Biblioteca da Escola Secundária de Caneças
Das epidemias
Textos e imagens (uma antologia)
Domenico Gargiulo dito Micco Spadaro, Largo Mercatello em Nápoles durante a peste de 1656, 1656, in
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Piazza_Mercatello_durante_la_peste_del_1656_-_Spadaro.jpg
(consultado em 17.04.2020)
1
Em abril de 2020 e em fevereiro-março de 2021, durante os períodos de confinamento que
obrigaram ao encerramento das escolas, recolhemos textos históricos e literários, ensaios e
imagens que têm as epidemias como sujeito e que publicámos no blogue Leituras Acordadas
http://leiturasacordadas.blogspot.com/. A organização desta pequena antologia naturalmente
incompleta, mas já nesta segunda edição eletrónica, é um trabalho da biblioteca da Escola
Secundária de Caneças que, assim, procura proporcionar novos conteúdos com informação
relevante em apoio ao trabalho dos professores e em resposta à vontade todos os que
querem saber mais.
Com a dimensão que a pandemia tem, com a perplexidade que nos provoca por não termos
vivido nada assim, procurámos as lições do tempo e descobrimos como tudo, por vezes, está
tão próximo de nós.
Estes textos e imagens que partilhamos falam-nos de como se viveram e sentiram as
epidemias, como se representam, como se imaginam.
João Nuno Machado
Setembro de 2021
2
do lembrar as vítimas
Vítor Bastos, Cólera Morbus, 1856, baixo-relevo, gesso patinado 128,5 × 102 cm
in http://www.museuartecontemporanea.gov.pt/ArtistPieces/view/11/artist (consultado em abril, 2020)
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da epidemia na cidade
Das epidemias de cólera que grassaram em Lisboa, a de 1856, a que se refere o relevo de
Vítor Bastos (reproduzido na página anterior), não é testemunhada conscientemente por
Cesário Verde, que nascera no ano anterior. Contudo, uma nova epidemia surge em 1866 e
é, provavelmente, a partir da memória desse tempo, que o poeta escreve este poema:
I
Foi quando em dois Verões, seguidamente a Febre
E o Cólera também andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.
Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas,
(Até então nós só tivéramos sarampo)
Tanto nos viu crescer entre os montões das malvas
Que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!
Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga:
O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos;
Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos
Morreram todos. Nós salvámo-nos na fuga.
Na parte mercantil, foco da epidemia,
Um pânico! Nem um navio entrava a barra,
A alfândega parou, nenhuma loja abria
E os turbulentos cais cessaram a algazarra.
Pela manhã, em vez dos trens dos batizados,
Rodavam sem cessar as seges dos enterros.
Que triste a sucessão dos armazéns fechados!
Como um domingo inglês na «city», que desterros!
Sem canalização, em muitos burgos ermos,
Secavam dejeções cobertas de mosqueiros.
E os médicos ao pé dos padres e coveiros,
Os últimos fiéis, tremiam dos enfermos!
Uma iluminação a azeite de purgueira,
4
De noite amarelava os prédios macilentos.
Barricas de alcatrão ardiam; de maneira
Que tinham tons de inferno outros arruamentos.
Porém, lá fora, à solta, exageradamente,
Enquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetação, pletórica, potente,
Ganhava imenso com a enorme mortandade!
Num ímpeto de seiva os arvoredos fartos,
Numa opulenta fúria as novidades todas,
Como uma universal celebração de bodas,
Amaram-se! E depois houve soberbos partos.
Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa,
Triste de ouvir falar em órfãos e em viúvas,
E em permanência olhando um horizonte em brasa,
Não quis voltar senão depois das grandes chuvas.
Ele, dum lado, via os filhos achacados,
Um lívido flagelo e uma moléstia horrenda!
E via, do outro lado, eiras, lezírias, prados,
E um salutar refúgio e um lucro na vivenda!
E o campo, desde então, segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes anos!
Nós vamos para lá; somos provincianos
Desde o calor de maio aos frios de novembro!
Cesário Verde, «Nós», Poesia completa 1855-1886, Lisboa, Dom Quixote, pp.139-141
Cesário Verde (1855 -1886)
Uma biografia do Autor pode ser lida em:
http://livro.dglab.gov.pt/sites/DGLB/Portugues/autores/Paginas/PesquisaAutores1.aspx
?AutorId=10063 (consultado em agosto de 2021)
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dos efeitos da peste
As consequências das epidemias não podem ser estudadas independentemente da
conjuntura geral da época. […] Seria particularmente muito superficial imputar unicamente à
peste negra a responsabilidade pela grande recessão do fim da Idade Média; essa recessão
começou mais cedo e integra-se no quadro geral da crise da economia senhorial.
O impacto da peste foi mais específico no domínio mental. Os acessos mortais que provocava
(súbitos, inexplicáveis, angustiantes) perturbaram profundamente o clima psicológico da
época. Em primeiro lugar, intensificaram fortemente as tensões sociais: a exacerbação do
«ódio de classe em tempo de epidemia» é um fenómeno bem conhecido e verificado em
outras épocas. Cólera contra os ricos, portanto; mas também (e ainda mais violenta) contra as
minorias: Judeus ou leprosos, suspeitos de terem atraído a vingança de Deus, ou ainda mais
concretamente acusados de propagarem a epidemia envenenando os poços. Daí as
matanças generalizadas, os massacres…
Outro grande escape para o reflexo da agressividade provocado pela angústia foi a
multiplicação de seitas de flagelantes, que pela mortificação pública procuravam conter o
castigo divino. Movimento de histeria coletiva que se propaga através de toda a Europa e
atinge os mais graves excessos.
Pierre Bonnassie, Dicionário de História Medieval, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1985, p.171
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do tocar dos sinos
Em Novos contos da montanha, Miguel Torga mostra-nos um jovem a recuperar da doença (a
pneumónica, ou gripe espanhola) que terá provocado mais de 100.000 óbitos no nosso país.
O conto começa assim:
«– A Lucinda? – perguntou o Pedro, coberto de suor, lívido, a acabar de sair de uma modorra
de morte.
– Está boa… – respondeu a mãe, com a naturalidade que pôde.
– E por que não vem cá?
– Isto pega-se, filho. Ela bem queria; eu é que não consinto…
Uma onda de tristeza, que lhe embaciou a imagem da namorada, atravessou os olhos febris
do rapaz. Depois, exausto do esforço de vir à tona do poço, desceu as pálpebras e caiu na
sonolência em que vivia há dias.
No princípio da epidemia, de ouvido atento, ia vigiando o mundo através do dobrar do sino. O
som a entrar no quarto abafado e ele a inquirir inquieto:
– Quem foi, minha mãe?
– O Belmiro.
– O pai ou o filho?
– O pai.»
Miguel Torga, «Renovo», Novos contos da montanha, in Contos, 5.ª edição conjunta,
Alfragilde, Dom Quixote, 2009, p.453
Miguel Torga (1907-1995)
Uma biografia do Autor pode ser lida em: http://www.espacomigueltorga.pt/p70-miguel-
torga-vida-e-obra-pt
(consultado em agosto de 2021)
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dos que sofrem a doença
O pintor modernista Amadeo de Sousa Cardoso (1887-1918) é uma das vítimas da
pneumónica. A sua biografia é ficcionada por Mário Cláudio na obra Amadeo (Grande Prémio
de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores de 1984), primeiro dos três
livros que publicará sobre importantes figuras do Norte português (além de Amadeo,
Guilhermina Suggia e Rosa Ramalho) reunidos em Trilogia da mão, 1993, dom Quixote. No
excerto do romance escolhido, a doença começa a aproximar-se:
O vírus da pneumónica alastra já por Manhufe, acobertado à modorra dos pântanos, retido no
hálito dos matagais, enleado nos bardos úberes de cachos, por que é esse o mês de
Setembro. O alarme se dá, sobretudo, entre os ilustrados na leitura dos periódicos, titulares
da terra, que no meio dos campesinos a morte é convívio de todas as horas. E o pânico em
que soçobra Amadeo, nesse pronúncio da irrealização da fantasia acalentada, é opressão
que se abstém de transmitir, possuído do fantasma ainda da virilidade, que só o desabafo lhe
permite como fundamento da recuperação da força. Circulam as notícias pelo telégrafo, há
acenos de amigos longínquos que vão tombando, intoleráveis expectativas de que decorra o
tempo da incubação. A casa da Dona Ana Guedes, respeitabilíssima matrona local, vereadora
e filantropa, foi já convertida em hospital. Com o máximo dos zelos se marcam talheres e
roupa branca, que a seguir se escaldam em água fervente, ainda assim cheirados pelo
homem que em tudo suspeita a presença minante. Fica-se pelo quarto, de gelosias cerradas,
no atelier, outras vezes, com uma espátula entre os dedos, fitando a tela deserta, na mais
concentrada imobilidade.
Mário Cláudio, Amadeo, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp.107-108
Mário Cláudio (1941-)
Uma biografia do Autor pode ser lida em:
http://livro.dglab.gov.pt/sites/DGLB/Portugues/autores/Paginas/PesquisaAutores1.aspx?AutorI
d=11425
(consultado em agosto de 2021)
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dos locais para as vítimas
Escrevendo sobre Buenos Aires no final dos anos 20 do século passado, ao escritor argentino
Jorge Luis Borges não lhe escaparam os cemitérios da cidade, por vezes, construídos para
solucionar os problemas criados por uma súbita mortandade.
La Chacarita
Porque o ventre do cemitério do Sul
foi saciado pela febre-amarela até dizer chega;
porque os bairros de lata do Sul
lançaram morte à cara de Buenos Aires
e porque Buenos Aires não pôde olhar essa morte,
a pazadas te abriram
no mais perdido extremo do Oeste,
por trás das tempestades de terra
e do lodo pesado e primitivo deixado pelos vaqueiros.
Ali não existia mais que o mundo
e os hábitos das estrelas sobre algumas quintas
e comboio saía de uma favela em Bermejo
com os esquecimentos da morte:
mortos de barba rala e olhos em alvo,
mortas de carne desalmada e sem magia.
Jorge Luis Borges, «La Chacarita», Caderno San Martín (1929), in Obras Completas I 1923-1949,
Lisboa: Teorema, 1998, p.89
Jorge Luis Borges (1899-1986)
Uma biografia do Autor pode ser lida em:
https://www.cervantes.es/bibliotecas_documentacion_espanol/biografias/nueva_york_j
orge_luis_borges.htm
(consultado em agosto de 2021)
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dos culpados
Os culpados potenciais, sobre os quais pode voltar-se a agressividade coletiva, são em
primeiro lugar os estrangeiros, os viajantes, os marginais e todos aqueles que não estão bem
integrados a uma comunidade, seja porque não querem aceitar suas crenças – é o caso dos
judeus –, seja porque foi preciso, por evidentes razões, isolá-los para a periferia do grupo –
como os leprosos –, seja simplesmente porque vêm de outros lugares e por esse motivo são
em alguma medida suspeitos.
[…]
Não podendo os judeus constituir-se nos únicos bodes expiatórios, foi preciso, como indica
Jean de Venette, procurar outros culpados, de preferência os estrangeiros. Em 1596-1599, os
espanhóis do norte da Península Ibérica estão convencidos da origem flamenga da epidemia
que os acomete. Ela foi trazida, acredita-se, pelos navios vindos dos Países Baixos. Na
Lorena, em 1627, a peste é qualificada de “húngara” e em 1636, de “sueca”, em Toulouse, em
1630, fala-se da “peste de Milão”.
Jean Delumeau; História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada, São Paulo: Companhia
das Letras, 1990: pp.140-141
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da vontade de Deus
Depois de dois anos de ausência, devido ao surto de peste na cidade, Dom João III, no final
de janeiro de 1527, regressa a Lisboa, acompanhado pela sua mulher, a rainha Caterina, com
quem casara havia pouco.
Gil Vicente faz um auto que celebra a entrada dos Reis – a tragicomédia da Nau d’Amores –
que começa com uma princesa em figura da Cidade de Lixboa a fazer um discurso de boas-
vindas. Na fala desta alegoria de Lisboa a epidemia está presente, no que era uma constante
na vida daquele tempo. A Cidade parece resignada. Nos valores mais altos do autor e da
corte pior que a peste seria a descrença:
Assi que mui alta e esclarecida 80
ainda que peste me dê muita guerra 85
Deos seja louvado nos céus e na terra
conheço as causas por que sam ferida.
É que de viçosa
de doce de linda de mui abondosa [abundante]
se peste nam fosse todos meus heréus [herdeiros]
nam conheceriam que i havia Deos
que seria peste muito mais perigosa.
Por isso me calo e nam desvario
mas antes estimo que Deos é comigo
adoro a ele e recebo o castigo
per onde me mostra o seu poderio.
Porque na verdade 90
nam me tira nada de minha bondade
mas como cidade que quer pera si
mostra-me a morte mil vezes aqui
por que me nam saia de sua vontade.
Gil Vicente, Nau d’Amores, 146II, vv.77-94, in Centro de Estudos de Teatro, Teatro de Autores Portugueses do
Séc. XVI - Base de dados textual [on-line].
<http://www.cet-e-quinhentos.com/> [07 / 04 / 2020]
Gil Vicente (14??-1536?)
Uma biografia do Autor pode ser lida em:
http://www.cet-e-quinhentos.com/autores
(consultado em agosto de 2021)
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do castigo de Deus
Martin Schaffner, díptico de retábulo do
Mosteiro zu den Wengen, Ulm, c.1513-
1514
in
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:151
3_Schaffner (consultado em 14.04.20)
À esquerda, do alto de um céu tempestuoso [à ordem de um Deus Pai zangado], os anjos
atiram flechas sobre a humanidade pecadora, mas que se arrepende e implora. À direita,
Cristo, [por intercessão de Maria] à prece dos santos antipestilentos [Roque e Sebastião],
detém a punição com a mão. As flechas desviadas de sua trajetória inicial afastam-se da
cidade ameaçada e vão perder-se alhures. [...]
Para os homens de Igreja e para os artistas que trabalhavam graças às suas encomendas, a
peste era [além da comparação com o fogo] também e sobretudo uma chuva de flechas
abatendo-se de súbito sobre os homens pela vontade de um Deus encolerizado. Certamente,
a imagem é anterior ao cristianismo. O canto I da IIíada evoca o “arqueiro” Apolo que desce,
“com o coração irritado, dos cimos do Olimpo, tendo ao ombro seu arco e sua aljava bem
fechada. […]
O que os artistas queriam também acentuar, ao lado do aspeto punição divina, era a
instantaneidade do ataque do mal e o facto de que, rico ou pobre, jovem ou velho, ninguém
podia vangloriar-se de a ele escapar – dois aspetos das epidemias que impressionaram todos
aqueles que viveram em período de peste.
Jean Delumeau; História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada, São Paulo: Companhia das Letras,
1990: pp.113-114 (adaptado)
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dos santos protetores - São Sebastião
Gregório Lopes, Martírio de São Sebastião, c.1536-1538 in
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1476087 consultado em 14.04.2020
Em suma, se não se fugira a tempo, rico ou pobre, jovem ou velho, estava-se ao alcance da
flecha do horrível arqueiro. Imaginada pelos meios eclesiásticos leitores do Apocalipse e
sensíveis ao aspeto punitivo das epidemias, a comparação entre o ataque da peste e o das
flechas que se abatem de improviso sobre as vítimas teve por resultado a promoção de São
Sebastião na piedade popular. Atuou aqui uma das leis que domina o universo do magismo, a
lei de contraste que muitas vezes não é senão um caso particular da lei da similaridade: o
semelhante afasta o semelhante para suscitar o contrário. Porque São Sebastião morrera
crivado de flechas, as pessoas convenceram-se de que ele afastava de seus protegidos as da
peste. Desde o século VII, ele foi invocado contra as epidemias. Mas foi depois de 1348 que
seu culto ganhou um grande impulso. E desde então, no universo católico até ao século XVIII
inclusive, quase não houve igreja rural ou urbana sem uma representação de São Sebastião
crivado de flechas.
Jean Delumeau; História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada, São Paulo: Companhia
das Letras, 1990: p.116
13
dos santos protetores - São Roque
Gaspar Dias, Aparição do Anjo a São Roque, c.1584
in https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Apari%C (consultado em 14.04.20)
O outro santo protetor das epidemias é São Roque. Nascido nos tempos da Peste Negra
(c.1348) a história de Roch, francês de Montpellier, associa-se às epidemias e à dedicação
que devotou aos enfermos que padeciam de peste quando, enquanto peregrino, se dirigia a
Roma, onde foi reconhecida a sua ação. Anos mais tarde (1370-1371), de volta a França, e
«perante os sintomas da peste (demonstrados pela linfadenite inguinal – bubão – próximo do
local da picada), Roque decidiu isolar-se e refugiou-se num bosque perto de Sarmato, onde
foi milagrosamente alimentado por um cão que retirava todos os dias um pão da mesa do
dono, Gotardo, para lho levar.»
https://www.irmandadesaoroque.pt/actividades/oracao/celebracao-de-sao-roque/121-historia-de-sao-
roque (consultado em 14.04.2020)
14
das medidas contra a epidemia
Em 1490, preparavam-se em Évora as festas nupciais do príncipe Afonso, filho de Dom João
II, quando, na cidade, surgiu a epidemia que grassava pelo país. Garcia de Resende narra as
medidas tomadas pelo rei:
De como el-rei despejou a cidade e mandou meter nela muito gado
E sendo já feitas muitas e grandes despesas para as ditas festas e as mais principais, por a
muita gente que vinha de muitas partes e de Lisboa onde morriam, em Évora houve rebates
de peste.
De que el-rei foi muito triste porque se mais mal fosse, as festas se não poderiam fazer com
aquela perfeição que ele tinha ordenado. E por ver se poderia atalhar isto com que a todos
tanto pesava, acordou com conselho dos físicos, que antes do antrelunho de Setembro, em
que os ares corruptos tinham mais força, toda a gente da cidade e da corte se saísse dela,
como logo saiu por espaço de quinze dias. Nos quais el-rei andou fora pelas Alcáçovas e
Viana, e esteve na quintã da Oliveira, onde a primeira vez justou, e a gente toda por quintas,
herdades, e hortas, e em tendas no campo.
E a cidade foi cheia de infindo gado vacum sem conto, que de toda a comarca veio e por
mandado d' el-rei aí foi trazido, e nela dormia de noite e o metiam ao sol-posto, e já bem de
dia o levavam seus donos a comer fora. E porque todas as fazendas dos cortesãos e
moradores ficavam dentro na cidade em suas casas e pousadas sem levarem mais que
camas e mesas, houve aí grandes guardas, homens de fiança e recado na cidade repartidos
pelas ruas, e assim fora dos muros, para que ninguém pudesse entrar nem sair, muitos
cavaleiros da guarda que a roldava com que tudo esteve tão seguro, que se não achou
menos cousa alguma de quanto na cidade ficou, nem somente fechadura de porta com que
se bulisse.
E acabados os quinze dias o gado todo se levou e a cidade foi toda muito limpa e todas as
ruas e casas defumadas e caiadas antes d' el-rei entrar nela. E assim no antrelunho de
Outubro depois da gente estar dentro, el-rei mandou que todo os escravos e negros que na
cidade havia, se saíssem fora por dez dias sob pena de se perderem e assim se fez. E por
estas grandes diligências, e principalmente pela piedade de Deus a quem se fizeram
juntamente com isso muitas devações e esmolas, a cidade ficou de todo sã, de que el-rei e
todos foram muito alegres por se poder fazer nela o que estava ordenado.
Garcia de Resende, Vida e feitos d' el-rey dom João Segundo, Capítulo CXIX
Texto da edição crítica preparada por Evelina Verdelho, Centro de Estudos de Linguística Geral e
Aplicada (CELGA) Faculdade de Letras Universidade de Coimbra 2007, in
https://www.uc.pt/uid/celga/recursosonline/cecppc/textosempdf/01vidaefeitos (consultado em
02.04.2020), adaptado, ortografia atualizada.
15
do que dizem os governos
O Governo lamenta ter sido forçado a exercer energicamente o que considera ser seu direito
e seu dever, proteger por todos os meios as populações na crise que estamos a atravessar,
quando parece verificar-se algo de semelhante a um surto epidémico de cegueira,
provisoriamente designado por mal-branco, e desejaria poder contar com o civismo e a
colaboração de todos os cidadãos para estancar a propagação do contágio, supondo que de
contágio se trata, supondo que não estamos apenas perante uma série de coincidências por
enquanto inexplicáveis. A decisão de reunir num mesmo local as pessoas afetadas, e, em
local próximo, mas separado, as que com elas tiveram algum contacto não foi tomada sem
séria ponderação. O Governo está perfeitamente consciente das suas responsabilidades e
espera que aqueles a quem esta mensagem se dirige assumam, como cumpridores cidadãos
que devem de ser, as responsabilidades que lhes competem, pensando também que o
isolamento em que agora se encontram representará, acima de quaisquer outras
considerações, um ato de solidariedade para com o resto da comunidade nacional.
José Saramago, Ensaio sobre a cegueira, (19.ª ed) Lisboa: Caminho, 2011 pp.258-259
José Saramago (1922-2010)
Uma biografia do Autor pode ser lida em:
https://www.josesaramago.org/biografia/
(consultado em agosto de 2021)
16
do segredo sobre a epidemia
E, durante todo esse tempo, seguia a pista do vergonhoso segredo que a cidade guardava
cuidadosamente no seu seio tal como ele guardava o seu próprio segredo – e tudo o que
conseguia saber alimentava a sua paixão com esperanças vagas e ilegais. Folheava jornais
pelos cafés tentando encontrar uma reportagem do progresso da doença, e nas folhas
alemãs, que tinham deixado de aparecer no hotel, encontrou séries de relatórios
contraditórios. As mortes variavam entre vinte, quarenta, cem, ou mais; e no jornal do dia
seguinte a existência da peste era, se não rotundamente negada, pelo menos reduzida a
alguns casos esporádicos que num porto de mar se justificavam. Depois disso, as prevenções
vociferavam de novo, assim como os protestos contra o jogo pouco escrupuloso das
autoridades. Não havia informações definitivas.
E o nosso solitário sentiu que era uma espécie de cúmplice desse segredo; sentia uma
fantástica satisfação em fazer perguntas a pessoas interessadas nele e em as obrigar a
mentir descaradamente, negando tudo. Um dia atacou o gerente, esse homenzinho de
passos ligeiros e sobrecasaca francesa, que se movia por entre os hóspedes durante o
almoço supervisando o serviço e fazendo-se socialmente agradável. Ele parou junto da mesa
de Aschenbach para trocar uma saudação, e o hóspede perguntou-lhe, com um ar negligente
e casual: – Por que razão estão sempre a desinfetar a cidade de Veneza? – Uma ordem da
Polícia – respondeu ele habilmente – como medida de precaução para proteger a saúde
pública durante este tempo ardente. – Muito digna de louvor a Polícia – respondeu
Aschenbach gravemente.
Thomas Mann, «Morte em Veneza», Os melhores contos de Thomas Mann, Lisboa; Arcádia, 1966,
pp.74-75
Thomas Mann (1875-1955)
Uma biografia do Autor pode ser lida em: Porto Editora – Thomas Mann na Infopédia [em
linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2021-08-25 11:14:32]. Disponível em
https://www.infopedia.pt/$thomas-mann
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do não acreditar na doença
Jean Delumeau na sua História do Medo no Ocidente, conta-nos da incredulidade dos
parisienses face à epidemia de cólera que grassava em Paris em 1832, a partir de um
testemunho contemporâneo:
Como era a terceira quinta-feira da quaresma, como fazia um belo sol e um tempo
encantador, os parisienses agitavam-se com tanto mais jovialidade nos bulevares, onde se
viram até máscaras que, parodiando a cor doentia e a figura desfeita, zombavam do temor do
cólera e da própria doença. Na noite do mesmo dia, os bailes públicos foram mais
frequentados do que nunca: os risos mais presunçosos quase encobriam a música brilhante;
as pessoas excitavam-se muito com o chahut, dança mais que equívoca; devorava-se toda a
espécie de sorvetes e de bebidas frias quando, de súbito, o mais alegre dos arlequins sentiu
demasiado frescor nas pernas, tirou a máscara e revelou para espanto de todo mundo um
rosto de azul violeta.
in Jean Delumeau, História do Medo no Ocidente 1300-1800 uma cidade sitiada, São Paulo:
Companhia das Letras, 1990, p.119
18
da importância da medicina
Em epidemia, a medicina é chamada e, mesmo em tempos recuados, o poder político pede a
opinião aos médicos. É o caso do rei de França, Filipe VI, que pede um parecer à Faculdade
de Medicina de Paris, que torna público, em 1348, no auge da Peste Negra, um Compendium
de Epidemia.
E mesmo no século XIV, numa época em que a medicina ainda era muito incipiente, o médico
da corte papal de Avinhão, Guy de Chaulliac, reconheceu «a existência das duas formas de
doença, a pulmonar e a bubónica».De qualquer modo, a medicina ainda não tinha condições
de encontrar uma cura para a Peste Negra. Os remédios principais que são aplicados
individualmente são a flebotomia [sangria] e os cautérios [queimas] aplicados aos bubões,
bem como algumas prescrições farmacológicas. A maior parte das prescrições […] é de tipo
preventivo. O conselho de fugir à primeira manifestação da epidemia e de só regressar
quando terminasse era apenas uma das formas extremas. No plano coletivo, tentam-se
formas ainda insuficientes de isolamento das doentes e das mercadorias provenientes das
zonas suspeitas e tomam-se medidas de limpeza viradas para a purificação dos «ares»
corruptos.
Maria Conforti, «A Peste Negra» in Idade Média – Castelos, mercadores e poetas, dir. Umberto Eco,
Alfragilde: Dom Quixote, 2014, p.538
19
do combate à doença
Sobre a gripe espanhola ou pneumónica um relatório de Ricardo Jorge, em 1918, refere que
“não se oferece profilaxia efetiva e eficaz a exercer contra tal epidemia que não seja a higiene
geral e assistência dos atacados preferentemente em hospital de isolamento” (O Comércio..., 25 set.
1918, p.1). Mais tarde, as feiras e os mercados foram proibidos e as escolas só iniciaram o ano
letivo depois do dia 28 de novembro. Cada município foi dividido em zonas médicas e
farmacêuticas, e as receitas nas farmácias eram grátis para os pobres. As farmácias
funcionaram em horário alargado e deveriam estar fornecidas com os medicamentos
necessários: aspirina, sais de quinino, de amónia e purgantes; cafeína, ampolas de óleo de
cânfora, sementes de mostarda e de linhaça, entre outros. E às “pessoas caritativas e
remediadas” era-lhes pedido que criassem “comissões de socorro” para “acudir aos
necessitados” (O Comércio..., 1 out. 1918, p.2). Nesse ano não há referência ao uso de máscaras
faciais por parte dos profissionais de saúde em Portugal; apenas uma notícia sobre São
Francisco, na Califórnia, cujos “habitantes trazem umas máscaras apropriadas, tanto na rua,
como nos estabelecimentos comerciais, para os preservarem dos efeitos dos micróbios do ar”
(O Comércio..., 17 dez. 1918, p.1).»
Maria Antónia Pires de Almeida, As epidemias nas notícias em Portugal: cólera, peste, tifo, gripe e
varíola, 1854-1918
In https://www.sanarmed.com/artigos-cientificos/as-epidemias-nas-noticias-em-portugal-colera-
peste-tifo-gripe-e-variola-1854-1918 Consultado em março de 2021
20
da oposição entre saúde e economia
Durante séculos o contágio das doenças fora defendido e apoiado pelos Estados quando
estabeleceram as primeiras quarentenas. Porém, o século XIX viu surgir uma nova geração
de cientistas que negaram o contágio das doenças, baseando-se na ineficácia das
quarentenas e dos cordões sanitários (especialmente na altura da epidemia de cólera de
1832). Os cientistas defensores do “anticontagionismo” lutaram pela liberdade do indivíduo e
do comércio, contra o despotismo e a reação. Verificou-se, assim, numa clara associação
entre teorias anticontágio e interesses comerciais, que os governos do norte da Europa, mais
liberais e progressistas, avançaram com políticas higienistas, abolindo quarentenas e cordões
sanitários, enquanto os do sul da Europa, mais conservadores, mantiveram as práticas
correspondentes à teoria do contágio. O Porto, uma cidade liberal, mercantil e em pleno
desenvolvimento industrial e comercial, reagiu violentamente contra a autoridade da capital,
que o obrigou ao cordão sanitário em todas as epidemias do século XIX. E os seus jornais,
por lealdade política e dependência económica, fizeram sempre uma campanha forte e
persistente contra as medidas autoritárias impostas pela capital.
Maria Antónia Pires de Almeida, As epidemias nas notícias em Portugal: cólera, peste, tifo,
gripe e varíola, 1854-1918
In https://www.sanarmed.com/artigos-cientificos/as-epidemias-nas-noticias-em-portugal-colera-peste-
tifo-gripe-e-variola-1854-1918 Consultado em março de 2021
21
dos contágios
Fernando Assis Pacheco (1937-1995), poeta com a sua obra publicada em Musa irregular
(ASA, 1991, 1996, 2.ªed) e no livro póstumo Respiração assistida (Assírio e Alvim, 2003),
refere a pneumónica no seu romance Trabalhos e paixões de Benito Prada, um dos poucos
romances portugueses onde se aborda a pandemia que grassou em Portugal em 1918-1919:
Nas férias da Páscoa a Tuna Académica de Coimbra foi tocar à Galiza, onde também morria
gente com a pneumónica. Um tocador de bandolim veio doente, e porque o hospital estivesse
cheio internaram-no numa enfermaria militar, mas durou dois dias e depois dele morreu o
porta-estandarte, cujo pai, anti-sidonista, culpou as autoridades da cidade por não lerem com
olhos de ler a portaria da Câmara de Lisboa que mandava queimar barricas de alcatrão nas
ruas.
Fernando Assis Pacheco, Trabalhos e paixões de Benito Prada, Porto: ASA, 1993, p.103
Fernando Assis Pacheco (1937-1995)
Uma biografia do Autor pode ser lida em:
http://livro.dglab.gov.pt/sites/DGLB/Portugues/autores/Paginas/PesquisaAutores1.aspx
?AutorId=10217
22
do distanciamento físico
Cortados do resto do mundo, os habitantes afastam-se uns dos outros no próprio interior da
cidade maldita, temendo contaminar-se mutuamente. Evita-se abrir as janelas da casa e
descer à rua. As pessoas esforçam-se em resistir, fechadas em casa, com as reservas que se
pôde acumular. Se assim mesmo é preciso sair para comprar o indispensável, impõem-se
precauções. Fregueses e vendedores de artigos de primeira necessidade só se
cumprimentam a distância e colocam entre si o espaço de um largo balcão. Em Milão, em
1630, alguns só se aventuram na rua armados de uma pistola graças à qual manterão a
distância qualquer pessoa suscetível de ser contagiosa. Os sequestros forçados
acrescentam-se ao encerramento voluntário para reforçar o vazio e o silêncio da cidade.
Jean Delumeau; História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada, São Paulo: Companhia
das Letras, 1990: p.122
23
das diferenças entre ricos e pobres
Logo que o mal aparece, os ricos mudam-se, se podem, para as suas casas de campo, numa
fuga precipitada; cada qual só pensa em si: «Esta doença torna-nos mais cruéis uns para os
outros do que se fôssemos cães», observa Samuel Pepys em setembro de 1665. E
Montaigne conta como, tendo a sua terra sido atingida pela epidemia, ele «serviu durante seis
meses miseravelmente de guia» à sua família que errava em busca de um teto «uma família
perdida, que metia medo tanto aos amigos como a si própria e horror onde quer que tentasse
instalar-se». Quanto aos pobres, ficam sós, imobilizados na cidade contaminada onde o
Estado os alimenta, os isola, os bloqueia, os vigia.
Fernand Braudel, Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII Tomo I As estruturas
do quotidiano: o possível e o impossível. Lisboa: Teorema, 1992, p.65
24
da fuga dos poderosos
Mandou el-Rei a Roma D.Diogo de Sousa, Bispo do Porto, o qual depois de ter negociado as
cousas que levava a cargo e ser Arcebispo de Braga, se tornou ao reino per mar; depois da
chegada do qual a Lisboa, que foi no mês d’Outubro [de 1505], se ateou logo peste tam brava
na cidade, de uma nau que vinha em sua companhia tocada sem o ele saber, que foi
necessário ir-se el-Rei com toda sua casa pera Almeirim; a qual pestilença se espalhou per
todo o reino e foi uma das mais bravas e cruel que em muitos tempos se acha que houvesse
em nenhuma outra parte de Hispanha
Damião de Góis, Crónica do felicíssimo rei D. Manuel, 1566: I,94,
in https://purl.pt/26845/3/hg-1746-a/hg-1746-a_item3/index.html#/270-271
(consultado em agosto de 2021)
25
do amor na quarentena
Graciosas Senhoras, quanto mais penso cá comigo e contemplo como são as senhoras
naturalmente piedosas, mais concluo que esta obra lhes parecerá austera e pesada no
princípio, assim como o é a dolorosa lembrança da última peste, com que ela se inicia, para
todos os que a viram ou que de algum outro modo souberam de seus estragos. Mas não
quero que isso as assuste e impeça de prosseguir, como se, lendo, houvessem de estar
sempre entre suspiros e lágrimas. Este horripilante início não deve ser diferente do que é para
o caminhante a montanha acidentada e íngreme, atrás da qual se encontre uma planície
belíssima e amena, que lhe parecerá tanto mais agradável quanto maior tiver sido o
padecimento da subida e da descida. E, assim como os confins da alegria são ocupados pela
dor, as misérias têm seus limites no contentamento que sobrevém.
A este breve aborrecimento (digo breve porque contido em poucas linhas) seguem-se logo o
deleite e o prazer já prometidos, que talvez não fossem esperados de tal início, caso isto não
fosse dito.
Bocaccio, Decameron, in
https://www1.folha.uol.com.br/livrariadafolha/2013/09/1340037-leia-trecho-de-decameron-obra-prima-
de-boccaccio.shtml (acedido em 05.04.2020)
[Assim começa a primeira jornada do livro que Giovanni Boccaccio escreveu no seguimento
da Peste Negra que se declarou em Florença em 1348. O Decameron, cuja tradução de
Urbano Tavares Rodrigues para a editora Relógio d’Água pode ser consultado na nossa
biblioteca. A obra constitui-se num conjunto de contos de amor narrados durante dez dias por
dez jovens (sete raparigas e três rapazes) refugiados da epidemia numa espécie de
quarentena dedicada ao amor.
Em 1971, Pasolini realizou um filme a partir da obra, com título homónimo.]
Boccaccio (1313-1375)
Uma biografia do Autor pode ser lida em:
http://www.enteboccaccio.it/s/casa-boccaccio/page/boccaccio-biografia
(consultado em agosto de 2021)
26
da vitória da literatura
Duque Ugolino O que é este bulício? O que estamos a celebrar, amigos?
Boccaccio (Radiante) Esta manhã, Pânfilo saiu como sempre para dar o seu passeio matinal
e teve a maior surpresa da sua vida.
Pânfilo (Fazendo um passe de magia) Os pistoianos, os pratenses, os milaneses, os
sieneses, todos os que rodeavam Florença para que apodrecêssemos com a pestilência,
foram-se embora. Desapareceram, sim. Sim, sim, vossa senhoria, é como ouvis: retiraram-se.
Boccaccio Já não há mais cerco, levantaram-no. Foram-se embora. Estamos livres.
Pânfilo O que pode significar isso a não ser que terminou a peste?
Filomena Salvámo-nos, senhor duque! O que esperais? Vinde cantar e bailar connosco.
Pânfilo Dai-me a mão, juntai-vos à ronda da alegria.
O duque Ugolino, de má vontade, junta-se à celebração e canta e baila também, enquanto a
condessa de Santa Cruz se mantém a certa distância do grupo, observando-o com aquela
expressão indefinível em que se misturam o ceticismo e a troça. Um momento depois, o
duque Ugolino fica quieto. A forçada expressão de contentamento que tinha vai-se
evaporando do seu rosto.
Duque Ugolino Ser levantado o cerco também poderia significar que já não haja
florentinos que queiram ou possam fugir. Que a peste levou toda a cidade para o outro mundo
e que Florença é agora um cemitério.
Boccaccio Sois como São Tomás, Ugolino: ver para crer. Pânfilo já o fez: aproximou-se da
cidade e ele que vos conte o que viu.
Pânfilo (Louco de felicidade, ouvindo o distante tocar dos sinos) A vida renasce por todo o
lado, senhor duque. As pessoas limpam as ruas, enterram os seus mortos, lavam os pátios,
desinfetam as paredes, em todas as igrejas há missas e em todos os bairros se organizam
procissões de ação de graças. A cidade revive e esquece a tragédia.
27
Filomena Não ouvis o repicar dos sinos que ensurdece a manhã, duque Ugolino?
Boccaccio (Refletindo) Era um ato de puro desespero, um esbracejar de afogado e, no
entanto, funcionou.
Como todos os seus companheiros o olham intrigados, esclarece-os.
Boccaccio A minha receita dos contos e as mentiras. Aconteceu como eu disse, embora
nem vocês nem eu mesmo acreditássemos. Enganámos a peste, contando contos livrámo-
nos da morte.
Duque Ugolino Pois, se é assim, terminou a vida de mentiras em que temos estado a
viver. Temos de voltar à verdade. Tendes a certeza que o devamos festejar?
Mario Vargas Llosa, Os contos da peste, Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2016, pp.185-188
Mario Vargas Llosa (1936-)
Uma biografia do Autor pode ser lida em:
https://www.cervantes.es/bibliotecas_documentacion_espanol/biografias/berlin_mario_
vargas_llosa.htm
(consultado em agosto de 2021)
28
dos diferentes pontos de vista
Vejam agora a que excessos pode levar uma inadvertência; doeu-me um pouco a cegueira da
epidemia que, matando à direita e à esquerda, levou também uma jovem dama, que tinha de
ser minha mulher; não cheguei a entender a necessidade da epidemia, menos ainda daquela
morte. Creio até que esta me pareceu ainda mais absurda que todas as outras mortes.
Quincas Borba, porém, explicou-me que epidemias eram úteis à espécie, embora desastrosas
para uma certa porção de indivíduos; fez-me notar que, por mais horrendo que fosse o
espetáculo, havia uma vantagem de muito peso: a sobrevivência do maior número. Chegou a
perguntar-me se, no meio do luto geral, não sentia eu algum secreto encanto em ter
escapado às garras da peste; mas esta pergunta era tão insensata, que ficou sem resposta.
Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994, capítulo 126
in http://machado.mec.gov.br/obra-completa-lista/item/download/16
(consultado em 13.04.2020)
Machado de Assis (1839-1908)
Uma biografia do Autor pode ser lida em:
https://www.academia.org.br/academicos/machado-de-assis/biografia
(consultado em agosto de 2021)
29
de canhão contra a peste
A cólera tornou-se numa obsessão. Dela não sabia muito mais do que aprendera na rotina de
algum curso marginal, e parecia-lhe inverosímil que apenas trinta anos antes tivesse causado
em França, inclusive em Paris, mais de cento e quarenta mil mortos. Mas depois da morte do
pai aprendeu tudo quanto se devia aprender sobre os diversos tipos de cólera, quase como
uma penitência para apaziguar a sua memória, e foi aluno do epidemiólogo mais destacado
do seu tempo e criador dos cordões sanitários, o professor Adrien Proust, pai do grande
escritor. De modo que quando regressou à sua terra e sentiu, ainda no mar, a pestilência do
mercado e viu as ratazanas nos esgotos e os garotos nus a chapinhar nos charcos das ruas,
não só compreendeu que a desgraça tivesse ocorrido como teve a certeza de que se repetiria
a qualquer momento.
Não passou muito tempo. Em menos de um ano os seus alunos do Hospital da Misericórdia
pediram-lhe que os ajudasse com um doente, recolhido por esmola, que tinha uma estranha
coloração azul em todo o corpo. Ao doutor Juvenal Urbino bastou vê-lo da porta para
reconhecer o inimigo. Mas teve sorte: o doente tinha chegado três dias antes numa escuna de
Curaçau e tinha ido à consulta externa do hospital pelos seus próprios meios, não parecendo
provável que tivesse contagiado alguém. Em todo o caso, o doutor Juvenal Urbino preveniu
os seus colegas, conseguiu que as autoridades dessem o alarme nos portos vizinhos para
que localizassem a escuna contaminada e a pusessem de quarentena, e teve que moderar o
chefe militar da praça que queria decretar a lei marcial e aplicar imediatamente a terapêutica
dos tiros de canhão de quarto em quarto de hora.
– Economize a sua pólvora para quando vierem os liberais – disse-lhe de bom humor. – Já
não estamos na Idade Média.
Gabriel Garcia Márquez, O amor nos tempos de cólera, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987,
pp.126-127
Gabriel Garcia Márquez (1927-2014)
Uma biografia do Autor pode ser lida em:
https://www.cervantes.es/bibliotecas_documentacion_espanol/creadores/garcia_marquez_gabri
el.htm
(consultado em agosto de 2021)
30
da fadiga que a epidemia provoca
Rieux e os seus amigos descobriram então a que ponto estavam fatigados. Com efeito, os
homens das formações sanitárias já não conseguiam digerir esta fadiga. O doutor Rieux
apercebia-se disso, observando nos seus amigos e em si próprio os progressos de uma
curiosa indiferença. Por exemplo, estes homens que até aqui tinham mostrado um interesse
tão vivo por todas as notícias que diziam respeito à peste já não lhes ligavam a menor
importância. Rambert, a quem tinham encarregado provisoriamente de dirigir uma das casas
de quarentena, instalada havia pouco no seu hotel, conhecia perfeitamente o número
daqueles que tinha em observação e estava ao corrente dos mínimos pormenores do sistema
de evacuação imediata que tinha organizado para aqueles que mostravam subitamente sinais
da doença. A estatística dos efeitos do soro sobre os internados estava gravada na sua
memória. Mas era incapaz de dizer o número semanal das vítimas da peste, ignorava se ela
progredia ou recuava. E, apesar de tudo, mantinha a esperança de uma evasão próxima.
Albert Camus, A Peste, Lisboa: Livros do Brasil, pp.207-208
Albert Camus (1913-1960)
Uma biografia do Autor pode ser lida em:
https://www.ebiografia.com/albert_camus/
(consultado em agosto de 2021)
31
quando a peste salva Lisboa
Lisboa, em 1384, cercada pelos castelhanos, padece de grande carência de alimentos que a
poderiam conduzir à derrota. Dessa fome, «das tribulações que Lisboa padecia per mingua de
mantimento», dá Fernão Lopes notícia na Crónica de Dom João I.
Mas, quando tudo parecia estar perdido, é a epidemia que grassa junto das tropas sitiantes
castelhanas (as de terra, no «arraial» e as dos navios no rio) que salva o Mestre de Avis e a
cidade de Lisboa:
«Não curando agora de falar das coisas que aos da cidade no cerco aconteceram, principiou
a triste morte de mostrar a sua sanha mais asperamente contra os do arraial, e igualmente
contra os da frota, e matou não somente escudeiros e fidalgos, e dos outros de pequena
condição tantos que era estranha coisa de ver, como ainda começou a encetar nos senhores
de grande estado, de guisa que pôs grande espanto em todos.
Os castelhanos, vendo-se assim afincados pela pestilência que cada vez mais se ateava
neles, bem entenderam que a sua estada não podia aí ser por muito tempo, e que teriam por
força de descercar a cidade e de se partir dali cedo».
Fernão Lopes, Crónica de Dom João I,
in http://azpmedia.com/espacohistoria/index.php/cronica-de-d-joao-i/capitulo-xix
(consultado em 03.04.2020)
Fernão Lopes (1380-1460)
Uma biografia do Autor pode ser lida em
http://livro.dglab.gov.pt/sites/DGLB/Portugues/autores/Paginas/PesquisaAutores1.aspx?AutorId=7837
32
um desvio tão grande nas condições normais de vida
Quando descreve a Guerra do Peloponeso (431 a.C.– 404 a.C.), que opõe Atenas a Esparta,
Tucídides apresenta com grande pormenor a epidemia que se abateu sobre Atenas, que
vitimou Péricles, bem como a ele próprio pois, como diz aquele historiador grego, «eu mesmo
contraí o mal e vi outros sofrendo dele».
«Poucos dias após a entrada deles [dos Espartanos] na Ática manifestou-se a peste pela
primeira vez entre os Atenienses. Dizem que ela apareceu anteriormente em vários lugares
(em Lemnos e outras cidades), mas em parte alguma se tinha lembrança de nada comparável
como calamidade ou em termos de destruição de vidas. Nem os médicos eram capazes de
enfrentar a doença, já que de início tinham de tratá-la sem lhe conhecer a natureza e que a
mortalidade entre eles era maior, por estarem mais expostos a ela, nem qualquer outro
recurso humano era da menor valia. As preces feitas nos santuários, ou os apelos aos
oráculos e atitudes semelhantes foram todas inúteis, e afinal a população desistiu delas,
vencida pelo flagelo.
Dizem que a doença começou na Etiópia, além do Egito, e depois desceu para o Egito e para
a Líbia, alastrando-se pelos outros territórios do Rei. Subitamente ela caiu sobre a cidade de
Atenas, atacando primeiro os habitantes do Pireu, de tal forma que a população local chegou
a acusar os peloponésios de haverem posto veneno em suas cisternas (não havia ainda
fontes públicas lá). Depois atingiu também a cidade alta e a partir daí a mortandade se tornou
muito maior. Médicos e leigos, cada um de acordo com sua opinião pessoal, todos falavam
sobre sua origem provável e apontavam causas que, segundo pensavam, teriam podido
produzir um desvio tão grande nas condições normais de vida».
Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, Tradução do grego: Mário da Gama Kury, Brasília;
Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI/FUNAG) 2001,
pp.114-115
in http://funag.gov.br/biblioteca/download/0041-historia_da_guerra_do_peloponeso.pdf
(adaptado) (consultado em 03.04.2020)
Tucídides (c. 460 aC – 396 aC)
Uma biografia do Autor pode ser lida em
https://www.ebiografia.com/tucidides/ (consultado em agosto de 2021)
33
do que se faz depois
Em Marselha, desde novembro de 1720, era uma verdadeira “mania”: «Não ficamos menos
surpresos, naquele tempo, de ver uma quantidade de casamentos no povo […] O furor de
casar-se era tão grande que um dos casados que não tivera a doença do tempo desposava
muito bem sem dificuldade o outro cujo bubão mal se fechara; assim, viam-se muitos
casamentos empestados».
No século XIV, no final da Peste Negra, também parece que o medo rapidamente se
esquecia, como dá notícia um contemporâneo:
Quando a epidemia, a pestilência e a mortalidade tinham cessado, os homens e as mulheres
que restavam casavam-se sucessivamente. As mulheres sobreviventes tiveram um número
extraordinário de filhos […] Ai! Dessa renovação do mundo, o mundo não saiu melhorado. Os
homens foram depois ainda mais cúpidos e avaros, pois desejavam bem mais do que antes;
tornados mais cúpidos, perdiam o repouso nas disputas, nos ardis, nas querelas e nos
processos.
In Jean Delumeau, História do medo no Ocidente, 1300-1800 uma cidade sitiada, São
Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.150
34
do fim da peste (a partir de Daniel Defoe)
Nos últimos parágrafos da obra, H.F. [o narrador da obra de Daniel Defoe, Diário da Peste de
Londres] diz o que tem a dizer sobre a regeneração da cidade de Londres. As multidões
regressam, o silêncio e o medo desaparecem, muitos dos que se portaram indignamente
durante a epidemia podem agora ser punidos, os médicos que fugiram da cidade veem agora
a sua reputação manchada. A cidade reconstrói-se do seu trauma e como ponto negativo
destaque-se, contudo, o receio manifestado pelo narrador de que a população depressa
esqueça, ingrata, o temor a Deus que lhes fora incutido. Em todo o caso, a ideia que
prevalece é a de uma fé nas capacidades regenerativas da cidade, um optimismo que ajuda a
explicar porque foi tão difícil encontrar uma categoria de Pathos nesta obra: apesar de ele
existir, o objetivo principal é que ele seja suplantado. Difere Defoe de Tucídides ou Boccaccio:
no autor grego à cidade, apanhada a meio de uma guerra, não são dadas hipóteses de
reconstrução; em Boccaccio esta reconstrução é feita fora da cidade; aqui é a própria cidade
que se reconstrói a si mesma, voltando a ser o que era antes da peste para o melhor e para o
pior: o único ambiente em que Defoe apreciava viver, uma grande cidade cheia de vida e
movimento.
O final do livro é de esperança na sobrevivência e de fé em Deus. Contrastando com a
inscrição que servia de epitáfio a uma vítima da peste que foi mostrada atrás, surgem os
versos finais atribuídos a H.F.:
A dreadful plague in London was
In the year sixty-five,
Which swept an hundred thousand souls
Away: Yet I alive.
“Uma terrível peste em Londres esteve
No ano de sessenta e cinco,
Que levou cem mil almas
Contudo, eu vivo.”
Daniel Defoe in Carlos Manuel Martins, Peste e Literatura: A construção narrativa de uma catástrofe,
Dissertação de Mestrado em Estudos Anglo-Americanos, apresentada à Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, p.81, in
https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/19317/1/Tese%20da%20Peste.pdf (consultado em abril
de 2020)
Daniel Defoe (1660-1731)
Uma biografia do Autor pode ser lida em:
Porto Editora – Daniel Defoe na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2021-08-
25 14:27:20]. Disponível em https://www.infopedia.pt/$daniel-defoe
35
Autores citados
Albert Camus, 31
Bocaccio, 26
Cesário Verde, 5
Damião de Góis, 25
Daniel Defoe, 35
Fernand Braudel, 24
Fernando Assis Pacheco, 22
Fernão Lopes, 32
Gabriel Garcia Márquez, 30
Garcia de Resende, 15
Gil Vicente, 11
Jean Delumeau, 10, 12, 13, 18, 23, 34
Jorge Luis Borges, 9
José Saramago, 16
Machado de Assis, 29
Maria Antónia Pires de Almeida, 20, 21
Maria Conforti, 19
Mário Cláudio, 8
Mario Vargas Llosa, 28
Miguel Torga, 7
Pierre Bonnassie, 6
Thomas Mann, 17
Tucídides, 33
36