buscando água no cór-
rego e namorando nas novenas. Suas memórias têm uma
poesia que transborda, como ela descreve na cena do “ribei-
rão que não comportou a enchente”.
A narrativa é de uma existência testada pelas adver-
sidades. Febre tifo, crises de nervos e outros tantos adoe-
cimentos. Foram muitos sonhos frustrados, como o estudo
interrompido e o casamento infeliz. Dóia, como é carinhosa-
mente conhecida, por vezes apartou-se de pessoas queridas
e até de sua terra natal. Em alguns momentos, chama de
cruel a vida, da qual pensou em desistir.
Mas ela não desistiu. Diz que aprendeu com a mãe a
ser durona. Habituou-se à lida da madrugada até o anoite-
cer. Caminhou quilômetros a pé para dar aula às crianças
na zona rural. Rachou lenha, levantou parede e passou noi-
tes em claro sozinha velando a casa e os filhos. Uma mulher
que não hesitava em pular na garupa de um cavalo quando
a vida chamava para uma mudança. Mas que também esco-
lheu permanecer, porque sabia que a resignação é um tipo
de força.
Teodora escreve que a vida é crescer e, depois, traba-
lhar até a morte chegar. “Fatalidade de todos”, diz ela. Mas,
desse destino inevitável, ela arrancou alegrias genuínas: a
maternidade, a amizade com outras mulheres e o cuidado
com os netos.
Conta que só se permitiu provar um copo de cerveja
quando comemorou a formatura do segundo filho em curso
superior. Talvez estas páginas sejam o desabafo que ela, fi-

nalmente, tenha se permitido fazer após anos, atravessando
tragédias e relevando mágoas, sem fazer alarme.
A capacidade de suportar tanto desgosto e aflição
pode permanecer um mistério para o leitor. Já o motivo de
tanta renúncia, Teodora explica: foi “tudo por amor”.

Érica Toledo
Jornalista e psicanalista

PARTE I
Dóia menina

Maria Jacinta Benfica, mãe de Teodora (Perdigão, MG)

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Capítulo 1

Primeiras lembranças

Não tive o privilégio de conhecer meu pai. Fui criada
por meus avós maternos, os quais amei muito e os tinha
como pais.
Pai Otaviano Rufo, alto, magro, cabelos e barbas pre-
tos, boa pessoa. Querido e respeitado por todos. Foi juiz de
paz. Mãe era baixa, clara, muito brava, mas cumpridora de
seus deveres, também querida e respeitada por todos. Seu
nome era Maria, mas chamavam-lhe Nhanhá.
Quando eu tinha um ano e dois meses de idade, Ma-
ria, a minha mãe de verdade, casou-se pela segunda vez.
Meu avô lhe disse: “Pode casar... mas não leva a menina”.
Ela acabou me levando, porque eu ainda mamava no seu
peito.
Pai, meu avô, não suportou minha ausência. Após
uns três dias que tinham me levado, apesar de muito peque-
na, lembro-me bem daquele dia em que ele chegou pouco
depois do almoço, a cavalo. Levava um travesseiro na cabeça
do arreio. Apeou e foi entrando. Eu estava na sala brincando
com um cachorrinho branco e peludinho que a Maria tinha.
Não me acostumei chamá-la de mãe. Ele me deu um abraço
apertado e disse: “o pai está com muita saudade de você e
veio te buscar”. Foi até a varanda e sentou-se.
Enquanto ele conversava com Maria e a esperava pas-
sar um café, aproveitei para sair caladinha. Fui até onde
guardavam minhas roupas e apanhei um vestido de chita
que eu gostava muito. Coloquei-o na algibeira do paletó dele
e falei: “Agora vamos, pai?!” Ele olhou para Maria e ordenou:
“Veja a roupa da menina, ela vai comigo”.
Sem dizer nada, porque o respeitava muito, mas com
nó na garganta ela ajuntou a roupa e lhe entregou. Ele mon-
tou em seu cavalo e colocou-me no travesseiro. Eu, bem con-

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tente, abanava a mão dando adeus, enquanto ela ficava com
as lágrimas escorrendo pelo rosto pela triste separação. Es-
tava jovem ainda, tinha o direito de construir nova vida.
Desse casamento ela me deu oito irmãos. Morreram
dois, ainda crianças: Romualdo e Jacinta. Romualdo tinha
quatro anos e a Jacinta sete meses. Restaram seis: Mariazi-
nha, a mais velha, Otaviano, o segundo. A seguir: Francis-
ca, Antônio, Juvenil e, por fim, a caçula Rosinha. São todos
meus irmãos e amo-os muito.
O pai foi dono de fazendas, gados, porcos, engenho.
Fabricava rapaduras e cachaças. Quando me entendi por
gente, ainda morávamos na roça. Ele já não possuía mais es-
sas coisas. Era lavrador, cultivava plantações. Na casa, além
do pai, mãe e eu, moravam mais três tios: Vanico, Rosa e
José. Eu os tinha como irmãos. Só mais tarde fiquei sabendo
de toda a história. De qualquer maneira, tenho muito amor
por eles.
Vanico, tio Nico, como eu o chamava, era baixo, ma-
gro, cabelos castanhos, barba fechada e olhos verdes. Va-
queiro e carreiro, trabalhador muito esperto. Todos os dias
ele levantava de madrugada. Foi querido por muitas moças.
Hoje está velho, casado, pai de muitos filhos. Rosa era como
minha segunda mãe. Ajudava a cuidar de mim. Não ficava
um instante longe dela.
Zé, o mais moço, era o caçula da minha avó. Brigáva-
mos muito. Uma vez estávamos na roça e era hora do almo-
ço. Enquanto os trabalhadores almoçavam, eu aguardava as
vasilhas, sentada numa sombra. Ele chega sorrateiro e me
dá uma cuspida. Fiquei com muita raiva e o xinguei de “fi-
lho da puta”. Pai, também ali sentado, não disse nada. Mas
olhou-nos de cara fechada. Saímos correndo, fomos escon-
der na casa da Joana, minha tia, que morava ali perto. Es-
condemos no porão do paiol. Não adiantou. Ele nos buscou
e nos levou debaixo de vara. Colocou-nos diante dele, uma
varada num, outra no outro, até chegarmos a nossa casa e
ainda nos fez prometer não repetir nunca mais aquela cena.
Em outro dia, chegou a nossa casa, acompanhado da

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família, um amigo do pai. Já era de tardinha. Mãe teve de
preparar o jantar para eles. Uma das mulheres estava com
dor de dente e com o rosto muito inchado. Disse que preferia
um mingau de fubá, temperado com gordura, sal e açúcar.
Como eu não conhecia esse mingau, fiquei curiosa. Quando
a mãe colocou-o no prato e entregou a ela senti um cheiro
muito agradável. Pedi que pusesse para mim também. Na-
quele tempo, criança não podia pedir as coisas na presen-
ça das visitas. Mãe me levou para o quintal, deu-me várias
chineladas e disse: “não faça isto mais!” Depois que todos
haviam comido eu já não queria mais, mesmo assim ela me
fez comer o dito mingau.
Na mesma semana, morreu uma senhora. Seu esposo
era muito amigo de pai. Tivemos que ir ao velório. Eu ti-
nha muito medo de defunto. Fomos todos. Uma noite de lua
cheia, muito fria. Era uma senhora muito alta, ficou uma
defuntona. O velório era na varanda de sua casa. Já era bem
tarde, eu no colo da minha tia Rosa, cochilando. Não po-
dendo mais controlar o sono, dormi. Minha tia me deitou
na cama onde era o quarto da defunta. Acordei com mui-
to medo, gritei: “vem cá Rosa, estou com medo da mulher!”
Todos começaram a rir e muitos disseram: “não precisa ter
medo, ela não se levanta dali”. Não podia acreditar. Pensava
que a qualquer momento ela podia levantar e todo mundo
teria de correr.

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Capítulo 2

O Chaves: mais lembranças...

Passados alguns meses, mudamos para o Chaves, uma
roça com bastante moradores, inclusive o tio Felício. Gostava
muito de ficar na casa dele. Tinha muitos filhos, duas peque-
nas que me faziam companhia para brincar.
Lá não tinha escola. Pai contratou um professor para a
garotada. Joaquim Lino, o nome dele. A escola era uma casa
grande, ao lado da nossa residência. Tinha muita vontade de
estudar lá, mas era muito nova. Durante as aulas eu ficava
na porta, às vezes prestava atenção, outras vezes tirava aten-
ção do pessoal fazendo caretas e outras travessuras como
ficar de costas e levantar as saias. Motivo este que acabei ga-
nhando uma calça íntima com suspensório, feita pela minha
mãe. Joaquim ficava bravo. Não adiantava. Às vezes me pe-
gava no colo e entregava a mãe. Nas suas folgas ensinava-me
a escrever meu nome. Em pouco tempo aprendi.
Certo dia, Maria e meu padrasto chegaram a nossa
casa. Fiquei muito contente, estava com saudades. Apesar de
não vivermos juntas, gostava muito dela e sentia uma afini-
dade diferente por ela. No dia em que ela retornou para sua
casa, parti com ela. Queria estar com meus irmãos. Eram,
mais ou menos, uns vinte quilômetros de distância. Meu pa-
drasto seguia a cavalo, e eu na garupa dele. Maria, na frente,
a pé. Depois de três horas e meia de viagem chegamos. Foi
imensa a nossa alegria. Muito tempo que não nos encontrá-
vamos. Agora podíamos brincar e nos divertir bastante.
Era uma casinha pequena na roça, não tinha conforto;
perto dali tinha um povoado, onde todos se conheciam e eram
amigos. O Miguel da Aurora, padrinho do meu irmão Otavia-
no, um amigo de confiança da família, morava pertinho. A
gente não saía de sua casa. Era época das chuvas. Choveu a
semana toda. O ribeirão não comportou a enchente e jorrou

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águas nas beiras até grande distância. A ponte também ficou
encoberta. A água chegou até a porta da cozinha do Miguel
da Aurora. Quando baixou, me lembro bem, já era meados
de março.
Na beira do ribeirão tinha uns pés de pitanga, esta-
vam carregadinhos e todas madurinhas. Gostava muito. Sem
compreender o mal que podia causar, corri até lá e apanhei
uma colada. Eu e minha irmã chupamos todas.
No dia seguinte fiquei doente. Tive uma febre alta, era
a febre Tifo. No almoço, não consegui comer. Sentia o corpo
bambo e frio de tremer. Maria torrava farinha debaixo de
uma coberta grande de capim, ao lado da casa. Ali, encosta-
do, ficava um carrinho, que era puxado por cabritos. Deitei
dentro dele para ficar no sol. Maria olhou para mim e pe-
diu que eu fosse deitar na cama, porque o sol estava muito
quente. Não podia sair porque estava tremendo de frio. E
a febre ficou tão alta que tive convulsões. Desmaiei, não vi
mais nada.
Quando acordei já no dia seguinte, às nove horas da
manhã, a casa cheia de gente e um senhor que era vizinho
da Maria, me dava uma xícara de chá. Um aqui, outro ali,
todos incomodados e eu continuava com febre. Mandaram
chamar o pai que veio logo. Foi até a farmácia, consultou o
farmacêutico e me trouxe os remédios. Foi um tratamento
demorado e com regime rigoroso. Depois de trinta dias eu
estava salva.
Voltei para minha casa. Caiu todo o meu cabelo, sol-
tou toda a pele do meu corpo. Ainda de regime convalescen-
te, só podia alimentar sopa, canja ou mingau. Sentia um
apetite de touro. Mãe fazia aquelas comidas cheirosas, cada
linguiça que dava água na boca. Mas para mim vinha aquele
prato de sopa. Já não aguentava mais sopa e nem mingau.
Todos os finais de semana ela fazia muitos biscoitos. De ma-
nhã, todos comiam à vontade. Para mim, um pedacinho de
biscoito escaldado para não fazer mal.
Era tempo das colheitas de amendoim. Lá em casa
havia colhido bastante. Todas as noites reuniam-se e iam

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despencar amendoim numa casa de despejo ao lado da nos-
sa casa. Todos me vigiavam, não podia comer nem um grão-
zinho. Numa manhã, quando todos estavam ocupados com
suas tarefas, saí bem caladinha e fui até o depósito. Entrei
e sentei bem no cantinho. Fui debulhando e escondendo as
cascas debaixo do monte. Comi até encher. Quase na hora
do almoço, a mãe havia fritado uma travessa de linguiça, en-
quanto ela foi à horta apanhar algumas verduras, aproveitei
e comi um bom pedaço. Terminou o almoço, todos foram
almoçar. Novamente veio ela com o prato de sopa; recusei e
pedi comida de todos. Ela não quis me dar. Não me importei,
estava satisfeita. Brinquei o dia inteiro com alegria e disposi-
ção. Após a doença, era o primeiro dia que me sentia assim.
Aquele regime já estava me prejudicando.
No jantar, aceitei um prato de sopa e um pedacinho de
frango. Com muita vontade de comer de tudo, pensei: “não
tem importância, mais tarde eles irão despencar amendoim e
eu me arranjo bem”. Assim aconteceu. Pedi a mãe para ir me
deitar. Quando todos já estavam no trabalho, levantei-me
pé ante pé e fui até onde estavam as vasilhas de quitandas.
Tirei um de cada qualidade, levei aquele “braçado” de biscoi-
tos para debaixo das coberturas. Fui comendo sossegada.
Quando terminei de comer, ouvi barulho de chinelo no asso-
alho. Era tarde da noite, já vinham descansar. Mãe chegou
bem pertinho e me perguntou: “tudo bem?” Eu pedi-lhe um
copo d’água. Virei para o canto e não vi mais nada.
No dia seguinte já era tarde e eu ainda dormia. Meu
costume era levantar cedo. Mãe já estava preocupada. Foi
até a cama, acordou-me e perguntou: “está sentindo algu-
ma coisa?” Respondi que não. “Então por que ficou deitada
até agora?” Perguntou-me. Falei que estava com sono. Havia
muito tempo que não passava tão bem quanto esta noite,
pensei.
Bom, novo dia. Todos ao trabalho. Eu, depois de tanto
tempo sem coragem, reanimei-me ao brinquedo. Logo o pai
foi tratar dos porcos. Deu-me vontade de ver e fui ajudá-lo
levar a comida deles. O pai espantado disse: “ você hoje está

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muito bem, não é?” Falei: “Sim pai, estou alegre e com cora-
gem”. Todos estavam admirados com uma melhora tão gran-
de de um momento para outro. Quem vivia só triste pelos
cantos, parecia outra criança.
Na hora do almoço eu disse: quero da comida de to-
dos. A mãe ficou brava: “minha filha, hoje você está com
uma melhora tão grande, mas pode repetir a febre, esta do-
ença é brava”. “Então!” e continuei: “pode me deixar comer,
esse regime já estava acabando comigo, preciso de alimenta-
ção...” e expliquei-lhes como eu tinha feito tudo. Em silêncio
ficaram todos de olhos arregalados. Enfim, o pai disse: “po-
nha comida para ela”. Daí então tomava as refeições normal-
mente. Dentro de trinta dias ou mais, estava completamente
curada. Tornei-me a mais forte da casa.

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Capítulo 3

Mudanças

Mais um ano se passou. Mudamos. Fomos morar no
arraial. Já estávamos no meio do ano. No ano seguinte entrei
na aula. Realizei meu sonho. Dona Geni era minha professo-
ra. Lá não tinha grupo.
A escola era na casa do senhor Antônio Eduardo. Sua
filha Divina havia plantado uma arvorezinha de Santa Bárba-
ra do lado de fora. Na hora do recreio brincávamos de “úra”.
Correndo para pegar os meninos, pisei na arvorezinha e ela
tombou. Divina não gostou e contou à Dona Geni. Ela, para
corrigir, deu-me castigo. Foi o primeiro e também o único.
Fiquei com muita raiva da Divina. Ela namorava o
Buá, escondido. Seu pai não aprovava. Eles se encontravam
na casa do vizinho, na esquina da outra rua. Fiquei prestan-
do atenção. Quando seu pai chegou, a casa estava fechada e
ele perguntou a criançada: “alguém viu aonde foi a Divina?”
Mais que depressa respondi: “ela está na casa do Zé Zeferino
com o Buá”. Este homem retorceu os bigodes e foi atrás dela.
Recomeçou a aula. Pouco depois ouvi que lá dentro ele xinga-
va e prometia bater nela. Eu estava vingada.
Ela me fez passar por um momento de vergonha. Eu
era uma aluna exemplar. Não era santa, mas na sala de aula
tinha comportamento exemplar. Tirava as melhores notas.
Nunca tomei bomba. Era estudiosa. As professoras gostavam
muito de mim.
Fiz o segundo e terceiro ano primário. Não pude con-
tinuar porque lá não tinha o quarto ano. Depois de três anos
parada, sem estudar, conseguiram uma professora para dar
aula de quarto ano. Aristolina era seu nome. Era natural de
Dores de Indaiá. Voltei a estudar e completei o primário. Ti-
nha um grande desejo de me formar e ser uma boa professo-
ra. É muito importante poder transmitir algo de bom para os

19

outros.
Não aturou muito essa alegria. No primeiro semestre
alguém chateou a professora e nas férias do meio do ano
ela se foi e não voltou mais. Ficamos sem terminar o curso
e sem diplomas. Alguns colegas foram completar fora. O pai
se sentiu entusiasmado com meu esforço. Arranjou colégio
em duas cidades para eu continuar. A mãe não permitiu,
ignorou o quanto isso era importante para mim. Proibiu-me
expressamente. Para não magoá-la desisti, mesmo sabendo
que futuramente ficaria prejudicada.

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PARTE II

O trabalho e a mocidade

Antiga carta guardada,
Que o tempo amarelou.
É lembrança do passado,
Que no meu peito ficou.
Cada frase é uma saudade,
Do tempo do nosso amor.

Hoje é um risco de tinta,
Relendo o meu pensamento.

Cada letra é um suspiro,
Que ficou no esquecimento.
Resto de amor é saudade,

No livro do sofrimento.

O mensageiro canário,
Fechou o zóio e morreu.
Até a florzinha da carta,
O seu perfume perdeu.

Só ficou a farsidade,
Na jura que ocê escreveu.

Do nosso amor é o que resta,
A esperança perdida.

Não vejo mais seu sorriso,
Que alegrava minha vida.
Só leio as palavras triste,
da velha carta esquecida.

(Velhas Cartas, Tonico e Tinoco)

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Capítulo 1

Namoradinho...

Como não continuei os estudos, passei a trabalhar
na roça, safra de farinha de mandioca e etc. Muito traba-
lho, muitas renúncias, mesmo assim levava uma vida alegre,
cheia de sonhos e esperanças.
Tinha um namoradinho, mas só meu coração sabia.
Isso quando eu tinha entre 12 e 13 anos de idade; tinha mui-
ta vergonha e não comentava com ninguém. Nessa mesma
ocasião, Maria adoeceu. Não podendo lidar, meu padrasto
foi lá em casa em busca de uma pessoa que pudesse fazer as
obrigações da casa. Lá fui eu. Fiquei um ano com eles, até
que ela se recuperasse. Além do trabalho, fiz algumas desco-
bertas.
Eu completava catorze anos. Até então, nunca havia
tido um namorado de verdade. Naquela época, era costume
fazer novenas de Nossa Senhora das Vitórias nas casas do
povoado. Numa tarde, ia para a reza com minha irmã e, co-
nosco, uma amiga dela e também o seu irmão Dé. Um baia-
ninho muito bonitinho. Ele se aproximou de mim. Fomos e
voltamos conversando. Falou-me de amor. Fiquei emociona-
da. Era a primeira vez que tinha ao meu lado um namorado.

Levou-me até em casa. Perguntou-me: “vai à reza
amanhã? Se você não for eu venho aqui”. Esse relaciona-
mento prolongou-se por três meses. Sem emprego, ele teve
que ir trabalhar fora. Senti muito essa separação. Já estava
gostando muito dele. Felizmente, no fim de sessenta dias, ele
chegou. Tantas saudades, alegrias. Também uma decepção.
Fui até sua casa, ao seu encontro. Ao chegar, seu ir-
mão me disse: “O Dé foi à casa da Geni”; esta era sua ex-
-namorada. Esta notícia foi como um punhal atravessando
meu coração. Ergui a cabeça e disse para mim mesma: “não

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mereço isto!” Deixei de lado.
Maria já estava bem melhor. Voltei para minha casa.
De vez em quando recebia seus recados, se não queria voltar,
pedindo desculpas; eu não dava confiança. Arranjei muitos
outros namorados. Chico foi meu namorado por muito tem-
po. Como noivos, ficamos três anos. Ele gostava muito de
mim, mas eu era muito nova, não pretendia casar-me tão
cedo.

23

Capítulo 2

Primeira profissão
(Final da década de 40)

Um dia, um amigo e vizinho nosso, o João Pinto, che-
gou e perguntou-me se gostaria de lecionar na roça. Respondi
que sim, gostaria muito. Estava mesmo precisando de um
emprego, uma forma de ganhar dinheiro para o meu próprio
sustento. Tratamos do assunto.
Era outubro de 1947. Parti para a Fazenda do Perdi-
gão. A casinha escolar era pequena, modesta. Eu mesma fiz
as matrículas. Eram oitenta alunos: do primeiro, segundo e
terceiro ano, todos juntos numa mesma turma. Lecionei os
dois meses finais. Eram seis quilômetros para lá, seis quilô-
metros para cá, a pé, não tinha meio de transporte. Com sol
ou chuva, calor ou frio, eu não faltava ao trabalho. A escola
ficava num alto e tinha uma vista bonita.
Perto morava um casal: Cristiano e Maria. Ficamos
amigos. Não me deixavam sem o café na hora do recreio. En-
quanto passavam os minutos do intervalo a gente batia um
papinho.
Passavam-se as férias e tudo recomeçava. Era mara-
vilhoso. Cada amanhecer um dia novo e novas esperanças.
Ao meio dia, quando eu chegava para lecionar o terreiro já
estava repleto de crianças à minha espera. Ao avistar-me era
aquela alegria. Eu me enchia de orgulho e felicidade. Para
eles eu era uma rainha, muito querida e respeitada por todos.
O salário mensal era bem pouco, apenas cinquenta Cruzei-
ros, mas dava para quebrar o galho. O dinheiro não era tudo
o que contava, o importante era que aquela missão me fazia
muito feliz. Sentia-me tão bem ao lado da criançada e, juntos,
aprendíamos muitas coisas boas. Todos os dias levavam-me
agrados: doces, queijos, quitandas, etc.
Antes de sair de casa pra ir lecionar e também depois

24

que voltava, eu fazia tarefas rotineiras de casa. Houve uma
época em que não encontrava toucinho nos açougues. Assim
que o arraial passou para cidade, Perdigão, não encontrava
toucinho nas vendas. Já de tardinha, sem esperança de al-
guém comprar “capado”, o pai me disse: “só você indo comigo
até a fazenda do Antônio Martins. Vou comprar um capado”.
Fomos. Eram uns três quilômetros de distância. Até conse-
guirem fechar negócio, anoiteceu.
Amarramos o porco e viemos tocando pela estrada afo-
ra. O pai segurando a corda. Era noite de lua, a estrada es-
buracada e, de vez em quando, o porco caía e o pai também.
Achava tão engraçado, caía na risada. Pai cansado, já velho,
nervoso com as lutas do dia a dia, falava: “não tem graça ne-
nhuma”. Eu continuava rindo. Caíam, levantavam e seguía-
mos o trajeto. O porco andava tão devagar que chegamos em
casa dez horas da noite. O porco pesou oito arrobas e custou
trezentos cruzeiros.
Passaram-se os dias e eu já completava um ano de tra-
balho como professora. Porém as coisas começaram a mudar.
O pai adoeceu e foi aquela luta. Durante o dia dava aulas e
a noite não dormia. Ele passava muito mal. Infelizmente não
foi possível salvá-lo. No dia vinte de setembro de 1948, ele
faleceu. Fiquei sem meu pai.
Sua morte foi para mim um golpe terrível. Teria que
aprender a viver sem sua companhia, seu amor e sua segu-
rança. Fiquei sete dias de licença. Quando voltei às aulas, a
criançada, com saudades, aguardava-me como sempre. Com
o correr dos dias, a mesma luta, Deus me deu forças e tive
de me conformar. Não havia alternativas. Mãe estava viúva,
as responsabilidades aumentavam. Ela precisava de ajuda,
apoio, afeto e carinho. Estava atravessando uma fase muito
difícil. Rosa, uma tia minha, havia se casado há dois anos.
Em casa, morava conosco uma tia viúva e suas duas
crianças. Então, ficamos os seis: a mãe e eu, os dois tios, isto
é, Zé e Joana e as duas crianças dela, o Otaviano e Zezé.
Deixamos lavoura e safras de farinha. Mãe cuidava
da lida caseira e fiava nas vagas. Meu tio trabalhava para a

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prefeitura, minha tia fazia quitandas, pastéis e pudins para
vender. Eu continuei como professora rural.
Passaram-se os meses. Chegou junho, época das fo-
gueiras de São João. Na roça, em quase todas as casas, era
um costume comemorar com fogueiras. Fui assistir tais fes-
tas no povoado onde morava a Maria, minha mãe. A primeira
fogueira foi na casa dela. A seguir, as casas acima.
A penúltima foi a do tio Cornélio. Chegando lá, estava
o Divino, namorado da minha prima Conceição. Só o conhe-
cia de nome. Enquanto esquentávamos na fogueira, esperan-
do a hora de rezar o terço, Conceição ajudava sua mãe nos
preparativos. Divino me olhava sem cessar.
Enfim, rezamos o terço e levantou a bandeira de São
João. Depois de comer bastantes biscoitos, tomar café, chá,
etc., começa a festa, o forró. Começaram a tocar violão, ban-
dolim e a cantar; em seguida as pessoas começaram a dan-
çar. Sempre gostei de dançar. Caí no meio da dança também.
Naquele momento Conceição e o Divino estavam jun-
tos. Ele não dava muita importância. Sempre me olhando
com olhar provocante. Eu não ligava, ficava sempre distante.
Já havia namorado o irmão dele e não queria complicar as
coisas.
No fim da festa pedi para o Divino levar uns biscoitos
para o irmão, meu ex-namorado. “Veja só! Ele comeu todos
no caminho!”, soube depois. Quando cheguei em casa já era
tarde. Deitei e dormi tranquila.
No outro dia nem me lembrei do Divino. Mas não de-
moraram muitos dias e começaram a chegar recados dele
pelo primo. Eu disfarçava e procurava não magoá-lo. Ele con-
tinuava. Chegou ano novo e ele não desistia. Passaram-se os
meses de janeiro, fevereiro, março e abril. Em maio celebra-
va-se o mês de Maria com rezas todos os dias na igreja. Ele
sempre vinha com a mesma insistência.
Até que um dia, no dia vinte e dois, após a reza, eu
junto as minhas amigas ouvindo gritar os leilões, ele se apro-
ximou de nós. Enquanto conversávamos um pouco, Concei-
ção o chamou duas vezes. Impaciente com aquilo, falei: “Vai,

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sua namorada te espera”. Sem esperar, respondeu-me: “Ter-
minamos tudo. Se me permitir te levar em casa, será um pra-
zer”.
Fiquei um pouco confusa, mas acabei cedendo. Pelo
caminho conversamos bastante, mas não ficou nada certo.
Às vezes nos encontrávamos, às vezes não. Assim foram uns
seis meses. Não gostava dele e levava tudo na brincadeira.
Depois desse período, um dia me falou sério e a partir dali
comecei a me interessar. Pouco depois, senti que começava a
gostar dele. Tirei a conclusão e vi que era realidade.
Eu era noiva de outro, do Francisco – Chico seu ape-
lido. Ele também não desistiu de mim facilmente. Vinha, im-
plorava, mas nessas alturas, meu coração já pertencia ao Di-
vino. Depois de um ano de namoro com o Divino, certo dia
chega até a sala de aula da escola, onde eu lecionava, uma
carta do prefeito de Divinópolis.
O portador da carta era Antônio Rochinha, esposo da
minha tia. Eles moravam em Djalma Dutra e essa carta me
chamava para lecionar lá, substituindo uma professora. Sol-
tei os alunos, pulei na garupa do cavalo dele e fui até em casa
comunicar a mãe; depois tentaria arranjar uma substituta
minha para ficar na escola, até resolver os problemas do cha-
mado.
Novamente pulei na garupa do cavalo e fomos. Compa-
dre Antônio Rochinha estava tonto como uma égua. Ao pas-
sar pela venda do Divino ele bebeu mais uma golada. Não
pude conversar nada com o Divino sobre aquela viagem. O
tempo estava curto e, naquele momento, ele não estava na
venda. Deixei recados. Meu coração estava partido. Sabia que
estaríamos nos distanciando, mas, ao mesmo tempo, acredi-
tava que em todas as oportunidades ele iria me ver.
Ao subir a serra o arreio começou a virar. Pulamos no
chão, apertamos o arreio e falei com ele: “Agora eu vou no
arreio e você na garupa”. Via a hora que ele caía e me leva-
va também; segurava na minha cintura e quando pendia me
puxava. Já estava de tardinha. Foi uma farra danada. Com
muito custo chegamos em casa. Eram dez horas da noite, sua

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esposa estava ansiosa, preocupada pela demora.
Na manhã seguinte tomei o trem para Divinópolis,
fui à prefeitura me encontrar com o Sr. Jovelino Rabelo, o
prefeito. Ele queria que eu aceitasse o cargo da cadeira de
Djalma Dutra. Mas era impossível porque já tinha a minha,
a da Fazenda de Perdigão; prometi ficar por alguns dias até
conseguir outra professora. Fiquei noventa dias e, durante
esse período, o Divino foi me ver algumas vezes.
Fiquei morando com a minha tia Rosa. Foram uns
tempos bons. A gente se dava muito bem. Antônio Rochinha
era muito divertido. Sanfoneiro, cantador e contador de pia-
das. Lá, fiquei conhecendo a Fia, a professora do salão ao
lado. Também não morava lá, era de Divinópolis. Ficamos
boas amigas.
Durante o tempo que estive fora, Mãe adoeceu gra-
vemente. Infelizmente ela faleceu quarenta dias depois. Fa-
zia dois anos apenas que havia passado por golpe tão duro,
quando perdi o Pai e agora, a Mãe. Tive mesmo vontade de
morrer também. No meio de todos esses acontecimentos não
me esqueci da fonte de misericórdia, o nosso Deus. É o Pai
onipotente que nos dá força e nos ajuda a erguer a cabeça
para continuar a luta.
Depois do sepultamento da Mãe, eu já estava moran-
do com minha tia e continuei definitivo. Maria queria que eu
fosse morar com ela. Seria muito difícil ambientar com meu
padrasto. Tia Rosa precisava muito de mim. Maria, sua filha
pequena, sofria com cólicas e não a deixava fazer nada. Fica-
va comigo para descansar sua mãe.
Passados poucos dias, minha tia, triste, resolveu vol-
tar para junto dos irmãos. Eu gostava muito da colega de
trabalho e foi muito desagradável nos separarmos. Regressa-
mos a terra natal, Perdigão.
Estavam terminando as férias de junho. Recomecei
novamente com minha escola. No primeiro dia de aula foi
uma surpresa, ninguém sabia que seria eu. Quando me vi-
ram chegar, fizeram uma algazarra danada. Todos queriam
me abraçar ao mesmo tempo. Juntas, uma sensação de ale-

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gria, outra de tristeza. Alegria por estar com a criançada que
eu gostava muito, tristeza pela falta e saudades da Mãe que
eu não veria mais.

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Capítulo 3

Meados do ano de 1950

Os dias passavam, mas os trabalhos rotineiros conti-
nuavam sem tréguas. Realidades: crescer, depois trabalhar
até a morte chegar. Fatalidade de todos.
Passados os meses de agosto e setembro, chega o dia
do casamento de Conceição, irmã do Divino. Fui convidada
para assistir ao matrimônio e para a recepção. Depois da ce-
rimônia viemos para a casa do noivo, haveria uma dança em
comemoração. Enquanto todos dançavam, eu e o Divino fica-
mos sentados na sala; ele me falava de casamento. Disse-me
que se eu quisesse me casar com ele, preparasse o enxoval
porque quando fizesse o pedido seria pequeno o prazo. Não
levei nada a sério. Também não comentei com ninguém. Nem
me lembrei de mais nada que ele havia me dito.
Passaram-se outubro e novembro. Dezembro era festa
de Nossa Senhora das Graças e inauguração da gruta. Essa
festa seria em homenagem às moças. Foi uma festa movi-
mentada e bonita. Todas as moças do local se vestiram de
branco. Foi um dia honroso para mim, tive o privilégio de
carregar o andor com a imagem de Nossa Senhora durante a
procissão. Nesse mesmo dia, eu e o Divino quase terminamos
tudo.
Após a procissão, fui com minhas amigas dar umas
voltinhas na avenida. Nesse mesmo instante, Vicente Edu-
ardo aproximou-se de nós, pediu licença às minhas compa-
nheiras, ficou ao meu lado e disse que precisava da minha
permissão para falar comigo. Há muito que ele vinha tentan-
do um encontro. Não pude recusar. Fui apanhada de surpre-
sa e tive que ouvi-lo alguns instantes.
O Divino sabia que ele era “a fim” de mim e tinha mui-
to ciúmes. Eu o achava muito simpático. Sempre usava uma
gravata vermelha e por isso, o Divino o apelidou de gravati-

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nha vermelha.
Conversamos um pouco, ele me convidou para ir até a
praça do grupo, mas não fui. Então, pediu-me para esperá-lo
porque precisava encontrar um amigo que estava a sua espe-
ra e voltaria logo.
Enquanto ele foi, procurei o Divino para justificar-me.
Com tamanha raiva, deu-me pouca atenção. Não ficou só
nisto. Ao chegar, o Vicente me viu com o Divino e, decepcio-
nado, montou em sua mula e saiu dando tiros de revólver até
sumir na estrada. Já o Divino foi para o bar e bebeu todas.
Fiquei só.
À noite voltei à igreja, em seguida fui à avenida. Lá
encontrei o Josias. Conversamos muito e depois ele me levou
em casa. Ficamos conversando até as nove e meia da noite.
Então pensei: “quem está perdido não procura caminho”. O
Divino ficou com raiva, não esperou explicação, pelo menos
agora teria motivo.
Decorreram alguns dias e ele veio me procurar. Já es-
tava impaciente com sua ausência por tantos dias. Juntos,
alguns segundos em silêncio, depois ele me disse: “Está com
saudade do gravatinha vermelha”? Foi iniciativa da briga. No
fim de algumas horas brigando, chegamos nos eixos. No Na-
tal tudo estava bem.
No último dia de dezembro recebi um recado do Divi-
no. Avisava que me esperaria em sua casa para um passeio
na casa de uma irmã dele que morava no “Mandembo”. Fica-
mos juntos o dia todo. Percebi que tinha algo para me dizer.
Não perguntei. Quando voltei, ele veio comigo.
Estávamos de plano assistir a missa de passagem de
ano. Antes, fomos à casa da vizinha para dançar e brincar de
roda até a hora da missa, que seria meia-noite. Às onze ho-
ras chega um rapaz da família que estava na cidade e avisou
que não haveria missa da meia-noite porque o padre estava
doente. A missa seria no dia seguinte.
Demoramos mais um pouco e fomos embora. Fomos
para a casa da Maria. Eu estava passando o final de ano com
eles. Ela tinha preparado café e biscoitinho feito na gordura

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para nós. Ela também preparou a cama para ele. Já eram
duas horas da manhã, mas ele não deitava nem ia embora.
Não suportando tanto sono falei para ele: “Não arrepare”, fi-
que à vontade, eu já vou me deitar”. Apressadamente falou:
“Espere um pouco, por favor”. Sentei e percebi que ele estava
sem coragem e, tentando ajudá-lo, falei: “Se quer dizer algu-
ma coisa, diga, já é muito tarde, precisamos dormir”. Criou
ânimo e perguntou a Maria se permitia que ele se casasse
comigo.
Ela foi bem franca. Disse que não impedia, mas tam-
bém não sentia segurança. A decisão seria minha. Apesar de
a minha família inteira não aprovar, eu queria muito. Achava
que era o homem da minha vida.

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Capítulo 4

1º de janeiro de 1951: primeiro passo

Era primeiro de janeiro. Marcamos o casamento para o
dia vinte e sete do mesmo mês. Podem imaginar. Foi a sensa-
ção mais agradável que eu já havia sentido. Tê-lo junto a mim,
a pessoa que eu amava e tanto queria; mas não posso negar
também que junto com a alegria, um pouco de medo, inse-
gurança. Essas duas sensações faziam meu coração disparar
como se fosse despregar do peito. Eram muitos pensamentos
juntos. Não consegui dormir.
De manhã fomos à missa e, na volta, tratamos do as-
sunto com detalhes. Vinte e sete era o último sábado antes da
quaresma. Ficou marcado para esse dia, às quatro horas da
tarde. No dia seguinte, fomos ao cartório e fizemos os papéis.
Quando íamos pelo caminho, ele tentou segurar na mi-
nha mão, não deixei. Ficou com raiva e não voltou comigo.
Nunca dei chance para ninguém, não daria para ele também.
Na quarta feira, ele veio todo dengoso.
A filha do meu padrasto iria se casar e ele, o meu pa-
drasto, convidou o Divino para assistir. Seria no dia 14 de
janeiro. À noite haveria dança. Ele não veio. Não me comuni-
cou o motivo. Fui ao casamento e dancei até a madrugada. O
tempo todo namorei meu ex-namorado.
Na semana seguinte nos encontramos. Ele sabia de
tudo. Foi uma briga feia. Só faltou me dizer “Está tudo aca-
bado”. Mas não teve coragem. Se ele me dissesse isso, nunca
mais me teria de volta. Vendo que eu não dava o braço a tor-
cer, voltou ao normal e tudo ficou bem.
Uma semana antes do nosso casamento ele me disse:
“Vou viajar, levar um gado para o Taquaral. Já está vendido.
Não precisa se preocupar, pois chegarei nem que seja no dia
do casamento”. Foi só ele partir, todo mundo a mesma voz:
“ele está fugindo do casamento”. Não ligava. Confiava nele.

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O Divino chegou à véspera, ao meio dia. Naquele ins-
tante tinha saído um portador do Chico, que tinha sido man-
dado para tentar desfazer meu casamento com o Divino, para
que eu voltasse a namorá-lo. Foi sorte não tê-lo encontrado,
pois o Divino passou por um atalho.
Véspera do casamento e eu chateada; minha tia queria
que eu ficasse em sua casa, porque eu morava com ela. Mas
Maria não permitia, achava que teria de ser lá, porque ela era
minha mãe. Minha tia, bondosa, compreensiva, aceitou tudo.
Compadre Antônio Rochinha também não gostou, pois me ti-
nha como filha. Mas acabou compreendendo também.

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Capítulo 5

27 de janeiro de 1951: o casamento

Chegou o dia tão esperado. Às duas horas da tarde
começaram a chegar os convidados. Meu quarto estava pron-
to, eu mesma preparei. Eu já estava tomando banho. Sentia
o coração e os pulsos batendo fortes, as mãos geladas e um
calor no rosto e nas orelhas. Tudo pronto. Saímos. Para não
chorar, caí na brincadeira, custando sufocar as lágrimas.
Vesti-me de noiva na casa da dona Izaltina, em frente
à igreja. Rosa, sua filha, foi quem me preparou. Dizem que
fiquei a noiva mais bonita dentre as outras três que se casa-
ram no mesmo dia.
Subi para a igreja segurando no braço do meu tio Nico,
minha testemunha. Ele tremia como vara verde. Eu o pergun-
tei: “Porque o senhor está tremendo tanto?” Respondeu-me
que estava pensando no peso que eu estava pegando, uma
responsabilidade muito grande. Brincando respondi: “Fala
isso direito, se for ruim assim, vou deixar isso agora mesmo”.
Sorrindo, respondeu-me que agora era preciso assumir.
Depois das festividades, já noitinha, Divino me con-
vida a voltar para a cidade, na casa do seu irmão apanhar o
fumo que havia esquecido lá. Chegando à ponte do ribeirão
encontramos o sanfoneiro que ia tocar para o pessoal.
Demoramos pouco. Quando voltamos para casa, o ter-
reiro estava repleto de gente. Fizeram uma tenda para pro-
teger do sereno. Dançaram até as quatro horas da manhã.
Divino nunca dançou. Eu gostava muito, mas não seria con-
veniente eu ficar dançando e ele sozinho.
À meia-noite, um amigo dele, também casado, aproxi-
mou-se de nós e disse: “A valsa dos noivos: você não dança,
mas se me permitir, eu dançarei com ela”. Dançamos a valsa.
A partir daquele momento, todos os amigos queriam dançar
uma volta com a noiva. Sem a recusa dele, fui dançando ma-

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drugada adentro. Terminava uma, vinha outra e outra. Por
fim, ficou zangado. Sem dizer nada, emburrou-se atrás das
bananeiras. Sua irmã chegou perto de mim e disse: “O Divino
está emburrado, não vai adulá-lo?” Respondi: “Não, não fiz
nada de errado. Se estou dançando é porque ele mesmo con-
sentiu, não vejo nada de mais”.
Não demorou muito e ele voltou. Sabendo que ele me
queria ao seu lado, não dancei mais. Sentamos na varanda e
ficamos conversando.
Quando todos saíram, já eram cinco horas da manhã.
Deitamos. Dali a pouco preparamos para ir à missa das sete
horas.
Após a missa voltamos, passamos o resto do dia com
a Maria. Quando foi chegando a tarde, meu coração foi se ar-
rochando. Teria de partir, deixar todos e enfrentar uma nova
vida. “O que me aguardaria o futuro? Seria feliz?” Estas per-
guntas corriam em meu pensamento sem cessar.

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Capítulo 6

Vida nova. Primeira casa. Nenhum diálogo

Tinha muito medo de ficar sozinha. Não adiantava
pensar. Ergui a cabeça e pedi que Deus me ajudasse. Fomos.
De longe, ouvimos as conversas. O terreiro da casa
dele estava cheio de gente. Esperavam abrir a venda para fa-
zerem compras. Era uma casinha pequena, com uma vendi-
nha na frente, à beira da estrada. Ali no povoado, todos eram
seus fregueses.
Entramos. Ele foi para a venda e me pediu para fazer
um café. Antes de sair, foi ao córrego, apanhou uma lata com
água e trouxe para fazer o café. Naquele instante, tive uma
sensação estranha, inexplicável. Ele tomou o café e foi para a
venda atender os fregueses.
Depois de esperá-lo algumas horas na cozinha, estava
demorando, fui para o quarto e senti imensa tristeza. Chorei.
Quando ele veio se deitar, eu já estava dormindo.
Terminaram as férias e recomeçaram as aulas. Nos in-
tervalos eu o ajudava na venda. Juntos, lutávamos para um
futuro financeiro seguro. Foi bom marido por uns seis meses,
depois começaram as decepções.
Quatro meses após o casamento, adoeci. Era uma dor
intensa no estômago que me fazia vomitar. Eu tinha crises
nervosas. Então, tive que me mudar para outra casa. Era
uma casa velha, esburacada e distante da venda.
Era triste saber que meu amor já não era correspon-
dido. Sentia-me fraca, insegura, cheia de dúvidas. Na venda,
ele ficava o dia inteiro. Só vinha em casa lá pelas dez, onze
horas da noite. Alguns dias ele ficava até mais tarde que isso.
Ali eu ficava curtindo dores, abandono e solidão. Nem sequer
tomava conhecimento do quanto eu estava sofrendo.
Na sala de aula ficava tudo bem, pois quatro horas
com a criançada me faziam esquecer os tormentos da vida.

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Triste era voltar para casa, pior ainda ao entardecer. Era
como esmagar o peito.
O medo de ficar sozinha, saudade da minha família e
amigos, enfim, saudade até do meu marido que se transfor-
mava em outra pessoa. Ocupava-se dos seus negócios, via-
gens e não me comunicava nada.

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Capítulo 7

Uma perda

O Divino negociou a vendinha e foi viver de comprar e
vender gado. Vivia viajando, livre como um passarinho. Pas-
sava até mais de vinte dias sem vir em casa. Sem saber por
onde andava, ficava preocupada e magoada também.
Essa situação ajudava a complicar as doenças. Não
tinha apetite, não conseguia dormir, fiquei pior dos nervos e
tinha crises constantes. Não tive mais condições de lecionar.
Apesar de as crianças e seus pais não quererem que eu dei-
xasse a escola por esse motivo, foi preciso deixá-la.
Quando estava melhor, fazia algum serviço em casa
para obter algum dinheiro. Cada vez mais o Divino se afasta-
va de mim, não compreendia o que estava acontecendo.
Após sete meses de casados e dois de gravidez, ele me
mandou tomar uns chás caseiros que provocavam aborto.
Tomei três vezes. Achando ruim continuar, conversei com a
mãe dele. Ela ficou zangada com o Divino e o mandou me le-
var ao médico. Lá ele me receitou muitos remédios e repouso
também. No oitavo dia de tratamento, já me sentia um pouco
melhor.
Certo dia, avisei ao Divino que não tinha lenha para
cozinhar e o pedi para rachar umas estacas para mim. Não
deu atenção e saiu. Esperei. Como não teve iniciativa, não li-
gou, passei a mão no machado e fui rachar as estacas. Havia
rachado três e senti tremer minha barriga. Em seguida tre-
mia o corpo todo e suava frio. Corri para dentro de casa e me
deitei, mas aquilo não passava. Sentia que estava perdendo o
bebê. De fato.
No dia seguinte comecei a sentir cólicas. Passei mal
a noite toda. De manhã saiu o feto, mas a placenta ficou. O
aborto aconteceu em nove de setembro de 1951.
A placenta ficou e só no terceiro dia saiu. Fedia mais

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do que rato morto de muitos dias. Deixou-me com infecção e
febre alta. Fui para a cidade (Perdigão) para tratar.
Fiquei na casa da minha tia por doze dias. Nem ele,
nem sua família foram me visitar, nem sequer perguntaram
por mim. Tudo isso me deixava muito triste, acabrunhada.
Mas a fé que eu tinha em Deus dava-me coragem para lutar
e vencer todas as barreiras, sem errar. Com doze dias de tra-
tamento a febre cedeu. Voltei para casa. Continuei tomando
os remédios.
Passadas duas semanas, Maria, muito preocupada, foi
lá em casa e ficou surpresa com a minha melhora. “Graças
a Nossa Senhora, minha filha, você está bem melhor! Eu fiz
uma promessa e você agora deve cumprir: será festeira de
Nossa Senhora da Saúde, a padroeira do lugar”, avisou-me.
Seria eu e meu primo também, cumprindo promessa.
Quando o Divino chegou, contei-lhe da promessa e
que gostaria de cumpri-la. Ele me respondeu que não me da-
ria um tostão, nem iria à festa: “Sou pobre, não mostro luxo
e nem grandeza para ninguém”. Tentei explicá-lhe, mas não
quis compreender.

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Capítulo 8

12 de setembro de 1952:
cumprindo a promessa

Chegou o dia da festa. Doze de setembro de 1952. An-
tes, combinei com minha tia para que fizesse os preparativos
e dividiríamos as despesas. Assim fizemos. Eu ainda tinha
uns trocados que davam para o custeio da festa.
Fui para a cidade na véspera. Os festeiros precisavam
se confessar para comungar no dia da festa. Os músicos fo-
ram nos buscar para a missa das dez horas. Divino não apa-
receu. Para mim, era muito importante sua presença.
Dentro da igreja, quando tocavam as músicas, parecia
me rebentar o coração, difícil segurar para não chorar. Com
muito esforço consegui me controlar. Tudo correu bem.
À noite teve a visita de despedida dos músicos. Quan-
do tocavam um hino muito bonito, não consegui sufocar as
lágrimas, parecia que ia explodir meu coração, sentia uma
dor profunda. A única solução foi deixar as lágrimas rolarem
com abundância.
Depois de ter chorado bastante, algo estranho aconte-
ceu, eu ouvi uma voz no meu ouvido: “Erga a cabeça e peça
forças para Deus, só Ele nos ajuda a vencer tudo o que a nós
é reservado”.
Depois de cumprir toda a promessa, voltei para casa.
Divino não perguntou por nada. Correram os meses. Passou
dezembro e chegou janeiro.
No primeiro domingo, não fui à missa. À tarde chegou
uma amiga em minha casa e disse que tinha uma novidade,
informando-me que eu tinha saído na lista para festeira de
São Sebastião. Uma surpresa agradável e também de triste-
za, porque não tinha dinheiro para garantir isso. Foram três
meses tolerando muitos xingos por ter sido festeira, agora de
novo.

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Dessa vez foi um exemplo de Deus. Na segunda-feira
cedinho ele me falou: “Você será festeira no dia vinte”. Res-
pondi-lhe que não tinha dinheiro para assumir esse compro-
misso: “Vou falar com a minha irmã para me substituir, ela
ficará muito feliz”. Ele não permitiu, deu-me o dinheiro ne-
cessário para a compra de roupa e calçado e ainda assumiu o
resto dos gastos. “Deus é um Pai bondoso e justo; depois da
ingratidão e injustiça do Divino comigo, ele teve o exemplo”.
Naqueles dias, eu percebia algo diferente em mim.
Cada dia que passava eu sentia mais enjôos e indisposição.
Então, descobri que estava grávida. Suportava tudo com ale-
gria. Só eu e Deus sabíamos. Ter um filho, a coisa que eu
mais queria.
Quando não dava mais para esconder, contei para ele.
Não demonstrou entusiasmo. Comigo foi o contrário, era a
coisa mais importante da minha vida: “Um filho, alguém para
amar e uma companhia; enfim, uma esperança tão grande
que me dava ânimo de viver”.

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Capítulo 9

14 de setembro de 1953: o primeiro filho...

Não foi fácil o período de gravidez, mas, enfim, passou.
Já no nono mês de gestação, falei para o Divino que deveria
ficar em casa pelo menos à noite e que não viajasse até nosso
filho nascer: “Tenho medo de passar mal à noite, aqui não te-
nho ninguém a quem chamar”. Friamente respondeu-me que
por este motivo não ficaria um instante em casa. Com um
nó na garganta e as lágrimas caindo pelo rosto, falei:“Nossa
Senhora me dará socorro, porque filho de Deus não morre
sozinho”. Ele viajou. Ficou fora de casa durante vinte dias.
Em doze de setembro, num sábado à tarde, senti do-
res. Passei mal a noite inteira e todo o domingo. Ele chegou
às onze horas da noite, deitou-se e dormiu a noite inteira,
não presenciou nada. Passei a noite andando no quarto de
um lado para outro.
As contrações, cada vez mais fortes. Bem cedo eu o
chamei e pedi para buscar a parteira. Era festa do Senhor
Bom Jesus na cidade, a primeira que se celebrava deste san-
to. Todos com grande incentivo esperavam pela festa. Ele
também não perdeu e lá se foi, deixando-me só com a partei-
ra. Ela chegou, examinou-me e disse que meu filho nasceria
lá pelas três horas da tarde. “Oh! meu Deus”, suspirei. Era de
manhãzinha e teria de sofrer muito ainda.
Exatamente quando repicava o sino da igreja e estou-
ravam os foguetes, bem na hora que celebrava a benção do
Santíssimo Sacramento, nasceu meu filho. Um bebê peque-
nininho, mas muito lindo. Parecia uma bonequinha das mais
lindas. Era inexplicável a alegria. Ali estávamos: a parteira,
meu filho e eu. Segunda-feira, 14 de setembro de 1953.
Às onze horas da noite o Divino chegou. A casa esta-
va repleta de vizinhos. Ele chegou como um estranho até a
porta do quarto e não se aproximou da cama. Ficou por uns

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instantes ali em pé e saiu sem dizer nada.
No outro dia saiu cedinho. Quando a parteira foi dar
banho no bebê, notou que ele tinha dois dentinhos. Quando
me contou, pensei que fosse gozação, mas fui conferir e tinha
os dentinhos realmente.
À tarde quando o Divino chegou foi perguntar sobre
o menino. Então, quando soube dos dentinhos, ficou assus-
tado, pensando que fosse defeito. A parteira lhe disse que já
tinha visto outros bebês com dentinhos. Daí continuou sem
dar a mínima atenção para o menino, como também não dava
para mim. Eu tinha muita pena do menino, mas o amor e o
carinho que eu sentia, davam para nós dois.
Como era seu costume viver viajando, no dia seguinte
viajou e ficou muitos dias fora de casa. Para mim já não era
mais aquela solidão. Tinha sempre ao meu lado aquela cria-
turinha tão amada que me dava segurança e alegria de viver.
Passou o resguardo e tudo correu bem.
Quando o bebê completava dois meses de vida ficou
doente. Sem experiência, cuidei dele com alguns chás casei-
ros. Sem resultado, no quinto dia parti com ele para a cidade.
Levei-o ao farmacêutico, pois não tínhamos médico no local.
Enquanto eu lutava pela sua cura, seu pai estava fora
e eu nem sabia aonde andava. Já faziam dez dias de trata-
mento, nada de melhorar. Era doença brônquio pulmonar.
Foi preciso batizá-lo, tive medo de morrer pagão. Demos-lhe o
nome de Valdir. Nesse dia mesmo falei ao farmacêutico: “Se o
senhor não der conta seja franco”.
À tarde o Divino apareceu na estrada e me chamou.
Perguntou pelo menino e eu lhe contei tudo. Então me man-
dou procurar médico. Mas depois que usei franqueza com o
farmacêutico ele fez outra tentativa e conseguiu melhoras.
Poucos dias depois se recuperou por completo.
Voltamos para casa e a rotina continuava. Anoitecia
e amanhecia e nós dois sozinhos naquela velha casa esbu-
racada. Durante as folgas do trabalho caseiro, brincava com
ele. Aos quatro meses já era muito esperto, sorridente e olhos
vivos. Fazia-me esquecer as tristezas da vida.

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Era época das chuvas. Deu um temporal de chuva for-
te e derrubou a parede da frente da casa. Emendei no lugar
umas tábuas e tudo bem. Dias depois, outra chuvarada com
ventos e derrubou outra parede, agora na cozinha, onde fica-
va o fogão a lenha. Aí não teve jeito, faltavam três esteios.
Enquanto tudo isso se passava comigo e meu filho,
Divino passava livre e tranquilo numa fazenda que alugara
perto de Nova Serrana, onde ficava mais de trinta dias sem
aparecer, nem sequer saber o que se passava conosco.
Assim ficamos por sete meses. Não podia dormir. A
casa não era cercada. Durante a noite, eu ficava alerta para
não entrarem vacas dentro dela, pois além das aberturas nas
paredes, os quartos não tinham portas.

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Capítulo 10

Mudança em carro de bois

Valdir já tinha onze meses. Falava e andava para todo
lado. Numa tarde, o Divino chegou. De manhã bem cedo,
quando os passarinhos começaram a piar, sentei na cama
para trocar as fraldas do menino, o Divino estava acordado e
me disse: “Pode levantar e arrumar as coisas que você vai se
mudar”. Como ele não tinha nenhuma peça de roupa em sua
casa, perguntei-lhe se não iria também. Friamente respon-
deu-me: “Já mudei há muito tempo”. Verdade. Vivia na casa
de sua mãe. Só vinha na minha casa para dormir.
Levantei e comecei a juntar as coisas. Bem cedo ainda,
veio a Dina com a menina para mamar. Dina era minha vizi-
nha, mãe de uma menina que nasceu seis dias após o Valdir.
O leite dela secou. Como eu tinha de sobra, resolvi ajudar
a criá-la. Enquanto a menina mamava, eu lhe contava tudo
sobre a mudança. Lamentávamos a separação. Nesse mesmo
instante o carreiro veio chegando com seu carro de bois e per-
guntou-me se estava tudo pronto. Respondi-lhe que sim. Em
silêncio fomos colocando tudo no carro. Em seguida, peguei o
menino e segui atrás do carro.
Após ter andado mais ou menos um quilômetro, o car-
reiro me perguntou: “O Divino não vem morar com você?”
Respondi-lhe que não sabia. Ele encerrou o assunto dizendo:
“Tenho muita pena de você, não merece tanta ingratidão e
injustiça”. A estrada foi-se distanciando, o carro cantava, ora
grosso, ora fino. Meu coração batia apressado e eu sufocava
as lágrimas. Meu filho acabou dormindo. O resto do caminho,
pude desabafar. Deixei as lágrimas rolarem à vontade.
Onze horas da manhã. Estávamos chegando à cidade,
Perdigão, onde eu iria morar. Fiquei conformada porque mo-
raria perto da minha tia que ajudou a me criar. Era também
como uma mãe.

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Antes da mudança, uma vizinha da roça me aconse-
lhou desquitar do Divino; dizia-me para cuidar da minha vida
e do meu filho. Alertou que seria assim até o fim, pois conhe-
cia toda a família. Mas eu gostava muito dele e tinha grandes
esperanças de que ele retornaria e viveríamos felizes.
Na cidade nem todas as casas tinham luzes, inclusive
o barracão que eu estava morando. Na primeira noite, tudo
quieto. Eu ansiosa, esperava por sua chegada, mas nada.
Chorei um pouco e muito cansada, adormeci.
No outro dia também não apareceu. No terceiro dia de
manhã apareceu. Chegou como um beija-flor e desapareceu
novamente. No oitavo dia reapareceu de novo. Assim conti-
nuou por uns três meses, até que um dia veio e ficou defini-
tivo. Comprou um caminhão e começou a trabalhar fazendo
transporte de farinha e polvilho.

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Capítulo 11

Mudanças: Perdigão, Araújos, Perdigão

Pouco depois, mudamos para uma cidade vizinha,
Araújos. As coisas se controlaram mais e ele já nos dava um
pouco de atenção. Vivemos uns tempos tranquilos.
Depois de um ano, voltamos a morar na cidade natal,
Perdigão. Já esperava o segundo filho. Para mim, foi uma
época difícil. Além da gravidez, estava doente. Tomei remédio
durante todo o período. Mesmo assim, eu me levantava sem-
pre de madrugada e trabalhava o dia todo.
Nessa ocasião, ele tinha dois caminhões que puxavam
carvão para Ermida, município de Divinópolis. Enquanto eles
iam para a carvoaria carregá-los, eu fazia a lida caseira; por
volta das sete horas da manhã, quando eles retornavam, o
almoço já estava pronto. Almoçavam e iam descarregar os
caminhões. A lida continuava até noite, pois ainda tinha o
jantar e preparativos de tira-jejum da madrugada seguinte.

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