UFF - UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL DE NITEROI
CURSO DE GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL
TATIANA DE SOUZA COUTINHO
A DIMENSÃO SOCIOEDUCATIVA DA ATUAÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL:
UMA EXPERIÊNCIA NO NÚCLEO ESPECIAL DE ATENDIMENTO À CRIANÇA
E AO ADOLESCENTE VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E/OU SEXUAL
EM SÃO GONÇALO
NITERÓI
2017
TATIANA DE SOUZA COUTINHO
A DIMENSÃO SOCIOEDUCATIVA DA ATUAÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL:
UMA EXPERIÊNCIA NO NÚCLEO ESPECIAL DE ATENDIMENTO À CRIANÇA E
AO ADOLESCENTE VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E/OU SEXUAL EM
SÃO GONÇALO
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado à Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial
para obtenção do grau de Bacharel
em Serviço Social.
Orientadora:
Prof.ª Dr.a Larissa Costa Murad
NITERÓI
2017
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
C871 Coutinho, Tatiana de Souza.
A di e são socioeducativa da atuação do assiste te social: u a
experiê cia o Núcleo Especial de Ate di e to à Cria ça e ao
Adolesce te víti as de violê cia do éstica e/ou sexual e São
Go çalo / Tatiana de Souza Coutinho. – 2017.
133 f. ; il.
Orientadora: Larissa Costa Murad.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Serviço Social) –
Universidade Federal Fluminense, Escola de Serviço Social, 2017.
Bibliografia: f. 120-131.
1. Violência. 2. Criança. 3. Adolescente. 4. Dimensão
socioeducativa. I. Murad, Larissa Costa. II. Universidade Federal
Fluminense. Escola de Serviço Social. III. Título.
Aos que sempre estiveram do meu lado,
com amor e apoio incondicionais:
Ineimar (em memória), Ângela e Milena.
As assistentes sociais do NEACA/SG,
que tanto admiro.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus por me fazer sentir tão amada, me dando
provas desafiadoras e obstáculos que pareciam intransponíveis, sem momento
algum me desamparar, pois me deu luz para guiar cada decisão, discernimento para
compreender meus limites e força, por meio de família e amigos, para não desistir,
mas persistir sempre.
Assim sendo, agradeço à minha família linda, que com todo carinho, amor e
cumplicidade, me deram um apoio infinito, amenizando todas as dificuldades que
encontrei pelo caminho. A minha mãe Ângela, sua alegria, fé e determinação me
contagiam todos os dias. Ao meu saudoso pai Ineimar, estrelinha no céu a me olhar
e incentivar a todo o momento. Será sempre meu exemplo maior. A minha irmã
Milena, com seu humor peculiar, carinho e apoio. À vocês minha gratidão, admiração
e amor para sempre. Sem vocês...nada. Com vocês tenho tudo. Amo vocês.
Aos meus amigos e amores Amanda, Patinha, Renato e Adriano, agradeço ao
amor e apoio que me direcionaram até mesmo quando não pude estar presente.
Obrigada pela compreensão da ausência nessa etapa e pela disponibilidade de me
ajudar sempre com conselhos, brincadeiras, sempre dispostos a me animar quando
o desanimo batia. E a Luana, Leona e Dalila, que também fazem parte desse grupo
de pessoas especiais na minha vida, mesmo distante, se fizeram presente com
amizade, alegria e palavras de incentivo. Amo todos vocês.
À minha querida e eterna “Classe F”, amigos que na luta acadêmica, foram
essenciais para que meu riso permanecesse, minha esperança aumentasse e meu
desespero amenizasse. Sou eternamente grata à vocês: Aneenha, Carol, Giuley,
Luana, Lua, Marcorélho, Paulleenha, Pris, Simoninha, Bert-Taiana, Thayná, por
tudo, sem vocês teria sido um caminho escuro. Cabe ressaltar minha eterna gratidão
à minha irmã caçula do coração, Taiana, pela sua amizade desde o primeiro dia de
aula, quem me acolheu e me enturmou quando não conhecia ninguém. Meus
ouvidos te agradecem todos os dias (você sabe). E a Simoninha, Paullenha e
Thayná, pelas consultorias de TCC intermináveis, obrigada pela paciência linda.
“Classe F”, foram muitos “desculpe, foi só um desabafo”. Vocês são excepcionais,
amo todos vocês.
À minha Madrinha Inêz e ao meu primo Rosan, obrigada por se fazerem
presentes, me apoiando, sempre solícitos, muitas vezes sem precisar pedir. E aos
familiares e amigos queridos, os quais não citei os nomes, mas que, de alguma
forma, contribuíram para minha conquista, obrigada por vocês existirem e fazerem
questão de minha amizade.
À Marisa Chaves e a equipe do Movimento de Mulheres em São
Gonçalo/NEACA por ter me proporcionado valiosíssima experiência de estágio. À
toda equipe do MMSG. Agradeço em especial às assistentes sociais pelos
ensinamentos fundamentais à minha formação, sempre solícitas, com carinho e
paciência. E as psicólogas Cristiane Pereira e Fernanda Couto pelas atenções
dedicadas, sempre generosas durante o período de estágio. Vocês todas são minha
referência, e estes fatores me enriqueceram não só como futura assistente social,
mas como pessoa. Ressalto meu eterno agradecimento às minhas queridas
supervisoras de estágio Barbara Maria Ferreira e Jéssica Assis, vocês me
inspiraram todos os dias não só no estágio, mas na construção do meu TCC.
À minha orientadora, Larissa Murad, por sua compreensão, paciência infinita
e palavras que muitas vezes acalmaram meu coração. Eu caí de paraquedas para
ser sua orientanda, a princípio confesso, não gostei da maneira ocorreu, mas saiba
que essa mudança foi um dos melhores presentes que ganhei em 2016. Obrigada
por acreditar no meu potencial, até mesmo quando eu duvidei. Suas contribuições
acadêmicas e sensibilidade foram muito valiosas para mim.
Direciono minha admiração e gratidão a alguns Docentes desta Universidade
que me inspiraram e/ou incentivaram, provavelmente eles não sabem disso, mas
cabe aqui citá-los com todo carinho a Prof.ª Tathiana Gomes, Prof.ª Eblin Farage,
Prof.ª Áurea Dias, Prof. Haroldo Abreu, Prof. Bruno Peres, Prof.ª Márcia Brasil e
Prof.ª Mably Jane. E a todos os Docentes e colegas de curso que contribuíram, de
alguma forma, para minha formação e ampliando minha visão para além do
aparente, o meu muito obrigada.
Durante a construção deste Trabalho de Conclusão de Curso, muitas
tempestades surgiram, mudanças ocorreram, enfraqueci e me fortaleci. Todo o apoio
que recebi teve um valor inestimável para mim. Por fim, sou muito grata a todos
vocês, e a Deus por ter me presenteado tanto pondo todos vocês em minha vida.
Só existe saber na invenção,
na re-invenção,
na busca inquieta,
impaciente,
permanente,
que os homens fazem no mundo,
com o mundo
e com os outros.
Paulo Freire
RESUMO
O presente estudo visa elucidar conceitos e ampliar conhecimentos acerca da
dimensão socioeducativa do Serviço Social, analisando a atuação do assistente
social da equipe do Núcleo Especial de Atendimento à Criança e ao Adolescente
vítimas de violência doméstica e/ou sexual em São Gonçalo (NEACA/SG). Trata-se
de uma pesquisa exploratória baseada em materiais bibliográficos, dados
institucionais e materiais confeccionados durante o período de estágio obrigatório I,
II e III, sobretudo nas entrevistas aos assistentes sociais desta equipe para
apreender acerca deste tema, suas práticas, limites e possibilidades sob a ótica
desses profissionais. Desta forma, foi constatado que a dimensão socioeducativa
está presente em toda atuação deste profissional, desde o atendimento inicial, nas
entrevistas, nas oficinas, nos grupos criados, até nas atividades externas, dentre
outros. Suas práticas socioeducativas podem ter um papel primordial no
enfrentamento da violência, elaborando estratégias de combate e promoção dos
direitos humanos.
Palavras-chave: Violência. Criança e Adolescente. Dimensão Socioeducativa.
Serviço Social.
ABSTRACT
The present coursework aims at elucidating concepts and expanding knowledge
about the socio-educational dimension of Social Work, analyzing the work of the
social worker of the Special Nucleus for Assistance to Children and Adolescents
victims of domestic and / or sexual violence in São Gonçalo (NEACA / SG). This is
an exploratory research based on bibliographical material, institutional data and
materials made during the period of mandatory internship I, II and III, especially in
interviews with social workers of this team, to learn about this subjects, practices,
limits and possibilities under the perspective of these professionals. In this way, it
was verified that the socio-educational dimension is present in all activities of this
professional, from the first attendance, in the interviews, in workshops, in interviews,
in the created groups, even in external activities, among others. Their socio-
educational practices can play a major role in coping with violence, developing
strategies to combat and promote human rights.
Keywords: violence. child and teenager. socio-educational dimension. social work.
LISTA DE GRÁFICOS
GRÁFICO 1: Taxa líquida de escolarização de ensino............................ 49
GRÁFICO 2: Sede do MMSG................................................................... 56
GRÁFICO 3: Logotipo do NEACA/SG...................................................... 57
GRÁFICO 4: Faixa etária dos usuários.................................................... 58
GRÁFICO 5: Renda familiar dos usuários................................................ 58
GRÁFICO 6: Local de residência dos usuários........................................ 59
GRÁFICO 7: Escolaridade dos usuários.................................................. 60
GRÁFICO 8: Situação trabalhista/previdenciária dos usuários................ 61
GRÁFICO 9: Tipos de Violência (usuários do NEACA/SG)..................... 62
GRÁFICO 10:
GRÁFICO 11: Registros de violação de direitos de crianças e 105
adolescentes.......................................................................
Registro quanto ao tipo de violação.................................... 106
GRÁFICO 12: Registro quanto ao perfil da vítima..................................... 106
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ABRAPIA – Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e a
Adolescência
CF/88 – Constituição da República Federativa do Brasil em 1988
CFESS – Conselho Federal de Serviço Social
CRAS – Centros de Referência da Assistência Social
CREAS – Centros de Referência Especializada de Assistência Social
DNCr – Departamento Nacional da Criança
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
FAPERJ – Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do
Rio de Janeiro
FEBEM – Fundação Estadual de Bem Estar do Menor
FIOCRUZ – Fundação Osvaldo Cruz
FNBEM – Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor
FUNABEM – Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
LBA – Legião Brasileira de Assistência
LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social
MMSG – Movimento de Mulheres em São Gonçalo
MNMMR – Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua
NACA – Núcleo de Atenção às Crianças e ao Adolescente
NEACA/SG – Núcleo Especial de Atendimento à Criança e ao Adolescente vítimas
de violência de São Gonçalo
ONG – Organizações não governamentais
PNAS – Política Nacional da Assistência Social
PNBM – Política Nacional do Bem-Estar do Menor
SAM – Serviço de Assistência ao Menor
SINASE – Sistema Nacional De Atendimento Socioeducativo
SMDS – Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social
TCC – Trabalho de Conclusão de Curso
TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.......................................................................................... 13
2 CAPÍTULO I – BREVE HISTÓRICO DA CONTRUÇÃO DOS DIREITOS 20
DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO BRASIL.................................
2.1 UM RESGATE LACÔNICO DA INFÂNCIA E JUVENTUDE.................... 20
2.2 A LINHA TÊNUE ENTRE A CRIANÇA E O MENOR................................ 28
2.3 UM NOVO OLHAR PARA A INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA 45
BRASILEIRA..............................................................................................
3 CAPÍTULO II – O NEACA/SG E A DIMENSÃO SOCIOEDUCATIVA 52
DO SERVIÇO SOCIAL..............................................................................
3.1 HISTÓRIA DO NEACA/SG........................................................................ 52
3.2 O PERFIL DOS USUÁRIOS ATENDIDOS................................................ 56
3.3 A ATUAÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL.................................................. 61
3.4 A DIMENSÃO SOCIOEDUCATIVA DO SERVIÇO SOCIAL..................... 69
3.4.1 O Contexto histórico.................................................................................. 69
3.4.2 Conceituando a dimensão socioeducativa................................................ 73
3.4.3 Identificando a dimensão socioeducativa no Neaca/SG............................ 83
4 CAPÍTULO III – A DIMENSÃO SOCIOEDUCATIVA SOB A ÓTICA 89
DOS ASSISTENTES SOCIAIS DO NEACA/SG.......................................
4.1 AS INQUIETAÇÕES DOS PROFISSIONAIS............................................ 89
4.2 A METODOLOGIA UTILIZADA................................................................. 90
4.3 O PERFIL DO PROFISSIONAL................................................................. 93
4.4 AS FUNÇÕES DO ASSISTENTE SOCIAL................................................ 93
4.5 AS POSSIBILIDADES E IMPOSSIBILIDADES NO CONTEXTO DE 104
VIOLAÇÃO DE DIREITOS ........................................................................
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................... 117
REFERÊNCIAS......................................................................................... 120
ANEXO – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E 132
ESCLARECIDO.........................................................................................
13
1. INTRODUÇÃO
O presente Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) intenta trazer uma análise
acerca da atuação do Assistente Social e sua dimensão socioeducativa1 no contexto
de violação de direitos de crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e
sexual, percebendo a contribuição deste profissional na vida desses cidadãos em
formação, como preconizado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em
seu Art.6º que diz “[...] adolescente como pessoas em desenvolvimento.”
A escolha sobre o referido tema guarda relação direta com diversos fatores, e
dentre eles estão as observações pessoais, primeiramente, nas experiências que
tive ao longo da infância e adolescência, desprovida de maiores orientações,
informações e incentivos quanto ao futuro, profissão e mercado de trabalho, e essa
afirmação é tanto por parte da família, quanto por parte da escola e das instituições
em geral.
Cada família tem suas particularidades, muitas podem não orientar por não
saber como fazê-lo, justamente pela ausência de conhecimento. Outras famílias
podem não incentivar, por terem outras prioridades em mente para seus filhos, como
trabalhar. Em outros casos, pode ser a soma de ambas as possibilidades
anteriormente citadas e de muitos outros determinantes.
Ademais, as questões como igualdade de condições de acesso sempre
fomentaram indagações sobre como seria essa prática na educação. E
constantemente associava acessibilidade à orientação, algo que não condizia com a
realidade que observava. Assim, me foi despertada a vontade em contribuir, de
alguma forma, para compreender esse cenário para com o desenvolvimento pessoal
e profissional desses indivíduos em formação e, consequentemente, fomentar o
debate acerca da temática na sociedade, extrapolando os muros da Academia.
Posteriormente, essa ideia amadureceu quando adentrei a graduação em Serviço
Social, na qual pude ter uma noção da dimensão que a atuação do assistente social
pode alcançar, ampliando, assim, meus conhecimentos acerca dos instrumentos e
equipamentos disponíveis.
1 Neste Trabalho de Conclusão de Curso, a dimensão socioeducativa é mencionada no sentido de
ações socioeducativas, consequentemente com uma dimensão pedagógica. Desta forma, cabe
esclarecer que não será discorrido sobre o processo educacional e sim do processo educativo, tendo
em vista que a pesquisa foi realizada em uma ONG, e não em instituições escolares.
14
Não obstante as razões mencionadas acima foi com base na experiência de
estágio I, II e III no âmbito de um projeto do Movimento de Mulheres em São
Gonçalo2 – o Núcleo especializado em atendimento a criança e ao adolescente
vítima de violência doméstica e/ou sexual de São Gonçalo (NEACA/SG) – um
espaço onde é oferecido acompanhamento continuado, numa perspectiva
interdisciplinar –, no qual tive contato com crianças e adolescentes, que possibilitou
pontuar e esmiuçar ideias e os devidos propósitos para levantar esse debate no
âmbito da intervenção dos assistentes sociais.
De acordo com Torres (2009), o Assistente Social no exercício de sua
profissão tem múltiplas dimensões e dentre elas está o trabalho socioeducativo,
como uma das possibilidades de concretização do trabalho interventivo desse
profissional. E de acordo com a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), lei nº
8.742, de 7/12/1993, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei nº 8.069, de
13 de julho de 1990, a Política Nacional da Assistência Social (PNAS), dentre outras,
o trabalho socioeducativo é tido como uma das possibilidades de acompanhamento
do desenvolvimento das famílias atendidas na rede sócio assistencial. Torres (2009,
p.19) ainda salienta que “O trabalho socioeducativo demarca, na relação assistente
social – usuário, a ultrapassagem da visão de problema individual [...] limites da
organização onde o assistente social presta serviço.”
A partir das experiências cotidianas no campo de estágio, percebeu-se a
perversidade dos traumas oriundos da violência e quais ressonâncias podem gerar
numa pessoa em constante desenvolvimento. A referida violência engessa a visão
de mundo de crianças e adolescentes e, ademais, a forma como se enxergam nele,
como parte constituinte, é deturpada, pois muitas vezes a criança incorpora a culpa
quanto ao que ela viveu. Portanto, é de suma importância a busca pelo
conhecimento desta realidade na sua totalidade e na especificidade de cada usuário.
Além disso, prover estratégias de combate a essas lacunas que o trauma constrói, a
naturalização da violência, e a reprodução da mesma, bem como a
transgeracionalidade3 da violência, ou seja, a reprodução desta através de gerações.
E a partir desse combate ter uma forma de empoderar esses jovens.
2 Assunto que será tratado ao longo do estudo.
3 “Groisman (2000) e Guidi (2001) defendem que a análise dos processos de transmissão da
violência podem ocorrer através de transmissão vertical e transmissão horizontal, sendo que a
primeira corresponde a um fenómeno de hereditariedade social no qual a violência gerada no interior
da própria família é transmitida de pais para filhos, enquanto a transmissão horizontal é um
15
Sendo assim, acredita-se na profunda relevância desta temática tanto para a
Academia quanto para a sociedade, devido ao fato de se tratar de acessibilidade,
orientação e, sobretudo, de fatores de direitos desses indivíduos em formação, bem
como está preconizado no Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990),
artigo 4º que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder
público garantir a efetivação de direitos ao que tange também à educação e à
profissionalização.
Sabe-se que, em se tratando de qualquer violência contra qualquer pessoa,
sobretudo, contra um indivíduo em desenvolvimento, um cidadão em formação, essa
violação de direitos pode acarretar consequências destrutivas na sua autoestima,
desestruturando suas expectativas e influenciando negativamente seu futuro.
Portanto, discutir sobre a contribuição do Assistente Social nessa dimensão
socioeducativa faz-se necessário para que o profissional possa propor alternativas
interventivas com base na análise da realidade de vida do indivíduo em questão,
conhecendo suas condições de vida e de seu núcleo familiar.
De acordo com Kosik (1976, p.16), “Compreender o fenômeno é atingir a
essência”, pois ambos estão interligados, no qual o fenômeno é algo que se vê no
dia a dia, é o que de fato aparenta quando observamos a princípio, ou seja é a
aparência. Quanto à essência, é o determinante, ou os múltiplos determinantes de
cada questão, aquilo que não se revela facilmente.
No âmbito desta percepção da importância em observar a realidade social,
atentando as questões de fenômeno e essência juntas, num atendimento com o
usuário, é preciso constatar os elementos constituintes do mesmo, visto que existe,
dentro da realidade de cada um, condicionalidades. Na verdade, a realidade está
intrínseca, portanto, é preciso um olhar para além das aparências, sendo este um
fator crucial na ação interventiva do Assistente Social.
Sendo assim, a ausência da análise das condições socioeconômicas,
históricas e culturais pode ocasionar no comprometimento do exercício profissional,
sobretudo, na contribuição desse profissional no processo de desenvolvimento de
estratégias para a superação dos traumas e travas gerados no usuário, quanto a
quaisquer perspectivas e possibilidades referentes ao futuro. Essa
pseudoconcreticidade, citada por Kosik (1976), nesse mundo que é mostrado ao
mecanismo através do qual a violência gerada na sociedade onde a família está inserida atinge a
criança de forma directa ou indirecta” (SANTOS, NUNES, SILVA e BRITO, 2013,p.5).
16
homem como real, que faz com que ele creia ser assim mesmo, na verdade, é
marcado pelo fetiche. E as práticas sociais coletivas são tidas potencialmente como
uma forma de desconstruir esse fetiche sistêmico. O Assistente Social com atuação
interventiva em busca do conhecimento na sua totalidade vai contribuir também na
desconstrução do senso comum, de conceitos errôneos dessas crianças e
adolescentes que não se enxergam capazes de ir muito além do que essa sociedade
capitalista os faz crer.
A partir de uma análise prévia acerca da literatura que discute esta temática,
observou-se que as políticas públicas voltadas para o combate da violência contra
criança e adolescente não são eficazes o suficiente para dirimir suas consequências,
visto que existem agravantes para ocorrer, ainda, um aumento exponencial de suas
vítimas. Ademais, parte-se do pressuposto que já existem muitas pesquisas nesta
área, especialmente no âmbito do Serviço Social, contudo, é possível que tais
pesquisas não tenham refletido a realidade do município de São Gonçalo.
Esse Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) parte da hipótese central que o
não acesso ou a acessibilidade dificultada às informações e orientações acerca dos
direitos sociais de todos e todas, como a educação e a profissionalização, podem
ser causadores de deletéria violação de direitos à infância, ao presente e ao futuro
de inúmeras crianças e adolescentes. Outra hipótese é a naturalização da violência
e de sua reprodução nos lares. E como o assistente social pode contribuir junto a
estas crianças e adolescentes no sentido de orienta-los quanto ao trauma
vivenciado.
Assim, o objetivo desse trabalho é analisar a atuação do Assistente Social
junto à rede de atendimento às crianças e adolescentes vítimas de violência
doméstica e/ou sexual no Município de São Gonçalo no Rio de Janeiro, percebendo
a contribuição deste profissional na vida desses cidadãos em formação, futuros
adultos buscando por perspectivas, horizontes onde o ciclo da violência possa ser
rompido. Sendo assim, temos por objetivos específicos: 1) identificar os métodos
empregados na sensibilização dos usuários, crianças ou adolescentes, que se
encontram nessa situação de vulnerabilidade; 2) compreender a atuação do
Assistente Social, a instrumentalização para a abordagem na dimensão
socioeducativa e se as ideias são fomentadas, a fim de instigar os desejos e anseios
desses usuários, bem como suas percepções sobre o trauma que vivenciaram; 3)
analisar na instituição mencionada os limites e possibilidades do atendimento
17
prestado) 4) descrever a atuação do Assistente Social em relação à família desses
usuários e a ampliação de consciência da mesma, quanto às questões pertinentes
ao desenvolvimento de cada usuário; 5) fomentar o debate referente aos desafios
que os profissionais do Serviço Social enfrentam, solicitando a participação dos
equipamentos públicos e sociedade civil, fortalecendo redes e criando estratégias; e
6) propiciar visibilidade e difundir a importância do papel do assistente social na
intervenção desta questão, visto que boa parte da sociedade é desprovida de
conhecimento a respeito das atribuições desse profissional.
Assim, pensando no contexto de violação de direitos e sabendo o quanto isso
pode trazer ressonâncias profundamente nefastas à autoestima e às perspectivas de
futuro dos sujeitos, como o assistente social pode contribuir na vida de crianças e
adolescentes que passaram por algum tipo de violência? Quais as limitações que
esse profissional encontra na dimensão socioeducativa? Quais estratégias podem
ser aderidas no enfrentamento dessas limitações?
Para tanto, se realizou, como escolha metodológica desenvolver este estudo
sob os moldes da pesquisa qualitativa devido à interação do pesquisador ao
fenômeno investigado, permitindo conhecer de perto a realidade social nas suas
particularidades, extraídas das falas ou convivência com os sujeitos, processo
essencial para que se possa interpretar e/ou compreender a totalidade do objeto a
ser estudado. Segundo Minayo (2012, p.21), a pesquisa qualitativa “ [...] responde a
questões muito particulares [...], pois o ser humano se distingue não só por agir, mas
por pensar sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e a partir da realidade
vivida e partilhada com seus semelhantes.”
Uma vez que não se têm muitos estudos sobre o tema proposto na referida
instituição, será adotada uma pesquisa de caráter exploratório, utilizando as técnicas
de entrevistas semiestruturadas, com vistas a obter informações sobre o Serviço
Social e o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência. A pesquisa
de campo será desenvolvida junto aos Assistentes Sociais da instituição que
atendem este segmento populacional no referido município. Sendo assim, de acordo
com Minayo “É a pesquisa que alimenta a atividade de ensino e a atualiza frente a
realidade do mundo [...] embora seja uma prática teórica, a pesquisa vincula
pensamento e ação” (MINAYO, 2012, p.16).
Para a coleta de informações, serão elaboradas perguntas aos assistentes
sociais, com objetivo de capturar, com mais detalhes, as especificidades da prática
18
profissional na atenção a este segmento populacional, além de relatar o grau de
satisfação no trabalho realizado com grupo. Assim, pesquisa será de caráter
exploratório, realizada por meio de entrevista ao profissional do Serviço Social, a
qual consistirá em responder perguntas abertas e fechadas contidas em um
questionário semiestruturado, com vistas a obter informações sobre a atuação do
assistente social. De acordo com Triviños, a entrevista semiestruturada “[...] favorece
não só a descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a
compreensão de sua totalidade [...]” (TRIVIÑOS, 1987, p.152).
É de suma importância conhecer o perfil destes profissionais é fundamental
para este estudo, visando obter informações para analisar a sua atuação junto à
equipe interdisciplinar do NEACA/SG, percebendo a contribuição deste profissional
na vida desses sujeitos em desenvolvimento no contexto de violação de direitos,
bem como os limites e possibilidades da atuação profissional no que se refere às
ações socioeducativas.
Considera-se importante, para o estudo, conhecer o perfil dos atendidos na
Instituição, e para o levantamento desses dados, serão usados materiais e dados
institucionais, sob permissão institucional concedida.
Será usado um diário de campo para registrar o cotidiano da instituição cujas
anotações servirão de confronto entre os relatos das entrevistas e os fenômenos
observados. E para tratar do contexto histórico, social e político, na qual se insere o
objeto de nosso estudo, será utilizada, ainda, consulta bibliográfica em livros, teses,
dissertações e artigos de jornais, revistas e de internet que tenham relação com o
tema proposto.
E tendo como base as palavras de Minayo (2012, p.27) “Ou seja, análise
qualitativa não é uma mera classificação de opinião dos informantes, é muito mais. É
a descoberta de seus códigos sociais a partir das falas, símbolos e observações”.
Portanto, este estudo dar-se-á na perspectiva dialética cujos dados coletados serão
problematizados dentro do contexto histórico e social. Sendo assim, fica manifestado
a expressiva importância da realização de uma boa pesquisa qualitativa. Deste
modo, este trabalho foi organizado em dois (3) capítulos.
No primeiro capítulo foi realizado um breve resgate histórico acerca da
trajetória da construção dos direitos da criança e do adolescente com ênfase no
Brasil. Ressaltando a importância de discorrer como e o quão lenta e gradualmente
ocorreu a transição da criança e adolescente, antes tratados como objeto sem valor
19
à sujeitos de direitos, isto é, o reconhecimento da infância e da juventude ao longo
da história, que resultou na criação de dispositivos legais direcionados a questão da
proteção dos sujeitos como a Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e
do Adolescente, dentre outros.
O segundo capítulo dedica-se ao fomento do debate sobre a dimensão
socioeducativa do Serviço Social em um projeto da instituição Movimento de
Mulheres em São Gonçalo (MMSG) – o Núcleo Especial em Atendimento à Criança
e ao Adolescente Vítimas de Violência Doméstica e/ou Sexual em São Gonçalo
(NEACA/SG). Apresentando a instituição e seus projetos, bem como salientar a
atuação do assistente social baseado em pesquisas diversas.
O terceiro e último capítulo concentra-se em entrevistas aos profissionais do
projeto supracitado, com objetivo de conhecer sob a ótica dos mesmos quanto à
dimensão socioeducativa e suas práticas no NEACA/SG, sobretudo mostrando sua
importância, limites e possibilidades. Constatando que essas práticas são
consideradas como ferramentas essenciais não só trato da violência sexual contra
crianças e adolescentes, mas no dia a dia de trabalho do assistente social.
Nas considerações finais foi considerada a relevância do tema e de seu
debate, bem como esclarecer dúvidas conceituais encontradas ao longo do estudo e
entrevistas, na intenção de agregar conhecimentos e estimular a importância do
estudo contínuo dos assistentes sociais por meio das atualizações, especializações
e pós-graduações. Em suma, espera-se que este Trabalho de Conclusão de Curso
incite novos questionamentos e seja ponto de partida para que mais estudos sejam
realizados.
20
2. CAPÍTULO I – BREVE HISTÓRICO SOBRE A CONSTITUIÇÃO DOS DIREITOS
DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
2.1 – UM RESGATE LACÔNICO DA INFÂNCIA E JUVENTUDE
Fazer um breve relato da história da infância, com foco no Brasil, e discorrer
como transcorreu o despertar do olhar diferenciado para com as crianças e
adolescentes, vem ao encontro deste estudo no sentido de contemplar o caminho
percorrido até a conquista do reconhecimento destes como sujeitos de direitos.
O conceito concernente à criança e ao adolescente vem sendo delineado
historicamente e socialmente, de acordo com a evolução dos direitos adquiridos para
os mesmos. Cabe ressaltar que conforme a época e acompanhando a sociedade,
crianças e adolescentes são vítimas de violência, entretanto, demorou muitos anos
para que isso fosse encarado como violência de fato. E isso pode-se atrelar a
costumes, culturas, religiões, valor social, dentre outros fatores que implicam na
visão e interpretação de que um ato pode ser considerado como uma prática de
violência contra o físico e psicológico de indivíduos que estão em processo
constante de desenvolvimento.
Gonçalves (2003) aponta os mais diversificados fatores, desde o infanticídio4,
abandono, filicídio5, iniciações sexuais, dentre outros. A autora pontua que o
infanticídio era comum aproximadamente no século IX A.C., que ocorria nas épocas
mais críticas, o infanticídio era praticado nas famílias para suprir a fome de seus
integrantes que não tinham o que comer. Já quanto ao abandono, retrata que na
Roma antiga, o pai (pater) detinha o poder de vida e morte de um filho, cujo não era
tratado com valor afetivo, mas sim tido como um objeto de valor, uma moeda. O pai
de família era responsável pelos atos dos seus, desta forma usava esse filho como
pagamento de dívidas ou pelo perdão de algum ato errado. Assim:
Se um de seus filhos praticasse qualquer delito, o pater usualmente
entregava o filho à parte ofendida: o filho era considerado com próprio
ressarcimento ao ofendido, pois a prole – que não tinha qualquer valor
4 O termo infanticídio de acordo com o dicionário Michaelis significa: 1- Assassínio de uma criança,
principalmente recém-nascida. 2- JUR. Morte do filho, provocada pela própria mãe enquanto perdura
o estado puerperal.
5 O termo filicídio de acordo com o dicionário Michaelis significa: JUR. Ato de matar o próprio filho.
21
afetivo – tinha um valor econômico determinado pelo número de filhos
(ASSIS apud GONÇALVES, 2003, p.99).
Ainda sobre o abandono dos filhos, a autora traz também fatos da Grécia
antiga e as famílias miseráveis, que como questão de sobrevivência e por
incapacidade econômica para sustentar toda a prole, o filho homem era mais
valorizado, e a filha era abandonada, fixando no pensamento de que outra família a
encontraria, e a sustentaria. Entretanto havia uma questão que acometia não só a
camada pobre e miserável da Grécia, mas todas as camadas sociais, o fato de filhos
nascerem com alguma deficiência física que levava os pais a abandonarem seus
filhos ou cometer o filicídio. E isso ocorria devido à uma crença que os gregos
tinham de que os filhos nascidos com alguma deficiência, bem como traz Radbill
(apud GONÇALVES, 2003, p.100), que “ [...] o defeito físico de uma criança não
apenas atingia seu portador como comprometia toda a descendência, já que poderia
ser transmitido por hereditariedade”. E que embora a crença tratasse dessa forma,
tratando o infanticídio como solução para melhor preservação do bom gene, em prol
de descendentes sadios, os pais não desejavam ter filhos doentes. Logo era a
tradição e as relações sociais sendo priorizadas em detrimento do desejo dos pais. E
em algumas comunidades indígenas também ocorria o descarte dos incapacitados
para a vida social.
Por volta do século XVIII, com intuito educacional para com crianças, os pais
a fim de instruir melhor passaram a castigar seus filhos por meio de punições,
espancamentos com objetos contundentes. Assim, “entre 1730 e 1779, metade das
pessoas que morreram em Londres tinha menos de cinco anos de idade” (DAY et al.
apud BARROS, 2005, p. 71).
A violência que ao longo dos anos foi analisada e conceituada, sobretudo
reflexionada e combatida, perpetrada contra crianças e adolescentes é um
acontecimento que ocorre em todo o mundo ao longo dos anos. Entretanto seu
conceito varia de acordo com a época, local, crença e cultura. Um exemplo disso é o
que acontece na África do Sul, onde meninas são iniciadas sexualmente por
integrantes da própria família, e segundo Levett (apud GONÇALVES, 2003:102) “As
adolescentes ficam chocadas e indignadas ao ouvir esta prática ser descrita como
VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS”.
Essas meninas aprendem ao longo da vida que esse ritual de iniciação sexual
é algo importante, logo com um significado na cultura de seu povo. E neste caso tem
22
valor social, significa um reconhecimento existencial e a passagem para o mundo
adulto perante a sociedade, dignas de favores e bens. Portanto, se porventura esse
ritual seja visto como um ato de violência contra essas meninas e impedido de
acontecer, para esse povo dessa crença, essas meninas estão condenadas a serem
crianças para sempre perante a sociedade.
Existia uma preocupação sim com atos praticados contra crianças e
adolescentes na Europa no século XIX, atos estes vistos como crime contra um
determinado grupo frágil da sociedade. E a forma como era retratada referenciava a
questões de receio a desordem social e problema estrutural. De acordo com o que
Engels retratava:
As mortes por queimaduras graves com água a ferver são especialmente
frequentes, [...]. Em Londres passa-se o mesmo, mas os jornais não
noticiam e em meu poder só tenho neste momento uma informação surgida
no Weekly Dispatch de 15-12-1844, segundo a qual se verificaram seis
casos deste tipo na semana de um a sete de dezembro. Essas pobres
crianças que perderam a vida de forma tão horrível são verdadeiramente as
vítimas de nossa desordem social (Engels, 1845, cf. Guerra, 1985:24)
No decorrer da história, foi constatado que crianças eram sujeitadas a práticas
excessivas de punição, com algo cultural visando a educação e atrelado a moral.
Assim, com essa percepção, ao redor do mundo, pode-se identificar o surgimento de
dispositivos legais em prol da defesa desses indivíduos indefesos, a exemplo disso o
Código de Hamurabi6 foi um desses dispositivos, um conjunto de 282 leis da antiga
Babilônia, por volta de 1772 a.C., cujo previa penas severas para atos violentos
contra crianças. E com base nas perspectivas de Gonçalves (2003) a igreja impunha
uma moral religiosa, de forma que a população amenizasse no trato das crianças,
impondo respeito sem espancar, mas fazendo-os pensar que a cada desobediência,
um castigo seria dado. Assim, “Nas normas que vigoraram na Antiguidade, fica
implícita a associação entre o poder de punir e o consentimento a certas formas de
violência, admissíveis quando reguladas”.
No Brasil, não foi diferente, um longo caminho foi percorrido, repleto de muitas
transformações da sociedade brasileira e com muitas discussões acerca de casos
decorrentes de violências contra crianças e adolescente, para demover a sociedade,
6 Criado por Khammu-rabi, rei da Babilônia no 18º século A.C, composto por 21 colunas, 282
cláusulas que ficaram conhecidas como Código de Hamurábi. Maiores informações disponíveis em:
<http://www.culturabrasil.org/zip/hamurabi.pdf>.Acessado em 22/12/2016.
23
a igreja e o Estado, para que estes os reconhecessem como sujeitos de direitos,
com primazia no que tange a proteção.
No século XI os padres jesuítas criaram colégios para o acolhimento de
crianças indígenas órfãs. Já nos séculos seguintes, XII e XIII, o abandono de
crianças era uma prática bastante realizada, assim como atesta Venâncio (1997,
p.190):
os diferentes ritmos de crescimento do mundo colonial repercutiram
fortemente na condição de vida das crianças. No campo, espaço das
transformações lentas, o abandono raramente ocorria e vários enjeitados
acabavam sendo adotados como filhos de criação ou agregados por
famílias estruturadas; na cidade, o ritmo acelerado das transformações
provocava desequilíbrios. Não havia casas para acolher todos os
forasteiros, não havia mercado de trabalho livre suficientemente
desenvolvido para absorver quem precisava sobreviver à custa do próprio
suor. A cidade agregava os pobres e não sabia o que fazer com eles.
Existia no Brasil, uma considerável preocupação, de uma parte da elite da
população, com a questão espiritual e futuro dessas crianças que eram
abandonadas. Venâncio (1997) defende que abandono está atrelado a pobreza e a
proteção da moral da elite branca, atenuantes que levaram ao governo da época a
criar instituições para proteger essas crianças rejeitadas, como as Santas Casas da
Misericórdia7, impulsionando o assistencialismo. E acrescenta que a questão do
abandono de crianças é bem distinta entre o campo e o meio urbano. No campo
dificilmente via-se uma criança abandonada, visto que elas aprendiam as atividades
desde cedo para ajudar seus pais nos afazeres em prol da subsistência familiar, ou
eram adotadas, passando assim ser mais uma pessoa contribuindo na lida no
campo. Cabe ressaltar que essa adoção acontecia por meio informal, sendo
acolhidas. Realidade esta que diverge dos tempos atuais, onde abandono e
violência não estão relacionados diretamente a condição de pobreza, e sim a uma
questão estrutural, onde estes são reflexos de uma sociedade desigual, ou seja,
expressões da questão social8 desta sociedade capitalista.
Em contrapartida no meio urbano, a luta em busca de emprego era árdua e
competitiva, bem como no emprego conquistado trabalhava-se horas extensivas
7Esses espaços deveriam atender prioritariamente aos peregrinos e depois os pobres. Mantinha um
serviço hospitalar precário e também se ocupavam de dar alimentação aos mais necessitados em
períodos de fome. RUSSEL WOOD, A.J.R. Fidalgos e Filantropos. A Santa Casa da Misericórdia da
Bahia. 1550-1775. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1981, p.1.
8 Termo que será retratado mais adiante.
24
com salários extremamente baixos. Portanto um chefe de família dificilmente
conseguia sustentar seus filhos, por consequência disso, abandonava seus filhos na
roda de expostos, na esperança de que lá seus filhos receberiam os cuidados que
não podiam dar. Outro motivo que esse autor ressalta é proteção da moral e dos
bons costumes, com rigidez sobre as mulheres brancas, numa sociedade
extremamente intolerante. E um exemplo disso sãos os casos de filhos de
relacionamentos extraconjugais, que eram abandonados na Roda de expostos, para
evitar escândalos contra a moral.
No período da escravidão, crianças não tinham garantias, nem direitos.
Poderiam crescer com seus pais, aprendendo seus ofícios ou serem separados
deles e terem que aprender os mesmos no convívio com outros escravos. O alento
que lhes cabia era saber que, embora fossem afastados de seus familiares, a
probabilidade de pertencerem a um senhor de terras vizinhas, assim poderiam ser
assistidos por eles, ou primos, tios, dentre outros.
Essas crianças passavam por etapas de desenvolvimento e aprendizado, com
objetivo adquirir algum ofício, tratava-se de um processo de adestramento, que
marcava a passagem da criança para a idade adulta. E de acordo com Florentino e
Góes (2010, p.178), “[...] no Brasil, o ingresso no mundo dos adultos se dava por
passagens: em vez de rituais que exaltavam a fertilidade e a procriação, o paulatino
adestramento no mundo do trabalho e da obediência ao senhor.” Esse processo de
adestramento ocorria dos quatro anos de idade até os onze anos, e com os ofícios
aprendidos, fossem domésticos ou campestres, a criança escrava no mercado era
mais valorizada, e seu preço se elevava. Assim, a partir dos doze anos de idade, a
criança fechava o ciclo para se tornar adulta e aos quatorze anos, já era comum
exercer tarefas com escravos adultos.
Nessa época, as escravas passavam por diversas situações de maus tratos
que punham risco a sua vida e a vida de seus filhos, onde poucos sobreviviam de
infanticídio, abortos, e com base nas perspectivas de Faleiros (1995, p.224) “sofriam
humilhações, maus-tratos e abusos sexuais, e, no entanto, não havia muitas
crianças escravas abandonadas, uma vez que sua sina estava traçada como
propriedade individual, como patrimônio e mão-de-obra”.
A questão do abandono de crianças no século XVII ocorria numa quantidade
expressiva, e por consequência passou a ser vista como um problema, e assim sobe
a perspectiva de Faleiros (1995) cabia a Corte dirimir quanto à forma de atendimento
25
direcionado às crianças e é de suma relevância o papel da instituição Irmandade de
Nossa Senhora, também conhecida como Santa Casa de Misericórdia, criada para
atender a saúde da população mais pauperizada, sendo adaptada para atender
também crianças abandonadas, com a instalação das Rodas de expostos com a Lei
dos Municípios de 18289:
Art.69. Cuidarão no estabelecimento, e conservação das casas de caridade,
para que se criem expostos, se curem os doentes necessitados, e se
vaccinem todos os meninos do districto, e adultos que o não tiverem sido,
tendo Medico, ou Cirurgião de partido.
Art.70. Terão inspecção sobre as escolas de primeiras letras, e educação, e
destino dos orphãos pobres, em cujo numero entram os expostos; e quando
estes estabelcimentos, e os de caridade, de que trata o art. 69, se achem
por Lei, ou de facto encarregados em alguma cidade, ou vida a outras
autoridades individuaes, ou collectivas, as Camaras auxiliarão sempre
quanto estiver de sua parte para a prosperidade, e augmento dos sobreditos
estabelecimentos.
No século XIX, no Brasil Império, com as constantes mudanças societárias,
ocorreu um acontecimento que contribuirá na visibilidade quanto aos direitos das
crianças, a criação da Lei do Ventre Livre10, Lei nº. 2.040 datada de 28 de setembro
de 1871, que “Declara de condição livre os filhos de mulher escrava que nascerem
desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação e outros, e providencia sobre a
criação e tratamento daquelles filhos menores e sobre a libertação annaul de
escravos”.
Embora essa lei seja eminente quanto à ocorrência da abolição da
escravatura, autores como Rizzini (2011) conjecturam que esta lei seja controversa,
haja vista que foi uma lei consonante aos interesses do senhor de escravos. Dessa
forma, a Lei do Ventre livre poderia resultar em crianças pobres abandonadas, e
muitas para sobreviver tornaram-se delinquentes, e tudo isso era identificado como
um problema social, um caso de polícia. Assim, tais crianças eram recolhidas por
intervenção policial, pois era do interesse dos governantes não causar incômodo à
população, sobretudo à classe alta. Portanto, para atender seus interesses em isolar
essas crianças, foram criados os asilos, internatos, dentre outros, afirmando terem
como propósito conceder a estas um ensino profissionalizante e ensinamentos sobre
higiene, para que pudessem aprender um ofício, e tornarem-se mais um sujeito
gerando lucro para o país e combatendo o aumento da taxa de marginalidade.
9 Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM-1-10-1828.htm>. Acesso em
10/08/2016.
26
Em 13 de maio de 1888, através da Lei da Áurea, que a liberdade
definitivamente foi alcançada pela população negra do Brasil, abolindo a escravidão.
Entretanto, isso não significava que haveria a extinção do trabalho infantil, e sim a
substituição de uma forma de exploração pela outra, pois quanto mais crianças
recolhidas, mais crianças nos asilos, realocadas como mão de obra barata,
fomentando novos discursos sobre as consequências, estimulando assim ações de
controle social, e com isso veio a criação de novas instituições para lidar com as
novas disparidades sociais.
Entre os séculos XIX e XX desponta a discussões e ações no que tange às
crianças e adolescentes como “um problema social”. Indivíduos que constantemente
passam por classificações baseadas em conceitos higienistas e do controle social
contra a criminalidade. Arantes (2011, p.187) releva que “o higienismo médico se
colocou como aliado do Estado e a ele pode ser creditado, em grande parte, o
surgimento do sentimento de infância no Brasil.” E estes conceitos focalizavam sua
ação sobre a família, e consideravam as crianças como o melhor acesso para
alcançar os familiares, assim:
No que tange a infância, o movimento higienista não teve expressão
significativa no corpo legislativo do período. No entanto, ele viria a contribuir
de forma decisiva no sentido de abrir caminho para que outro movimento –
o jurídico – assumisse papel protagônico junto a família (RIZZINI, 2011,
p.105).
Para Vianna (1997) o termo menor veio de inúmeras definições, numa
construção histórica, por parte do esforço existente nas relações sociais. E dentro
desse conjunto, está a intervenção policial, que identifica e classifica esses sujeitos
de acordo com métodos próprios.
Desse modo, o processo de registro dos menores e de escolha das
instituições para onde deveriam seguir, bem como os adjetivos empregados
e as determinações para sua liberação ou transferência orientavam-se por
uma dupla identificação, tanto dos menores com alguma das classificações
que usualmente lhes era atribuída, como dos próprios estabelecimentos de
destino. (VIANNA, 1997, p.50)
10 Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM2040.htm>. Acesso em 10/08/2016.
27
A legislação brasileira tentou definir a menoridade, o limite etário em que o
sujeito passa a responder criminalmente pelos seus atos. Com o Código Criminal de
183011 definiu que:
Art. 10. Tambem não se julgarão criminosos:
1º Os menores de quatorze annos.
Art. 13. Se se provar que os menores de quatorze annos, que tiverem
commettido crimes, obraram com discernimento, deverão ser recolhidos ás
casas de correção, pelo tempo que ao Juiz parecer, com tanto que o
recolhimento não exceda á idade de dezasete annos.
Em contrapartida o Código Penal de 189012, modifica a faixa etária de 14
anos para 9 anos de idade. Então, no seu Art.º 30 ficava estabelecido que “Os
maiores de 9 annos e menores de 14, que tiverem obrado com discernimento, serão
recolhidos a estabelecimentos disciplinares industriaes, pelo tempo que ao juiz
parecer, comtanto que o recolhimento não exceda á idade de 17 annos.”
Em meados de 1920, a legislação busca classificar os menores com a Lei nº
4.24213 em 1921. Assim como consta no Art.º2:
§ 2º São vadios os menores que, tendo deixado sem causa legitima o
domicilio do pae, mãe, tutor, guarda, ou os logares onde se achavam
collocados por aquelle a cuja autoridade estavam submettidos ou confiados,
ou não tendo domicilio nem alguem por si, são encontrados habitualmente a
vagar pelas ruas ou logradouros publicos, sem que tenham meio de vida
regular, ou tirando seus recursos de occupação immoral ou prohibida.
§ 3º São mendigos os menores que habitualmente pedem esmola para si ou
para outrem, ainda que este seja seu pae ou sua mãe, ou pedem donativo
sob pretexto de venda ou offerecimento de objectos.
§ 4º São libertinos os menores que habitualmente:
a) na via publica perseguem ou convidam companheiros ou transeuntes
para a pratica de actos obscenos;
b) se entregam á prostituição em seu proprio domicilio, ou vivem em casa
de prostituta, ou frequentam casa de tolerancia, para praticar actos
obscenos;
c) forem encontrados em qualquer casa ou logar não destinado á
prostituição, praticando actos obscenos com outrem;
d) vivem da prostituição de outrem.
11 Para maiores informações acessar < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM-16-12-
1830.htm>. Acesso em 25/08/2016.
12 Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049>. Acesso
em 25/18/2016.
13 Disponível em: <
http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=16272&tipo_norma=DEC&data=192
31220&link=s>. Acesso em 25/18/2016.
34
Capítulo I esclarece o objeto de fato para cumprimento da lei promulgada, e em seu
Art. 1 prescreve que “O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente,
que tiver menos de 18 annos de idade, será submettido pela autoridade competente
ás medidas de assistencia e protecção contidas neste Codigo”.
O Capítulo II retrata sobre as crianças da primeira idade. Da proteção sob
vigilância da vida e saúde das crianças com menos de dois anos, abandonadas,
ainda em período de amamentação e pobres, contemplando com um salário aos
pais ou o responsável da criança em questão. Bem como a existência da vigilância,
decretado que, àquele que se negar de receber as autoridades responsáveis pela
vigilância, sofrerá punições pelo crime de desobediência.
Esse Código estipula critérios às pessoas impedidas de receber crianças,
como aquelas com histórico de maus tratos ou violações de direitos das mesmas,
com antecedentes criminais, e se por ventura alguém agir contra essa lei, também
será punido. E das condições de remoção das crianças se não houver cuidados com
higiene, quantidade excessiva de integrantes na residência, atos considerados
ameaça a moral e aos bons costumes.
O Capitulo III faz menção ao que tange aos infantes expostos, considerados
como tal as crianças abandonadas de até sete anos de idade. Assegurando
assistência e proteção, já que fora extinta a roda de expostos, por instituições
distintas que agiam com registro das crianças de forma secreta, para assegurar a
identidade das mesmas.
No Art. 18 do Código de menores, se a mãe decidisse entregar seu filho, ela
não era obrigada a se identificar, nem mesmo a assinar, pois era considerado um
ato espontâneo. Entretanto, se outra pessoa que não os pais da criança desejassem
entregar a criança, a princípio o funcionário do recolhimento dialogaria com essa
pessoa em questão com intuito de mostrar os pontos negativos de tal ato, mas não
obstante insistisse com a ideia, seria necessário um registro civil do nascimento da
criança, todavia se a pessoa se recusasse de fornecer ou não pudesse, essa recusa
seria registrada nos autos, e apesar disso a criança seria recolhida e sem qualquer
registro.
18 Em consonância desta lei foi instituido também, artigo 146, o Juizado de Menores; ‘É creado no
Districto Federal um Juizo de Menores, para assistencia, protecção, defesa, processo e julgamento
dos menores abandonados e delinquentes, que tenham menos de 18 annos’ (BRASIL, 1927, s/p).
35
No entanto, se a criança fosse abandonada, quem a encontrasse deveria
levá-la a devida instituição e apresentá-la ou avisar a autoridade policial ou a
autoridade pública mais próxima. Posteriormente, a autoridade encaminharia a
criança para fazer o registro civil de nascimento como procedem as formalidades.
Entretanto, se alguém encontrasse uma criança e não se reportasse às autoridades
públicas, este seria penalizado, por multa ou prisão cellular, ou seja, a prisão que
comumente conhecemos, um estabelecimento prisional.
Figura-se no Art. 23 deste Código que aos expostos que não forem recolhidos
nos devidos estabelecimentos, estes “ficarão sob a tutela das pessoas que
voluntaria o gratuitamente se encarreguem da sua creação, ou terão tutores
nomeados pelo juiz”. E, quem deixá-lo sob responsabilidade de outra pessoa, sem
autorização de autoridade pública, será penalizado por multa ou prisão cellular.
O capítulo 4 retrata dos menores abandonados, e como consta no Art. 26:
Art. 26. Consideram-se abandonados os menores de 18 annos:
I. que não tenham habitação certa, nem meios de subsistencia, por serem
seus paes fallecidos, desapparecidos ou desconhecidos ou por não terem
tutor ou pessoa sob cuja, guarda vivam;
II. que se encontrem eventualmente sem habitação certa, nem meios de
subsistencia, devido a indigencia, enfermidade, ausencia ou prisão dos
paes. tutor ou pessoa encarregada de sua guarda;
III, que tenham pae, mãe ou tutor ou encarregado de sua guarda
reconhecidamente impossibilitado ou incapaz de cumprir os seus deveres
para, com o filho ou pupillo ou protegido;
IV, que vivam em companhia de pae, mãe, tutor ou pessoa que se entregue
á pratica de actos contrarios á moral e aos bons costumes;
V, que se encontrem em estado habitual do vadiagem, mendicidade ou
libertinagem;
VI, que frequentem logares de jogo ou de moralidade duvidosa, ou andem
na companhia de gente viciosa ou de má vida.
VII, que, devido á crueldade, abuso de autoridade, negligencia ou
exploração dos paes, tutor ou encarregado de sua guarda.
VIII, que tenham pae, mãe ou tutor, ou pessoa encarregada de sua guarda,
condemnado por sentença irrecorrivel;[...] (Código de Menores de 1927)
Assim, com o Art. 26 o abandono seria caracterizado pela conduta dos pais
ou tutores, se presentes ou ausentes, se provedores ou negligentes, se protetores
ou uma ameaça a vida do menor, se honestos e cumpridores da lei ou vil e
irresponsáveis. Isto posto, o Estado posiciona-se com um papel controlador,
incumbido de proteger a vida do modo que lhe parecesse mais adequado com a
moral e aos bons costumes.
Os menores considerados como vadios estão classificados no Art. 28, como
aqueles que residem com seus responsáveis, entretanto perambulam pelas ruas,
36
avesso a regras e ao trabalho. Estão incluídos nesta classificação aqueles que
saíram de suas residências, os que não têm uma residência e aqueles que tiram seu
sustento por atividades ilícitas ou imorais.
Este Código faz referência aos mendigos àqueles menores que perambulam
pedindo esmolas, vendendo coisas para ganhar alguma quantia em dinheiro, seja
para eles mesmos, ou para seus responsáveis. E quanto aos libertinos eram aqueles
irreverentes aos padrões, que feriam o senso da moral imposto pela sociedade, com
condutas obscenas e/ou envolvidos com atos referentes à prostituição.
O Capítulo 5 deste Código revela da inhibitação do pátrio poder e da remoção
de tutela, revelando que qualquer ato que comprometesse “a saude, segurança ou
moralidade do filho ou pupillo, a autoridade competente decretará a suspensão ou a
perda do patrio poder ou a destituição da tutela, como no caso couber”. Desta
maneira, como especificado no Art. 32 deste Código de Menores:
Art. 32. Perde o patrio poder o pae ou a mãe:
I, condemnado por crime
III, que castigar immoderadamente o filho (Codigo Civil, art. 395, n. 1);
IV, que o deixar em completo abandono (Codigo Civil, art. 395,n. lI);
V, que praticar actos contrarios á moral e aos bons costumes (Codigo Civil,
art. 395, n. III).
Como uma proposta de alicerçar o estabelecimento e manutenção da ordem,
o Código de Menores preconiza sob o olhar de Rizzini (2011) “[...] ao zelar pela
infância abandonada e criminosa, prometia extirpar o mal pela raiz, livrando a nação
de elementos vadios, desordeiros, que em nada contribuíam para o progresso do
país” (p. 139). Portanto, atrelava a questão da proteção e assistência defendida por
este Código ao combate a criminalização através da correção e repressão, a
mudança dos modos dos menores em prol do desenvolvimento do país. Este
sistema de “salvação do futuro do país” foi fortemente aderido pela população, uma
alternativa de “cuidados e educação” para os pobres (RIZZINI; RIZZINI, 2004, p. 30),
bem como se considerava este como sendo outro caminho para os responsáveis na
iminência da perda do pátrio poder. Desta maneira como expressado no Código de
Menores de 1927:
Art. 36. E' licito ao juiz ou tribunal deixar de applicar a suspensão do patrio
poder, si o pae ou mãe se comprometter a internar o filho ou os filhos, em
estabelecimento de educação, ou garantir, sob fiança, que os filhos serão
bem tratados.
37
No capítulo 6 deste Código são retratadas as medidas aplicáveis aos menores
abandonados e das responsabilidades devidas pelas autoridades confiadas para
assistência e proteção dos menores que lhe forem comunicados. E das medidas
consta o provimento quanto à “guarda, educação e vigilancia, podendo, conforme, a
idade, instrucção, profissão, saude, abandono ou perversão do menor e a situação
social, moral e economica dos paes ou tutor, ou pessoa encarregada de sua guarda”
(Código de Menores de 1927- Art. 55)
Os menores de 18 anos que fossem localizados na rua, vadiando ou
mendigando seriam recolhidos e levados a autoridade responsável. Assim, neste Art.
61, ficava nítida a vigilância destes, bem como a advertência aos pais, relevando sua
responsabilidade para com os menores, assumida com a Justiça. Do contrário, o
menor seria entregue a outrem para se responsabilizar ou a uma instituição
pertinente ao caso. E caso o menor estivesse habituado à vadiagem e a mendigar
constantemente, estes seriam internados numa instituição de preservação até atingir
a maioridade. Após um ano de internação, caso fosse do desejo dos responsáveis
estes poderiam recorrer da decisão e solicitar a retomada da guarda do menor. Fato
este que seria analisado, e os responsáveis teriam que provar estarem aptos a
cumprir com os critérios estabelecidos no cuidado com o menor. Deste modo, se
comprovado estarem aptos, a revisão pela Justiça seria feita de três em três anos
para averiguar a permanência deste estado.
No Capítulo VII, dos menores delinquentes cabe ressaltar que de acordo com
o que consta no Art.68 do Código de Menores ocorre algo de suma importância, a
descriminalização das crianças e adolescentes e seus atos, mudando o olhar sob os
referidos, relevando as particularidades individuais, ficando assim estabelecido que:
Art. 68. O menor de 14 annos, indigitado autor ou cumplice de facto
qualificado crime ou contravenção, não será submettido a processo penal
de especie alguma; a autoridade competente tomará sómente as
informações precisas, registrando-as, sobre o facto punivel e seus agentes,
o estado physico, mental e moral do menor, e a situação social, moral e
economica dos paes ou tutor ou pessoa em cujo guarda viva.
§ 1º Si o menor soffrer de qualquer forma de alienação ou deficiencia
mental. fôr apileptico, surdomudo, cego, ou por seu estado de saude
precisar de cuidados especiaes, a autoridade ordenará seja elle submettido
no tratamento apropriado.
§ 2º Si o menor fôr abandonado, pervertido ou estiver em perigo de o ser, a
autoridade competente proverá a sua collocação em asylo casa de
educação, escola de preservação ou confiará a pessoa idonea por todo o
38
tempo necessario á sua educação comtando que não ultrapasse a idade de
21 annos.
§ 3º si o menor não fôr abandonado. nem pervertido, nem estiver em perigo
do o ser, nem precisar de tratamento especial, a autoridade o deixará com
os paes ou tutor ou pessoa sob cuja guarda viva, podendo fazel-o mediante
condições que julgar uteis.
§ 4º São responsaveis, pela reparação civil do damno causado pelo menor
os paes ou a pessoa a quem incumba legalmente a sua vigilancia, salvo si
provarem que não houve da sua parte culpa ou negligencia. (Cod. Civ., arts.
1.521e 1.623.)
Havia um adendo quanto ao menor infrator de idade entre 14 e 18 anos autor
de algum crime ou desobediência às regras do Juiz, sendo submetido a medidas
especiais e levando em consideração “o estado physico, mental e moral delle, e da
situação social, moral e economica dos paes, tutor ou pessoa incumbida de sua
guarda” (Código de Menores de 1927 - Art.69).
O Código de Menores ainda previa um procedimento diferente quanto aos
menores com idades entre 16 e 18 anos quem cometessem delitos considerados
graves, considerado um marco na responsabilização do menor no Brasil.
Art. 71. Si fôr imputado crime, considerado grave pelas circumstancias do
facto e condições pessoaes do agente, a um menor que contar mais de 16 e
menos de 18 annos de idade ao tempo da perpetração, e ficar provado que
se trata de individuo perigoso pelo seu estado de perversão moral o juiz Ihe
applicar o art. 65 do Codigo Penal, e o remetterá a um estabelecimento para
condemnados de menor idade, ou, em falta deste, a uma prisão commum
com separação dos condemnados adultos, onde permanecerá até que se
verifique sua regeneração, sem que, todavia, a duração da pena possa
exceder o seu maximo legal. (Código de Menores de 1927)
No que tange aos menores considerados vadios e mendigos com mais de 18
anos e menos de 21 anos, estes seriam recolhidos e internados por cinco anos
numa Colônia Correcional. Entretanto, quanto ao menor com menos de 14 anos
infrator considerado perigoso ou na iminência de se tornar, este seria internado
numa instituição para sua reforma e não mais ser considerado como uma ameaça
para sociedade, até completa 18 anos de idade. E na ausência de instituições
propícias para o cumprimento de internação de menores com idades entre 14 e 18
anos, os mesmos seriam encaminhados para prisões comuns, alocados em
repartições separadas dos presos adultos, evidenciando assim fatores basilares
deste Código agindo de forma correcional e repressiva.
O Capítulo VIII define a liberdade vigiada do menor em companhia de seu
responsável e sob a fiscalização do Juiz, que pode impor a qualquer tempo regras a
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serem respeitadas pelo menor, inclusive do comparecimento em juízo conforme
agendado. E cabe obediência e satisfação ao Juiz a respeito de qualquer ausência,
mudança de residência ou morte de pronto.
No Capítulo IX, está estabelecido quanto ao trabalho dos menores, e logo em
seu Art. 101 discorre que “é prohibido em todo o territorio da Republica o trabalho
nos menores de 12 annos. ” Entretanto, logo no seu artigo sequente, aponta uma
ressalva, especificando que não podem trabalhar os menores com idade inferior a 14
anos sem ter o ensino primário completo, contudo a Justiça compreende tal fato, se
for constatado a importância do salário para contribuir na subsistência do menor e
sua família.
O Capítulo X deste Código discorre acerca da vigilância sobre os menores, no
intuito de prover a segurança do menor, assim, para realizar a inspeção as
autoridades públicas poderiam visitar os locais que o menor frequentasse, como a
escola e a residência do menor. E podendo intervir quando percebido alguma
ilegalidade ou contravenção acerca dos critérios definidos pela justiça, inclusive
ordenar o fechamento de instituições. Em inúmeros lugares existia a proibição da
entrada de menores com idade inferior a 14 anos, como os chamados de
“espectaculos cinematográficos” sem estar acompanhado de um responsável, a não
ser que fosse algo indicado justamente para esta faixa etária e vetado aqueles
eventos que terminassem após as 20 horas. O veto se estendia aos bailes,
concertos, cabarés aos menores com idade inferior a 21 anos, dentre outros, salvo
nos casos de permissão do Juiz.
O Capítulo XI discorre sobre dos crimes e contravenções que ameaçarem a
integridade física do menor; é pontuado que
O art. 292 do Codigo Penal é substituido pelo seguinte :
Expôr a perigo de morte ou de grave e imminente damno á saude ou ao
corpo, ou abandonar, ou deixar ao desamparo, menor de idade inferior a
sete annos, que esteja sub-mottido á sua autoridade, confiado á sua guarda
ou entregue aos seus cuidados. Pena de prisão cellular de tres mezes a um
anno (Código de Menores de 1927 – Art. 132).
Sobretudo, sob penalização da Justiça com prisão a ser estipulada na
decorrência de danos de gravidade ao menor.
O Art. 134 decreta que o responsável pelo menor com idade inferior a 16 anos
negar ao referido, sem justa causa, ajuda, suporte ou itens essenciais para sua
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saúde e desenvolvimento ,estará sujeito a pena de prisão e a perda do pátrio poder,
considerada como um ato violento. E ainda sobre violência, contra o menor,
“Applicar castigos immoderados, abusando dos meios de correcção ou disciplina, a
menor de 18 annos [...]”, consta no art. 137 a pena de prisão de três a um ano com a
perda do pátrio poder.
Vianna (1997) em sua pesquisa, faz uma análise do Código de Menores de
1927, e o denomina como o primeiro instrumento jurídico a cristalizar o menor como
um tema de regulamentação, e perceber que “ao contrário do que se poderia pensar,
não é o código o responsável pela generalização do termo ou dos significados nele
aplicados. Em vez disso, é possível tomar o código como a formalização de uma
lógica eminentemente policial [...]” (p.39).
Nos casos de infração e trabalho a autora ainda pontua que com a vigência
do Código de Menores de 1927, o trato da questão da menoridade foi modificado e
adaptado às novas regras. Era um olhar para além de esta ser uma condição para
ação, mas sim o objeto para tal. Portanto o conhecimento das condicionalidades
acerca da vida do menor, principalmente dos fatores abandono, trabalho e delito
eram basilares para a compreensão e identificação preliminar do menor.
Este Código de Menores “[...] incorpora tanto a visão higienista de proteção do
meio e do indivíduo, como a visão jurídica repressiva e moralista” (FALEIROS, 2011,
p. 47). Instituído numa estrutura organizada em critérios para identificar e classificar
o menor, portanto “procura organizar, portanto, um espectro de variáveis capazes de
dar sentido, inteligibilidade e flexibilidade a uma mesma classificação, tornada uma
das principais definidoras dos menores sobre os quais deveria legislar”, e clarificar
as responsabilidades daqueles que deveriam responder pelos atos do menor em
questão (VIANNA, 1997, p.171).
O Código de Menores de 1927 introduziu o direito do menor no sistema
jurídico brasileiro, focada no sentido moralista, com objetivo de encarar e combater a
criminalização como o problema do menor. Esse código passava a responsabilizar o
Estado quanto a proteção e assistência dos menores e sua família com medidas
protetivas e assistenciais, parecendo ir além do limite jurídico, fazendo parecer que
“o que o impulsionava era “resolver” o problema dos menores, prevendo todos os
possíveis detalhes e exercendo firme controle sobre os menores, através de
mecanismos de “tutela”, “guarda”, “vigilância”, “educação, “preservação” e “reforma”
(RIZZINI, 2011, p.133).
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O Código de Menores tinha como base norteadora a classificação do menor,
abandonado ou delinquente, e a estes uma definição de status, a situação irregular.
Cabe ressaltar que “A legislação reflete um protecionismo, que bem poderia
significar um cuidado extremo no sentido de garantir que a meta de resolver o
problema do menor efetivamente seria bem sucedida” (RIZZINI, 2011, p.134).
O Estado então numa intervenção controladora agia com base nesse Código,
e os Juízes de Menores decidiam o destino dessas crianças e adolescentes, um
lugar para os desajustados serem corrigidos, educados dentro dos padrões pré-
estabelecidos pela sociedade burguesa, atrelando correção a educação, e esta por
sua vez atrelada ao trabalho, para que este jovem da época pudesse ser moldado,
doutrinado para ser um bom indivíduo trabalhador do futuro.
De acordo com Rizzini (2011) o método regido pelo Código de Menores de
1927 foi alvo constante de críticas. Uma delas foi o processo de classificação dos
menores, repletos de suspeitas, pré-julgamentos. A autora menciona que em
decorrência dessa atuação voltada para métodos investigativos, a camada mais
pauperizada da sociedade criticava o Código, alegando terem suas vidas invadidas.
Eles questionavam o impedimento deles mesmos não poderem decidir como criar
seus filhos e discernir sobre o que seria melhor para eles, como a permissão de ir a
certos estabelecimentos.
Outra crítica tratava-se da internação dos menores, de caráter abrangente,
cujo tratamento era equivalente para todos, fossem eles abandonados, delinquentes,
vadios ou crianças pobres cujos pais não possuíam condições de manter o sustento
da forma como a lei estipulava. Todavia sem atentar que existia uma linha tênue
entre criança e menor, isto é, embora todo menor fosse uma criança, nem toda
criança era considerado um menor. E que por meio deste método, que implicava o
Código de Menores, equívocos de expressiva gravidade poderiam ocorrer contra
essas crianças.
No final da década de 30 (séc. XX), a democracia do Brasil enfrentou um
golpe de Estado que instalou o Estado Novo em 1937, sob o comando de Getúlio
Vargas, quem decretou o estado de guerra instaurando a ditadura, com extinção dos
partidos políticos, a censura da imprensa, dentre outras medidas tomadas. Neste
governo, Getúlio Vargas passa a lidar com assuntos da infância como uma questão
de segurança nacional.
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A política da infância, denominada “política do menor”, articulando
repressão, assistência e defesa da raça, se torna uma questão nacional, e,
nos moldes em que foi estruturada, vai ter uma longa duração e uma
profunda influência nas trajetórias das crianças e adolescentes pobres
desse país (FALEIROS, 2011, p. 57).
Um dos focos desse governo foi, sobretudo, o trato com a família,
principalmente as famílias com muitos filhos, bem como pontua Faleiros (2011) que
cita um decreto com um direcionamento ”que a aumenta o imposto de solteiros e
viúvos com um adicional de 10% e atribui um abono aos pais de mais de seis filhos”
(p.57).
O Juízo de Menores estava para os menores, assim como o Ministério da
educação e da saúde estavam para as crianças e adolescentes. Assim estavam
divididas as atribuições, “o menor permanece sob o domínio da esfera jurídica e a
criança sob a proteção da esfera médico –educacional” (RIZZINI, 2011, p.261).
Deste modo, em 1941, foi criado o Serviço de Assistência ao Menor (SAM),
por meio do Decreto-lei 3.79919, definido como um órgão subordinado ao Ministério
da Justiça, responsável por fiscalizar o sistema de acolhimento e internação dos
menores, para organizá-lo de forma mais adequada para um funcionamento mais de
acordo com a realidade de cada menor, fosse ele delinquente, de família carente ou
abandonado. Portanto de acordo com esse decreto-lei:
Art. 2º. O S. A. M. terá por fim:
a) sistematizar e orientar os serviços de assistência a menores desvalidos e
delinquentes, internados em estabelecimentos oficiais e particulares;
b) proceder à investigação social e ao exame médico-psicopedagógico dos
menores desvalidos e delinqüentes;
c) abrigar os menores, à disposição do Juízo de Menores do Distrito
Federal;
d) recolher os menores em estabelecimentos adequados, afim de ministrar-
lhes educação, instrução e tratamento sômato-psíquico, até o seu
desligamento;
e) estudar as causas do abandono e da delinquência infantil para a
orientação dos poderes públicos;
f) promover a publicação periódica dos resultados de pesquisas, estudos e
estatísticas.
O SAM foi criado com intuito de centralizar e organizar as ações antes
responsabilidades do Juízo de Menores, sem muitas mudanças. Sua atuação
inicialmente era restrita a capital do país, e posteriormente tornou-se de abrangência
nacional E com os serviços do SAM, as instituições tinham um norteamento sobre
19 Para maiores informações, acessar < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-
1949/decreto-lei-3799-5-novembro-1941-413971-publicacaooriginal-1-pe.html>.
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funcionamento em prol dos menores. Entretanto, na prática a realidade era outra, a
atuação do SAM resumia-se em receber os menores encaminhados do Juízo de
Menores, realizar a triagem e internação. E a população tinha o SAM como uma
espécie de condenação dos menores, que “representava mais uma ameaça à
criança pobre do que propriamente proteção. “Escola do Crime”, “Fábrica de
Criminosos”, “Sucursal do Inferno”, “Fábrica de Monstros Morais”, “SAM – Sem Amor
ao Menor” (RIZZINI, 2011, p.266).
Houve muitas críticas e denúncias sobre a atuação do SAM, repleto de
irregularidades e corrupções, bem como a ausência de infraestrutura adequada, as
instituições que recebiam os menores para reeducá-los, na realidade mais pareciam
escolas para ensiná-los o ofício do crime e/ou beneficiar a entrada de menores nas
melhores instituições. E devido a movimentação para investigar as irregularidades
do SAM, quiçá sua extinção, foi lançada uma comissão para construir um projeto,
que resultaria em 1964 na criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor
(FNBEM), a Lei n. 4.513, cuja mais tarde tornar-se-ia FUNABEM, com a
responsabilidade sobre suas subdivisões estaduais, as chamadas Fundações
Estaduais de Bem Estar do Menor (FEBEM’s).
Competia à FUNABEM implementar a Política Nacional do Bem-Estar do
Menor (PNBM), que tinha como objetivo erradicar a prática de métodos violentos de
repressão contra os menores nas instituições. Entretanto, em meados de 1970, a fim
de agir juntamente à FUNABEM para o cumprimento desse objetivo, o Estado
passou a intervir criando a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM).
Todavia, no decorrer do tempo, foi constatado, que os métodos adotados nesses
espaços não mudaram, onde menores eram cruelmente torturados como ação
correcional. E em consequência disso, por volta do ano de 1976, autores como
Passetti (2010) afirmam que as FEBEM’s eram verdadeiras escolas formadoras de
marginais, o que culminou no aumento significativo das taxas quanto à
marginalidade no país.
Getúlio Vargas em seu governo criou muitas instituições e mostrava nas suas
tomadas de decisões um interesse singular pela infância, pois em suas convicções
as crianças eram o caminho do progresso do país, por meio da educação e do
trabalho. Passetti (2010) pontua também que a linha tênue entre criança e menor,
menor e criança, era algo latente e segregadora, embora Vargas tivesse um foco
sobre as crianças pobres e suas famílias. Portanto, foi criado também nesse governo
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a política materno-infantil e posteriormente, pensando num meio de organizar a
atuação sobre este foco, foi criado o Departamento Nacional da Criança (DNCr) e a
Legião Brasileira de Assistência (LBA), voltada para prestação de serviços de
assistência social, sobretudo às famílias dos brasileiros convocados na guerra.
Nesse cenário, em 1979, foi modificado o decreto que instituiu o Código de
Menores de 1927, e lançada a Lei 6.679/7920 como o Código de Menores de 1979,
que visava à proteção e assistência aos menores, assim como o Código de Menores
de 1927, com foco na vigilância. Contudo, não houve alterações expressivas, mas foi
substituído o termo “menor” para “menor em situação irregular”, que se referia ao
indivíduo com idade inferior a 18 anos. Esse novo Código tinha os mesmos pontos
basilares do antigo código, assim:
Art. 1º Este Código dispõe sobre assistência, proteção e vigilância a
menores:
I - até dezoito anos de idade, que se encontrem em situação irregular;
II - entre dezoito e vinte e um anos, nos casos expressos em lei.
E propunha um olhar diferenciado no trato daqueles em situação irregular,
reforçando assim a idéia que substanciava a distinção entre menor e criança, isto é,
menores eram os de famílias pobres, desprovidos de itens básicos para sua
subsistência, os vitimados por maus tratos e os pertencentes a famílias com atos
consideráveis imorais ou contra lei. E criança era aquela de família dentro padrões
considerados ideais, estruturada. Em suma, esse Código tendia ao prejulgamento
desses menores, vinculando essa situação irregular a uma futura ameaça para a
sociedade, logo, de caráter tutelar voltado para “endireitar” os menores e
criminalizando a pobreza.
De acordo com o que afirma Passetti (2010), esse prejulgamento vai além,
responsabilizando os pais pelos atos de seus filhos e apontando a falta de estrutura
familiar como atenuante, pois com esse Código de Menores os menores em situação
de pobreza eram compreendidos como fortes candidatos a serem futuros
delinquentes, justificando assim o internato como a melhor alternativa, uma espécie
de salvação para eles. O autor ainda traz um questionamento “se é sabido que a
prisão não educa ou integra adultos infratores, ela não deveria servir de espelho
para educação de jovens ou para sequer corrigir-lhes supostos comportamentos
20 Para maiores informações: Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-
1979/L6697.htm> Acesso em 10/08/2016.
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perigos” (p.364). Assim, a criança ou o adolescente em “situação irregular”, já estava
fadado a ser julgado como ameaça e, portanto internado, perdendo assim o convívio
familiar e sua liberdade, fatores que ainda não eram considerados como direitos
destes. E Entre os séculos XIX e XX a legislação era voltada apenas para os
menores de idade, aqueles em situação irregular. Bem como aponta Rizzini (2011):
“[...] a infância é classificada de acordo com sua origem familiar e sua
“herança” social. Assim, os bem nascidos podiam ser crianças e viver sua
infância; os demais estavam sujeitos ao aparato jurídico-assistencial
destinado a educá-los ou corrigi-los, vistos como “menores abandonados ou
delinquentes” (p.98).
Rizzini (2011) aponta também a existência de uma dualidade quanto à defesa.
Seria ela direcionada para crianças de fato ou para defesa da sociedade contra
essas crianças? O tão citado problema da criança-menor, o desvalido, o
desajustado, o delinquente, a ameaça para a sociedade. Um processo de
classificação que estereotipava crianças pobres. Processo este discriminatório, que
influencia a sociedade sentenciando crianças até os dias atuais. Assim, “a lógica era
aparentemente simples: se a família não pode, ou falha no cuidado e proteção ao
menor, o Estado toma para si esta função” (ARANTES, 2011, p.195). Isto é, essa
autora afirma que a pobreza está associada à irregularidade, assim os pais perdiam
o pátrio poder, e esses menores passavam a ser tutelados pelo Estado. Estes mais
tarde poderiam reaver a tutela dos filhos caso se adequassem, porém nada era feito
para melhorar as condições de vida desses pais.
Havia grande movimentação contra esse modelo de assistência correcional-
repressivo, com críticas às práticas violentas dos internatos e seus profissionais,
bem como a ineficiência dos resultados. Então, com a promulgação da Constituição
da República Federativa do Brasil em 1988 (CF/88), e como uma resposta dessa
movimentação foi adotada a Declaração Universal dos Direitos da Criança, abolindo
assim o Código de Menores de 1979.
2.3 – UM NOVO OLHAR PARA A INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA BRASILEIRA
Com a Constituição Federal de 1988, houve a abertura democrática no país e
muitas transições foram feitas para que abarcassem, de fato, os direitos de crianças
e adolescentes, como constam em seu artigo 6º que diz que “são direitos sociais a