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21 autoras de várias cidades do Brasil escrevem contos, crônicas, poesias, depoimentos sobre suas experiências durante a quarentena em época de pandemia do covid-19.

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Published by TODAVOZ EDITORA, 2020-07-13 09:41:02

Letras da quarentena: escrita de mulheres_clone

21 autoras de várias cidades do Brasil escrevem contos, crônicas, poesias, depoimentos sobre suas experiências durante a quarentena em época de pandemia do covid-19.

Keywords: mulheres,covid-19,pandemia,literatura,todavoz editora

Maria de Fátima Moreira Peres
Terezinha Pereira
(Organizadoras)

Maria de Fátima Moreira Peres
Terezinha Pereira

Letra(Osrgadnizaadoqrasu) arentena

escrita de mulheres



Letras da quarentena

escrita de mulheres



Maria de Fátima Moreira Peres
Terezinha Pereira
(Organizadoras)

Letras da quarentena

escrita de mulheres

1ª edição

Belo Horizonte
2020

[email protected]
www.todavozeditora.com.br

EDIÇÃO
Me. Maria de Fátima Moreira Peres

CAPA E PROJETO GRÁFICO
Todavoz Editora

REVISÃO
Imaculada Nascimento

CONSELHO EDITORIAL
Dra. Iara Christina Silva Barroca

Dra. Imaculada Nascimento
Me. Maria de Fátima Moreira Peres

Terezinha Pereira

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Letras da quarentena [livro eletrônico] : escrita
de mulheres / Maria de Fátima Moreira Peres,
Terezinha Pereira, (organizadoras). -- 1. ed. --
Belo Horizonte : Todavoz Editora, 2020.

Várias autoras.
ISBN 978-65-86104-01-1

1. Contos - Coletâneas - Literatura brasileira
2. Coronavírus (COVID-19) - Epidemiologia
3. Crônicas - Coletâneas - Literatura brasileira
4. Depoimentos - Coletâneas 5. Mulheres escritoras
brasileiras 6. Pandemias 7. Poesia - Coletâneas -
Literatura brasileira I. Peres, Maria de Fátima
Moreira. II. Pereira, Terezinha.

20-38960 CDD-869.8

Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427

Todos os direitos reservados.
A reprodução de qualquer parte desta obra só é permitida
mediante autorização expressa do autor e da Todavoz Editora.

Sumário

APRESENTAÇÃO 07
Iara Christina Silva Barroca

GAVETA ARRUMADA 09
Andréa Moreira

NUM TEMPO NOVO 13
Carmélia Cândida

A JUSTIFICATIVA QUE SE TRANSFORMOU EM CRÔNICA 16
Déa Miranda

ESPERANÇA 18
Elma Leite

ANO 2020 20
Fabiola Imbriani

DOIS MIL E VINTE 24
Hila Flávia

DIAS MELHORES PRA SEMPRE 28
Iara Christina Silva Barroca

O DIA DO ABRAÇO 32
Idê Ferreira

INTERLÚNIO 34
Júlia Fernandes

SOLILÓQUIO 36
Juliana Borges Oliveira de Morais

INQUIETUDES 39
Kelen Benfenatti Paiva

DIZEM QUE HÁ FLORES 43
Letícia Palmeira

O REINO DO VÍRUS 45
Lígia Muniz

ROSTOS ENCOBERTOS 46
Luciana Pimenta

PANDEMIA EM 3 ATOS 48
Maria de Fátima Moreira Peres

O RELÓGIO SEGUE NORMALMENTE 51
Maria Fernanda Melgaço Almeida

EU AQUI, VOCÊ ALI 54
Regina Capanema de Almeida

TUDO FICARÁ BEM! 59
Regina Marinho

QUERIDO JOÃO, 62
Renata Teixeira da Silva

QUERO UM MUNDO FORA DO MUNDO 65
Terezinha Pereira

EPÍLOGO 69
Maria Valéria Rezende

SOBRE AS AUTORAS 73

Apresentação

Escreviver a quarentena

É com imenso prazer e com sincera alegria que venho
apresentar a primeira edição do livro Letras da quarentena:
escrita de mulheres, organizado por Fátima Peres e Terezinha
Pereira. Nestes tempos sombrios, em que todos nós estamos
reféns de tantas e tamanhas condições, as privações se multi-
plicam a cada segundo. A cada novo boletim sobre essa pande-
mia que nos consome, o coração resiste sobressaltado. Desde a
chegada e instauração da covid-19 em nossas vidas, as palavras
de ordem designam o imprevisível, o obscuro, o desconhecido,
o inimaginável, o inconcebível. Nestes tempos em que o vírus
invadiu os ares, os lares e os pilares de tantas certezas e con-
vicções, o mundo parece morrer um pouco – ou muito – a cada
dia. Lamentar as mortes, administrar as perdas, gerenciar o im-
provável, conviver com o desconhecido, sobreviver: um emara-
nhado de pungências que nos demandam saúde – física e men-
tal. E enquanto não se vislumbra a cura para o grande mal – ou
enquanto se espera pelo êxito de vacinas testadas em todo o
mundo –, o remédio mais eficaz contra o vírus é “ficar em casa”:
isolar-se socialmente.
E é no escuro deste momento de fundo recolhimento
que Fátima Peres e Terezinha Pereira nos presenteiam com a
sensível e competente iniciativa de publicação deste precioso
livro. Nele, reúnem-se histórias, depoimentos, contos, crônicas,
poemas e reflexões a partir do olhar de 21 mulheres, corajosas
e especiais, sobre as experiências e inexperiências nesta qua-
rentena. Neste cenário, escritoras, atrizes, jornalistas, poetas
e professoras partilham os mais diversos sentidos do ser e do

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estar “num novo mundo”, em textos que nos convidam a cuidar
da “gaveta arrumada”, a entrever a “esperança”, a refletir sobre
o “ano de 2020”, a atribuir sentidos a “um dia para o abraço”, a
decifrar o “interlúnio”, a conhecer o “solilóquio”, a recender a
sensibilidade dos versos em “inquietudes”, a acreditar em “di-
zem que há flores”, a conhecer o “reino do vírus”, a repensar so-
bre “rostos encobertos”, a desvendar a “pandemia em 3 atos”,
a entender que “o relógio segue normalmente”, a designar “eu
aqui, você ali”, a confiar em que “tudo ficará bem”, a se declarar
ao “querido João”, a anunciar que “quero um mundo fora do
mundo”, e, o epílogo “a face descoberta”.
Nessas vozes-mulheres, ouvimos, também, as vozes de
tantas outras de nós, que, por inúmeras razões, não estão tex-
tualmente presentes aqui, mas estão sensivelmente entrelaça-
das em nós, em nossos desafios experimentados e registrados
em tantas linhas. No obscuro dos tempos, é esta solidariedade
feminina que nos sustenta, que nos reforça, que nos empodera
e que nos encoraja a resguardar um teto todo nosso, em que
nossos medos, nossos tormentos, nossas subordinações, nos-
sas alegrias e nossas esperanças ecoem na fraternidade do nos-
so modo de sobreviver.
A diversidade dos textos aqui reunidos faz-se mais que
um convite de Fátima Peres e Terezinha Pereira à leitura, ao de-
leite e à introspecção: este livro faz-se, também, espaço de cura
e redenção no divagar pelo tempo do recolhimento. Vozes, ver-
sos, sentimentos, palavras: escreviver a quarentena pode ser
um belo reencontro conosco mesmos. Pode ser a oportunidade
de nos vermos face a face, e, sendo múltiplas como somos, tal-
vez seja um bom momento para refletirmos sobre as faces que
se tornaram estranhas e ocultas em nós mesmas, ainda que es-
sas mesmas faces ainda nos habitem.

Iara Christina Silva Barroca

Andréa Moreira

Gaveta arrumada

Nasci assim, para ser mulher dos outros. Filha, irmã, es-
posa, mãe, amiga – fui tudo isso, para os outros. De mim? Pouco
sei. Ou melhor, sabia. Até que fui obrigada a viver comigo mes-
ma... Dias depois do anúncio do isolamento social, meu marido
se encontrava na capital, em casa de um dos meus filhos, para
fazer seu checkup anual. Assim, após ter feito uma maratona
em hospitais e laboratórios, toda a família achou melhor que
por lá ele ficasse para que não corresse o risco de levar a tal
“covid” para mim.
Preocupados com a separação (geográfica), meus três fi-
lhos foram sutis nas explicações que iam desde científicas sobre
a mortalidade do vírus em pessoas com mais de 60, até a justi-
ficativa da decisão de que eu deveria ficar em casa sozinha. Até
então, eu entendia tudo. Os jornais anunciavam internações,
intubações e mortes. As vagas nos leitos das UTIs tornaram-se o
desejo proeminente da humanidade ao mesmo tempo em que
era seu maior pesadelo. E, de um dia para o outro, me vi num
mundo mascarado.
Mesmo que, já há algum tempo, eu me familiarizasse
com as mídias sociais, nunca me acostumei com a ideia de xe-
retar a vida feliz dos outros – principalmente porque eu bem
sabia que a maioria das imagens não passavam de castelos de
areia que se desmanchavam de acordo com a maré sentimen-
tal. Outro dia, fui ao casamento da sobrinha do meu genro.
Coisa de novela aquela festa. Cidade histórica, igreja barroca.

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Um ano preparando as festividades. E eu, um mês preparando
um look à altura da realeza. Final da história: tanto investimen-
to para um casamento que durou seis meses. Como assim? Eu
perguntei ao meu genro. Ele, com um sorriso no canto da boca,
respondeu: “Não deu certo, sogrinha”.
Descobri, assim, a efemeridade das relações modernas.
Enfim, cá estava eu sozinha pela primeira vez em toda minha
vida. Os primeiros dias foram fáceis. Limpeza e organização dos
armários, guarda-roupas, estantes... Até que encontrei uma ga-
veta que mudaria minha vida. Meu marido sempre fora extre-
mamente organizado. Em suas coisas, ninguém mexia. Apenas
ele limpava e, praticamente, catalogava seus papéis. Dizia ser
para imposto de renda e nada podia ir para o lixo. Ali, toquei
como que em pergaminhos sagrados. Cuidadosamente, os dis-
pus sobre um lençol branco e limpei cada gaveta/arquivo.
Oscar sempre foi um homem calado e sério – daqueles
que implica com o chinelo virado, com a torneira pingando ou
com o cabo da panela virado para o lado oposto da sua direi-
ta. Acostumei com isso e até usufruí para me tornar uma pes-
soa mais organizada. Meus filhos também. Sem estresse, mas
muito rigor. Fui sua única namorada e ele, o meu. Casamos-nos
jovens. Uma vida normal. Na última gaveta, a certidão de casa-
mento e de nascimento dos filhos envoltas em uma fita de ce-
tim branca já cor de trigo em tempo de colheita. Senti orgulho
do cuidado do meu marido. Tudo tão organizado quanto nossa
vida.
E, por fim, no fundo da última gaveta, bem no fundo,
um envelope pardo escrito de próprio punho: Documentos. Eu
o peguei sem nenhum interesse. Ao colocá-lo sobre os outros,
a aba do envelope entreabriu-se, e vislumbrei a pontinha de
um papel colorido que me chamou atenção. Um galho de flor
em cores suaves e uma letra rendada, gritaram aos meus olhos.
Entre borboletas e corações, incrédula, li uma a uma e desco-

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bri a outra face de Oscar. Uma paixão secreta? Uma amante?
O que era aquilo? Minha cabeça rodopiava em sons e cores,
raiva e medo. Sentei-me no chão do quarto. Imediatamente,
vieram-me todas as lembranças que conectavam a uma trai-
ção. Respirei fundo e chorei por horas. Reli todas as cartas – ele
tinha uma amante. Era fato. E uma filha com ela. Visitava-as,
regularmente, aos sábados pela manhã quando ia à feira e só
voltava na hora do almoço – ele quase não comia, sempre co-
locava um defeito no sal – demais ou de menos – para justificar
sua barriga cheia. Minha primeira reação foi de ódio. Queria
destruí-los. Pensar em tudo que viveu com elas, e não comigo
e meus filhos. Essa fase se transformou em desejo de vingança.
Queria me vingar. Lembrei-me de que eu ainda estava bem; po-
dia arrumar um amante para mim também.
Nessa noite, adormeci no sofá e acordei na madrugada
depois de um pesadelo horrível – eu estava intubada na cama,
doente e triste, e toda a minha família ao redor de mim be-
bendo e conversando alegremente. Levantei-me sobressaltada
e corri ao banheiro e, quando me olhei no espelho, percebi que
tudo que fiz ou deixei de fazer foi uma escolha minha. Abrir
mão dos meus sonhos para viver os dele, isso era inteiramente
minha responsabilidade e de ninguém mais.
O dia amanheceu como sempre. Mas eu era uma nova
mulher. Meu foco não podia ser Oscar e sua vida secreta. Eu
tinha que tomar uma decisão. Minha meta? Eu. Meus desejos?
Meus. Minha família ligava todos os dias. Há um mês eu chora-
ria e contaria minha mágoa debulhada em lágrimas. Mas, hoje,
não. Uma força brotou do meu peito e fiz da minha solidão um
escudo de proteção. Mudei todos os móveis de lugar. Arranquei
as mangas dos vestidos velhos, mas novos (eu os poupava no
armário) – pesquisei tutoriais de mulheres da minha idade e me
descobri uma jovem de 64 anos. Criei uma rotina de cuidados e,
em três meses de pandemia, me reinventei.

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Oscar? Ele retornou essa semana para casa. Foi direto
aos seus arquivos. Nada me disse, nem perguntou. Olhou com
espanto para a nova casa e para a nova mulher. Não me ques-
tionou quando viu suas gaiolas com as portas abertas e nenhum
de seus canarinhos por lá – (essa foi a fase da vingança). Nada
foi falado, nem cobrado. Eu me sinto mais feliz hoje. Aprendi a
me amar. O futuro? Quero conhecer a Grécia e nadar nua na
praia de Mykonos. Quero voar num balão na Capadócia. Tenho
mil planos para o futuro. Descobri que a única gaveta que pre-
cisava ser arrumada era a minha. Oscar? Ora, se ele quiser que
me acompanhe, senão voarei em minha companhia.
Não havia mais sorrisos.

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Carmélia Cândida

Num tempo novo

De uma hora para outra, o mundo mudou. Não é mais
o velho mundo de pouco tempo atrás. Com isso, o valor e o
sentido das coisas também mudaram. Luxos, viagens, vaidades,
planos não importam mais como antes. A preocupação maior,
para quem não nega a gravidade do que está acontecendo, pas-
sou a ser sobreviver.
Está mais penoso do que o esperado, passar por uma
pandemia. O coração fica tenso. Não está fácil relaxar. Procuro
me desligar das notícias da tevê. Não para fechar os olhos para
o que está acontecendo, mas é que, para manter o equilíbrio,
preciso escapar para o que puder nos levar a outros lugares.
Ouvir música, ler, assistir filmes e séries, conversar, ficar sem
fazer nada e cozinhar têm ajudado muito. O cozinhar, de que eu
já gostava, me parece, agora, ainda mais especial.
Às vezes, com tantas restrições necessárias, a gente para
e pensa “mas a vida, o mundo, agora é isso?” Dá um desânimo
danado. Uma vontade de dormir e acordar somente quando
este período nebuloso passar. Mas a gente sabe que não pode
nem deve reclamar, e a gente respira e não reclama. A gente só
está se permitindo, nesses momentos, não ser forte o tempo
todo e desabar um pouquinho. Só assim, para suportar tudo
que estamos passando. Então a gente precisa dizer pra gente
mesmo e para os outros: “vai passar, vai passar!”
Há quem fique preocupado com a necessidade de pro-
duzir neste período, principalmente por estarmos com mais

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tempo livre. Mas por que teríamos que nos manter produtivos
em uma pandemia? Por que a gente não pode apenas ver os
dias passarem? Contemplar os entardeceres, se aquecer pela
luz do sol, sem se preocupar com tempo, produção, relógio? E
produzir somente se, e quando quiser?
Eu não quero nem tenho que ser produtiva o tempo
todo. Muito menos em um momento tão tenso. Minha criativi-
dade não obedece ordens. Gosto da liberdade, de ser livre para
produzir somente quando minha vontade quiser. E está tudo
bem. Mas, por incrível que pareça, minha criatividade está mais
aflorada. Estou mais introspectiva, mais reflexiva, com as emo-
ções afetadas, e isso tem feito com que eu tenha sentido mais
necessidade de me expressar por meio da literatura.
Sinto os afetos falarem mais alto. A incerteza do ama-
nhã tem nos levado a demonstrar mais para as pessoas o quan-
to elas são importantes para nós. Muitos ficam pensando no
que virá depois. Se estaremos mais humanizados, se seremos
mais solidários e afetivos, se estaremos mais fortalecidos. Será?
Para alguns, quem sabe. Para outros, numa visão realista, difi-
cilmente, pois, com tantos mortos, tanta tristeza, muitos estão
indiferentes, se mostram insensíveis e egoístas.
Vamos viver como pudermos. Quem puder aprender,
aprenda. Uma coisa é certa: um novo mundo está se fazendo
bem diante de nossos olhos. Esse novo mundo está para che-
gar, quando tudo tiver passado. Alguns de nós ou dos nossos
poderão não estar lá. Mas vamos acreditar que não será assim.
Vamos acreditar que virão dias melhores. Por mais difícil que
esteja, a gente precisa buscar motivos pelos quais agradecer. E
a gente tem. Basta olhar à nossa volta. Agradecer deve ser um
exercício diário. Eu sei que está difícil, mas a gente não pode
perder a esperança.
Eu preciso pensar no tempo em que voltarão os encon-
tros, as risadas jogadas ao vento, os abraços ternos e aperta-

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dos, as conversas ao pé do ouvido, a proximidade. Eu quero
acreditar que, quando tudo passar, será grande a fome de viver,
de aproveitar cada momento, de sentir tudo intensamente, de
recuperar o que foi perdido, no que for possível.
Quando esse tempo chegar, eu quero estar nele. En-
quanto ele não chega, eu digo a mim mesma que viver é se
fazer, se refazer; é se quebrar, mas juntar todos os pedaços e
ficar inteira de novo. Ou, como diria Guimarães Rosa, “é um ras-
gar-se e um remendar-se”. Eu só não quero estar sozinha nesse
processo. Eu não estou. E saber disso me conforta.

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Déa Miranda

A justificativa que se transformou em crônica

Fui convidada para participar de um livro digital. Olhei
rápido para o título e era um projeto sobre pandemia. Sem abrir
a página, para me inteirar melhor do assunto, pensei em res-
ponder, justificando o motivo de não poder aceitar o convite.
Escrevi algumas linhas e pensei: “Preciso explicar melhor. Afinal
não é todo dia que recebemos um convite que tanto nos agra-
da. Preciso deixar claro que me interessei muito, mas que não é
viável para mim neste momento”.
E, assim, escrevi: “Infelizmente não vou poder fazer par-
te desse livro. Para a maioria, este período está sendo propício
para se ocupar com coisas diferentes do trabalho, mas, para
mim, não está sendo assim. Achamos que era conveniente dar
férias para a moça que trabalhava conosco.
Agora assumi de fato as prendas do lar. Lavo, passo, co-
zinho, limpo a casa... Estamos vivendo dias muito difíceis com
o risco do contágio com esse vírus que, em muitos casos, pode
ser fatal. Por isso estou me ocupando bem mais com a higieni-
zação da casa. Passei a colocar um pano molhado com água sa-
nitária na entrada que, de vez em quando, precisa ser umedeci-
do. Além da limpeza normal do banheiro, ainda esborrifo água
sanitária ou álcool nas pias. As máscaras também precisam ter
cuidados especiais na lavagem.
Tenho uma netinha linda que é muito apegada a mim, e
eu a ela. Tudo que vou fazer, ela quer ajudar. Imagine só como
sairia esse texto! Tenho também loucura por plantas. O cuidado

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com elas faz o tempo parar e aproveito para dar umas voltinhas
por aí, mas, quando regresso, levo um susto com o relógio me
mostrando o tempo real. Os três cachorros, que me rodeiam o
tempo todo, gostam muito de carinho e de atenção e, ainda,
trato dos passarinhos, que vêm comer canjiquinha na pequena
árvore do nosso quintal. Ia me esquecendo, trato de um calan-
go também. E olhe que ele está bem gordinho! Não sei o por-
quê, mas os calangos sempre me chamaram a atenção. Desde
criança, eu estranhava o fato de eles ficarem imóveis nos ob-
servando com os olhos fixos. Parecia que queriam interagir. De
vez em quando, balançavam a cabeça como se concordassem
conosco.
Portanto, não há espaço nos meus afazeres para escrever. Fica
para uma outra oportunidade. Muito obrigada pelo convite!”
Diante de minha resposta com todas as justificativas,
não esperava por nenhum contato. Ia ficar só mesmo um pesar
que seria esquecido tão logo recebesse o abraço apertado, mis-
turado com uma carinha sorridente que gosta de dizer sempre:
“Vovó, eu te amo demais! Eu nunca vou te abandonar!” Não sei
por que, mas ela sempre me diz isso, e eu acredito sem sequer
um pinguinho de dúvida.
Para meu espanto, recebo uma mensagem, com algo
surpreendente, que dizia ter gostado do que eu havia escrito e
sugeria que fosse transformado numa crônica para o livro. Sem
compreender bem, reli aquelas palavras. Como poderia uma
justificativa se transformar em um texto para o livro? Abri a pá-
gina do projeto e vi a explicação do tema: “reflexão e sentimen-
tos das mulheres em tempos de pandemia”.
Parece que, quando as coisas precisam acontecer, tudo
se encaminha. Sem saber, eu havia dado esclarecimentos que
eram exatamente o tema do livro. E, aí está “A justificativa que
se transformou em crônica”.

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Elma Leite

Esperança

Os dias tinham uma luminosidade intensa.
A paz e o amor caminhavam entre nós.
A felicidade tinha um riso frouxo.
Vivíamos os momentos com a ternura
das horas desocupadas.

Nunca imaginei que um vírus invisível,
mas inigualavelmente poderoso...
fosse destruir num ínfimo instante
o que tínhamos planejado ser eterno.

De repente, você partiu.
O silêncio rasga meu peito
como lâmina da morte.
E eu só, deixo que o meu coração
se una a outros tantos...
dilacerados pela mesma dor.

Mulheres que viram filhos, pais ou maridos
terem a vida ceifada tão de repente,
numa velocidade monstruosa,
terrivelmente inacreditável.
Todas nós carregamos na alma
essa angústia vivida.

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Eram dias de esperas intermináveis
e ansiedades intensas.
Desejo de cura, de vida, de renascer...
mas, para muitos foi em vão.
Nessa luta, só alguns resistiram.

Hoje, na janela de um tempo incerto,
vejo com olhos de tristeza essa pandemia,
que com asas escuras, sobrevoa rasante
tantos lares e sem compaixão, destrói vidas.

Presa a esse pensamento, recolho na minha dor,
fecho a janela da angústia que me atormenta
e em minha memória revivo...
a felicidade que era nossa - Visto-me de fé!

Nesse momento, eu me vejo novamente viva,
com a esperança de um novo amanhecer
sem lágrimas, sem dor, sem esperas...
É a força da mulher que reverbera em mim.
É o desejo de que todos possam...
novamente recomeçar. É o acordar da esperança!

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Fabiola Imbriani

Ano 2020

Janeiro 2020. Desde que nasceram meus dois filhos
pensei em me dedicar só a eles, mas, para os meus 40 anos,
decidi fazer uma festa toda para mim, em estilo brasileiro, para
que ficasse para sempre no meu coração. A minha festa, vieram
todos os meus amigos, todos os meus companheiros de traba-
lho, minha família inteira; ninguém faltou naquele dia. Os meus
amigos brasileiros me ajudaram a organizar tudo perfeitamente
e fizeram todos se divertir. Uma festa muito legal, que deu força
e energia não só a mim, mas a todas as pessoas que vieram fes-
tejar comigo. A partir daí, começou a chegar uma gripe muito
forte que, pouco a pouco, pegou 80% dos convidados da festa e
não só eles, se não a cidade inteira. Todo mundo doente, esco-
las praticamente vazias, gripes que passaram a ser bronquites…
algo muito estranho estava acontecendo. Nunca tinha visto
uma gripe chegando tão rápido e tão forte. Se tivesse atrasado
a festa por uma semana, teria ficado quase sozinha. Que coisa
mais rara, pensei. Tudo bem, um inverno estranho pode acon-
tecer, vamos para a frente que vai chegar logo o verão.
Fevereiro 2020. Na televisão, começam a falar constan-
temente de um vírus que estava matando pessoas na China e
que podia chegar a ser um perigo para o mundo inteiro: o Coro-
navírus. Meu marido ficava colado à televisão para escutar estas
notícias e eu falava para ele: “Aqui não vai acontecer nada, fique
tranquilo e pense em dormir”. No entanto, começaram alguns
casos também na Itália, e as pessoas se preocupavam sempre

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mais. Indicavam-nos cuidados básicos para evitar o contágio,
que nós respeitávamos, mas ainda com muita superficialidade,
pois aqui, em Lecce, o vírus não ia chegar. De repente, o norte
da Itália se viu preso do vírus que começou a se espalhar numa
pequena cidade chamada Codogno. Aquela área virou “zona
vermelha”. Parece que todos estiveram em Codogno antes de
viajar para todo o resto do mundo. As notícias começaram: caso
positivo no Brasil em uma pessoa que tinha estado de férias
em Codogno; caso positivo na Alemanha em uma pessoa que,
antes, tinha trabalhado em Codogno; caso positivo em Aradeo,
perto de Lecce, um rapaz que tinha feito um curso em Codogno.
Que foi isso? Até aquele momento, ninguém tinha ouvido esse
nome e, de repente, todo o mundo tinha passado por lá...
Março 2020. Depois de fechar todas as escolas, o go-
verno resolveu declarar a Itália inteira “zona de risco”. O Presi-
dente Conte declarou isso na televisão, com muita preocupação
sobre os números de casos positivos e de mortes que estavam
crescendo tão rapidamente. Que ansiedade, todos fechados
em casa sem poder sair, a não ser para ir ao supermercado, far-
mácia e trabalho imprescindível. A Itália parou: escolas, empre-
sas, lojas, museus, cinemas, parques, academias, aeroportos…
tudo! Tudo fechado! Incrível, parecia um filme de ficção cien-
tífica. “Mãe, o que está acontecendo?” É verdade, não posso
me esquecer que sou mãe e que meu primeiro objetivo tem
que ser tranquilizar as minhas crianças. “Está tudo tranquilo, só
que tem um vírus safadinho que não quer que saiamos, porque
senão vamos ficar muito doentes, então é melhor ficar aqui em
casa”. Crianças acreditam em tudo o que nós, adultos, falamos.
Foi só explicar isso para eles que, de repente, o desejo deles de
sair, de ir à escola, de ir ao parque, sumiu, porque a mãe falou
que isso estava certo. Tudo bem, então, agora que acreditaram,
temos que inventar uma forma de deixar este tempo em casa
passar na maior tranquilidade. Organizamos um “quarto-esco-

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la”, um “quarto-livraria”, um “quarto-academia”, um “quarto-
cinema”, um “quarto-restaurante” e, com eles, brincamos de
imaginar que tudo isso existia de verdade. Que felicidade ver
a cara deles quando falava “vamos comprar pipocas que agora
começa o filme no cinema”. Quando as crianças dormiam, era
o momento para enfrentar a realidade: pessoas estavam mor-
rendo a cada segundo, o vírus estava se espalhando, pessoas
estavam perdendo o trabalho e ficavam sem comida…
Abril 2020. O Presidente Conte saía mais ou menos a
cada 15 dias para dar notícias terríveis; o lockdown tinha que
continuar porque a situação era muito grave. Noites sem dor-
mir, chorando a noite inteira, pensando nos meus pais que es-
tavam em perigo, pensando no trabalho que, pouco a pouco,
estava desmoronando, pensando nas crianças que estavam
perdendo parte da vida delas. Ainda bem que chegava a manhã
e, sendo mãe, minha missão cotidiana era a de esconder dos
meus filhos a ansiedade e o medo e continuar a vida anormal
fingindo que fosse normal. Mas eles gostavam; gostavam de fi-
car todo o dia em casa brincando com o pai e a mãe que nunca
tinham visto durante tanto tempo em casa. Chegaram até a di-
zer que gostavam de ficar sempre em casa, pois, assim, podiam
estar o tempo inteiro conosco. Estas palavras, e o carinho deles,
foram as forças verdadeiras que nos faziam suportar toda aque-
la situação e esperar por um momento mais tranquilo.
Maio 2020. Começa a “Fase 2”. A Itália começa, pouco a
pouco, a abrir e a voltar à normalidade. Bom, na verdade à nor-
malidade não voltou porque muitas empresas e lojas fecharam,
muitos ficaram sem trabalho e começou a fase do desespero,
não mais por causa de saúde, porque os números de casos esta-
vam descendo, mas desespero econômico, crise total. Então, o
poder de decisão foi delegado a cada região e, assim, começou
a ser tudo mais complicado e mais confuso: no lockdown havia
controle para tudo o que tínhamos que fazer; na “Fase 2”, já não

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havia regras fixas, cada região decidia por si e, assim, começa-
ram a abrir tudo.
Junho 2020. Começa a “Fase 3”, tudo mais relaxado, os
números estão baixando, abriu quase tudo (quem sobreviveu).
Será que essa tranquilidade é só o resultado de mais de 2 meses
fechados em casa? Ou o vírus foi embora e já não vai voltar?
Ainda não sabemos, mas todos, principalmente os jovens, vol-
taram quase à normalidade; todos juntos, sem máscaras, co-
meçamos a respirar o ar de verão, de liberdade; então, fomos
à praia, às ruas, voltamos aos abraços e beijos que tanto nos
faltaram durante este tempo…será que acabou? Ou vai voltar?

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Hila Flávia

Dois mil e vinte

No dia dois de janeiro de 2020, meu companheiro João
e eu fomos para a beira do lago. Nosso Lago de Furnas. Há tan-
to tempo tomamos conta dele, que temos direito a usucapião.
Posse mansa e tranquila, sem contestações. E por lá ficamos até
meados do mês. Na volta, trouxemos conosco muita chuva. Um
aguaceiro sem trégua, provocador de enchentes, alagamentos
de ruas, desabamento de casas e transbordamento de rios e
córregos. Ficamos quietos em casa. Ao ser convidado para o en-
contro mensal com os irmãos, João respondeu: – não posso ir,
a defesa civil não me liberou. Então, chegou fevereiro. Na mes-
ma toada. Voltamos ao trabalho. Depois da aposentadoria, faz
tempo, tornei-me costureira da Santa Casa de Misericórdia de
Belo Horizonte. João retornou às lides jurídicas e contratuais.
Nos meados do mês, começou a surgir no noticiário um rumor
de um vírus na China. Tão longe! Do outro lado do mundo. O
rumor aumentando, surgiram as notícias de que já havia gente
com a mesma doença na Europa; um alastramento sem prece-
dentes e de uma rapidez espantosa.
De repente, caso no Brasil. Gente vindo da Europa. Con-
taminação no Hemisfério Norte. Casos na América do Sul. Casos
por todo lado. Criação de grupos de estudo de um vírus novo
e desconhecido. Tratamento ainda a ser estudado. Médicos fa-
zendo o possível e o impossível. Outros profissionais da saúde
convocados. De repente, de repente, muito de repente mesmo,
estamos dentro de casa.

24

Quando era menina, ouvia de muitos idosos casos da
“gripe espanhola” que assolou o mundo e chegou a Pará de Mi-
nas, minha amada terra natal. Quando me casei, ouvia das tias
do João que três irmãos de meu sogro morreram vítimas dessa
epidemia. E ficava pensando: – como chegou, tão rápido ao
Pará, uma gripe vinda de tão longe? Ninguém viajava! Era raro
chegar um viajante na terra. Perguntei quantas vítimas houve
na cidade. Ninguém sabia. Mas, depois, soube que a média de
falecimentos na cidade, até 1918, era de umas 80 a 90 anual-
mente. Em 1918, 1919 e 1920, foram quase 300 mortes por
ano. Isto, numa população que, penso, seria de umas 10.000
pessoas.
Mas estamos aqui, em Belo Horizonte, numa situação
de isolamento social. Quarentena. Sem sair de casa desde o fi-
nal de fevereiro. E as coisas passam pela cabeça numa rapidez
de vento. As lembranças estão à flor do pensamento e as per-
guntas não param de serem feitas. Como assim? Por quê? Até
quando? Como ficaremos? O mundo vai piorar? Vai melhorar?
E as atitudes são ressignificadas. As mais singelas. Por exemplo,
rezo todas as noites uma oração dirigida ao Arcanjo São Miguel.
Quando fui estudar em colégio interno, todas as noites íamos à
capela fazer nossas orações. E dentre elas, invocávamos São Mi-
guel. E como foram sete anos de orações, a tatuagem foi feita.
Nunca mais deixei de rezar a prece. O interessante é que, na-
quela época, ainda não tinha acontecido o Concílio Vaticano II,
usávamos véu para entrar nas igrejas, o sacerdote celebrava em
latim e ficava de costas para o povo. E, neste contexto, a oração
era também medieval. Entre os pedidos ao Arcanjo, proteção
contra incêndio, ladrões, toda epidemia e doença contagiosa.
As grandes pragas da Idade Média. Incêndios sem controle, la-
drões nos caminhos, epidemias sem remédios e doenças con-
tagiosas sem possibilidade de contenção. Muitas vezes pensei
em trocar esse pedido por males mais modernos como infartos,

25

cânceres, assaltos, acidentes de carros. Mas fui deixando. Num
certo tempo, nem sei mais quando, até acrescentei. Mas o hábi-
to criado há mais de sessenta anos falou mais forte. Agora, não
é que os pedidos fazem sentido?
Cada dia deste isolamento social é diferente do outro,
apesar de estarmos fazendo tudo sempre igual, todos os dias.
Que raciocínio complicado, mas é isto mesmo. Todos os dias as
coisas são iguais e estamos diferentes. Ora preocupados. Ora
tranquilos. Ora com medo. Ora valentes. Ora esperançosos. Ora
conformados. Em nenhum dia fui igual ao outro. E pensei: isto é
o certo. A cada dia, os seus problemas e o seu tempo. Li tantas
vezes este conselho. O “Olhai os lírios do campo” é de minhas
reflexões prediletas. Então, qual o motivo de me sentir inquieta
se acredito com firmeza na Palavra?
Quando surgiu esta situação inesperada, a quarentena,
procurei uma palavra que a definisse. Tenho por hábito procurar
definições e, comumente, abro o dicionário para encontrá-la. E
penso que seja “perplexidade” a palavra. Perplexidade significa
estar diante de algo perplexo. Isto é, de algo indeciso, relutan-
te, hesitante, que nos torna atônitos e espantados. Enfim, sem
entender e sem que existam explicações que satisfaçam. Não
só a mim, mas aos médicos, cientistas, pesquisadores, profis-
sionais que estudam as doenças e suas consequências nos or-
ganismos de seres vivos. Ninguém sabe exatamente do que se
trata, como se trata e se existe tratamento eficaz. Um mistério
que está sendo, aos poucos, desvendado, às custas de muitas
mortes e de muito trabalho. Por que a quarentena? Por que o
isolamento social? O que foi dito e redito é que é necessário um
tempo para que a sociedade se organize, instalando centros de
tratamento. Então, quanto menos pessoas forem contaminadas
mais tempo haverá. Não que estejam imunes. Apenasmente
adiarão sua contaminação. Nos jornais escritos e falados, na in-
ternet e nas mensagens que nos alcançam, ainda não apareceu

26

uma só opinião concordante em tudo. Há pontos acordes, aos
quais são acrescentados uma ou outra opinião pessoal. Lê-se
documentos assertivos sobre pontos de vista absurdamente
discordantes. Antagônicos mesmo. Mas ditos com a ênfase de
uma pá de cal. Definitiva e acabando com opiniões contrárias.
Inúmeros documentos assim afirmando e concretando teses
conflitantes. Então, além de perplexidade diante da doença em
si, existe a perplexidade de em quem acreditar.
Quando tudo isto passar, é o que mais se ouve. Impres-
so nos jornais, ditas em noticiários e entrevistas, esta é a frase
mais comum. Quando tudo isto passar. E me veio à memória
minha querida tia Lia, irmã de meu sogro que, quando pergun-
tada sobre a idade, dava sempre um ano a menos. Toda a família
achava graça, mas ninguém falava nada. Um dia, lhe perguntei
por que escondia um ano na sua idade. Ela falou muito tran-
quilamente: – “não conto o ano que fiquei doente e fui para a
casa de meu irmão em Divinópolis. Fui muito bem tratada mas
fiquei com tanta saudade de minhas filhas que ficaram em Belo
Horizonte e tão preocupada com elas, que decidi saltar aquele
ano”. Agora, estou pensando em fazer o mesmo. Saltar 2020.
Estou aqui, em casa, colocando em palavras pensamen-
tos tão desconexos, tão emaranhados, que fico desconfiada
que, se alguém for ler daqui a uns tempos, vai desconfiar que
esta quarentena da covid-19 deixou as patafufas de miolo mole.
Será? Louvada seja a vida! Ainda estou com os miolos funcio-
nando.

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Iara Christina Silva Barroca

Dias melhores pra sempre

É muito curioso refletir sobre o delicado momento por
que passa o mundo - o das coisas e o das pessoas. De repente,
tudo ficou vazio e cheio de nada – ou do nada? O silêncio se in-
terpôs às vozes. A solidão ocupou todos os espaços. De repen-
te, ninguém está a salvo: uma pandemia inédita, de origem e de
caráter essencialmente desconhecidos. De repente, a ciência se
esvaziou: de conhecimento, de teorias, de estruturas cristali-
zadas – de alguma esperança? Em nada cabem as explicações.
Tudo virou "se", "talvez", "ainda que", "desde que", "quando",
"assim que"... A sintática se esvaziou; nenhuma conjunção su-
bordinada ousa investir em fazer bem significar frases princi-
pais. As regras não definem mais. Aliás, exceções, agora, mais
que nunca, confirmam as regras. Todos condicionados às extre-
mas medidas de "proteção": uso de máscaras, álcool em gel nas
mãos, água e sabão em abundância e com frequência e, dentre
tantas outras medidas excepcionais, a vilã de todas elas: o iso-
lamento social. Incomoda-me pensar nisso. Por que o isolar-se
socialmente parece mais grave e mais abrangente que a con-
dição do isolamento em si? No meu inquieto modo de pensar,
somos, mais que seres sociais, seres sensoriais. E o sentir impli-
ca em estarmos alinhados a situações essencialmente adversas.
É preciso, por exemplo, conviver com o frio e com o calor (do
tempo e das coisas); é necessário enfrentar, diariamente, dores,
temores, tumores, rumores, desordem, desamores e tantos ou-
tros infortúnios. É imprescindível dormir para acordar, assim

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como cair é premissa para se levantar. Todos os nossos dias são
constituídos de adversidades e concessões. Eu, por exemplo,
queria ser composta da leveza das asas de uma borboleta, da
transparência das águas revoltas em alto mar e da profundi-
dade dos oceanos. É um sonho – ou uma quimera? Entre uma
definição ou outra, sobrevive a esperança equilibrista: esta que
nunca me falta e que em tempo algum me desampara. É tam-
bém ela que me faz sentir, por muitas vezes, na contramão do
mundo quando o assunto é isolamento social, pois tenho que
confessar que este mártir dos tempos atuais tem sido alvo de
minha força e redenção. Talvez porque eu esteja, ainda, em um
tempo em que o meu modo de "ser social" não preenche os an-
seios que a modernidade virtual se nos impõe, sobrevalorizan-
do momentos que exibam cliques concretos de aparências em
conformidade com uma (falsa?) versão de si mesmo. A análise
que sustenta meu modo de refletir sobre os incansáveis relatos
de pessoas que insistem em "culpar" o isolamento social por
suas ausências, demências e irreparáveis depressões ampara-
-se no trágico humano cotidiano de sobreviver, diariamente, ao
adverso. Portanto, nada está diferente do que deveria ser.
Lamento, profundamente, que a morte tenha assola-
do milhões de pessoas, assim como lamento, em mesmo grau
de profundidade, o caos econômico e social que assombra a
maior parte de nossa população, mas lamento, na mesma me-
dida e proporção, todas as mortes, sejam elas por que causa
forem – ou tenham sido. Mesmo aquelas mortes em que to-
dos insistem em dizer: "foi melhor assim", ou "já era tempo",
ou mesmo "morreu como queria, fazendo o que gostava". In-
sisto em declarar que todos os tipos de morte me tocam, me
emocionam, me sensibilizam, me recolhem no dentro de mim
mesma por dias, semanas, meses, anos... E o isolamento me
fez/faz/tem me feito mais produto do que causa de sentidos.
Nele, posso abraçar mais minha própria vida, já que não posso

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abraçar pessoas; através dele, posso me projetar no real espe-
lho que me define, mediante o reflexo das imperfeições que
me constituem, sem que eu precise me espelhar diretamente
no outro ou nos outros que são apenas alvo de alcance de uma
perfeição fictícia e imaginária. Na solidão à qual o momento nos
condiciona, posso sair à rua com máscaras reais e concretas,
sem precisar me valer daquelas que, eventualmente, o cotidia-
no me força a usar, para manter a elegância e a finesse frente
às faces de falsidade e de perversão que, por vezes, estão ao
nosso lado. Afinal, civilidade e cordialidade ainda são essen-
ciais, em todos os momentos. Confesso: sinto o peso do escuro;
pressinto horríveis temores pelo que há de vir; sobressalto-me
frente ao desconforto imanente a tudo o que nos tem sido tá-
cito, desconhecido e impreciso, mas, por outro lado, miro-me
na solidez e na exuberância da natureza, que se reconstitui,
com fina elegância, aos maiores desastres, conferindo contor-
no a suas catástrofes. Em meio a este caos mundial, penso em
todos os mares do mundo, em todas as árvores, em todos os
bichos, em todas as plantas, em tantos ares: tudo permanece
sereno e calmo, e segue seu ritmo natural independentemen-
te de nossos assombros, como se não fôssemos parte de um
todo comum. Não obstante, sigo aprendendo e apreendendo
novas realidades, novos desafios, novas possibilidades que che-
garam junto com o isolamento social. Hoje, posso cultivar a su-
til ilusão de ser dona do meu tempo; posso gerenciar minha
lista de prioridades. Aliás, o tempo de hoje comporta minhas
prioridades. Hoje, posso ver apenas algumas poucas pessoas,
mas todas essenciais para mim. Hoje, posso cozinhar mais, ler
mais, dançar mais, cantar mais. Hoje, não preciso usar batom;
não preciso ter as unhas feitas nem o cabelo penteado. Posso
andar descalço. Posso estar desnuda. Meu trabalho continua
o mesmo – talvez até maior e em tempo de dedicação mais
que exclusiva – assim como o tempo corre nos relógios, intacto,

30

sem se abater com os números da pandemia, com o ritmo das
mortes e com o exponencial deslimite de todo o caos instau-
rado. Meu tempo corre também: vivo os segundos das horas
na tela do computador, nas páginas de muitos livros, nas cenas
emocionantes dos filmes, nos versos de inúmeros poemas, nas
conversas no WhatsApp, nas chamadas de vídeo, nas ligações
imprescindíveis. Quando o caos e a melancolia se aproximam,
chamo por Caetano, e pondero: "existirmos, a que será que se
destina?". No verso dele, ecoam sopros de Clarice, advertindo:
"viver ultrapassa qualquer entendimento." No mesmo ar, trans-
borda a prece de Vander Lee: "Ó, Pai, dá-me o direito de dizer
coisas sem sentido, de não ter que ser perfeito, pretérito, sujei-
to, artigo definido." Para embalar esse encontro sobrenatural,
que recolhe tantas vozes, penso nos versos de um cantor e com-
positor mineiro, que dizem: "Vivemos esperando o dia em que
seremos melhores. Melhores no amor, melhores na dor, me-
lhores em tudo." E isso ecoa em mim como uma oração; uma
prece de mãos postas. Reforço, por isso, a necessidade de bus-
carmos enfrentar, e, consequentemente, superar o incomum
sobrenatural com mais tolerância, inteligência e sensibilidade.
Tendo por inspiração singular a obra de Lya Luft, convido-lhes
a repensar e a recriar novos sentidos para o silêncio, para o in-
comum e para o improvável na constituição de novos sentidos
para o "novo mundo" ou o novo tempo ou o novo humano – ou
como queiram chamar esse "novo" inesperado e imprevisível
instaurado: “se uma parte de viver são escolhas, a outra parte
é milagre dos deuses. No fim, tudo estará apaziguado. Haverá
um fechar de pálpebras e um esquecimento. Não haverá mais
começo nem fim, nem pensamentos, porque serão supérfluos.
Tudo será intuição. Não haverá mais palavras.” Tenhamos cora-
gem. Busquemos dias melhores – pra sempre. Continuemos em
casa.

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Idê Ferreira

O Dia do Abraço

Até então, não havia percebido como gostava de suas
coisas, de sua casa. Vivia ligada no automático, sem observar
os mínimos detalhes que compunham seu universo doméstico.
Na obrigação de permanecer em isolamento social, começou a
planejar seus dias. Segunda, ler e arrumar armários. Na terça:
ler e cuidar das plantas. Na quarta: ler e costurar, e assim por
diante. Não perdia um noticiário. Em um mês, fez cento e cin-
quenta máscaras para doar e leu seis livros.
No mês seguinte, sua coluna deu um tranco e a máquina
de costura pifou. Teve que pedir socorro a sua fisioterapeuta
para melhorar. A partir daí, deu um basta; começou a acordar
mais tarde, parou de ler e assistir aos noticiários. Estava ficando
paranoica com tanta informação sobre o covid-19. A cada dia, li-
gava para uma amiga para conversar, aí sim, seus dias melhora-
ram. Pensava na irmã que sempre trabalhou fora, nas crianças
que, desde bebês, foram criadas nas creches. Nos maridos que
viviam viajando. Seria um novo tempo, de aprender a conviver.
Alguém lhe disse que, no corona, está na fase três. Per-
guntou quais seriam as fases. Disse que na primeira, brigou
com a mulher. Na segunda, a briga foi entre os irmãos. E, agora,
quem está brigando são os cachorros. Espera que logo chegue
a calmaria, pois há o tempo da acomodação, da adaptação.
Ela ficou pensando no período pós covid-19 e percebeu
que haverá muitos ganhos.
A descoberta de que todos e todas estão interligados.

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Vivemos numa pequena aldeia onde tudo está conectado. Esta-
mos entrelaçados uns aos outros.
Que a solidariedade é um grande valor quando a maio-
ria não tem o mínimo necessário para viver com dignidade.
Que, mais do que nunca, a ciência deve ser respeitada
pelos órgãos governamentais, pois é a única que pode nos dar
as respostas e informações que necessitamos neste momento
de pandemia.
Que, no ambiente doméstico, todos devem se ajudar. É
preciso aprender a dividir os espaços, as tarefas...deixar aflorar
o respeito e canalizar as emoções. Quando se organiza o espaço
doméstico, as pessoas se organizam internamente.
Que é necessário continuar cuidando do nosso planeta
que agora consegue respirar com mais leveza, convalescendo-
-se após anos de poluição e devastação.
Que o papel do Estado seja fortalecido como garantia de
proteção social aos socialmente vulneráveis.
Que, quando tudo passar, possamos nos tornar pessoas
melhores, mais generosas, e que nasça em nós uma nova quie-
tude para não atropelar o ritmo da vida, o compasso do tempo..
Mesmo com tantos ganhos que podem vir, ela perce-
beu, também, que está cansada de ficar longe das pessoas que
ama, de ficar sem rever os amigos, com saudades de sentar
num barzinho e tomar cerveja acompanhada de um bom papo.

Fechou os olhos e fez um pedido: que chegue rápido o
DIA DO ABRAÇO.

Outono de 2020

“A vida é breve, mas cabe nela muito mais do que
somos capazes de viver.”

José Saramago

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Julia Fernandes

Interlúnio

Caso eu não viva o bastante para abraçá-lo novamente,
mais do que quando o carreguei pela primeira vez, diga-lhe que
sinto muito.
O barulho ensurdecedor ainda ecoa em minha cabeça,
embora sinta que a explosão de emoções me corroa por inteiro.
Não somente meus ouvidos que aguço aqui, onde me abriguei
quando tudo começou. Ouço coisas que nunca ouvi – pássaros
que gemem.
Cinzas e mais cinzas, graças às esperanças de um futuro
carbonizado pela ambição do homem. Cinzas de uma cidade
previamente condenada a esta realidade. Elas penetram pela mi-
nha pele e enchem meus pulmões dificultando, ainda mais, minha
respiração. Peço a mim mesma que alguém desligue, desligue – que
me ligue a algum pedaço de terra. Contudo, nós preferimos ima-
ginar que se tratava de um futuro distante e incerto. Por conse-
guinte, pobres almas inocentes...
Olho a lua baça presa no teto, longe-perto o suficien-
te para que meus sentidos fiquem entorpecidos. Uma série de
pensamentos macabros invade minha mente. O que estará se
aproximando? Por que essa exposição à luz?
Eu me lembro dos meus olhos marejados quando teve
que partir e, até mesmo, da minha aflição ao me dar conta de
que não havia para onde voltar. Tentei tudo quanto meu corpo
aguentou, talvez um pouco mais. Fecho os olhos. O silêncio en-
surdecedor de sua ausência entorpeceu meus sentidos. Mes-

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mo se não te escrevo, esperei que me dissesse que daqui a dez
anos estaria de volta. Ardeu em mim uma frase informulada – o
que farei com os versos que escrevi?
Olhos ainda fechados, no entanto, cada vez mais clara-
mente ouço a música dos pássaros. Abro de vez meus olhos.
Certamente foi um anjo que me segurou pelas mãos e me levou
para longe, onde o silêncio é relva. Respiro maravilhosamente
e sem máscara.
Não consigo me conter ao deparar-me com seus olhos
iguais aos meus, olhando-me com ternura na cama ao lado. Es-
crevo, então, o último verso desgarrado:
– Sinto muito!

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Juliana Borges Oliveira de Morais

Solilóquio

Sou (ou estou) servidora pública. Salário na conta. Não
tenho com o que me preocupar. Sou casada. Muito bem casada.
Já ouvi isso várias vezes, principalmente na iniciativa privada,
quando eu era a última a receber o salário por um trabalho que
eu havia realizado na mesma medida que os demais colegas. É
que sou bem casada. Isso justifica tudo. Ou muita coisa.
Pois é. Sou bem casada. Casada com médico. Um status.
Status com arestas. Toda vida ouvi que ia sofrer muito sendo
casada com médico, que teria que me acostumar com o sofri-
mento. No início até dei uma chorada por causa do volume de
plantões. Sei lá. Não sei se era por causa de bebê que deman-
dava tanto ou se era porque tinha que sentir muito por ser ca-
sada com médico. Só depois, bem depois do segundo bebê, que
percebi que para mim, na verdade, era bem bom ter 12 horas
direto, às vezes 24, no sábado, só para mim. Isso é outra histó-
ria.
Voltemos ao sofrimento. Sofro muito. Ou, ao menos,
era para eu sofrer muito, sendo casada com médico. Só que, ao
mesmo tempo, ser muito privilegiada e nem precisar receber
salário no mesmo dia que todo mundo de uma mesma empre-
sa. Ou de quase todo mundo. Devia ter mais mulher bem casa-
da.
Isso. E sou mulher. Invadida por Virginia Woolf aos 30
anos. Refletindo sobre meu espaço e meu dinheiro. Casada com
médico. O dinheiro dele justificava acharem que eu não preci-

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sava do meu. E o trabalho dele me deu a deixa para descobrir
a beleza do meu espaço. O plantão... Ah, que delícia. Falei que
isso é outra história. É que ela me invade. Virginia me invade. Já
falei isso também.
E vem a pandemia. Eu, mulher, casada, dois filhos. Bem
casada. Falam que não é para sair de casa. Quero dizer: organi-
zações mundiais e comunidades médicas falam. Bom, eu, mu-
lher, casada com médico, servidora pública. Falei isso no início,
certo? Dinheiro na conta, todo mês. Virei egoísta. Juro: virei
egoísta. Porque estou em casa.
Contei que meu marido é médico. Pois é. É intensivis-
ta. E, de repente, nove pacientes internados com a covid-19.
Ele, com Equipamento de Proteção Individual que protege ca-
belo, rosto e do tronco pra baixo. Porque o pescoço inteiro fica
descoberto. Os médicos, nas reportagens internacionais, estão
todos cobertos. Quase não se vê o rosto. O jeito foi encomen-
dar de uma amiga, boa de costura, um gorro, algo que unisse a
touca com o jaleco.
E álcool na casa toda, sapatos do lado de fora, roupa
que já fica no tanque, o olho que diz tudo e nada, o silêncio. Eu
na quarentena. Ele, linha de frente. Um mês, dois meses. Bom,
falei que tenho dois filhos, não foi? Mencionei que minha filha
mora em outro país? Hoje soube que ela não vai poder voltar
em julho... Vôo cancelado.
E eu olho para o meu trabalho na tela do computador,
o projeto de extensão para tempos de covid-19; olho para os
textos, os prazos, e penso em minha filha. Penso na distância.
Penso nela sozinha, isolada, lá, do outro lado do Atlântico. E eu
aqui, quarentena, servidora, egoísta por poder ficar em casa, e
tentando ler, tentando pensar.
Ouvindo relatos de amigo que ficou desempregado, de
amiga que teve (e venceu) um câncer, de filhos que não podem
estar com seus pais idosos... Tudo junto. Eu, olhando para a tela

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do computador, pensando em janta, tentando resolver um pro-
blema técnico de uma plataforma digital, encomendando mas-
sa de um amigo e pão de uma prima.
Tem também meu filho. Ele está aqui. É adulto. Namora.
Achamos que ele é casado, mas é namoro. Não sei. Só sei que é
um “sai daqui, vai pra lá” o tempo todo. Daqui de casa, casa da
mãe dela, aqui de novo. Um entra e sai. O sapato na porta, hein.
E a covid aí, e eu, mulher, servidora, intelectual, sofrendo. Bem
casada. Casada com médico. Não me falaram que eu ia sofrer?
Será que previram a pandemia?

23 de maio de 2020

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Kelen Benfenatti Paiva

Inquietudes

Crise

Farpa em direção à epiderme.

Voo

Ouço o vento...
O silêncio me habita.
Quero vozes, cores, risos,
a dança das folhas, o som dos galhos em ritmo brusco.
Insiste o vidro imponente.
Pés pesados, braços imóveis.
Sono sem sonhos.

Ouço o vento...
Meus ombros experimentam o peso do excesso
e da falta.
As luzes, as tessituras, os objetos, os sabores.
Os cheiros habitam o fora,
as flores, a terra, a chuva.

Ouço o vento...
Triste, seca,
sabor amargo.
Vontade de buscar

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o instante não vivido,
o beijo não dado,
o abraço adiado.
Ouço o vento...
Descalço os pés,
desato os nós, abro os botões,
solto os cabelos.
Visto gestos e movimentos,
abro a janela
e voo.

Recordação

Houve um tempo
em que não havia tempo
para um café demorado
ouvir histórias
escrever cartas

Houve um tempo
em que não havia tempo
para um café demorado
ouvir histórias
falar ao telefone

Houve um tempo
em que não havia tempo
para um café demorado
ouvir histórias
mandar mensagens

Houve um tempo
em que não havia tempo

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para um café demorado
ouvir histórias
abrir a janela

Há um tempo
em que há tempo
para um café demorado
e recordar com lamento
o instante adiado.

Seu colo

O tempo
não levou seu cheiro,
o sabor da sua comida,
seu penteado,
seu batom,
nossas manias,
o seu jeito...

O tempo
não apagou o som da sua voz,
o afago da sua presença,
seu sorriso,
nossas mãos dadas,
a lembrança do seu colo.

Expectativa

Quero de volta
bocas que compartilhem sorrisos,
olhos que partilhem desejos,
braços que se atem.

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Bastidores
Sem luzes, figurinos
sem plateia
resta-me ser eu mesma
despida de mim.

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Letícia Palmeira

Dizem que há Flores

No meu faz-de-conta, irei ao cinema. Comprarei pipo-
cas, que nem gosto, mas é meu o faz-de-conta e, nele, realizo
mil desejos, que não ousaria realizar dentro da normalidade.
Antes de apagarem as luzes, ouço a conversa do casal da fileira
de trás. Ele diz que não é tempo para reformar a casa. Ela recla-
ma da mãe dele. Lembro agora das reclamações que se torna-
ram vazias diante do absurdo que a vida se tornou. Tanto que
me aconselharam a ser polida e esconder sentimentos... Boba
fui eu que segui conselho. Eu sorrio ao ouvir a conversa do casal
da fileira de trás, porque o trivial me alegra. O clichê nunca me
pareceu tão bonito quanto agora. As palavras, que eu não disse,
me afogam numa mágoa sonolenta. Eu devia ter dito, ter ido,
ter me banhado no pecado das atitudes mais loucas que meu
catálogo de bom comportamento me coagiu a evitar.
O filme começa.
Mergulho minhas mãos na embalagem de pipocas e es-
tico meu corpo na poltrona D da oitava fileira. Sozinha, e tão
povoada quanto a Índia, faz-de-conta que não há vírus, que não
há morte ou desespero.
Faz-de-conta agora que estou na fila para o coletivo. Irei
ao centro da cidade comprar presilhas e pó de arroz. Passarei
pela avenida das buganvílias e não sentirei vergonha ao tirar
uma selfie no meio das flores de rosa intenso. Depois, cami-
nhando um pouco mais, passarei pelo Teatro Santa Roza e visi-
tarei o jardim. Sem cansaço algum, pois em faz-de-conta nada

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nos cansa, percorro os arredores do teatro e encontro um velho
amigo que me abraça e diz sentir saudade. Retribuo de verdade
o sentimento, algo que não sou acostumada a fazer, e nos sen-
tamos para conversar. Conto minha vida em breves palavras e
nada nos preocupa. Não tenho hora marcada, não tenho pres-
sa... tenho vida, e faz-de-conta que me despeço de meu amigo
e sigo num fluxo de querer andar pela cidade baixa e adentrar,
talvez, um antigo bar e beber sem culpa, sem medo, sem receio
de que meus instintos fujam ao meu controle.
Faz-de-conta que sinto coragem de telefonar e dizer que
amo você.
Você surge, instantaneamente.
Num passe de mágica e ingenuidade, nos beijamos. So-
bre nós, o rosa intenso das buganvílias e a névoa dos sonhos
que fingimos ter esquecido. Faz-de-conta que tudo é possível.

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Lígia Muniz

O reino do Vírus

Os pensamentos de Valquíria eram água fervente. Suas
conjecturas eram certezas.
Certezas, convicções, nem sombras, nem dúvidas. Nin-
guém abalava suas ideias sobre a realidade dos últimos meses.
“— O reino do vírus é a sujeira”, preconizava a mulher,
em suas certezas. “– O planeta preparava-se para recebê-lo: rios
poluídos, ares poluídos, terras queimadas. Lugares desumanos
para humanos habitantes, animais, insetos, picadas fatais.”
Valquíria permanecia em casa, acompanhada dos seus
75 anos, enquanto o mundo exigia: não saia, lave as mãos, de-
sinfete sapatos e fechaduras e chaves e tudo! Fique longe!
Mas como! A sua casa e o seu corpo e os seus sapatos
sempre ganharam cuidados até maiores que estas antigas reco-
mendações, que vinham agora à tona como ideias novas. O que
mata o vírus é a limpeza. Esta poderia ser sua única descoberta.
Os pensamentos de Valquíria queimavam seu rosto: “- o
que matará o vírus é a morte da ganância, do poder, da opres-
são. O que matará a doença é a vontade de curar, de salvar a
terra, o corpo, a alma.”

A vida de Valquíria continua igual: passeios pelos cam-
pos vestidos de outono todas as manhãs; trabalhos e conversas
todas as tardes. E, à noite, leituras, costuras e estrelas ao lado
de pessoas que, sem vírus no coração, curam e salvam.

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Luciana Pimenta

Rostos encobertos

O sal e o sol eram pequenas setas brilhantes que nasciam aqui e ali,

picando-a, estirando a pele de seu rosto molhado.

Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem

Não pensou exatamente no tempo. Os calendários não
tocaram seu corpo antes daquela sensação, ainda sem nome,
de caminhar pela rua. Mas fazia três meses que não punha os
pés na rua. Nem se lembrava que os pés, caminhando, tinham
aquela voz. Uma voz
... indetida
... indagante
... espaçada
... respirante
Não foi possível detê-la, ali, aos pés do movimento. Os
braços também falavam. Caminhar na rua, depois de três me-
ses, fez-se dança sem ensaio, sem medo do feio ou apego ao
bonito – quem por diabos criou espécimes do feio e do bonito?
Ouvia apenas o chamado do sol. Mas não foi possível se de-
morar nos braços do vento. Seus olhos foram penetrados pela
esquina e começaram a fazer amor ali, à margem da distinção
entre o público e o privado.
Seus olhos amaram aquela rua encruzilhada à outra rua
e, ambas, sem pudor, enlaçaram suas pernas às pernas do seu
olhar, numa trindade erótica e sacra.
Não foi possível restar ali, no gozo livre dos olhos. Boca

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e narinas estavam encobertas por uma máscara e a voz, abafa-
da, sentia o peso do encobrimento. Quanto pesam as vestes?
O corpo vestido veste a humanidade. Foi assim desde o pecado
original. Vestidos, os humanos inventaram o horror da nudez.
Um corpo nu é um corpo animal, como o gato que acabara de
atravessar a história do olho. O gato testemunhou boca e nariz
cobertos. Animais não se vestem. Doía incorporar aquela más-
cara. Uma nova era de pecados. Agora eram os ossos que fala-
vam. Por um instante, ouviu Bach, tocando por baixo da pele.
Só, então, chegou à padaria. Tinha caminhado pouco mais de
um quarteirão. Estavam todos de máscara e olhavam-se como
se fossem inocentes. Eram personas. Mas, agora, os heterôni-
mos pareciam mais tristes. E ela não parava de pensar, na fila
do pão: para onde vão todas as expressões encobertas? Onde
irão desaguar? Onde fica o rosto, quando se cobre o rosto? Que
coisa é um rosto, diante de outro rosto? Que coisa é uma boca
encoberta? Resta alguma coisa, quando falta o ar? Teve vonta-
de de chorar, diante da moça do caixa. Ela parecia ter aceitado a
situação. Molhou a máscara. Por certo a moça lavava, passava,
cozinhava, tirava o pó da casa e transmitia alguma verdade aos
filhos, depois de voltar do trabalho, num ônibus cheio de bocas
silenciadas. Aquela moça não estava há três meses sem sair de
casa. Ela estava. A moça não. Ela sim. A moça não. Ela sim. A
moça não. Ela sim. Ela sim. Ela sim.
— Dinheiro ou cartão?
Ouviu a própria história da humanidade, ali, diante do
sal.
Olharam-se do fundo de suas tristezas.
Acaso seus olhos faziam amor com alguma esquina?
Eram muitas perguntas, para um começo de manhã,
mas o silêncio era tudo o que tinham, por trás de rostos enco-
bertos.

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Maria de Fátima Moreira Peres

Pandemia em 3 atos

1º ato
Leonie, uma jovem médica de 27 anos acabara de dar à
luz uma linda menina. Um sonho tão desejado pelos avós, Kurt
e Marina. A pequena Sontje, como foi chamada, nasceu em Ol-
denburg, cidade a 400 quilômetros da casa dos avós.
Kurt e Marina pertencem ao grupo de risco da covid-19.
Ele por ter mais de 60 anos, ela por ter superado uma doença
que a fragilizou por muitos meses. E ver a neta só por fotos e
vídeos, enviados por Leonie, faz o coração ficar apertado.
O casal aprendera com a filha o prazer e a cura pelo
abraço e o que ele é capaz de proporcionar, de como os beijos
no rosto expressam sentimentos de carinho e saudade tornan-
do a vida mais leve. A jovem, antes de se tornar médica, por um
ano, viveu no Brasil numa família que era puro amor.
Hoje, 19 de junho de 2020 recebo fotos de Kurt e Mari-
na com Sontje nos braços e beijos em seu pequenino rosto. A
vida começava a voltar ao normal na sisuda Alemanha. Mas, na
família Wengeroth, o fim de meses de confinamento total signi-
ficava mais do que uma vitória sobre a pandemia. Era o sonho
realizado.

2º ato
“A vida é difícil para quem é fraco”. Assim dizia Arma-
nelli, professor de meu filho caçula. Lembro sempre de suas pa-
lavras quando me encontro em situações complicadas. O mun-

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