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"Doia - Minha Vida" é um livro que conta a vida difícil de Jacinta Teodoro de Souza.

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Published by TODAVOZ EDITORA, 2020-02-09 19:48:37

Doia Minha Vida

"Doia - Minha Vida" é um livro que conta a vida difícil de Jacinta Teodoro de Souza.

Keywords: Doia,Divinópolis,Literatura,Todavoz Editora

Capítulo 12

Sábado de Aleluia: nasce o segundo filho



Valdir e Valdivino. (Perdigão, MG)



Decorreram-se os dias, chegou a Semana Santa. Não
pude participar de festa. Estava com as pernas inchadas e
pressão baixa. Na Quinta-feira Santa, quando refogava arroz
para o jantar, comecei a sentir dores. Foi assim durante toda
tarde e à noite também. Na Sexta-feira da Paixão foi a mesma
coisa, senti dores o dia inteiro e à noite também. No sábado,
às oito horas da manhã, nasceu o bebê. Era um menino forte,
lindo, cabelos claros e pele rosada.
O Divino ficou muito alegre, pegava o menino, mostra-
va aos seus amigos e dizia: “Esse é macho mesmo!”. O que
não pude entender é que o Valdir, o primeiro filho, ele só o
pegou quando já tinha sete meses.
Vinte e nove dias depois o batizamos com o nome de
Valdivino, o mesmo do pai. Para diferenciar, o apelidamos de
Neném.

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A dieta terminou e a luta continuava. Precisávamos
trabalhar mais, a família aumentava e, com isso, a necessida-
de de um futuro financeiro para educação dos nossos filhos.
Após dois anos de trabalho sem tréguas, comprou um
lote e construiu uma casa boa, com muitos quartos, espaço-
sa, arejada, com a qual montou uma pensão. Na frente abriu
um bar. Tinha também um caminhão que fazia a linha de
leite para Divinópolis.
Passou um ano, ele montou um matadouro de porcos.
Fritava o toucinho e fazia linguiças com as carnes que so-
bravam. Dois anos tudo correu bem. Apesar do trabalho sem
tréguas, eu vivia contente. Tínhamos boa freguesia. Mas ali
foi o fim.
Recomeçamos novamente com as madrugadas. Antes
de tudo, acendia o fogo no panelão para “despelar” os capa-
dos. Enquanto ele matava os porcos, eu fazia o café. Depois
ia ajudá-lo, até que os passageiros, ou melhor, os hóspedes se
levantassem para que eu pudesse servir o café.
Após o café, arrumar a casa e fazer o almoço. No início,
durante oito meses, eu fazia tudo sozinha. Quando abriu a
fábrica de banha contratou uma empregada e nós duas nos
dávamos muito bem. Maria do Zé Delina, assim a chamáva-
mos. Não tinha serviço escolhido, ou determinado. Fazíamos
de igual para igual, ajudávamos uma a outra. Um ano correu
bem.
Depois começaram os problemas. Um dos problemas
era o meu marido. Mulherengo, fazia-me muita raiva. Apesar
de tudo, brigar mesmo, até então, nunca havíamos brigado.
Completávamos nove anos de casados. Mas tudo tem
limites e eu já tinha ultrapassado todos. Fiz várias tentativas,
sem resultados, a paciência se esgotou. Sem controle emocio-
nal, de vez em quando brigávamos.
Maria também não era muito ajuizada com seus na-
moros e ele a mandou embora. Tudo se tornou difícil. Vinha
outra empregada, mas uma não era boa, outra não sabia fa-
zer nada, outra não aguentava tanto trabalho.
Enfim, entrou uma que era trabalhadora, caprichosa e

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nos dávamos bem. Dediquei-lhe muita amizade e confiança.
Durante uns seis meses ficou tudo tranquilo, parecia que ela
me ajudava, inclusive, espiritualmente. Até meu relaciona-
mento com o Divino melhorou.
Algum tempo depois percebi que as coisas estavam
mudando novamente. Cada vez mais, aumentavam minhas
tristezas. O serviço não dava tréguas. Contrariedades exa-
geradas. Nunca podia imaginar que os planos de traição já
estavam armados.
Os dias passavam e eu não tinha o direito de ir à mis-
sa, visitar um parente ou um amigo, nem ao menos tinha
tempo de conversar com alguém. Só trabalhar. A vida tor-
nou-me cada vez mais cruel. O tempo todo, ele só tomava
opiniões com ela e tudo se resolvia entre os dois. Eu, apenas
uma empregada sem direito a nada.
Com todo esse sofrimento, eu não conseguia dormir e
perdi o apetite. Caí gravemente doente. Um esgotamento ner-
voso me deixou quase sem memória. Mesmo assim, continuei
trabalhando até não conseguir mais e me entreguei na cama,
sem forças para andar.

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Capítulo 13

Internação em Belo Horizonte



Alice, Maria, Teodora, Valdivino, Valdir, Divino. (Perdigão, março de 1958)


Meu cunhado, vendo-me prostrada, prontificou algum
recurso de tratamento. Meus filhos pequenos precisavam
muito de mim. Ele me levou para Belo Horizonte e me inter-
nou na clínica de repouso Santa Maria, onde passei um mês.
Quando retornei, pensei que tudo tivesse voltado ao
normal, mas continuava o mesmo, ou pior. Com minha au-
sência, ela, a Arminda, ficou mais autoritária, era como se
fosse dona de tudo. Sacrificava-me muito, mas fomos levan-
do. Era fim de ano e, logo no início do novo ano, fiquei grá-
vida. Tudo ficou mais difícil ainda. Enjôos, indisposição e,
mesmo assim, a luta continuava.
No quinto mês de gravidez estava tão inchada que des-
sorava. A pressão bem alta. Dezoito por dez. A noite eu pas-
sava encostada no travesseiro, sem dormir nem um soninho.
Nessa época, o Divino queria montar um posto de ga-

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solina na frente da pensão. Viajou para Belo Horizonte e foi
ao encontro do homem que lhe cederia a bomba. Conversa-
ram e combinaram tudo. Na quarta-feira da semana vindou-
ra, ele, sua esposa e filha viriam almoçar na pensão e ver o
local onde a bomba seria montada.
Na véspera, o Divino me disse: “Faça uma comida bem
gostosa e tudo bem preparado para eles”. Trabalhei até meia-
-noite, na limpeza da casa, dos terreiros e em outros prepa-
rativos, porque no outro dia, às dez e meia da manhã seria o
almoço.
Levantei-me bem cedo, como de costume, e comecei os
preparativos do almoço. Ocupada com o trabalho, os dois fi-
zeram a armadilha. Sem que eu percebesse, mandaram bus-
car a mãe dele para ir comigo para a roça, onde ele tinha uma
safra de polvilho, mas isto depois do almoço já estava pronto.
Assim ficariam à vontade e ninguém perceberia nada. Mas
Deus deu-me coragem naquela hora.
Quando ele chegou na cozinha e me disse: “Pode dei-
xar isto aí, a mãe está te esperando para ir para o Chaves”.
Eu lhe respondi: “Não marquei nada com ela”. Mas ele foi
breve, estava decidido: “Não tem importância você vai assim
mesmo”. Aí entendi armadilha e retruquei que não iria. Em
seguida deu-me a ordem de que se eu ficasse, teria de sair
quando eles chegassem, nem que fosse para o mato.
Nesse momento, Arminda veio chegando pela porta da
cozinha, toda sorridente, como uma folha de alface na mão.
Toda arrumadinha, perfumada e com o maior sorriso, per-
gunta, como se não soubesse de nada: “O que foi isso aí,
Divino?” Todos em silêncio. Ele sai.
Permaneci na cozinha, controlando as lágrimas. Perdi
todo o entusiasmo. As lágrimas corriam em bica pelo meu
rosto. Tinha vontade só de morrer naquele momento. Chorei
tanto, que meu rosto além de inchado, ficou vermelho, igual
pimentão maduro.
Dez horas e as visitas chegaram. Os dois “sabonetões”
os receberam e fizeram praça o tempo todo. Valdir e o Neném
não ligaram para isso, ficaram no quintal o tempo todo brin-

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cando.
Durante o almoço permaneci na cozinha, servindo tra-
vessa e lavando louça. Enquanto comiam, elogiavam a comi-
da. Depois disseram: “Sua empregada cozinha muito bem,
queremos conhecê-la, se o senhor nos permitir”. Então, ele
foi obrigado a dizer que a cozinheira não era empregada e sim
a esposa. Eles foram até a cozinha e me abraçaram. Quando
viram meu estado ficaram espantados: “Não acredito que a
senhora nesse estado, inchada desse jeito, é que faz sozinha
a comida na pensão?!”. Disseram-me: “Olha minha senhora,
quando ninguém tem dó da gente, a gente tem que ter. Se
quiser ir para Belo Horizonte conosco, descansar um pouco
e até mesmo ganhar o neném lá, prepare-se e vamos! Nós a
levaremos ao hospital quando necessário”. Enquanto me di-
zia tudo isso, ele em pé ali perto, ouvia caladinho. Agradeci
ao convite. Saíram para a cidade vizinha, Araújos, mas antes
me pediram que, na volta, queriam outro café novo e gostoso.
Lavei todas as louças e quando estava passando o
café, eles também já estavam chegando. Tomaram o café e
repetiram o convite dando-me o endereço por escrito, caso eu
resolvesse depois.

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Capítulo 14

O desespero

Assim que partiram, resolvi dar fim à minha vida. Pro-
curei em todas as vendas, “soda cáustica”. Queria tomar e
dar às crianças também, assim liquidava com tudo; mas não
encontrei em lugar nenhum, estava em falta.
À noite, quando tudo estava mais calmo, ergui minha
cabeça para o céu e pedi a Deus perdão pelas minhas fraque-
zas e força para vencer. Muito triste, tentando me controlar,
superar aquele período, pedia a Deus que me ajudasse.

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Capítulo 15

17 de dezembro de 1959: novo parto



Maria Aparecida, Teodora e Maria Lúcia. As gêmeas com 10 meses de idade. (Perdigão-MG)

Fomos levando até que chegou o dia do nascimento.
Dezessete de dezembro de 1959, às cinco e meia da manhã,
nascia uma menina e as cinco e quarenta nascia outra. Eram
gêmeas. Dois bebês lindos. Muito pequenininhas, cabeludi-
nhas, umas gracinhas mesmo. Foi mesmo uma sorte, apesar
de eu não estar bem de saúde, foi o parto mais feliz entre os
outros. Seus irmãozinhos não se cabiam de contentes. Ga-
nharam duas irmãzinhas. Cada um tinha uma para cuidar.
As visitas brincavam em levar uma e eles ficavam bravos, com
medo que levassem mesmo. Eu, pelo menos da barriga, esta-
va aliviada.
No quinto dia, como era o costume, levantei-me e, em
seguida, fui para a rotina, para a cozinha fazer almoço e daí

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por diante. O dia inteiro na lida e o tempo tão pouco para
as crianças. A luta cada vez mais árdua. Tínhamos tudo, do
bom e do melhor. Quanto a mim, faltava tempo para comer,
às vezes, também o apetite.
Por tudo o que acontecia no dia a dia, a noite não
dormia quase nada; não dormindo direito, no outro dia não
tinha ânimo, mas trabalhava forçadamente. Sendo franca,
não tinha e não demonstrava alegria.
Aos vinte e nove dias de nascidas, foram batizadas,
Maria Aparecida e Maria Lúcia. No dia a dia, as chamamos de
Cida e Lúcia. Cida, muito nervosa, costumava chorar muito.
Lúcia, mais boazinha, dava menos trabalho. Foram crescen-
do e, com isso, tomavam-me ainda mais tempo.

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Capítulo 16

Outras mudanças

Com um ano de idade já eram muito levadas, ardilo-
sas. Por não ter mais tanto tempo para o trabalho, Divino
me fez mudar. Mentiu que havia alugado a pensão até as
crianças crescerem um pouco mais. Durante o dia ele ficaria
na fábrica de banha e à noite iria para casa. Tudo uma far-
sa. O que queriam realmente era me ver longe de lá com as
crianças. Como fui ingênua. Só compreendi tudo depois dos
acontecimentos.
Naquele dia mesmo que mudei, fiz o almoço e mandei
pra ele. No jantar, fiquei esperando por ele, que nunca che-
gou. Continuei mandando o almoço, até que um dia a Armin-
da chegou perto do Valdir e disse: “Não precisa trazer almoço
mais não, seu pai já almoçou”. E mandou a marmita de volta
com a comida. Ela continuou tornando-se dona de tudo, até
mesmo dele.
Aos poucos, eles nos foram cortando as coisas; primei-
ro o pão, depois o leite das crianças e, por fim, já faltava até
comida. Só Deus e eu sabemos o quanto foi duro levar essa
vida. Sua companhia me fazia muita falta, mais ainda para
as crianças. Com tantos problemas me perturbando, às vezes
não dava conta de conversar com as crianças, que ficavam
carentes de atenção, apoio e carinho. Mas eu não me esque-
cia de pedir a Deus nas minhas orações, que socorresse as
necessidades espirituais de meus filhos e desse a eles todo o
necessário para vencerem na vida.
Assim, nessa mesma situação, passaram-se três anos.
Durante esse período morávamos pertinho, ele vinha em casa
de vinte em vinte dias, às vezes demorava até trinta. Quando
chegava, em vez de conversar com as crianças dando carinho
e atenção, humilhava, maltratava. Chegou ao ponto de ele
chegar e eles ficarem espantados, receosos, como se tivessem

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praticado coisas erradas. Tudo isso, mais a falta de alimen-
tos, roupas... enfim, tudo isso me torturava.
Naquela ocasião, a Cida ficou doente. Numa noite, às
nove horas mais ou menos, sem ter queixado nada, pediu
para se deitar. Logo depois de pegar no sono, acorda gritando,
dizendo que queria fazer “cocô”. Quando chego ao berço, ela
já estava mal, batia perna e braço, estava roxa. Era crise de
convulsão. Ela se debatia, a boca retorcia, mas tudo isso só
de um lado. Não gosto de me lembrar o quanto sofri.
Foi atendida pelo médico local, o qual informou que ela
precisava ser internada em um hospital especializado nesses
casos. Seu pai não soube de nada porque estava viajando,
mas, quando chegou e soube, também não deu a mínima.
Felizmente, com os remédios que passou a tomar, melhorou.
Fomos levando a vida. Enquanto isso, na pensão, tudo
ia fracassando. Fecharam o bar, a fábrica de banha, até a li-
nha de leite. Só restava a pensão e quase sem movimento. Os
fregueses também não apareciam e, com isso, resolveu ven-
dê-la. Para mim, foi uma esperança. Poderíamos recomeçar a
vida. Mas em vão, lá se foram minhas esperanças, pois a vida
deles continuava.
Ele só vinha em casa para dormir. A noite inteira era
isso, ele fumando em seu quarto e eu, no meu, chorando. Fo-
ram quatro meses de noites sem dormir. Durante o dia eu su-
focava as lágrimas, as crianças ficavam preocupadas quando
me viam chorar.

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Capítulo 17

Outra casa

Depois de morarmos em três barracões alugados, ele
comprou uma casa e mudamos para lá. As crianças já esta-
vam grandinhas. Valdir já estava na aula. Esperto e inteli-
gente gostava muito de histórias. A professora mandou que
os alunos comprassem um livro: “O lobo bom”. Valdir sonha-
va com as leituras. À noite, acordada, ouvia-o comentar alto
sobre o livro. Quando o comprou, vibrou de alegria. Lia o dia
todo.
No ano seguinte, foi a vez do Neném entrar para o
grupo. Durante o dia, ficávamos as três e no final da tarde
aguardávamos a chegada dos dois. Apesar de ter sido uns
tempos de tristezas e sofrimentos, têm pequenas coisas que
deixaram marcas de profunda saudade.
Uma dessas marcas são as lembranças dos meus fi-
lhos pequenos. Os quatro eram muito carinhosos e amoro-
sos. Às vezes quando me viam triste diziam: “Fica triste não
mamãe, quando crescermos vamos trabalhar e aí daremos
tudo o que a senhora quiser”. Não sabiam da minha maior
dor, mesmo assim me confortavam muito. Tudo ainda con-
tinuava. Mas não demorou, o Divino comprou um caminhão
e voltou a viajar. Transportava mercadorias do Paraná para
outras cidades.
Enquanto estava ausente, tudo ficava mais calmo,
quando chegava era aquela implicância. Ela com medo de
perdê-lo, implicar era sua vingança. Rezava e pedia a Deus
um conserto, uma saída.

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Capítulo 18

Agosto de 1965:
Divinópolis - A cidade do Divino

Mãe e filhas. (Rua Capitólio, em Divinopolis, 1970)


No dia 30 de agosto de 1965, um irmão do Divino o
chamou para fazer umas compras em Divinópolis. Depois de
terem feito as compras vieram esperar o leiteiro no armazém
que ficava na saída da cidade. Era o armazém Planalto. Di-
vino tinha muita vontade de comprá-lo. Já havia proposto
negócio, mas não tinha dado certo. Naquele dia conseguiu e
já ficou por lá para dar balanço, só voltou no fim de semana.
Até normalizar, teria de continuar assim. Fiquei mais conten-
te, não estava perto daquela traidora.
Durante três meses, ele ficou sozinho. Precisando de
um sócio levou seu irmão, o Antônio. O irmão mudou em
dezembro do mesmo ano. Chegaram as férias e Valdir tam-

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bém foi para ajudar. Ficava por lá todos os dias da semana e
apenas sábados e domingos voltava para casa. Todas as suas
férias foram assim.
No início do ano seguinte o Divino matriculou os dois
filhos lá. Cida, Lúcia e eu ficamos à espera de um dia poder-
mos mudar pra lá também. Enquanto esperávamos, Arminda
se mudou para lá, antes do Natal.
Nós ficamos até julho do ano seguinte. O Valdir e o
Neném vinham todo final de semana. Era tão bom quando
chegavam e triste quando partiam. Não me acostumava viver
sem eles. Moravam com o tio e também sentiam falta de casa.
Foram passando os dias e o Divino não providenciava
casa para que eu pudesse me mudar com as meninas. Nas
férias de julho, Neném chegou perto dele e disse: “Papai que-
ro conversar com o senhor de homem para homem. Até hoje
o senhor não arranjou a casa para mamãe mudar. Eu estou
voltando pra lá e se o senhor não arranjar a casa para a gente
poder mudar, não volto mais, ficarei com a mamãe e minhas
irmãs”.
Diante da atitude do filho, arranjou a casa e no final
das férias mudamos. Fui morar pertinho do armazém. Me-
lhorou um pouco a situação. Pelo menos comida não faltava.
Divino viajava comprando mercadorias, seu irmão e os meni-
nos cuidavam do armazém. Tudo ficou mais calmo.
Meu cunhado era compreensivo e muito bom para nós,
mas infelizmente isso durou pouco. Adoeceu, pegou hepatite
e não teve recurso; faleceu dias depois.
Descontrolou tudo. Sem condições de tocar sozinho
o armazém, o Divino arrumou outro sócio, o esposo de sua
irmã. Mas ele tinha muitos filhos e a sociedade deles não deu
certo. Separaram. Divino ficou com o caminhão e seu cunha-
do com o fundo do armazém.
Logo depois ele vendeu o caminhão. Ainda parado,
sem saber o que ia tocar, saiu para uma pequena viagem.
Nesse dia após o almoço, chegou em casa a diretora do grupo
São Francisco de Assis e me perguntou se alugava o prédio
para construir o grupo, a escola. Não podia decidir sem auto-

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rização do Divino.
No dia seguinte ela voltou e o prédio foi alugado por 10
anos. Nesse período, fui atacada por gastroenterite e fiquei
muito mal. Passados uns meses comecei sentir “queimores”
nas solas dos pés. Era uma coisa terrível. Não conseguia ficar
calçada. Durante a noite com os pés descobertos, colocava-os
na parede para refrescar. Além do “queimor”, pouco depois
começou dar pontadas, nos pés, nas pernas, debaixo das
unhas, das mãos; por fim, deixou-me entrevada. Não conse-
guia mexer com os pés.
Até então, morávamos nos fundos do prédio. Com o
tempo, precisaram também do barracão e tivemos que nos
mudar. Fomos para uma casa próxima, a cinco quarteirões
de distância. Foi uma fase marcante e triste da minha vida.
As meninas já estavam no grupo. De manhã saía todo
mundo, eu ficava na cama. Sentia dores atrozes debaixo das
unhas, pareciam fincadas de agulhas. Às vezes sentia sede ou
vontade de urinar, mas ficava esperando chegar alguma pes-
soa que pudesse me ajudar. Não tinha alívio, doía dia e noite,
sem cessar um instante.
Os meninos tinham vontade de me levar ao médico.
Eram pequenos, sem emprego, faziam algum biscate, mas não
dava para pagar uma consulta. Uma amiga minha vendo e sa-
bendo que o Divino não dava providência de médico, remédio,
pediu a um médico uma consulta para mim. Fui três vezes
nele, tomei os remédios, mas não adiantou.
Consultei com outros dois médicos e foi a mesma coisa.
Depois fiz uma consulta com o doutor Sebastião Guimarães.
Tive uma melhora pequena. Fui continuando com ele, na sé-
tima receita ele me mandou para Belo Horizonte procurar um
neurologista.
Graças a Deus, com a primeira receita tive uma boa
melhora. Aliviou bastante as dores. Com a segunda, quase re-
cuperei, não sentia aquelas dores fortes e já podia andar esco-
rando nas paredes. Assim fui levando até voltar ao normal.

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Capítulo 19

Uma vizinha, uma grande amiga

Após oito dias que eu havia mudado, chegou, de mu-
dança também para uma casa em frente a minha, uma se-
nhora recém-casada, a Célia. Depois de uns trinta dias, eu
ainda convalescente, estava sentada no alpendre a tardezi-
nha. Ela se aproximou e me perguntou se eu estava doente.
Conversamos muito tempo e contei-lhe tudo a respeito da
doença.
A partir dali, todos os dias ia saber como eu estava
passando. Ficou muito amiga e passei a ter muita considera-
ção a ela e sua família. Seu marido viajava e dormia fora duas
vezes por semana. Até seu marido voltar, ela ficava na minha
casa. Quando ela não vinha, a Lúcia, minha filha, ia lhe fazer
companhia. Sua mãe morava em outro bairro distante.
Sete meses após seu casamento, Célia engravidou.
Tudo que sentia vinha me falar e perguntava tudo a respeito
de gravidez, como uma filha pergunta a mãe. Cada vez fui
gostando mais dela. Passou o período da gravidez e chegou o
momento do nascimento do bebê.
Era uma noite de lua, eu não estava tranquila, sabia
que a qualquer hora ela me chamaria, mesmo estando em
companhia de uma prima. De repente, batidas no basculante
do quarto, acordo com o coração acelerado. Era sua prima,
vinha pedir a Lúcia para lhe fazer companhia. Meia noite Cé-
lia saía para o hospital. Meu sono desapareceu, pedia a Deus
que tudo corresse bem. Ganhou um lindo menino. Uma data
inesquecível, 16 de agosto de 1971. Parecia ser o meu primei-
ro neto. Os primeiros dias do resguardo, ela não saiu de casa.
Senti muita falta dela.

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Capítulo 20

Teodora: Dóia

Depois do resguardo os dois ficavam lá em casa. Pou-
cos dias o menino foi batizado e recebeu o nome de Alessan-
dro. Ele foi crescendo saudável e esperto. Gostava muito de
mim. Toda noite na hora de dormir tinha de ser no meu colo.
O pai dele o levou várias vezes para que eu o fizesse dormir.
Quando começou a falar, chamava-me de “Dóia”, não
sabia pronunciar o meu nome: “Teodora”. Depois disso, todos
se acostumaram a me chamar de Dóia e o apelido pegou.
Um ano e pouco depois, o Alessandro ganhou um ir-
mão, o Geovane. Este também gostava muito da gente, não
como o Alessandro. Célia participava de tudo da minha vida.
Era uma pessoa muito bondosa, ajudava-me a cuidar de Lú-
cia e Cida que eram muito ardilosas.
Uma tarde eu estava ocupada dentro de casa e as duas
no alpendre. Nisso, passa um senhor na rua com uma garra-
fa na mão. Lúcia saiu atrás dele “remedando” ele caminhar.
Ele olhou para trás e quando a viu, levantou o braço para lhe
dar com a garrafa na cabeça, mas a Célia viu e gritou. Foram
muitas vezes que ela socorreu as meninas.

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Capítulo 21

Muita luta e perseverança

Dia do aniversário de 15 anos das filhas. (Divinópois, 17-12-1974)

Enfim, os meninos um pouco mais crescidos se em-
pregaram e nossa vida voltou a melhorar um pouquinho.
Valdir terminava o colégio, mas precisava se preparar para
o vestibular. Queria ser médico. Teria que ir para Belo Hori-
zonte fazer o cursinho.
Valdir conseguiu ir para Belo Horizonte estudar e, por
lá, ficou seis meses. A luta não foi fácil. Sua ausência me dei-
xava triste e preocupada pelos problemas financeiros. Ven-
ceu o cursinho, partiu para o vestibular. Tentou na Federal,
mas infelizmente não conseguiu da primeira vez. Na segunda
e terceira, também não. No último, tinha feito os pontos sufi-
cientes no total, mas só conseguiu dezoito pontos em História
e foi eliminado. Ficou desesperado, quis desistir de tudo. Tive
muita pena dele.
Enfim, resolveu enfrentar mais um. O pai dele o levou

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ao padre Libério para conversar e benzê-lo. O padre rezou
com ele e disse que ficasse tranquilo, desta vez iria passar.
Só que esta tentativa seria para estudar em Barbacena.
Após oito dias foi para Barbacena enfrentar as provas.
Graças a Deus, desta vez conseguiu. Muitas alegrias. Não
posso negar que sentia muita tristeza também, por saber que
ele ficaria longe de todos nós. Passaram-se os dias. Chegou a
hora de ir para Barbacena iniciar os estudos.
O Neném continuava no emprego e no colégio. De vez
em quando surgiam alguns problemas financeiros maiores,
mas logo solucionavam. Depois de um ano, Neném comple-
tou o colégio. Chegou sua vez de prestar vestibular. Quis fa-
zer medicina também.
Como seu irmão já estava em Barbacena, foi fazer ves-
tibular lá também. Conseguiu. Novamente, fiquei muito fe-
liz e, ao mesmo tempo, triste, sabendo que ficaria longe dos
dois. Isso era o que eu não queria.
No início do ano, os dois na mesma pensão, na mesma
faculdade. Eu, com saudades, rezava e pedia a Deus que os
ajudassem. Valdir, enfrentando muitos problemas financei-
ros, resolveu fazer crédito educativo. Apesar de ser um gran-
de compromisso futuro, naquele momento seria a melhor
solução. Neném ficou um ano e no segundo, também fez o
crédito. Mesmo assim as coisas iam difíceis.
A solução mais sensata seria eu me mudar para lá.
Juntos, conseguiríamos compartilhar melhor as coisas e di-
minuir as despesas. Demorou um pouquinho até conseguir
isso, não achava casa para alugar.
Enfim, o Divino encontrou um lote, mas não era fácil
achar e administrar pedreiro. Levou um ano para construir a
casa. O Divino levava o pedreiro não dava certo. Ele voltava e
arranjava outro que trabalhava um dia ou dois e também não
ia mais.
Assim foi até completar um ano. Não tinha acabamen-
to, mudamos assim mesmo. Quando meus vizinhos soube-
ram da mudança lamentavam. Lilica era como uma irmã.
Gostávamos muito uma da outra; saíamos juntas e não pas-

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sava um dia sem nos encontrarmos. Para mim também era
muito difícil separar de todos, depois de tantos anos de con-
vivência. Mas não tinha outro jeito, era uma mudança ne-
cessária. Marcamos para o dia 14 de março de 1978.

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Capítulo 22

14 de março de 1978: mudança para Barbacena

Na véspera da mudança eu estava desorientada. Dei-
xaria todos da minha família e amigos. Passou a noite e não
dormi nada. O pensamento me perturbava. Mudaria para
uma cidade em que não conhecia ninguém, a não ser meus
dois filhos.
No outro dia Lilica ficou comigo até a hora derradeira,
ajudando preparar a mudança. Na hora da partida abraça-
mos, com os rostos nos ombros uma da outra, em silêncio,
as lágrimas desciam em bicas. Sentia o coração bater forte,
parecia querer sair do peito.
Demoradamente ficamos ali, as duas paradas. Eu se-
gui viagem e ela ficou parada me olhando até sumir de vista.
Célia e os meninos se esconderam para não se despedirem.
Os outros vizinhos fizeram o mesmo.

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Capítulo 23

Barbacena: vida nova

Minha mudança seguiu no trem de ferro. Nós fomos de
ônibus. Nem parecia estar mudando. Até Belo Horizonte tudo
em silêncio. Quando tomamos o ônibus para Barbacena já
eram seis horas da tarde. Um horário triste para mim, devido
acontecimentos que deixaram marcas. Quanto mais o ônibus
corria, mais a Lúcia, Cida e eu chorávamos. Estava sendo
difícil renunciar tudo e partir para lugar distante. Lúcia, na
poltrona ao lado, com uma plantinha na mão, silenciosa, de
vez em quando olhava para mim com os olhos vermelhos e
inchados de chorar. Cida ao lado de seu pai. Todos os lugares
que passavam, ele lhe mostrava e dizia o nome.
Após quatro horas de viagem, chegamos à Rodoviária
de Barbacena. Descemos do ônibus. Cida, ao olhar a rodo-
viária disse: “Hum! Que rodoviária feia, parece mais um gal-
pão!” Fomos andando até a casa. Lúcia xingava e reclamava
o tempo todo: “Olha que ruas estreitas! Além de estreitas, só
morro. Que desgraça. Eu não fico aqui mais que um ano, juro
que não moro”.
Cida e seu pai seguiram na frente, nós duas mais
atrás; eu, cansada e triste, ouvia os xingos da Lúcia. Quando
Cida e seu pai distanciavam, paravam e nos esperavam. Com
quinze ou vinte minutos de caminhada, chegamos.
Ao avistarmos a casa inacabada, Cida aproximou-se e
disse: “Eu sabia que seria assim! E para acabar de inteirar,
veja aí, a parede é torta”. Retrucou mais ainda: “O senhor
papai, não fez nada que presta para nós e nunca vai fazer,
estou certa disso”.
Eram dez horas e quarenta minutos da noite. Descon-
tentes, cansadas e com fome, entramos. Na casa ainda não
tinha ligado luz. Neném estava lá; fazia um mês que tinha
ido.

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A casa era boa, três quartos, sala espaçosa, cozinha e
banheiro. No fundo um barracão com dois cômodos e um fo-
gão a lenha. Na casa havia apenas três camas, mas serviram
até chegar a mudança, que demorou onze dias. Enquanto
não chegava, fiquei cozinhando no barracão. Parecia mais
um piquenique. Durante o dia, no barracão; à noite, na casa
para dormir.
No dia em que chegou a mudança, chegou também
Enilton, o namorado da Lúcia. Sua visita nos deu muita ale-
gria. Estávamos muito sozinhos. Era Semana Santa. No final
de semana fomos ao cinema. Passava a vida de Cristo. Ao
ver aquelas cenas tristes que se passavam com Jesus, servia
de conforto para mim, eu também estava sofrendo a dor da
separação, mas sou pecadora e mereço sofrer. Quando ter-
minou, passamos pela praça da matriz repleta de gente que
assistia o final das cerimônias da paixão de Jesus Cristo.
No domingo, Enilton regressa a sua cidade, Divinópo-
lis. Nós o acompanhamos até a rodoviária. Foi muito triste
vê-lo partir, sabendo que teríamos de ficar. Tudo no princípio
é difícil. A esperança era a de que um dia tudo mudasse e
ficaríamos todos juntos e satisfeitos.
Segunda-feira. Recomeçam trabalho e aulas. Lúcia,
desesperada porque completavam dois meses sem aula, sem
colégio. De manhã saiu a procura de uma vaga e só encon-
trou na FUPAC. Apesar de ser um dos colégios mais caros da
cidade, era muito bom. Estudou um ano e foi aprovada.

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Capitulo 24

Noivado de Lúcia – o retorno para Divinópolis

Em seis de setembro desse mesmo ano (1978), Lúcia
ficou noiva. Querendo se casar em nossa terra natal, Per-
digão, teria de ficar por lá por uns 60 dias, para facilitar os
papéis. O casamento no civil estava marcado para fevereiro
do ano seguinte.
Em dezembro ela partiu para Divinópolis. Ficaria com
sua cunhada, até vencer o período. Foi um grande golpe acei-
tar esta separação, que já era definitiva. Enquanto esperava,
preparava seu enxoval. Eu lamentava sua ausência, aguar-
dando o momento de ir também para ajudar com os prepara-
tivos finais.
Fomos para Divinópolis no dia 14 de março e no dia
17, às 14horas, realizou-se o matrimônio. A celebração foi fei-
ta pelo Frei Cristóvão, na cozinha da casa da minha sogra, na
cidade de Perdigão. Foi uma cerimônia muito bonita. Após o
casamento houve uma recepção na casa da Maria do Antônio
Belchior. A festa foi simples, mas todos ficaram satisfeitos.
No outro dia cedinho, Lúcia foi para sua nova casa,
começar nova vida. Eu me lembrava, sem cessar, da sua pro-
messa no dia que mudamos, pois ela a cumpriu fielmente,
sem completar um ano.
Senti muito a falta dela. Apesar das pequenas brigas, a
gente se amava muito e se dava bem; éramos como as outras
famílias, discutíamos, ficávamos bravos, mas dali a pouco
estava tudo bem.

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Capítulo 25

Vovó Dóia – o primeiro neto

Passados nove meses, Lúcia deu-me um neto, o André,
lindo e saudável. Divino e eu somos seus padrinhos de batis-
mo.
É maravilhoso ser avó. A gente não tem coragem de
tocar um dedo, mesmo com raiva. Nos filhos a gente, com rai-
va, se zanga e bate. Já com os netos é só alegria e mais razão
de viver muito para vê-los crescer. Isso tanto com o André,
quanto com os outros netos que vieram.

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Capítulo 26

Barbacena – Formaturas

Minha casa agora está mais vazia. Valdir está em Belo
Horizonte estagiando. Seu último ano. É um sonho de seis
anos de luta, sacrifícios sem tréguas. Decidiu-se por cirur-
gias. Ainda no quinto ano dava plantão no hospital Colônia.
Quando surgia alguma cirurgia, ele sempre ajudava.
A primeira cirurgia que ele fez sozinho foi uma Cesa-
riana. Foi maravilhosamente bem. O bebê nasceu saudável,
bonitinho e recebeu o mesmo nome que o seu: Valdir. Na-
quela noite ficou tão emocionado que não conseguiu dormir.
Sempre que fazia alguma cirurgia a emoção era a mesma,
sempre forte. Confio em sua capacidade. Será um bom cirur-
gião. Tirou duas verrugas em mim, não ficaram nem cicatri-
zes.
Durante o ano de estágio não teve esse tipo de emoção
com as cirurgias, somente auxiliava. Só vinha em casa de
mês em mês. Eu sentia muita saudade e falta dele.
Venceu o ano. O desejo final chegou. Formatura, di-
ploma, já era médico, motivo de alegrias, muita alegria de
ambas as famílias. Era o primeiro que se formava, o primeiro
médico na família.
Sou feliz e grata a Deus, por ver meu filho médico. Da-
qui a dois anos terei outro filho médico, se Deus quiser. Eles
humildes, honestos, boas pessoas, capazes de fazer o bem e
ajudar o próximo. “Obrigada meu Deus, abençoe-os e os ilu-
mine nessa jornada contínua”.

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Capítulo 27

Uma data especial
Barbacena, 12 de dezembro de 1980

Naquela semana, às vésperas da formatura do Valdir,
fiquei muito nervosa, pois o pai dele, o Divino, não chegava.
Fazia um ano que ele não vinha em casa. Preocupada com os
preparativos do dia, emagreci três quilos.
Finalmente, na quarta-feira, semana de formatura, ele
apareceu. Vieram com ele, Lúcia, Enilton, André, Zé Raimun-
do e minha sogra. Ela, já com seus oitenta anos estava en-
tusiasmada e feliz pelo seu neto. Ficou alerta o tempo todo.
Assistiu a missa e me ajudou o que pode. Não participou do
resto das cerimônias porque estava chovendo, ela não podia
tomar chuva para não resfriar.
A missa dos formandos foi celebrada na Basílica de
São José Operário, no dia 12 de dezembro de 1980, às 17
horas, em Barbacena. Foi uma missa especial e muito bonita.
Nunca havia assistido esse tipo de cerimônia. Entramos na
igreja, seu pai de um lado, eu do outro, braços dados com ele
no meio, uma emoção muito forte. Meu coração batia tanto, o
corpo um pouco trêmulo. Olhava para o altar do Santíssimo
Sacramento e agradecia por tudo. Vinha um nó na garganta,
vontade de chorar, mas conseguia me controlar. Seu pai não
conteve: chorou o tempo todo de alegria; acredito que chorou
também por tantas injustiças que nos deixaram marcas pro-
fundas. Naquele momento, com certeza, deveria doer grave-
mente a sua consciência.
Às vinte horas, seria a entrega dos diplomas no prédio
da Epicar. Realmente foi emocionante, a cerimônia mais bo-
nita que já vi em toda minha vida. Divino ao meu lado conti-
nuava protegendo as lágrimas com o lenço. Continuei firme,
mas quando fui cumprimentá-lo não resisti. Aproximou-se de
mim e nos demos um abraço apertado. Nossas vozes emude-

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ceram. Sentia suas lágrimas quentes baterem no meu ombro,
como as minhas também batiam no dele. Quis falar tanta
coisa e não saiu voz. Naquele momento, todas as lembranças
da nossa vida juntos, principalmente as mais deprimentes,
passavam na minha mente, como uma fita cinematográfica.
Bem no fundo do meu coração, junto a tudo o que
estava passando, surgia de repente aquela sensação boa,
bons pensamentos. Agora está tudo bem. Meu filho é outro
homem, sua vida de agora em diante tomará outro rumo.
Então pude dizer-lhe com um sorriso: “Parabéns meu filho,
parabéns mesmo! Você merece tudo de bom. Deus iluminará
todos os dias de sua vida, será feliz e com muito êxito profis-
sional”.
Ele passou o resto de dezembro conosco e novamente
voltou para Belo Horizonte. Dois anos de especialização. Sua
residência médica foi na Santa Casa, em cirurgia cardiovas-
cular.

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Capítulo 28

1982: mais formaturas

Valdir iniciando a especialização em Belo Horizonte
e o Neném no quinto ano, em Barbacena, estudando e tra-
balhando muito também. Ficava de plantão no Ibiapaba, na
Fhemig, auxiliando em cirurgias, também em Barbacena.
Anda bastante e sempre a pé, de cá pra lá, de lá pra cá, com
rapidez e sem reclamar cansaço. Ele também está querendo
se especializar em cirurgia. Aguardamos sua decisão.
Os meses e dias foram passando e finalmente chegou
a vez do Neném, da sua formatura. Havia dois anos que seu
pai não vinha em casa. Na véspera, ele chegou trazendo sua
mãe.
Com muita alegria, recebíamos os convidados para a
festa. Tão bonita quanto a outra, a do Valdir. Muito emocio-
nante. Eu me despedia da formatura e também da cidade,
porque quando o Neném começar a trabalhar não volta para
casa mais, só a passeio. Eu também terei de voltar para mi-
nha cidade, que agora é Divinópolis.
Muito entusiasmada, pela primeira vez tomei um pou-
co de cerveja, cantei muito e até dancei também. Mas, em
certo momento, lembrei-me de um detalhe desagradável, de
quando o Valdir e o Neném ainda eram pequenos e gostavam
de ouvir futebol pelo rádio. Eles se juntavam com os colegas
e ficavam na rua ouvindo e torcendo pelos seus times. Num
daqueles dias o pai se aproximou disse: “Estão precisando
de roupa branca, sapato branco e sentar debaixo do poste, aí
está completo”. Relembrando tudo resolvi falar e saiu como
um discurso: “Meus filhos, agora vocês dois podem ficar de-
baixo do poste ouvindo jogo, com a merecida honra e não
como o pai de vocês disse que seria”. Naquela hora ele cho-
rou, já os colegas gostaram do que falei e aplaudiram.
No outro dia foi o baile da formatura, estava ótimo,

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mas não consegui demorar muito, estava exausta. Tive de ir
embora descansar. Fim de festa, todos foram embora. Nos
primeiros dias de janeiro, Neném iria para Belo Horizonte
para se especializar.
No final do mesmo ano, 1982, no dia dezoito de de-
zembro mais uma formatura, a da Lúcia, em Divinópolis. Ela
concluiu o Magistério. “Quantas alegrias! Agradeço a Deus
que sempre nos amparou”. Lúcia acabou de se formar e está
esperando outro bebê. Além do André, mais uma criança em
casa. No dia seguinte, após a formatura, retornamos para
Barbacena.
Janeiro se aproxima, Neném se prepara para deixar
Barbacena e começar sua especialização em Belo Horizonte.
Já o Valdir se prepara para deixar Belo Horizonte e voltar
para Divinópolis, para morar e trabalhar.
O primeiro semestre de 1983 foi uma luta dura, a do
Neném para se ambientar em Belo Horizonte e a do Valdir
porque trabalhava e não recebia. Várias vezes o Valdir não
tinha dinheiro nem para a lotação. Passados seis meses, co-
meçou receber um pouco. Nessa época, ele ficou quatro me-
ses morando na casa da Lúcia até eu voltar de mudança.

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Capítulo: 29

1983: de volta para a cidade
do Divino – Divinópolis

Dois meses após a formatura, Lúcia ganhou uma me-
nina. Nasceu no dia vinte e quatro de fevereiro de 1983. Era
espertinha, careca e de olhos grandes. Faltavam três meses
para eu me mudar. Lúcia foi para o hospital e nem deu tempo
do seu médico chegar, pois a criança estava nascendo. Valdir
assistiu ao parto.
Quando recebi o telefonema avisando que a Lúcia já
havia ganhado a menina, fiquei muito ansiosa. No dia se-
guinte viajei, fiquei doze dias com ela. Agora dois netinhos,
André e Gabriela. Ser vó é uma sensação agradável, é ser mãe
duas vezes. Gabriela era pequenininha, muito bonitinha e es-
perta, com os olhos sempre arregalados, olhando tudo. Não
era chorona.
Um dia antes de ir embora, fui a casa do Divino pedir
o dinheiro da passagem de volta. Chegando lá a porta estava
fechada. Enílton chamou e dali a pouco ele veio saindo e que
não tinha o dinheiro da passagem. Resolvi entrar e foi imensa
a surpresa, um choque, uma mulher deitada na cama dele!
O susto parece ter me suspendido até o teto. Voltei de fasto,
mas Lúcia atrás de mim grita, “Uma mulher na cama do pa-
pai”! Eu pus o dedo em direção à boca e pedi silêncio. Saímos,
mas só Deus sabia o mal que eu estava sentindo. Naquela
hora entendi que ainda o amava muito, apesar de tudo.
Voltamos para casa da Lúcia, sem saber como eu vol-
taria para Barbacena na manhã seguinte. Enilton, vendo-me
triste, meio sem rumo, chamou-me e disse que daria um jei-
to de arrumar o dinheiro para eu ir embora. Não consegui
dormir a noite; no outro dia cedinho, levantei e fui lavar as
roupas da Lúcia. Quando já estava estendendo no arame, o
Divino chegou e ficou parado perto do carro. Lúcia estava

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com o almoço pronto. Minhas malas também estavam pron-
tas. Como fiquei quieta no meu lugar, ele me chamou e falou:
“O dinheiro está aqui”. Eu me aproximei para pegar, mas ele
o jogou no chão. Abaixei e apanhei, precisava ir embora. Não
dei conta de almoçar.
Quase muda, peguei as malas e fomos, Cida e eu.
Chegamos à rodoviária, mas o ônibus tinha acabado de sair
às doze horas. O próximo seria às treze. Sentamos e ficamos
esperando. Quando chegamos em Belo Horizonte, o ônibus
das quinze horas também tinha acabado de sair para Barba-
cena. Aí tivemos que sentar novamente e esperar o último,
o das dezoito horas. Enfim tomamos o ônibus e seguimos.
Cida, preocupada, perguntava: “O que aconteceu mamãe, a
senhora está triste, não fala...”. Eu não contava para que ela
não ficasse chateada também.
Chegamos a Barbacena às dez horas da noite e a lota-
ção já havia saído. Tivemos que ir a pé. Às dez horas e qua-
renta minutos, já estávamos em casa. Tomei banho e fui me
deitar. Outra vez não consegui dormir, chorei a noite inteira.
De manhã, no dia seguinte, estava varrendo a casa, o
Neném chega do hospital, atencioso, carinhoso, abraçando-
-me e logo percebeu que eu estava triste e quis saber o que
tinha acontecido comigo. Respondi que não era nada, mas
ele não aceitou e insistiu que queria saber. Então comecei a
chorar, e chorei muito, depois lhe contei os fatos.
À época, eu estava com uma cirurgia marcada, espe-
rando apenas passar o parto da Lúcia. Mas foi preciso adiar.
Por causa desse acontecimento, complicou minha saúde.
Fiquei muito nervosa. Tive muita tosse, fiquei rouca, a voz
não saía. Fiz vários exames, tomei xarope, vapor, inalação.
Depois de quatro meses fui melhorando, então pude operar.
Retirei a vesícula. Com o passar do tempo fui tentando tirar
o Divino do pensamento, do coração e da minha vida.
No dia vinte e um de abril de 1983, voltamos com a
mudança para Divinópolis. Agora só eu e a Cida. Fomos mo-
rar perto da Lúcia. Sofri muito por ter que me separar das
amigas de Barbacena. O que me ajudava a esquecer um pou-

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co delas era a Gabriela, minha neta. Ficava sempre comigo e
fazia muita gracinha.
Um ano se passou e já estava conformada. Valdir tam-
bém estava melhorando a clientela e só faltava um ano para
o Neném voltar também. Ele estava se especializando em ci-
rurgia geral e em coloproctologia. “Oh, meu Deus! Quantas
Graças vos dou! Ver meus filhos trabalhando juntos e estar
novamente junto deles também!”

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Capítulo 30

1987: casamento e viagem

Pai e filhas. (Barbacena, 09-09-1987)

Ainda em Belo Horizonte, o Neném conheceu Vera
através de uma colega dele. Simpatizou-se por ela e começa-
ram a namorar. Namoraram uns quatro anos. Naquele final
de tempo ele foi premiado com uma bolsa para fazer uma
especialidade em sua área, na França, na cidade Marcelle.
Com isso, apressaram o casamento. Casaram-se em
nove de setembro de 1987 e no dia 16 do mesmo mês ele par-
tiu para a França. Fomos levá-lo ao aeroporto. Valdir, Vera
e eu. Jamais esquecerei aquele momento da despedida. Meu
corpo todo tremia. Vera chorava muito. Naquele momento
ele não teria como levá-la, precisava arrumar colocação por
lá primeiro. Já no alto, no avião, ele acenava um lenço, não
resisti, chorei muito também. Por um lado, estava contente,
por ser bom para ele, mas por outro, triste pela separação.
Teria de passar um ano sem vê-lo.
Decorridos quatro meses, a Vera foi encontrá-lo e isso

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me tranquilizou um pouco. Junto com sua esposa amenizaria
o sofrimento da distância, das saudades, enfim, uma compa-
nhia seria uma grande força. Durante o curso, ele foi muito
atento e esforçado, ou seja, dentro de dez meses aprendeu o
suficiente e em julho do ano seguinte retornou ao Brasil. Foi
uma festa a chegada deles.
Passada uma semana ele foi para Belo Horizonte tra-
balhar. Vera ainda ficou durante uns dois meses na casa dos
pais, em Barbacena, até conseguir alugar um apartamento
em Belo Horizonte. Assim que conseguiram um, no bairro
Santa Efigênia, se mudaram.
Ao final da sua residência médica, ele continuou tra-
balhando no Hospital Felício Rocho. Em pouco tempo, muda-
ram-se para outro bairro, o Prado, Rua Aristóteles Caldeira,
395. Lá moraram por mais de três anos. A Vera engravidou
naquele período.
Passou o tempo e ela ganhou um lindo menino, o Gui-
lherme. Fiquei com eles vinte e três dias, cuidando do meu
neto. Quando o Guilherme completava três anos nascia o Lu-
cas. Fiquei novamente os vinte e três dias cuidando de todos.
Depois compraram um bom apartamento no bairro
Cruzeiro, na rua Oliveira e mudaram-se para lá. Valdivino, o
Neném, continuou trabalhando no Felício Rocho, no pronto-
-socorro do hospital João XXIII e no Alberto Cavalcante. Com
muita honra digo: “É eficiente, responsável e bem-sucedido
nos seus trabalhos, nas suas cirurgias. Graças à Deus!”
Ele e Vera tiveram uns atritos conjugais, mas conse-
guiram chegar nos eixos. Os filhos deles, meus netos que amo
muito, são lindos e inteligentes. Amo a Vera também, o meu
filho nem preciso dizer.

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Capítulo 31

Vida que segue: uma construção

Agora volto a falar do Valdir. Ele continua morando
em Divinópolis e trabalha nos Hospitais São João de Deus
e São Judas Tadeu e, ainda, em seu consultório, ao lado do
Hospital São Judas. No começo foi duro, trabalhava a se-
mana inteira sem ter um centavo para pagar a lotação. Não
tinha carro.
Enilton, meu genro, alugou um apartamento para nós,
levou-me ao armazém e me apresentou ao dono. Eu compra-
va fiado. Pagava um mês e ficava devendo o outro. O Neném
pagou os dois primeiros aluguéis até as coisas normalizarem.
Enfim, quando o Valdir foi trabalhar no São Judas e
depois no seu próprio consultório, isto é, junto com o doutor
Marcelo, as coisas foram se ajeitando. Dois anos depois com-
prou um lote no bairro São José. Aos poucos foi comprando
o material de construção e começou a construir um prédio.
A construção demorou seis anos. No final, não ficou
devendo ninguém. Assim que o primeiro apartamento ficou
pronto, nós nos mudamos, porque o dinheiro do aluguel se-
ria empregado na construção do prédio. Era muita alegria.
Valdir gostava muito de festa, era churrasco e cerveja quase
todo fim de semana com seus colegas de hospital.
Terminou o prédio, tornamos a mudar para outro
apartamento. Fomos para o 101, em10 de agosto de 1987.
Lúcia mudou para o apartamento em que eu morava, dois
dias depois. O prédio tem sete apartamentos. Os três da fren-
te são os maiores, os quatro dos fundos são menores. Valdir
foi lutando, trabalhando sem tréguas, comprou também um
carro que tanto queria. Numa ocasião ele possuía dois carros
novos.
À medida que a família foi crescendo e tomando outros
rumos, a Arminda foi ficando menor, quase sem espaço na

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minha vida. Ainda tinha mágoas, mas doíam bem menos.
Como disse, nessa época o Valdir trabalhava bastante
e já estava bem entrosado com as equipes do Hospital São
Judas. Um dia ele chegou e me contou que a Arminda estava
internada lá. Não rendi, nem fiz perguntas. Pouco tempo de-
pois ele informou que ela havia morrido.

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Capítulo 32

Nascimento e casamento na família

Certa vez, em seu consultório, o Valdir atendeu uma
paciente e se encantou por ela. No réveillon, resolveu trazê-la
para eu conhecer. Bonita, educada, mas senti algo estranho,
coisa que não sei explicar. No outro dia ele me perguntou
o que achei dela. Respondi que a achei bonita, simpática e
educada, mas achava também que não era a pessoa que ele
merecia. Ele quis saber o porquê, mas a resposta não sabia
lhe dar, os olhos do coração que sentiram, mas eles não fa-
lam.
O namoro continuou. Cada vez mais eu sentia que se
ele se casasse com ela, não seria feliz. Nada adiantava, nem
conselho, nem nada. Foram dois anos de namoro. Ficaram
noivos, mas brigavam muito, até que um dia terminaram.
Passado um tempo, mais de um ano, ele já estava com
outra namorada. Estávamos bem sossegados. Porém, soube
que ele tinha voltado a se envolver com a ex-namorada; dei-
xou tudo e reatou com ela, a Regina. Casaram-se no dia 12
de outubro de 1991. Foi um dia muito triste para mim, cho-
rei muito e fiquei muito angustiada. Queria o melhor para o
meu filho. Meu coração sentia que ele não seria feliz.
Não fui ao seu casamento porque não tive estrutura
física e psicológica para tal evento. Na hora do casamento en-
trei para o meu quarto e fui fazer oração; não consegui rezar,
chorava como uma criança quando leva uma surra. Fiquei
sabendo depois que as luzes da igreja se apagaram. Tive-
ram que continuar a cerimônia à luz de velas. Fiquei confusa
quando soube. Depositei nas mãos do Senhor Jesus. Só ele
sabe tudo e pode tudo.
Eles partiram para os Estados Unidos em lua de mel.
Lúcia também não foi ao casamento porque estava no final
da sua terceira gravidez. Dois dias depois do casamento a

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criança nasceu. No dia 14 de outubro (1991) nascia uma lin-
da menina, a Isabela. Devo muito a ela. Ajudou-me esquecer
um pouco aquela tristeza que me atormentava.
Naqueles dias, Cida, minha filha e minha companhia,
não estava comigo. Estava em São Paulo na casa da minha
irmã. Eu ficava direto na casa da Lúcia, o dia inteiro com a
Isabela, só voltava em casa a noite para dormir. Foi aí que
aprendi a curar umbigo. Tive quatro filhos, não curei umbi-
go de nenhum deles. Tinha muito medo, mas fui obrigada a
fazê-lo com Isabela. Curei direitinho, até cair, dava banho e
tudo. Depois curei os dos filhos de Neném e os dos filhos de
Valdir.
Dois meses, fiquei na casa da Lúcia, depois voltei à
minha rotina, mas a pequenina continuava direto comigo.
Lúcia trabalhava em dois horários, de manhã e depois do
almoço. Até os oito meses ela ficava comigo. Eu lhe ensinei
comer, engatinhar e andar. Estava gordinha, pesada e me
cansando muito, então fui me distanciando aos poucos. Mas
ela não podia me ver, nem ouvir minha voz que queria que eu
a pegasse no colo.
Tudo passou. Valdir voltou da lua de mel, continuou
sua carreira. A esposa dele era professora e foi dar aula na
cidade. A vida foi indo. Nos primeiros meses, ela não tinha
relacionamento comigo. Na passagem do ano, ele me pediu
para vir dar um abraço na família, mas queria trazer a Regi-
na; lembrei-lhe de que a casa era dele e sempre seria. “Pode
trazê-la, ninguém fará mal a ela”, eu disse.
À meia noite eles chegaram, nós estávamos no porão,
nosso local de festa. Tinha muita gente, amigos e filhos. Ela
cumprimentou todos até chegar a minha vez. Veio, cumpri-
mentou-me e sentou-se perto de mim, em silêncio.
Naquela noite, dormiram na minha casa. De manhã,
ele me disse: “Mamãe vou ao hospital, vou chamar o Dr. Jú-
lio e volto com a Regina para almoçarmos aqui, podemos?”
Respondi: “Claro que sim. Tem muita comida, um pernil in-
teiro”.
Mais tarde voltaram trazendo o Dr. Júlio. Resolvi fazer

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o arroz na casa da Lúcia para evitar uma escada. Eles, no
porão, conversavam e tomavam cerveja. Vera e eu estávamos
na cozinha, chegou a Regina e pediu para ajudar. Ela queria
mesmo era conversar comigo sobre o passado. Ela sabia que
eu não aprovava o casamento, além disso, surgiram também
muitas “futricas”. Vera e Lúcia perceberam o clima, saíram e
nos deixaram a sós.
Entramos para o quarto. Quando ela começou a falar
do passado, eu a interrompi e disse: “Regina, não vamos fa-
lar do passado, porque se continuar a falar, fere mais uma
vez. Eu não vou negar nada do que disse, você também não,
então vamos colocar uma pedra em cima do passado. Esta-
mos nos conhecendo agora e começamos um relacionamento
também agora”. Pensei que tudo tinha ficado resolvido.
Completavam dois anos de casados, eu nunca tinha
ido a casa deles. No aniversário do Valdir fiz-lhe uma surpre-
sa. Preparei as coisas que ele gostava, convidei o Enilton e a
Lúcia, Anita uma amiga nossa e a Cida. Lúcia não podia ir
ao almoço porque estava lecionando. O Valdir me telefonou
de manhã dizendo que vinha almoçar na minha casa. Liguei
para Regina e pedi que fizesse o almoço que eu precisava
sair. A surpresa era para os dois, eu ia fazer o almoço na
casa deles.
Às dez horas eu cheguei na casa deles para fazer o
almoço. Não deixei o porteiro anunciar. Entrei no elevador e
fui. Quando ela atendeu a porta do seu apartamento quase
caiu. Entrei e ela nem havia começado o almoço. Deu uma
crise de choro nela e não conseguia parar, então eu falei que
se fosse para chorar eu iria embora. Ela disse que chorava de
tanta alegria, tanta emoção e que nem estava conseguindo
fazer nada. Falei: “Pode deixar que eu e Anita vamos prepa-
rar tudo”.
Ela queria ligar para o Valdir, mas não deixei. Se ela
ligasse ele mandava suspender a clientela daquele dia eu não
queria isto. Apenas queria almoçar com ele e lhe dar os para-
béns.
Na casa deles estava uma tia da Regina fazendo tra-

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tamento. Quando terminei o almoço, bateram na porta, ela
foi atender. Nós entramos para o quarto. Quando ele entrou,
saímos cantando os parabéns. Ele quase teve um desmaio.
Tamanha surpresa, que entrou no banheiro para refazer-se.
Ele ficou muito alegre, mandou a secretária dispensar os pa-
cientes daquele dia. Estourou um champanhe e fomos almo-
çar.
Pouco depois o telefone tocou chamando, era uma
emergência. Lá se foi, mas recomendou que não me deixasse
sair, porque ele ia me levar em casa. Fiquei até a tardinha.
Quando ele chegou do hospital, veio me trazer em casa e de-
pois os dois saíram. Cida ficou fazendo companhia a tia da
Regina.
No ano seguinte, dia trinta de março, chegou o aniver-
sário da Regina e desta vez seria para ela a surpresa. Como
ela dava aulas à tarde, deixamos para ir lá depois das aulas.
Já estavam todos lá quando eu cheguei para lhe dar os para-
béns. Ela ficou muito alegre, o Valdir também. Demorei um
pouco, mas saí mais cedo. Para mim tudo estava bem. Na
verdade, continuavam os atritos, conversinhas, mexericos,
maus tratos, brigas, etc, etc. Valdir sofria as consequências
calado.
Foi passando o tempo e ela implicou novamente com
a família dele. Certo dia ligou para Lúcia bem na hora do
almoço e a desmoralizou muito. Enilton nunca soube disso.
Muitos amigos não queriam desavença entre eles. Todas as
vezes que o Valdir ia até minha casa, ela além de não ir o
xingava para que ele não fosse também.

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Capítulo 33

18 de março de 1994: uma grande perda

Certo dia Neném e Vera vieram de Belo Horizonte para
ficar o final de semana conosco. Então, tentando reunir to-
dos, o Valdir combinou para fazermos um churrasco. Havia
muito tempo que a família não se reunia para conversar,
cantar e tocar violão. Preparamos tudo.
Na véspera, Neném e André foram pescar. No outro
dia seria o churrasco, 18 de março de 1994.
De manhã o Enilton foi jogar bola com seus colegas da
Rede Ferroviária. Já estava terminando o almoço quando ele
chegou com aquela brincadeira de sempre. Em casa estava
um sobrinho meu conversando comigo, e o Enílton já chegou
dizendo que eu estava fazendo feijoada, frango ao molho par-
do, torresminho, tudo isso porque o filhinho do coração viria
almoçar. Filhinho do coração que ele falava era o Valdir.
Quando o Valdir chegou, os dois tomaram duas gar-
rafas de cerveja antes de almoçar. Valdir foi dormir e ele
saiu. Lúcia veio almoçar dali a pouco. Quando ele acabava
de almoçar, Enilton entrou chamando nós duas para dar-
mos uma volta. Eu pedi pra ele não sair, seria melhor ficar
descansando, pois logo iria cantar e tocar violão para o povo
e se saísse não descansaria. Mas ele não me deu ouvidos e
saiu, levando a Lúcia com ele. Saíram às três horas da tarde.
Eu fui à missa, mas o tempo todo estava me sentindo mal,
uma tristeza, ansiedade, não conseguia prestar atenção di-
reito na missa.
Quando cheguei em casa, achei estranho aquele tan-
to de gente, pensei que já era para o churrasco. Antes de eu
entrar pelo portão, meu vizinho veio chegando e me pediu
para eu não me assustar, pois o Enilton havia sofrido um
acidente e faleceu. Foi isso: ele saiu às 15 horas e às 17 es-
tava morto.

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Ele gostava de pescar com seus amigos numa cacho-
eira, lugar muito bonito e próximo de casa. Levou a Lúcia
para conferir como lá era gostoso e bonito. A beira do rio
estava escorregadia, passaram e sentaram debaixo do pé de
goiaba. Ali conversaram bastante sobre seus planos e suas
dívidas, que até então a Lúcia não sabia.
Enilton foi apanhar uma goiaba para ela e perguntou
pelo maço de cigarros; ela respondeu que estava no carro.
Então, ele a chamou para irem juntos até o carro e de lá
voltarem para casa. No mesmo lugar, ele a segurou na mão
para que ela não escorregasse ao se levantar. Mas ele foi
quem escorregou levando-a junto para o poço. Ele sabia na-
dar, ela não. Os dois se debateram muito, ele abraçado com
ela. Quando ela viu que não tinha jeito, pediu que a soltasse
para que não morressem os dois e pelo menos ele se salvas-
se. Naquele momento ele a soltou, não porque ela pediu, mas
porque já estava morrendo.
Dentro d’água sem dar conta de nadar, ela conseguiu
se agarrar ao barranco, depois numa pedra e conseguiu se
salvar. Quando estava de fora, viu que não podia andar. Teve
uma torção no pé. Arrastou-se até o barranco de cima, de-
sesperada e gritando por socorro, até que apareceu um se-
nhor e rapidamente pulou no poço, mas já o encontrou mor-
to.
Na queda, ele bateu com a cabeça numa pedra e teve
hemorragia craniana. Lúcia machucou a perna, ficou muitos
dias sem dar conta de andar.
Demoraram muito para localizar o Valdir, irmão da
Lúcia. Já eram 18 horas, começava a escurecer e ela sozinha
no mato, com ele deitado no seu colo. Às dezenove horas o
Valdir e Neném chegaram ao local, levaram-no para o hospi-
tal para fazer autópsia, nada mais seria possível.
Não dá pra avaliar tamanha dor e sofrimento. Todos
queriam muito bem a ele. Eu o tinha como um filho, gosta-
va muito dele. Sofri tanto que não gosto nem de relembrar.
Lúcia chorava dia e noite. Nada a fazia esquecer aquela tra-
gédia.

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As crianças também sofreram muito. Isabela, a mais
pequenininha, chorava bastante. A gente perguntava se ela
estava com alguma dor, o que estava sentindo, mas ela não
respondia. Foram meses seguidos. Não comia, não dormia,
foi preciso levá-la ao médico. Depois de um ano foi ameni-
zando um pouco o sofrimento.
Cinco anos após a morte do Enilton e a Lúcia não con-
seguia esquecê-lo, mas a vida seguiu. André e Gabriela fica-
ram moços. André se preparando para o vestibular. Gabriela
terminando o colégio. Isabela cursando 2º ano, segunda sé-
rie.

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Capítulo 34

Novos tempos

Depois de um tempo a Lúcia foi passear com sua amiga
Joana. Viajaram para Caldas Novas, em Goiás. Lá a Lúcia conhe-
ceu o Cláudio e começaram a namorar à distância.
Falo um pouco da Cida. Ela não conseguiu continuar os
estudos, fez a sétima série e parou. Tem epilepsia, é nervosa e
toma muitos remédios. É minha companhia inseparável. Teve al-
guns namorados que quiseram casar com ela, mas ela não quis.
É muito insegura. O último namorado foi Toninho, que também
queria casamento, mas ela teve medo, provavelmente pelo que
me viu passar com o pai dela. Espero que um dia se realize e seja
feliz.
Um ano de namoro, Lúcia e Claudio passaram a morar
juntos, ele veio para Divinópolis e se dão bem.
André e Gabriela foram estudar em Belo Horizonte. André
já se formou, é médico. Gabriela é advogada e quer ser professora
universitária. Já Isabela continuou com a Lúcia, morando e estu-
dando em Divinópolis.
Valdir, depois de altos e baixos, descontentamento, con-
trariedade, tristezas e desencontros no casamento, resolveu des-
quitar também. Ficou mais de um ano morando sozinho em um
apartamento na rua Rio de Janeiro, no centro de Divinópolis.
Após um ano morando sozinho, resolveu mudar para o
prédio onde moro, no apartamento 201. No mesmo período tinha
falecido o pai da Élida, o meu primo Otaviano. Eles também mo-
ravam no prédio, no 301.
Valdir, quando conheceu Élida, logo se interessou por ela.
Fazia um ano que ela havia perdido a mãe e agora perdia tam-
bém o pai. Ela sofria pelos pais e o Valdir pela esposa.
Começaram a conversar, saíam juntos e, aos poucos, fo-

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ram se entrosando. Após meses de convivência, Élida engravidou.
Então falei com ela que fosse morar com o Valdir no mesmo apar-
tamento.
Passados os nove meses, nasceu um menino forte e sau-
dável. Deram-lhe o nome de Victor. É esperto, inteligente e a cada
dia gosta mais de futebol. Em pouco tempo mudaram para o
apartamento na rua Rio de Janeiro no centro.
Após dois anos, nasceu uma menina, a Paula. Era o so-
nho do Valdir ter uma menina. Ela é um dengo. Quando a Paula
completou um ano, pouco depois a Élida engravidou novamente.
Então, eu disse a ela: “Seria muito bom ter muitos netos, mas o
Valdir já está com 50 anos, não deve ter mais filhos, porque quan-
do eles forem estudar, ele não terá condições de mantê-los; devido
à idade avançada, não poderá trabalhar como antes e obter finan-
ças necessárias”.
Nasceu o terceiro filho, outro menino, o Arthur. Lindo,
muito esperto, ardiloso e teimoso. Valdir vive contente. A Élida é
tranquila e boa companheira; vivem em harmonia.
Sempre pedi a Deus para que o Valdir encontrasse uma
companheira carinhosa, compreensiva, uma esposa de verdade.
Ele vive tranquilo agora, tem muito amor pelos filhos e por ela
também. Também estou contente por ver meu filho alegre, ele
merece.
Peço a Deus, graças e recompensa de tudo que meus fi-
lhos fazem por mim, que sejam retribuídos em dobro por tudo.
Carinho, atenção, e tudo o mais que fazem para mim.
Já o Valdivino, quero dizer, Neném e Vera depois de mui-
tos anos de convivência, começaram a se desentender. Cada dia
era um aborrecimento. Ele enchia o apartamento de livros, fitas e
outras coisas que tomavam muito espaço. Vera uma pessoa boa
e tranquila, gosto muito dela. Com a desorganização do ambiente
e da falta de espaço, ela reclamava e aumentavam os desentendi-
mentos. Cada dia mais um pouquinho, até que chegou o momen-
to da separação. Ele saiu de casa e ela ficou no apartamento com
os filhos.
Guilherme está quase um rapaz, muito bonito e inteligen-

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te. O Lucas, mais novo, também muito esperto e inteligente, com
boas notas na escola. Neném ficou pouco tempo sozinho. Agora
está com outra. Já tem um filhinho muito engraçadinho. Samuel
é inteligente, tranquilo e não dá trabalho. Sua mãe é boa pessoa,
professora, responsável, trabalhadora, gosto muito dela também.
Samuel gosta muito dos dois irmãos, Guilherme e Lucas,
mas tem um apego maior pelo Guilherme, o mais velho. Eles tam-
bém gostam muito do Samuel e sempre saem juntos: os três ir-
mãos com o Pai e a Ivonice, mãe de Samuel.
Neném é uma pessoa louvada. Muito trabalhador, cum-
pridor dos deveres, muito respeitado no seu trabalho. Trabalha
há muitos anos no hospital Felício Rocho e em mais dois hospi-
tais em Belo Horizonte. É um bom profissional.
Valdir também é um ótimo médico. Trabalha no Hospital
São Judas Tadeu, em Divinópolis. Seu consultório de segunda a
sexta-feira fica repleto de pacientes.
Outra vez falo das filhas. Cida continua muito nervosa.
Teve alguns namorados, mas não quis se casar com nenhum de-
les. É minha companhia inseparável. Lúcia, sua irmã gêmea, vive
bem com seu companheiro. Ele é goiano, mas se adaptou aqui e
está tranquilo também. Os filhos dela se formaram e continuam
em Belo Horizonte, trabalhando. O André é médico e a Gabriela
professora universitária. Isabela a caçula, também está em Belo
Horizonte fazendo faculdade. Pretende ser professora.
Eu e Cida moramos no prédio do Valdir, que demorou seis
anos para terminar. Ele que nos dá a morada, comida, remédios
e tudo que é necessário. O Valdivino, Neném, também ajuda, mas
mora mais distante, por isso ajuda menos. Eu e Cida tomamos
muitos remédios, Neném sempre traz para ela.
Eu fui uma pessoa saudável. Depois de uma cirurgia no
intestino, descobriram uma deficiência no meu coração, por isso
tenho que ficar tomando remédios. A Cida desde os dois anos de
idade toma muitos remédios. Assim vamos levando até o dia que
Deus determinar. Só peço a Deus e a Nossa Senhora Virgem Ma-
ria para que abençoem meus filhos, filhas, netos e netas e tam-
bém as noras e genro.

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Obrigada meu Deus, muito obrigada pela minha família.
Agora com 82 anos de idade, sou feliz e alegre. Despeço deixando
meu abraço a todos eles e elas.

Divinópolis, 10 de setembro de 2012
Teodora Jacinta de Souza

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Uma breve atualização...

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O pai dos meus filhos, o Divino, ainda é vivo e está
com quase 90 anos. Depois de ter vivido uma vida extrava-
gante, mulherada, agora está sozinho. Custando a andar,
não enxerga quase nada, mas não aceita ajuda de forma al-
guma. Os filhos insistem para que ele vá morar com algum
deles, mas não aceita. Depois de ter feito tudo o que quis na
vida, agora resta a solidão.
O tempo passou, mas as lembranças permanecem no
meu pensamento. Alegrias, saudades e tristezas. Saudades
dos entes queridos, que morreram, continuam tão fortes, às
vezes me fazem chorar.
Lembro-me também da mocidade. Naquele tempo era
muito diferente de hoje. As moças não saíam de casa sem
um acompanhante familiar. Para ir à missa, pai nos levava,
acompanhava a mim e minha tia que era solteira. Levava
também ao teatro, ao circo, e em outros passeios. Quando
ficou mais velho, um pouco adoentado, meu tio que era sol-
teiro e morava conosco, tomou a responsabilidade de nos
acompanhar.
Naquela época nosso trabalho era na roça: plantar,
capinar e colher. Depois das colheitas, fabricávamos farinha
de mandioca. Levantávamos às três horas da manhã, para
ralar mandioca. Cantávamos o tempo todo em que ficávamos
ralando. Depois meu tio ia para outro serviço, mas continuá-
vamos na luta.
À noite, na época do frio, nós costumávamos assentar
na copa, perto de uma bacia velha de zinco com fogo para
nos esquentar um pouco. Mãe arrebentava pipocas: comen-
do pipocas e ouvindo seu João Pinto contar histórias. João
Pinto era nosso vizinho e amigo. Quase todas as noites, ia lá
para nossa casa, conversava com o pai e nos contava histó-
rias.
Na nossa casa, tudo antigo. Na cozinha, prateleira de
madeira, fogão a lenha; na copa, uma mesa com meia dú-
zia de cadeiras, também de madeira; nos quartos ficavam os
baús, onde guardavam as roupas. Já ao lado da cozinha ha-
via um cômodo onde ficavam umas latas grandes que guar-

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