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Published by TODAVOZ EDITORA, 2020-05-10 11:11:11

CLARICE E MACHADO_clone

CLARICE E MACHADO

Keywords: Escrita criativa,PUC MINAS,TODAVOZ EDITORA,Fátima Peres,Raquel Junqueira

Clarice e Machado

contar e recontar



Maria de Fátima Moreira Peres
Raquel Beatriz Junqueira Guimarães (Org.)

Clarice e Machado

contar e recontar...

Antologia

1a. Edição

Belo Horizonte
2017

Coordenação editorial
Maria de Fátima Moreira Peres

Capa/ilustração
Alex Coelho

Projeto gráfico
LP Moreira
Revisão

Maria Auxiliadora Catete Blom

FICHA CATALOGRÁFICA

963c Guimarães, Raquel Beatriz J., Peres, Maria de Fátima
Moreira (organizadoras). Clarice e Machado – contar e

recontar. Belo Horizonte: Todavoz Editora, 2017.

68p. Il.

ISBN: 978-85-94474-01-8

Contos – coletânea 2. Literatura Brasileira I Título

CDU: 82-34(81)

Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária: Ângela Maria de Medeiros Canêdo.
Todos os direitos reservados à Todavoz Editora.
Rua Dom Lúcio Antunes, 977, cj-301
30535-630 – Belo Horizonte – MG
www.todavozeditora.com.br
[email protected]

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 09


RECONTAR CLARICE LISPECTOR

O homem O pai O basset 15
Alessandra Fonseca de Morais

Ingenuidade 17
Alzira Maria Ribeiro Araújo

Necessidades Especiais 19
Gustavo Camargo

Estilhaços luminosos 21
Luciana Genevan da Silva Dias Ferreira

Cobiça 23
Luciana Pimenta
Memórias de sir.York S 27
Maria de Fátima Moreira Peres

RECONTAR MACHADO DE ASSIS

Conceição 31
Alessandra Fonseca de Morais
Missa de Natal 35
Alzira Maria Ribeiro Araújo
Sessão maldita 39
Gustavo Camargo
Chaves de Conceição 49
Luciana Genevan da Silva Dias Ferreira
Confissão 51
Luciana Pimenta
Missa de Natal 55
Maria de Fátima Moreira Peres

SOBRE AS AUTORAS 59



Preciso é então dizer, como corolário, que as
oficinas não se constituem em fábricas de escri-
tores, assim como as diferentes academias de
arte - já seculares e incorporadas ao quotidiano
- não fabricam pintores, escultores, músicos.
São lugares de criação, troca de ideias e acon-
selhamento. Tal como acontece na vida. (Prof.
Luiz Antonio de Assis Brasil)

7

8

Apresentação

Leitura criativa

A leitura é condutora do Desejo de escrever.1
(Roland Barthes)

A leitura de entrevistas concedidas por escritores evidencia os
temas mais debatidos por eles. No campo dos poetas, assuntos
como o uso do verso livre ou metrificado, a incessante luta com
as palavras, o trabalho para a conquista do melhor ritmo, a
dificuldade na tradução, o encontro com a forma ideal, as cons-
truções das metáforas são, quase sempre, tematizadas pelos
escritores. Entre os prosadores, não é raro encontrar aqueles
que discutem a construção dos personagens, a relação entre
escrita, experiência e memória, a dificuldade de ter consciência
de todo o processo, uma vez que se sentem dominados pela es-
crita. Entre eles há pelo menos um ponto em comum: a impor-
tância da leitura e o conhecimento dos clássicos.
Borges, em conversa com jovens, aconselha-os:

Creo que los poeta jóvenes tienden a empezar
com lo que es em realidade lo más difícil: el ver-
so libre. Este es um grave error (...). De modo
que mi consejo a los poetas jóvenes es el de em-
pezar por las formas clássicas del verso y sólo
después de eso ensayar posibles inovaciones. 2

1 BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mario Laranjeira. São Paulo:
Brasiliense, 1988. p. 50.
2 BORGES, Jorge Luis. El aprendizaje del escritor. Buenos Aires, Sudamericana,
2014. p. 75.



9

Preocupação, ou sugestão semelhante, é encontrada no
depoimento de Milton Hatoom ao destacar o valor dos clássicos
para a formação do escritor:

Na verdade, se tem algo que eu aprendi com
grandes professores, como o Davi Arrigucci Jur.,
o João Alexandre Barbosa, a Leyla Perrone Moi-
sés, dentre outros, foi ler alguns clássicos an-
tes de escrever alguma coisa. Eles me diziam:
Se você quiser escrever, você tem que ler. (...)
Eles me deram uma lista, uma espécie de Great
Books, e eu só comecei a escrever o Relato de-
pois de ler vários daqueles livros. 3

Com concepção semelhante a essa apresentada

pelos dois escritores, a de que a leitura e o conhecimento dos

clássicos são decisivos para a formação do escritor, foi elabora-

da a proposta da disciplina “Escrita criativa: criação, recepção

e tradução”, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em

Letras da PUC Minas, em 2016.4 Naquela ocasião, a discussão

e experiência de criação literária foram conduzidas pelo viés da

leitura de textos de escritores já consagrados. Foram realizadas

a análise e a interpretação de contos e poemas.

Foram lidos “Missa do Galo”, de Machado de Assis, As

cerejas”, de Lygia Fagundes Teles, “Felicidade clandestina” e

“Tentação”, de Clarice Lispector. Além dos contos, lemos tam-

bém o poema “O corvo”, de Edgar Alan Poe. Para avançarmos

nas discussões, foram escolhidas obras que traziam um exer-

cício de criação literária que se queria conhecer: a escrita com

base em textos de reconhecida qualidade e apuro técnico. As-

sim, as edições de “As cerejas” e “Missa do galo” traziam a

3 GONÇALVES, José Eduardo (Org.). Ofício da palavra. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. p.
39.
4 Disciplina ministrada pelas professoras Márcia Morais, Priscila Campello e Raquel Guimarães

10

recriação desses contos por outros autores também reconhe-
cidos. No caso do estudo do poema de Poe, foram comparadas
algumas traduções. Fala-se aqui especificamente das seguintes
obras: Missa do galo - variações sobre o mesmo tema, organiza-
da Osman Lins; As cerejas, de Lygia Fagundes Telles; O corvo e
suas traduções, organizada por Ivo Barroso.5
Depois do estudo dessas três obras e suas reescritas por
escritores já experientes, foi proposto o exercício de criação para
os participantes do processo: recriar os contos “Missa do galo” e
“Tentação”, de Clarice Lispector, incluído no processo para dia-
logar com as variações do conto “As cerejas”. O resultado está
nesta publicação.
Ainda que os contos aqui presentes tenham se originado
de um trabalho realizado em uma atividade de criação dirigida,
nem tudo é tão transparente como pode parecer. O modo parti-
cular como cada um tomou os elementos dos contos de partida
para elaborar o seu texto é parte do mistério dos que escrevem.
Atravessando as duas partes do livro podem-se antever elemen-
tos dos textos de partida.
Na primeira parte, o leitor atento de “Tentação” pode per-
ceber, nos contos aqui publicados, a bolsa, a menina ruiva, o
cão, o livro, o sol a pino e tons diferentes de uma voz mais ou
menos intimista, mais ou menos misteriosa. Dessa procura de
contato com o conto de partida, e do natural processo de afas-
tamento dele, proporcionado pela escrita literária, advêm cenas
que sustentam a espera, o silêncio, a demora, a solidão, o vazio,
a memória, o êxodo, a saída, a epifania, e a falta — constitutivos
da Literatura.

5 LINS, Osman (Org.) Missa do galo - Variações Sobre o Mesmo Tema. São Paulo:
Summus, 1977. TELLES, Lygia Fagundes. As cerejas. São Paulo, Atual Editora, 1992.
BARROSO, Ivo. (Org.) O corvo e suas traduções. São Paulo: Leya, 2012.

11

Na segunda parte do livro, os autores dialogam com o
paradigmático “Missa do Galo”, de Machado de Assis. Todos
os contos retomam temas machadianos, como o adultério, o
casamento por interesse, o jogo de sedução, as leituras, e Con-
ceição. Principalmente Conceição será revista e transformada
pelos leitores-escritores. Conceição é concebida pelo olhar dos
empregados, dos vizinhos, dos novos moradores das casas.
O processo de escrita escolhido na condução dos trabalhos da
disciplina realiza, de certo modo, o que afirma Reinaldo Mar-
ques quando diz:


Longe de serem polos estanques, uma vez desie-
rarquizadas, leitura e escrita se mostram inter-
cambiáveis: ler é escrever, escrever é ler. Logo,
no âmbito da literatura, leitor e autor consti-
tuem dínamos sincronizados de uma mesma e
indivisível operação: a da escritura. leitura es-
crita, escrita leitura. Formar o leitor é, pois, for-
mar o escritor.

Espera-se que o resultado agrade aos leitores e os remeta
a outras leituras e a outras escritas.

As organizadoras

12

RECONTAR CLARICE LISPECTOR

13

14

O homem O pai O basset

Alessandra Fonseca de Morais

O homem

Na manhã do dia seguinte lembrei-me do sonho que tive: eu,
ainda criança, sentada no ponto do bonde, levava comigo a bol-
sa velha e dentro da bolsa havia uma árvore, uma árvore com
grosso tronco e folhas. Estou longe, longe. Continuei com aque-
le gosto de sonho na boca.

Compreendeu que esperava isso, o sem-tempo.

Olhei para o outro lado da cama, um rosto me olhava.
Barba bem-feita do sujeito homem. Eu sabia que isso ia aconte-
cer uma vez, mas já estava pronta? Havia silêncio. Uma mudez
que ninguém compreenderia. Segurei o cigarro com os dedos
em pinça, apertei os olhos para acender, a brasa queimava.
O homem voltou a dormir, a noção do perfeito. A sombra
da árvore já me invadia, fiquei ouvindo a respiração dele, a cla-
ra noção do perfeito.
Consegui viver mais e melhor com minha cabeça flame-
jante e minhas sardas. Chorou livremente, lágrimas grossas,
chorou tanto que nem sabia. Estava pronta.
Ele homem agora estava em sono profundo. Eu, a mulher
que veio ao mundo para sentir aquela presença indispensável,
os corpos pesados, eu existia além de mim mesma. Fechei os
olhos, serenando suavemente. Puro espírito.
Aquilo tinha dois lados, um sofrimento pelo mesmo moti-
vo que ora me tornava mortalmente feliz. Era tão corpo, era tão
noite. A muda tornaria árvore, o sonho não mais se quebraria,

15

logo eu que era uma estranha ruiva nessa terra de morenos.

O Pai

Com os dedos penteava o meu embaraçado cabelo ruivo.
Unhas aparadas, a maneira como alisava os pelos do braço, a
forma séria e respeitosa em contar como foi salvo da cobra pe-
çonhenta por uma cadela. A grossa sobrancelha, os óculos que
me olhavam por cima das lentes.
Uma comunicação que sua mãe não compreenderia. Sen-
tiu vontade de chorar, de ser brasa refletida nas lentes dos ócu-
los dele. Momentos tão intensos, cor de fogo, não queria o futuro
para viver. Nada estava pronto.

– A coisa que mais gosto no mundo... brincar com ele nos
galhos das árvores.

E como sempre, ela foi pegar o bonde, levou a bolsa velha,
numa espera distraída e vaga.

O basset

Uma criança vermelha soluçava, sentada nos degraus da
escada, o sol vibrava, como música, como melodia, como febre.
Nenhuma árvore para fazer sombra, eram duas horas da tarde.
A criança vermelha então pensou em cantar uma cantiga: “A me-
nina e o Sol”. Mas não dava pra isso. Esperava o bonde e segu-
rava a velha bolsa, com alça partida, nos joelhos.
De língua pra fora, segurado por uma mulher, passou
diante dela um cachorro Basset.
Ela olhou, o olhou, olhou profundamente. Ela que amava
tanto.

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Ingenuidade

Alzira Maria Ribeiro Araujo

Era um sol a pino. Eram ela e o sol, mais a fome pelo prato so-
bre a mesa. Iam e vinham: ela, o sol a pino e a fome abotoando-
-lhe a barriga na saia longa. A plataforma existindo com bancos
de acolher demoras.
Encolhendo distâncias de fome e de sol, tomou nas mãos
pequenas o pesado e grosso livro e lia para amenizar a espera.
Perto, no assento conjugado do banco, um velho sexagenário
interessado no movimento das páginas, a cada avanço de folha
se inquietava, parecendo olhar horizontes.
Era também um cão amanhecido, certamente em pura
obrigação de acompanhante. Deitado estava: boca escancara-
da, dentes afiados, uma língua vermelha de secura e um rabo
que insistia em abanar o calor do dia. Também a ele o sol abra-
sava em excesso. Seu leque natural desejava alguma ventania.
Foi num movimento de passar folhas que ela se deu con-
ta do imaginado compartilhamento a propósito da espera. Era o
homem com seu olhar de horizonte. Também nele o sol a pino,
a fome e um desejo que não se cumpria.
A ela incomodava a insistência dele a cada passar de fo-
lha.
Num dado momento, o cão esfrega os olhos e nem umi-
dade consegue para aplacar seu estado de secura.

O homem conferindo o horizonte sem espaço.

– Afinidades há, inexplicáveis. Pensou ela com reserva da
filosofia adquirida em bancos outros. O movimento de passar

17

mais uma página pode ter causado novo sobressalto no homem
de olhar insistente.
Além da mesma distração, o livro grosso e pesado que
ela lia e ele acompanhava com espécie de susto pelo movimento
das folhas, estavam os dois à espera do comboio - horizonte de
desejo a ser preenchido. Era só espera o horizonte.
Ela se inquietava. – Se pelo menos ele dissesse alguma
coisa! Pensou. Mas, não. Ele era só silêncio e demora. Nenhuma
palavra amenizava a tensão que ia se formando entre eles. O
silêncio resguardava o desafio por vir.
Incomodada que estava e generosa que era, entregou ao
vizinho de banco o pesado e grosso livro, sem lhe explicar o ges-
to.
O livro repousava, fechado, nas mãos do homem que ti-
nha um horizonte perdido. Ocupadas e suadas estavam elas.
Compreendeu que ela era sensível ao seu desejo de depositá-
rio. Não disse, mas se sentiu útil e se dedicou, com cuidado de
mãos, à nova incumbência.
Ela tirou da bolsa uma escova. Cuidou dos cabelos, ma-
tando o tempo.
Muitas pessoas chegavam e a plataforma foi-se tornando
repleta de fomes que o sol a pino fazia mais e mais impacientes.
Nem vento, nem brisa, nem aragem. Só o sol a pino e a fome.
Foi então que surgiu o comboio. Todos queriam um as-
sento, ela também. No esforço de um lugar entre tantos e certa
de que o depositário também se apressaria para exercer seu di-
reito à prioridade, esperou que lhe devolvesse o livro no conforto
da viagem.
As portas se abriram e se fecharam rapidamente.
O homem já se assentara e o calor da fidelidade lhe aque-
cia os pés. Na plataforma, o livro sobre o banco.
Com a emoção da descoberta, ela segura firme sua bolsa.
Sobre os trilhos, o silêncio caminha.

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Necessidades especiais

Gustavo Camargo

Foi você quem me ensinou que um homem como eu, que tem por
quem chorar, só sabe o que é sofrer, se o pranto se acabar.

Sozinho na parada do ônibus, ele aguardava a condução para a
faculdade. Ainda verde na vida, era calouro, só que não soluça-
va mais. Na mão direita, seu único apoio: uma bengala. O azul
do céu de verão em dezembro lembrava o começo do sacrifício
e fazia a pele suar por baixo da camiseta amarela e da calça
jeans.
Tudo era uma luta. Nas costas, o peso da mochila escu-
ra. Seu conteúdo colado no corpo. A solidão da rua fremia com
a temperatura que teimava subir. Sob o desconforto daquele sol
laranja, os edifícios cambaleantes lembravam o começo do dia.
Ele suava.
A consciência da própria exceção não o impediu de per-
ceber o arco-íris, saindo da padaria. Do outro lado da rua, uma
camiseta listrada brilhava em seu campo de visão. As oito co-
res, que prenderam sua atenção, exibiam para ele a nature-
za daquele outro ser. Sentiu seus pelos se eriçando. Sangue
vermelho correndo nas veias. De repente, a própria existência
pulsava, o mundo resplandecia. Os olhares trocados, momen-
tâneos, mostraram as semelhanças: caminhar pela vida com os
mesmos passos.
Dentro das próprias existências contidas, sentiram os
pares de olhos ávidos, percorrendo seus seres. Discretamente,
os dele pararam sobre a bengala metálica. Compreenderam-se

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firmemente: no mundo, dois seres hiperestáticos. Desejaram-
-se um ao outro aquele apoio. No quarteirão vazio, sentiam-se
à vontade. A vida era cor de rosa, enquanto o calor rescendia.
Ele quase conhecera um par. Cedo no espaço. No tempo, tarde
demais. Segundos depois, mãos foram dadas. As dele mesmo
permaneceram sós.
O ônibus se aproximou; ele ouviu nomes que já se co-
nheciam. Para aquele calouro, todos os ângulos se fecharam
ali.
Subiu no lotação vazio. No canto do olho, um último de-
talhe. A bengala desejada, madeira escura e seca, insistia em
sustentar outra existência. Na calçada, preso num abraço, ou-
tro ser como ele, tristemente, se via ir embora.
No solavanco da condução, transporte para o seu des-
tino, sentiu percorrer seu corpo o olhar que persistia. Não se
virou para trás. No céu violeta, um arco colorido, sua trajetória
pela vida revelada em sete cores, cobria-se do tom leite das nu-
vens. Começava a chover, e um único brilho fraco insistia em
lhe acompanhar: o do alumínio escuro da própria bengala fria.

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Estilhaços luminosos

Luciana Genevan da Silva Dias Ferreira

Quanto tempo se passou? Ruiva mulher sentada no meio-fio,
perplexa e séria, tentava recordar onde teria estacionado o car-
ro. O sol das duas horas confundia minha percepção. Quanto
tempo havia se passado do almoço ou da infância impossível?
Eu tinha certeza de que meu carro estava ali. Deixara-o naquele
espaço, agora vazio. Duas horas da tarde, o sol faiscava, o car-
ro havia desaparecido na esquina assim como o cachorro, há
tempos. Quanto tempo se passara? Da ausência do basset ou
do veículo? Eu não me lembrava, apenas sabia que éramos três
vermelhos. Por que eu teria me ausentado? Por quanto tempo?
Não sei. Eles já não mais estavam lá.
O claro ódio das duas horas despertou em sua lembran-
ça o amor ruivo de outrora. Teriam levado carro e acácia. Nada
significa ser dona de um automóvel ou de um basset.
Estava sentada na calçada agora, cabelos longos, ruivos.
Não erguia o futuro prometido. Nos dedos descascados, tenta-
ção. O rosto afogueado queimava. O bassetnão havia olhado
para trás. Ela também não olhou para trás hoje, quando esta-
cionou. Aprendera a não olhar para trás. Em sua mão, a bolsa
com chaves dentro. Elas não mais abriam portas. Também um
mapa rasurado havia dentro da bolsa, mas não dava em lugar
algum. Por que ela teria se perdido? O coração não batia verme-
lho.
Recordou pretérito-perfeito e mais-que-perfeito. Só havia
senão. A bolsa velha com a alça arrebentada na infância lon-
gínqua volta. O soluço desponta de lá, bem como o amor. Que

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solução dar para uma mulher-rubra sentada na calçada?
– O que houve? Precisa de ajuda? Perguntou-me um se-
nhor que se aproximava.
Eu olhava o vazio.
Narrou os fatos: teria deixado o carro estacionado naque-
la esquina, entrado na Viv’alma, onde trabalha, e, ao retornar
para buscar o celular e a maçã esquecidos, não mais os encon-
trou.
– Acionou a Polícia?
Havia acionado a memória.

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Cobiça

Luciana Pimenta

Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher
do teu próximo, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu
boi, nem o teu jumento, nem coisa alguma do teu próximo.
(Êxodo. 20:3 – 17)

Êxo-

do Saída Não havia saída Não há Chovia mui-

to E, como se não bastasse, a inundação lá fora, apagando as

cinzas das horas, ela estava com soluço A casa fechada, as

janelas fechadas, os vidros transpirando um estado de latência

Nenhum acesso ao mundo exterior Nada a cobiçar Apenas

chovia e ela estava há horas com solução Sentada na

barra da cama, assistia a tudo com aflição conformada E,

como se não bastasse seu olhar paralisado sobre o branco gelo

da parede, o soluço a espasmava, de momento a momento, mo-

vimentando o corpo por debaixo do roupão Que fazer de uma

mulher gorda com soluço? Janair nem se dava aos olhos

Devia estar no quarto dos fundos ou estendendo alguma rou-

pa no varal Sentia um certo desprezo pela empregada Ela

pendurava as roupas de tal maneira que pareciam dançar ao

vento Como eram leves as roupas no varal! Sentia inveja

das roupas esvoaçantes e das habilidades sobre-humanas de

Janair E de ela ser magra Num mundo de magros, ser gorda

era uma revolta excessiva Que importava se no futuro seria

engolida pelos vermes, em igualdade de condições? Por en-

quanto, ela estava sentada na cama dura, numa tarde cinza de

23

chuva O que a salvava era aquele livro Segurava-o com um

amor doentio, apertando-o até lhe faltar o ar Morrer assim

seria quase um milagre Foi quando viu sobre o armário uma

barata Era gorda, para as proporções de uma barata, o que

a fez sentir uma esperança inexplicável Aquela barata era a

própria possibilidade de cobiça sem pecado Alguma coisa que

fosse sua Seria um desejo de completude? Uma esperança

de igualdade Era uma barata cinza e gorda, como ela Lá

estava a barata, parada, pousada no parapeito arredondado do

móvel, no tempo, sobrevivendo a todas as aflições cosmológicas

Quando, de repente, um dia chuvoso começou a parecer um

presente

A mulher abriu a boca em um movimento involuntário perce-

bendo que o soluço cessara e que a salivação, agora, ganhava

uma intensidade vermelha Estava faminta Olhava firme para a

barata que também a olhava, estática Entre tantos seres que

estão prontos para cobiçar outro ser, lá estava a mulher que

viera ao mundo para desejar aquela barata que movimentava

levemente as patas, sem sair do lugar As asas pareciam estar

prontas para o voo Ficar era um ato generoso Pela primeira

vez, em muitos anos, um calor lhe correu o corpo, sob os cabe-

los, rondando a nuca e descendo ao estômago Por um momen-

to, ela parecia ganhar asas Agora, ambas tinham asas, mas

permaneciam em silêncio imóvel O que falavam? Não se sabe

Sabe-se apenas que se comunicavam lenta e demoradamente e

que apenas a chuva se movimentava lá fora Sabe-se, também,

que Sim, que sem falar elas se devoraravam A barata certa-

mente a devoraria, fosse ela a mais forte neste campo de ação

Uma lembrança de Janair E se ela aparecesse ali agora? Ma-

taria aquele ser seu objeto de desejo? Janair lhe parecia um

monstro Um humano metamorfoseado Precisava comê-la antes

que Janair pudesse assassiná-la

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E naquele calor abafado das cinzas que restam, lá estavam am-

bas, comprometidas com seu desejo A mulher, com seu de-

sejo de ser, a barata, com sua natureza aprisionada Ou seria

o contrário? Decidiu se levantar e se dirigir à barata Não

haveria pecado A casa era sua O quarto era seu A empregada

era sua Tudo era seu

25

26

Memórias de sir York S

Maria de Fátima Moreira Peres

O sol intenso no cimento grosso provocava o estalar das favas
que caiam do flamboyant. Dentro de casa, o jeito era se espar-
ramar no sofá sob o ventilador de teto e ficar ali, sem mover
um dedo sequer para que o sangue circulasse lentamente pelas
veias. Ao contrário, as horas, insistentes, tiquetaqueavam sem
parar prenunciando a chegada das visitas de além Norte. – Ai,
que preguiça, choramingava Altina olhando para o jovem Da-
niel, que também se desfalecia do outro lado da poltrona.
O rapaz que morava há um ano na casa de Altina era
americano. Seus pais e a irmã, aproveitando para fugir das ne-
vascas que ocorriam sempre no interior de Nova Iorque naquela
época, vinham visitá-lo no Brasil. Coitados, pensava Altina. Es-
tavam em busca de um pouco de calor, mas mal sabiam que a
temperatura, por aqui, era capaz de gerar tamanha indolência.
Pela foto que Daniel mantinha em um porta-retrato no
seu quarto, desconfiava-se que, pelos traços familiares, a ori-
gem era irlandesa. A pequena Kate, única irmã de Dan, era uma
criança de seus sete anos, com cabelos tão loiros quanto os fios
da espiga de milho verde. Suas bochechas extremamente rosa-
das sugeriam o que o inverno era capaz de provocar. E os seus
olhos, mais azuis impossíveis, comparados somente à cor do
céu do Brasil naquela tarde.
Mas, para Sir York S, nem o calor, nem a preguiça ti-
nham a menor importância. Como um bom inglês, altivo e de
estirpe, a chegada das visitas era motivo de grande alegria e
estímulo. Com casaco preto sobre seus pelos dourados, Sir York

27

S reberia a família como manda a etiqueta. Sempre acostumado
a visitas importantes, sabia se comportar como um gentleman.
Três horas da tarde. O relógio, de origem europeia, toca-
va lentas badaladas quando, da cozinha, o estridente som do
interfone interrompeu toda aquela modorra. Chegaram, balbu-
ciou Dan. Num instante se colocaram de pé e chamaram o res-
tante dos membros da família que se encontrava nos quartos e
foram logo se posicionar para receber os pais e a irmã do jovem
americano. Claro, Sir York S encabeçava a fila pretendendo-se
como hostess. E, entre todos, o único excitado com o grande
momento.
Abraços, sorrisos, malas de um lado para o outro, pre-
sentes e comentários sem fim sobre a longa viagem até o Sul
tomou conta das conversas. A garota, visivelmente cansada, foi
logo se acomodando no sofá. Com um sorriso largo recheado de
metais e gominhas coloridas, vermelhas e laranjas, como quem
se desmancha nas nuvens do paraíso, percebeu que alguém a
olhava fixamente.
Era Sir York S, encantado com a luminosidade que saía
do rosto da pequena Kate, em sua direção. Os olhares se cru-
zaram e num piscar de olhos, não mais do que um milésimo de
segundo, Sir York S estava sobre o colo da menina, abanando
o rabinho cotó. Deu uma boa lambida de boas-vindas naqueles
metais e, rapidamente, sem olhar para trás foi em busca de no-
vas aventuras balançando seus pelos dourados.

28

RECONTAR MACHADO DE ASSIS

29

30

Conceição

Alessandra Fonseca de Morais

Era a Conceição. Era ela mesmo, saindo da farmácia, estava de
braços dados com a mãe, uma senhora já idosa, mas com olhar
esperto, e esta mirou-se em mim. Conceição não.
Eu a conheci no teatro, quando ainda era casada com Joaquim
e ela era solteira, sentamos próximas, meu ingresso caiu, ela
o pegou. Disse-lhe que gostava de teatro, respondeu-me que
gostava de quadros. Rimos ao descobrirmos que tínhamos o
mesmo nome, ela ria muito baixo.
Abaixei a cabeça e comentei com o menino: “não olhe
para a farmácia, amanhã voltaremos”.
Recapitulamos cenas do teatro que acabávamos de as-
sistir, falamos da vulgaridade da atriz loira. Joaquim andava na
frente. Por um momento pensei que talvez eu também poderia
ser loira.
A presença do meu filho me acuava.
Conceição abaixou a cabeça em direção ao menino, como
buscando sondar até onde eu iria na presença dele.
Depois daquele teatro a vi mais algumas vezes, ela sem-
pre em silêncio, como se detrás de um vidro de vitrine. Nos
cumprimentávamos com acenos de cabeça, mas não abríamos
o diálogo.
Eu e o menino paramos na porta do hotelzinho barato,
aproximei-me vagarosamente do balcão, onde estava um sujeito
grisalho nas têmporas, ele sorriu para o menino que eu levava
pela mão. “Veio morar com o pai?” O menino fez que sim, o ho-
mem, com ar de predestinação, deu a mão ao menino.
Seria coerente eu beijar-lhe a testa antes de sair.

31

Conceição sempre de cabelos presos casou-se com Me-
nezes, numa espécie de elegância afogada numa água turva.
Ela tinha quase 30 anos. Era casamento como mulher de se-
gundas núpcias. Eu só sabia a tudo contemplar na cerimônia
conjugal. Esse foi o meu segundo grande encontro com ela. Não
mais precisaria me submeter aos tratamentos indelicados de
Joaquim.
Um casamento de vinte e três anos. Joaquim foi um es-
partilho que me atrofiava. Com seu discurso grandiloquente,
sua mania de andar com livros próximos a barriga, sua pele
descamada, com pintas grossas e vermelhas pelo corpo. O me-
nino ficará com ele, mas poderei ir vê-lo quando quisesse.
O silêncio era a nossa intimidade.
Comecei a encontrar-me com Menezes alguns meses an-
tes do desquite, mandou-me uma carta no início... aceitei o en-
contro em socorro da ordem da minha sanidade. Tornamo-nos
amantes.
Joaquim fora meu vizinho e minha família sempre soube
que eu iria casar com ele. Aos 17 anos já tinha enxoval: lençóis
de linho puro, enfeitados com bainhas e caseados a mão, toa-
lhas felpudas para o rosto, colcha de fustão.
Embruteceu o espírito, arruinou o meu corpo.
Aos 18 anos já exercia minha nobre função: esposa –
dona de casa. Legitimada pelo estado, pregada na missa de Na-
tal. Prescrições do dever ser.
Pus-me de cabelos curtos.
Conceição sempre de cabelos presos a grampos e ondas
conseguidas com ferro de frisar, um ar de existência monótona,
insípida, despida de sonhos.
Conceição sabia do meu caso com o Francisco Menezes,
todos sabiam.
Ele vai à minha casa uma vez por semana. Por minha

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causa Menezes não embruteceu o espírito e nunca usou as re-
gras do costume violento.
Engravidei com muita dificuldade. Ah, a sagração da
mulher! Foram os meses em que Joaquim diminuiu sua violên-
cia.
Era um menino de olhos escuros, por ele continuaria vi-
vendo no meu canto de sombra.
Meu terceiro encontro com Conceição foi na igreja. Ela
usava um camafeu feito com flores de ouro rosado e pérolas.
Era final de ano.
Olhou-me com certa determinação.
“Nos casamos aqui” – furou o silêncio.
Senti meu coração acelerar ao pensar que talvez não se-
guíssemos o roteiro do primeiro encontro.
Agradeceu-me por livrar-lhe do inferno dentro do céu do-
méstico, todas as quintas-feiras. E disse que tinha por Menezes
certa repugnância.
Era a Conceição. Era ela mesmo.

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Missa de Natal

Alzira Maria Ribeiro


Chegamos. As malas, nós mesmas carregamos. Deixamos tudo
no quartinho dos fundos e já fomos para a cozinha preparar um
café cheiroso para os novos moradores da casa do Cosme Velho.
Eles chegariam. Viriam um pouco depois de nós, para encon-
trarem tudo pronto. Depois da reforma que o patrão Menezes
fez, parece outra casa por dentro. Ele mudou a cor das paredes
e pôs guarda-corpo novo na escada que dá para o andar dos
quartos.
Dona Conceição, nova patroa, dará as ordens a partir
de agora. O patrão já recomendou a nós duas para ficarmos
atentas aos caprichos da esposa e para cuidarmos de tudo que
disser respeito à sogra, Dona Inácia, que anda meio adoentada
e não pode mais sair sozinha para ir à missa.
A casa cheira ainda a tinta. O que acontece aqui agora
é tudo novo. Por isso nossa vida tem sido divertida depois da
morte da antiga patroa. Com o atual casamento do patrão quem
sabe ele pega jeito e larga de ser mulherengo!
Casou sem nem esperar o tempo de costume. Tirou logo
a tarja preta da manga da camisa branca. Parece até que já
vinha namorando essa patroa desde antes de a mulher ser de-
funta.
Dr. Menezes continua com uma vida agitada em meio
aos papéis que entram e saem do escritório que ele chama de
Cartório. Aqui é um entra e sai de papéis e nem tanto de pesso-
as. Só vem aqui dentro um bem mandado do patrão, trazer pa-
péis, que Dona Conceição faz questão de receber pessoalmente

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quando o patrão não está. Eles entram sozinhos no quarto que
chamam de arquivo. Até Marineide já reparou a demora deles
lá dentro. Quando tem visita, ficam diferentes. Gente rica tem
destas coisas: falam baixo quando deviam falar alto e pensam
alto quando deviam ficar calados.
Dona Inácia, por exemplo, deu para falar o que não deve
e nem sabemos se o que ela fala é verdade. O patrão, sempre o
mesmo: mulherengo feito ele só. A patroa Conceição sabia des-
de antes de se casar que ele era assim e aceitou. Tomara que
aguente... Sei não! Desde que chegaram, o patrão não quis sa-
ber de recepções e nem de jantares: graças a Deus! Anda saindo
menos, mais acomodado. Mas, nos finais de semana, é sagrado:
sai para demorar. Nunca descobrimos a que horas volta e se
volta! Também Dona Conceição gosta de aproveitar para andar
pela casa durante a noite. Às vezes, fica sentada no canapé du-
rante horas, olhando fotografias e ouvindo música. Essa Dona
Conceição, sei não! É tão espirituosa! Se enfeita para dormir:
passa perfume e usa batom. Nunca vi isso!
Dona Inácia costuma dormir mais cedo e aí ficamos dis-
pensadas por Dona Conceição.
Por estes dias, a casa está mais movimentada. Tem visi-
ta. Um rapaz chegou para participar da Missa do Galo na Corte.
Vi que eles comentavam sobre o assunto na hora do jantar. Mas
o patrão Menezes nem ligou de fazer companhia para o moço.
Desculpou-se em seguida e saiu. Vi que a patroa estava muito
cuidadosa com o visitante e fiquei de olho, observando. Ela ar-
rumou o quarto de costura com roupa de cama nova e colocou
um lampião aceso no centro da mesa redonda da sala depois
que o patrão foi embora e Dona Inácia dormiu.
Dito e feito! Foi a casa ficar mais sossegada e ela desceu
as escadas para reparar melhor o moço. Eu tinha entrado de
novo na cozinha para fechar a janela da dispensa que havia

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deixado aberta e marinar mais uma vez o bendito peru de Na-
tal. É assim todo ano! O patrão tem mania de peru! Aí, fiquei
observando pela fresta da porta. A luz da cozinha, apagada. A
luz do lampião sobre a mesa da sala criava ambiente de leitura
para o moço que ela chamou pelo nome de Nogueira. Eu nem
sabia que era esse o nome dele. E aí começou um vai e vem de
cochicho que nem dava para escutar direito, mas era ela quem
estava mais interessada. Vi que ele ficava sem graça e ela toda
assanhada. É, mas o Dr. Menezes bem que merece! Escutei
quando o moço disse que aguardava o toque na janela que um
amigo daria para irem juntos para a missa de Natal. Vi direiti-
nho quando Dona Conceição beijou ele nas faces. Não sei se foi
só de boa noite, mas mesmo que fosse, achei estranho.
De repente, ela andou em volta dele e ele ficou de pé.
Atentei que ele ia dar um beijo nela. Morri de curiosidade para
saber no que deu aquele estranho acontecimento. Missa que é
missa nem sei se ele teve. Fui dormir porque já era tarde para
quem tem que levantar tão cedo, e as coisas na sala andavam
muito devagar para o meu gosto. Da Missa do Galo não sei, mas
que o sino tocou, disso tenho certeza.

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Sessão maldita

Gustavo Camargo

Dedicado à Andréa e à D. Marízia, amigas
que tanto me contaram sobre a Praça do Lido.

Aquela otomana; tivesse vida, como eu, também teria o que di-
zer. Também sentiria toda a força de um corpo dominado...
Na Praça do Lido, eu a via ler. A cuidadora passeava com
D. Inocência, a mãe, que morava com o casal Menezes no apar-
tamento 71, edifício Calypso. A esposa Bárbara foi avisada da
chegada do afilhado. Fechou seu livro. Adorava romances, mas,
sobretudo, romancistas... A arrumadeira, notoriamente sempre
prestativa, descera para repetir o aviso da empregada:
– O menino chegou. Tá lá na sala, sentado no sofá turco.
Imediatamente, o grupo retornou em minha direção. No
elevador, conduzido em artéria venal, eu já ouvia a conversa...
– De menino é que ele não tem nada.
– Como assim, criatura? O Renatinho ainda vai fazer
dezessete anos.
– A senhora que veja, mas, pra mim, esse aí é homem
feito.
– Néscia, você é mesmo sem noção.
A porta da sala se abriu. Com tudo já preparado para o
momento, Bárbara sabia exatamente o que fazer. Para o êxito
da visita, ela contava com a ajuda de todos.
A suíte de hóspedes tinha sido faxinada e estava pronta
para receber o visitante. Cama trocada, toalhas novas no banhei-
ro, pisos, espelhos, iluminação e mobília limpos; tapetes aspira-

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dos; Néscia cuidara de tudo para sua patroa. Nada podia fugir ao
roteiro.

– Renatinho, como você cresceu!

– Tia Bárbara, quanto tempo! Agora, sou Renato, por

favor. Mamãe mandou lembranças e pediu pra agradecer sua

ajuda.

– Tolice. Você veio por um motivo justo. Néscia vai te le-

var ao seu quarto. Seu padrinho chega logo.

– Muito obrigado. Vou reler Os Três Mosqueteiros, vai

cair na prova.

No espaço, todos nós possuíamos olhos. Estáticos, mi-

rávamos. Todos viam o que se queria mostrar, mas somente

alguns víamos o que se queria esconder. Se Renato era Renato,

Bárbara também era Bárbara. A ducha morna, a pele firme. Ele,

quase dezessete, ela trinta. As paredes dos banheiros, cobertas

de azulejo claro, se arrepiavam. Para uns, não é a carne que é

fraca, é a alma; para outros, não. A mãe, inocente, descansava

no quarto. O almoço seria servido em breve, Finória, a

cozinheira, já avisara.

– Bárbara, cheguei!

A arrogância daquele grito ecoava em mim tanto quanto

em sua destinatária. Aquela voz rasgava a textura das paredes,

fazia tilintar os pingentes de cristal das arandelas, deslocava

as telas. A mera presença rompia a ordem que reinava em meu

interior. Fazia-me sair do prumo. Surgiu então, a interessada,

Bárbara, e pronta para o almoço com o banqueiro, seu marido.

Vinha acompanhada de Renato, de banho tomado e roupas lim-

pas.

– Eduardo, esse é o Renato, nosso afilhado, que está

aqui para prestar exame vestibular, lembra que eu te falei?

– Lembro sim. Mas, e o almoço?”

Passos ligeiros: Finória sobre o piso de madeira. Ecoavam pelo

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longo corredor. Cócegas. Minha espinha tremia. Os quadros nas
paredes viram quando a empregada falou, os lustres ouviram:
– Telefone para o Dr. Eduardo. É do banco.
– Sim? Oi, Otávio... Sim, confirme para mais tarde. Bár-
bara, vamos almoçar. Tenho que retornar ao escritório e não
volto hoje. Vou a uma sessão maldita. Um filme novo.
Sentada à mesa da sala de jantar, D. Inocência aguarda-
va. A mãe nem percebeu o brilho nos olhos dos que chegavam.
A palavra cinema excitara os do patrão, exaltava os de Renato e
produzia nos de Bárbara um tom de luz que refletia o cristal frio
do chandelier, suspenso sobre o centro da mesa. Calmamente,
a esposa falou:
– Finória, pode servir o almoço.
Desfeita a mesa, Renato foi até a cozinha. Queria um
copo d’água. Entre Finória e Néscia, o adolescente, que jamais
havia estado em um cinema, perguntou para elas:
– É perto daqui esse cinema?
Uma porta bateu. Dr. Eduardo saíra de casa. D. Inocên-
cia repousava em seu quarto. Nenhuma notícia de D. Bárbara.
A cozinheira baixou a cabeça e riu baixinho.
– Menino, não fala disso. Mata D. Bárbara de tristeza!
– Mas, Néscia, o que tem de errado com o cinema?
– Não tem cinema, guri. É um puteiro, lá perto dos arcos
da Lapa. O patrão tem uma amante lá. D. Bárbara, uma verda-
deira santa, mal se aguenta de sofrimento.”
Renato não conseguiu estudar o resto do dia. Resmun-
gava. Madrinha mesmo era a D. Bárbara, amiga de infância
da mãe dele. Esse tal de Dr. Eduardo era meio forçado. Além
do que, como é que ele podia fazer aquilo com uma mulher tão
sensacional? A noite caía sobre a cidade maravilhosa; Renato
seguia pensando no que ouvira, e em Bárbara. Seus devaneios
foram interrompidos por batidas na porta do quarto. Era Finó-

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ria.
“– Renato, D. Bárbara está chamando para o jantar.
A mesa do jantar estava posta, sem D. Inocência. Já ha-
via lanchado e estava em seu quarto. Quem esperava Renato
era Bárbara. A cozinheira Finória já servira a comida, e aguar-
dava na copa a hora de retirar os pratos. De Néscia, nenhuma
notícia. Jantaram a sós, tomaram vinho. A anfitriã usava um
vestido leve. Desenho seu, o modelo não revelava nada, mas su-
geria tudo. Pingentes, talheres, espelhos, sousplats, tudo refle-
tia sua beleza e brilhava ao seu redor. Bárbara, modesta, ocu-
pava-se em entreter o garoto. Comeram e beberam à vontade.
Falaram sobre o Rio, sobre literatura, costumes, até filosofia.
Renato queria conhecê-la. Finória interrompeu.
– D. Bárbara, o Otávio do banco está aqui. Disse que
precisa falar com a senhora. Mando ele subir?
– Por favor, Finória. Diga a ele que me espere na sala de
estar. Eu já vou.
Com o funcionário do banco, o encontro, de pé mesmo,
seria rápido. Passos ligeiros sobre os tacos encerados, olhos
vendo tudo. Em casa, eu sempre a seguia. Bárbara foi ao quar-
to do casal. A pasta de trabalho. Documentos desavisadamente
trocados. Na ausência da esposa, Otávio puxou conversa:
– Dr. Eduardo precisa da maleta hoje ainda. Tenho que
levar.
– Esse negócio do Dr. Eduardo no cinema é verdade
mesmo?
– É sim. Se você quiser, eu te levo lá também... aposto
que você vai gostar...
Mal posto no bolso o cartão que Otávio dera ao garoto,
Bárbara entrou na sala. Carregava a pasta marrom. O rosto era
resignação pura. Renato teve vontade de pegar a mulher nos
braços. Felizmente, a saída de Otávio aliviou os ânimos, e a an-

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fitriã sugeriu então um Porto. Renato não conhecia, mas estava
pronto para experimentar o que a dona da casa tivesse para lhe
oferecer.
O menino se assentou na otomana, enquanto Bárbara,
espada quase nua, cruzava a extensão da sala, e fechava as
portas do living. Na sala de jantar, a cozinheira recolhia a lou-
ça, evidências do jantar. A trava da porta girou sem barulho. A
imagem dela percorrendo o espaço coberto de tapetes, paredes
com lambris de madeira e pedra, telas e lustres me divertia.
Magnetizava o garoto. Bastaram alguns toques dela e uma mú-
sica perfeita ocupou todo o espaço. A modernidade gradiente
carioca reproduzia Insensatez. Foi ao som da bossa nova que
Bárbara retornou para perto de seu hóspede. Porto, cálice e
boca. No espaço, aproximados, a combinação seria fatal. Ama-
ram-se na otomana. Todo meu interior viu e ouviu os corpos.
Tremiam calmamente. Os quadros, as arandelas e eu vimos o
voo. Somente Renato não percebeu a La châtre que bailava no
ar.
Amaram-se novamente, e mais uma vez, até que Bárbara
quase dormiu nos braços de Renato. Alguém distante no Calyp-
so parecia ouvir um sucesso da década anterior, Mrs. Robin-
son. No apartamento 71, a vida, em processo encenado, recria-
va a arte. Na penumbra da sala, ela conseguiu se desvencilhar
do abraço de Renato, lamentou quase tudo, cosmicamente, e se
foi para seu quarto. Rezou e dormiu.
No dia seguinte, Finória e Néscia tiveram que assumir
o controle do 71: D. Bárbara estava de cama, tremia de febre,
delirava e se esvaía em lágrimas, a coitadinha. Dr. Eduardo,
ausente. Renato, abandonado.
– A infeliz sofrendo, enquanto o vicioso se dá ao desfru-
te... Ainda conto onde ele está...
– Nem pense nisso, Néscia! Quer causar uma tragédia?

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Renato, quase morto de aflição, comeu sozinho. O pa-

trão avisara que ia ao cinema novamente. Como era possível?

Aquela esposa, bárbara, merecia um homem que a amasse de

verdade.

Renato, sem Porto aquela noite, apenas tentou dormir. O silên-

cio do apartamento ensurdecia seus pensamentos e incendiava

suas emoções. Dezesseis anos. Foi quando se lembrou do car-

tão de Otávio. Ouviu-se um trovão...

– D. Bárbara, D. Bárbara, meu Deus!

– Néscia? Que horas são?

– Abre D. Bárbara. Seu marid...

A porta se abriu lentamente, e Bárbara surgiu de dentro

de seu quarto. Seus olhos não eram os de uma convalescente,

que acabara de acordar. Tampouco os meus.

– Mas o que é isso, criatura? Nem seis horas da manhã,

hoje é sábado, e você me acorda assim.

– D. Bárbara, vem correndo. Tem polícia lá na sala. Pelo

amor de Deus, mataram o patrão!

Bárbara, aparência frágil, apoiou-se no batente da porta, fe-

chou os olhos e tomou fôlego, antes de perguntar:

– Tem certeza?

– D. Bárbara, pelo amor de Deus, a sala tá cheia de po-

lícia. Aquele sofá grego tá que não cabe de policial sentado.

– O sofá é turco, Néscia. Diga a eles que eu já vou.

O quarto de Bárbara, agora só seu, era então seu bou-

doir. Mulher ali, só ela. Na adolescência, ainda em Mangarati-

ba, leitora de Laclos, sabia bem qual era o seu lugar. Ela era

a única que importava. No Calypso não havia mais máscaras.

Quase todos a conhecíamos, inclusive ela mesma.

Sua entrada na cena da sala não tardou. Foi cumprimentada

por seis policiais, que a conheceram de penhoir. Uma Vênus

emergia de seu quarto. Os investigadores se puseram de pé, e

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um deles falou:
– D. Bárbara, lamentamos informar que seu marido fale-
ceu essa madrugada. Uma briga na região da Lapa. A senhora,
por acaso, saberia nos dizer o que ele fazia por lá?
– Lapa? centro da cidade? Mas, não! Eduardo viajou
ontem para São Paulo. Foi trabalhar no escritório de lá. Finória
me disse hoje cedo. Ele, na Lapa?
– O corpo foi identificado pelos documentos encontrados
no paletó. Eduardo Menezes. Não resta dúvida de que é ele.
Finória e Néscia, ocupadas em servir água gelada para os po-
liciais, não conseguiram aparar o corpo que desabou na frente
de todos. Mais um caia sobre a otomana. Em estado de choque,
D. Bárbara mal conseguia abrir os olhos. Trouxeram água com
açúcar, recostaram a viúva na poltrona de couro, mais segura
contra desmaios. Aguardaram sua recuperação com paciência.
Perante os policiais, a imagem de uma viúva, cujo rosto exibia
perfeita desolação com a perda de seu amado. As circunstân-
cias, os investigadores já haviam entendido. Recobrada a maior
parte dos sentidos, Bárbara pediu para se recompor. Precisava
ir ao seu banheiro.
Não precisava de ajuda, mas agradecia a gentileza de dei-
xá-la se refazer. Mencionou a urgência dos devidos depoimen-
tos, e de que fossem tomadas as necessárias medidas legais.
Agora só no mundo, precisava aprender a se cuidar. Finória e
Néscia, suas maiores companheiras, não cabiam em si de tanta
dor. Traída em vida, Bárbara era agora humilhada com a morte
do marido, a pobrezinha.
Sua caminhada até a suíte principal foi lenta. Mulher
bem treinada, conhecia a falsidade natural de uma dama em
choque. Seus pés não mais do que acariciavam o piso de mogno
encerado. O robe liso completamente fechado. A tristeza estam-
pada em seu ser.

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Mal fechara a porta da suíte, tocou o telefone do aparta-
mento. Finória atendeu à chamada. A empregada ouviu, perdeu
a cor e desabou sobre o piso da sala. Com a queda, o aparelho
de baquelite se quebrou. Até a cena doeu em mim. Transporta-
da pelos policiais para a poltrona de couro, a cozinheira repetiu
o que ouvira:
– O Renato, o menino que tava hospedado aqui. Foi en-
contrado morto, no centro, hoje cedo. A mãe dele ligou. Só a
identidade na calça. O resto todo roubado. Esfaquearam o me-
nino, Néscia!
– Ah meu Deus, mais essa pra D. Bárbara? A coitadinha
já com febre por causa da morte do marido.
Um dos investigadores, unanimemente, sugeriu:
– Melhor poupá-la da notícia por ora. Ela precisa se res-
tabelecer antes.
Na suíte, Bárbara, já trocada, ouvia tudo. Sentiu o par
de braços, vindo de trás, que a envolvia: Otávio lhe entregava
um cartão, ensanguentado, que exibia o próprio nome. Bárbara
leu e, rapidamente, destruiu o papel. O porquê de o adolescente
estar no centro, ela não saberia informar. Viera prestar exame
vestibular. Ela, dormia na hora. Ardia em febre. Melhorara com
a ajuda de Finória e de Néscia. Abraçou Otávio. Restava agora o
choque, por conta da morte do afilhado. Uma fatalidade.
Por volta deste mesmo tempo, a administração munici-
pal decidiu proibir as sessões malditas. O risco para os frequen-
tadores era muito alto nas saídas dos cinemas. A vida na Lapa
era mesmo perigosa, mais ainda depois da meia noite. O públi-
co que frequentava as malditas sessões era bem menor do que
o que ia à Missa do Galo. Presas preferenciais para facínoras de
plantão.
À morte assim, duas vezes tão perto, e ambas tão repen-
tinas, Dona Inocência não conseguira resistir. Um dia triste,

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que senti em todo o meu interior. Foi enterrada no mesmo ce-
mitério que Renato. Ouvi que fora em Mangaratiba. O marido
acabara no São João Batista, aonde Bárbara jamais retornaria.
Tinha medo de baratas e de almas penadas.
A viúva decidiu se mudar para Paris, onde, ouvimos an-
tes da viagem, pretendia se estabelecer. Os ares da Europa se-
riam benéficos à sua recuperação, seu médico dissera. Tão so-
frida, a santinha.
Aos meus ouvidos, Finória, a única acompanhante ao
Galeão, imitava para Néscia a voz aveludada de Iris Lettieri cha-
mando o voo:
– Air France, voo AFR71, para Dacar e Paris. Embarque
imediato, portão 9. Voo AFR71, para Dacar e Paris. Embarque
imediato.
Bárbara acabou de ler a última notícia do Jornal do Bra-
sil, que ela deixaria para trás:
Mais um crime choca o Rio de Janeiro. Funcionário do
Banco Menezes & Nogueira é encontrado morto, na garagem do
edifico onde trabalhava. O JB entrevistou o Delegado Machado
de Assis, que considera a hipótese de latrocínio, mas sem pistas
do assassino. Vizinhos relatam que, além da vítima, somente
viram a faxineira do banco.
Antiga de casa, a fiel funcionária estava acima de qual-
quer suspeita, todos garantiam. Além do mais, por que e como
faria uma coisa daquelas a franzina Finória? Muito feliz com
a sorte no Bicho, finalmente comprara seu barraco. Morar no
Cantagalo era tudo o que queria. Néscia confirmaria tudo.
Muito abalada, a faxineira pediu demissão e mudou de
emprego. Até de mim aquela finória sumiu...
Bárbara teve certeza de que fazia bem em deixar a cida-
de. O Rio, cada dia mais perigoso para uma mulher. Ficamos
para trás, a otomana, néscia como a arrumadeira, e eu. Olhos

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e ouvidos que tudo viram e ouviram. Registrei cada passo; sus-
tentei cada pressão, tracei o mapa de esforços da trama quase
moralista. Meu interior sentiu os pesos e os toques de cada
um de seus figurantes. Seus pesos marcados em minha estru-
tura. Nada me foi escondido, tampouco puderam me enganar.
Não poderiam. Nós, pilares, vigas, paredes e lajes, somos muito
mais do que ouvidos.
Ainda vejo a Praça do Lido, mas Bárbara, nunca mais eu
vi. Isostaticamente perdido de amor, canto todos os dias:
– Bárbara, coração dilacerado. Quem nunca amou, não
merece ser amado.
Apenas canto, porque isso meus olhos já não podem ver.

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