André Souza Bauru, interior paulista, onde irão disputar um campeonato. Por enquanto, ainda não estão treinando, pois falta espaço. Para resolver o problema, o jeito é botar a mão na massa. Para eu ter uma ideia, Seu Denilo me mostra a mão calejada. Pergunto-lhe por quê, e a resposta é que ele estava roçando o miniestádio do Bairro Quilombo. “Isso tudo só para ver o sorriso de alegria deles”, revela. O esforço deve chegar ao fim em breve. Apesar da negligência do poder público, o miniestádio do Pedregal foi contemplado, após 20 anos de descaso, com uma revitalização através do Programa Ativação, que, além desse, irá reformar mais quatro campos espalhados pela cidade. A obra já começou e é notória a diferença. O campo já está com a drenagem feita, pintura nova, alambrado reforçado e vestiário reformado. No entanto, todo esse esforço cai por terra quando você vê crianças treinando sem equipamentos. Seis crianças que brincavam no campo estavam todas descalças. Quando pergunto a um deles, um corintiano de seis anos, o que falta no campo, inocentemente ele me responde: “um par de tênis faria diferença”. Sebastião é irmão de Eliezer da Silva, 14 anos, o Zezé, como é chamado por todos. Os dois têm sonho e inspiração na família: são primos do atual goleiro do Vasco da Gama, Diogo Silva. As crianças têm autoridade para falar. E todas, em unanimidade, dizem que estariam na rua ocupados em outras atividades que possivelmente não trariam tantos benefícios quanto o futebol. Todas elas vão crescer e irão passar pelas mesmas dificuldades que Pelé passa. Vão ter a mesma correria que Seu Denilo. Talvez nem sigam no futebol, alguns querem ser veterinários outros professores. O fato é que o futebol social proporcionou esse sonho a todos eles. FUTEBOL SOCIAL “A gente recebe muito ‘não’ na cara, inclusive da prefeitura”
Helen Raquel
53 Congo de Livramento: mais de um século de história Conheça a trajetória dos grupos de cultura popular mais antigos de Mato Grosso Folclore Helen Raquel A Dança do Congo é uma manifestação folclórica de origem africana, composta por dança e canto que homenageiam São Benedito e Nossa Senhora do Rosário. O grupo de dança do Congo da cidade de Nossa Senhora do Livramento tem sua história atrelada à do quilombo de Mata Cavalo, que foi formado no século XIX, em 1883, doado a seus escravos por Anna Tereza. Nesse contexto nasceu o grupo de dança. Apesar da data oficial indicar 132 anos de existência, o “Rei do Congo”, Antônio João Batista de Arruda, afirma que o grupo foi formado em 3 de abril de 1773, ou seja, antes da data em que o quilombo foi oficializado, tendo mais de 200 anos de história. Ele quase foi extinto devido às disputas por terras que acabaram separando a comunidade do quilombo. Além dessas brigas, o congo de Livramento sofreu perseguições da igreja católica, tendo sido transferido para Várzea Grande, num lugar que se chamava Capão de Negro. Cesário Sarat foi o grande responsável por reunir os antigos moradores do quilombo de Mata Cavalo. Eles conseguiram, juntos, recuperar suas terras, retomar o grupo e dar continuidade à festa de São Benedito. Trajes, dança e música Os dançarinos são divididos em dois subgrupos: os de vermelho, pertencentes ao reino do congo (África escravizada), e os de azul, reino monarca (reino de Portugal). Eles são compostos pelos reis e príncipes que possuem, além da farda e saiote que todos os demais utilizam, uma capa e uma coroa; o secretário do monarca usa capa parecida com a do seu rei; os generais possuem capa, porém ela é mais curta que as dos reis e príncipes, e o capacete é parecido com o de Napoleão; o mucuache (bobo da corte do reino do Congo) tem uma pena no capacete para se diferenciar das outras funções; os fidalgos (soldados) são o cargo mais baixo. Eles utilizam apenas a farda, o saiote e capacetes simples. Os fidalgos podem ter o número de dançarinos sem limites desde que tenham a mesma quantidade nos dois reinos; os caranguejis (crianças) com fardas, saiotes e capacetes simples. A dança e as músicas são caracterizadas por encenarem uma guerra entre os dois reinos que envolvem até o uso de espadas de madeira. As músicas falam de guerra, do sofrimento vivido pelos escravos e louvores a São Benedito e Nossa Senhora do Rosário. As letras misturam o português do Brasil com o de Portugal e palavras africanas e são tão antigas que não tem como saber quem as compôs. As apresentações intercalam canto, dança, declamação de versos e teatralização com diálogos. Os instrumentos musicais são a marimba, o ganzá, baqueta ou gericongo e adulfo (pandeiro). Saiu do sacrácio, saiu do sacrácio O Deus infinito, o Deus infinito Virgem do Rosário. Viva São Benedito Viemos de Luanda aqui nessa terra chama filho alheio pra morrer na guerra. A pobreza pede, já tornou pedir Homem de consciência pra nosso Brasil. Oh-lê, oh-lá, cangiracá. Oh, giramundá. Oh nosso rei. Oh, giramundá. Oh, giramundá, Oh-lê, oh-lá, cangiracá. “Eu quero ser conhecido como Toty, o eterno Rei de Congo”. Antônio de Arruda
Festa de São Benedito São Benedito é conhecido como o santo negro por ter sido, segundo a história, descendente de escravos ou ter sido escravizado. Ele era muito humilde e caridoso, roubava alimentos do convento em que vivia para doar aos pobres e trabalhava como cozinheiro. Todos os anos, em abril, acontece em Nossa Senhora do Livramento uma festa em homenagem ao santo. A festa tem duração de quatro dias e conta com apresentações culturais, ficando o último dia reservado ao Congo de Livramento. Nesse dia, a festa começa às 7 horas com a missa. O grupo participa da celebração junto com os moradores da cidade. Ao final da missa, a imagem de São Benedito é levada para a casa do santo, acompanhada de uma procissão e do grupo de congo. Chegando lá, tem início a apresentação com duração de duas horas aproximadamente. Durante a apresentação são servidos café da manhã, bolo, biscoito e chá, e, após a apresentação, o almoço. O Congo atual Atualmente o Congo de Livramento tem como Rei do Congo e responsável Antônio João Batista de Arruda (o sobrinho neto de Cesário Sarat) e como Rei monarca Eduardo Arruda. O grupo é formado por descentes dos primeiros dançantes, porém não vivem mais O REI DO CONGO Antônio João Batista de Arruda nasceu em Várzea Grande e estudou até a sétima série. Tem 46 anos e este ano vai completar 40 de dança do Congo. Aprendeu ainda muito pequeno, aos sete anos. No começo, lia as letras das músicas para seu pai analfabeto decorar, e logo foi colocado para dançar. Antônio lembra que, na primeira vez que dançou não havia ensaiado, o colocaram por último na fila para que visse os primeiros fazendo a coreografia e pudesse aprender para fazer igual. Ele sempre se emociona quando fala do Congo. Dedicado às apresentações e projetos, diz que não faz as coisas só por fazer: “Eu quero ser conhecido como Toty, o eterno Rei de Congo”. Apresentação durante a tradicional festa de São Benedito em Nossa Senhora do Livramento. Folclore “Ele não vai deixar o Congo morrer, até porque ele já está enfraquecido. Eles são o nosso futuro.” Antônio de Arruda Helen Raquel
apenas em Livramento. Vivem em outros municípios, como Cuiabá e Várzea Grande. Fazem apresentações em várias cidades, dentro e fora do Estado de Mato Grosso. Já se apresentaram no Encontro de Culturas Tradicionais de Chapada dos Veadeiros e foram convidados para os eventos da Copa do Pantanal, em 2014. No ano passado foi realizado um projeto de dança do Congo mirim. Segundo Antônio Arruda, “Tia Odália [filha de Cesário Sarat] montou junto com a Secretária de Cultura para dar continuidade ao Congo”. Esse projeto foi realizado através de oficinas na casa (sede) de São Benedito em Livramento. A oficina tem início “com uma palestra, depois ensinamos a dançar, cantar e tocar instrumentos”. Sobre a importância desse projeto para o fortalecimento da cultura, o Rei do Congo afirma: “Ele não vai deixar o Congo morrer, até porque ele já está enfraquecido. Eles são o nosso futuro”. Em dezembro do ano passado, Antônio Arruda foi chamado à Casa Cuiabana, e o secretário de Cultura, Fabiano Prates, mostrou interesse em criar um projeto para realização de oficinas de Congo nas escolas municipais e estaduais em Cuiabá e em outras cidades do Estado. “Se der certo, vai ser um sucesso”, relatou Antônio, empolgado. Os dançarinos do Reino Monarca. Folclore Dois representantes do grupo Congo Mirim Sobre a importância desse projeto para o fortalecimento da cultura, o Rei do Congo afirma: “Ele não vai deixar o Congo morrer, até porque ele já está enfraquecido. Eles são o nosso futuro” Helen Raquel Helen Raquel
Camilla Zeni Allan Pereira
59 A palavra arte (do latim, ars) significa técnica ou habilidade de produzir e realizar manifestações usando o corpo e seus sentidos. Existem várias formas de expressála, seja com danças, pinturas, artesanatos, música, teatro, cinema, escultura, escrita e suas variações. Artistas são aqueles que desenvolvem esse papel, geralmente pessoas mais criativas, sensitivas e que têm uma visão de mundo diferenciada. Muitos, quando pensam em arte, limitam-se aos telões de cinema, às exposições em museus, peças de teatro e grandes produções culturais. Esquecem que a arte pode estar mais perto do que se imagina. Nas ruas, praças e centros urbanos, é possível encontrar os artistas que escolheram a rua para expor o seu trabalho. A arte de rua é aquela que se apresenta diretamente às pessoas, pois é produzida e pensada especificamente para a rua. Os artistas fizeram das ruas o seu ateliê. É nelas que eles fazem e vendem o seu trabalho, e assim sobrevivem. Com essa forma alternativa de trabalho, as dificuldades são muitas: falta de segurança, preconceito, instabilidade financeira e, às vezes, distância de seus familiares são alguns dos problemas enfrentados. Mesmo com tudo isso, é vivendo da arte de rua que eles se sentem realizados. Origem da arte de rua Não se sabe ao certo onde surgiu ou quem criou a arte de rua. Relatos históricos mostram apenas que, desde a Grécia, havia cantores que discursavam em versos e música e percorriam o país cantando um repertório de lendas e tradições populares, que pode ser entendido como arte de rua. Outro exemplo pôde ser visto em meados do século XII, na Idade Média. Naquela época, a Literatura Portuguesa acabava de surgir, e suas primeiras obras literárias eram elaboradas em versos, ou seja, em poemas. Como ainda não havia como publicar os seus escritos, os poemas medievais eram declamados em ruas, praças, festas e palácios, com o objetivo exclusivo de divulgação. Como tinham acompanhamento musical, receberam o nome de cantigas ou trovas. O Trovador era o artista que tinha como missão realizar essas apresentações e deixar todos, principalmente os reis, satisfeitos. Entretanto, além do poeta nobre, havia o poeta plebeu, apelidado de Jogral. O Jogral veio de uma classe popular, que não pertencia à nobreza. Realizava performances mais simples para os senhorios das terras e assumia o papel de “bobo da corte” com suas sátiras, mágicas, acrobacias e mímicas. Nesta mesma época, as festas medievais populares contavam com apresentações teatrais, que consistiam em colocar os atores imóveis e congelados numa pose expressiva, dando a impressão de uma pintura. Mais tarde, das mãos do francês Etienne Decrox nascia a mímica moderna. Para essa forma de arte, ele deu o nome de tableuaux vivants, ou seja, quadros vivos. Todos os anos, acontece na Holanda, na cidade de Arnhem, Artistas que fazem da rua o seu ateliê Eles deixaram toda a correria da vida urbana, para se dedicar àquilo que lhes dá mais prazer: sua arte Camila Cabral Priscila Soares ARTE DAS RUAS Antes eu só trabalhava e estudava. Agora, eu faço o meu horário, produzo tudo o que tenho
60 o Arnhem Mime Festival, evento que reúne estátuas vivas de todo o mundo. No Brasil, é possível encontrá-las em muitas esquinas, ruas e praças de cidades grandes. Aqueles que vivem da arte Atualmente, essas manifestações de arte da rua ainda são encontradas pelos grandes centros urbanos e ganham admiradores por onde passam. Maria Auxiliadora é um desses artistas. Depois de 50 anos trabalhando incansavelmente, passando por muitas humilhações e dificuldades, procurou no curso de Fisioterapia a sua vocação, o que não vingou. Foi então que ela descobriu no artesanato uma forma de se libertar da rotina estressante que vivia. Tudo começou quando, em um desses dias corridos, ela parou para observar um pintor e nem imaginava que ele seria seu maior incentivador e futuro namorado. “Eu já gostava de artesanato, mas foi no natal de 2013 que eu comecei a fazer e aprender mais, com a influência do meu namorado, que é artesão e pintor. Foi aí que minha vida deu um giro, e agora eu estou fora do sistema que vivia. Antes, eu só trabalhava e estudava. Agora, eu faço o meu horário, produzo tudo o que tenho”, diz Maria Auxiliadora. A decisão de mudar radicalmente chocou seus familiares, inclusive sua única filha, que, até hoje, não aceita muito bem o seu estilo de vida, e alguns dos seus amigos chegaram até a chamá-la de louca. Mas ela diz não se arrepender de sua decisão. Viver de sua arte é o que lhe proporcionou paz, tempo, independência e melhor qualidade de vida. No momento, Maria se dedica a aperfeiçoar o seu trabalho. Segundo ela, busca aprender com outros artesãos, vídeos no youtube e pela internet novas técnicas e maneiras de se renovar a cada dia. É muito raro encontrar nesse tipo de trabalho pessoas que se preparam para o futuro. Maria é considerada uma hippie diferente. Um dos motivos é que ela contribui com a previdência social e faz parte da associação dos artesãos. Por vezes também faz viagens com seu namorado para expor e vender seus trabalhos. Além de Maria Auxiliadora, é fácil encontrar outros artistas apaixonados por seu trabalho. Você passa pelas ruas e vê desenhos colorindo a cidade, e sabe que um grafiteiro passou por ali. Para no sinaleiro, e em meio ao caos do transito é entretido por malabaristas e pode até ser surpreendido por artistas que arriscam suas vidas cuspindo fogo. Também pode andar distraído e, de repente, ver uma estátua viva. A arte tem o ARTE DAS RUAS Pedro (nome ficticio) fazendo malabares para arrecadar dinheiro Camilla Zeni Allan Pereira
poder de encantar e emocionar, ela transforma lugares e pessoas. Sempre tem lugar pra mais um em toda essa imensidão. Há quem não goste de cinema, mas ame teatro; quem não suporte observar quadros, mas ame desenhar. Só não encontra um lugar na arte quem não se arrisca. Raul Matos, de 50 anos, sempre foi artista, mas não de rua. Ele trabalhava como arte-finalista de jornal e em campanhas políticas, e a caricatura era apenas um passatempo. Até que decidiu fazer um curso de desenho pra se especializar em retratos, e hoje trabalha por conta própria fazendo seus desenhos. “Antes eu gostava, só não fazia, não saía perfeito. Não que eu acho que está perfeito agora. Antes eu tinha mais dificuldade, mas depois da aula de desenho já melhorei bastante”, diz Raul. A instabilidade financeira é uma das maiores dificuldades que Raul encontra. Há dias que faz mais de dois desenhos e, às vezes, passa até três sem nenhuma encomenda. Outra dificuldade é o preconceito em relação ao seu trabalho. Apesar de não estar em uma grande galeria de arte, Raul faz questão de frisar o seu comprometimento em aperfeiçoar sua arte. “Você cria o seu estilo próprio, o desenho tem o DNA da pessoa. Por mais que eu tente copiar o desenho de alguém, pode ter certeza que o artista vai deixar sua marca”. Diferente da família de Maria, Raul tem total apoio da esposa, que também trabalha com arte, fazendo biscuit (conhecido também como porcelana fria, parecendo uma massa de modelar). Ele reconhece que com sua renda não consegue sustentar sua família, mas o fato de ter liberdade para trabalhar a hora que quiser é dos pontos positivos desse tipo de atuação. Nem sempre os artistas de rua fazem esse trabalho somente por amor. Muitas vezes, as suas escolhas e suas histórias de vida fizeram com que a única saída fosse usar o seu talento na rua para se sustentar. E como dependem disso pra viver, fazem questão de dar o seu melhor. Assim como os renomados artistas, que expõem suas obras em grandes eventos e para um público seleto, tornam-se respeitados e admirados, os artistas que vivem pelas ruas merecem ser reconhecidos e valorizados. É notória a satisfação que eles sentem quando, além de vender o que produzem, conseguem contar para alguém sobre a sua história e compartilhar um pouco de suas ideologias. Olhando com atenção, você vai perceber que as manifestações artísticas acontecem a todo momento ao nosso redor e que a arte é produzida a todo instante, por diversas pessoas, de formas diferentes. Você mesmo pode um dia acordar, e, cansado da mesmice do dia a dia, decidir viver da sua arte. Se isso não acontecer, respeite e valorize aqueles que tiveram coragem para tomar essa difícil. ARTE DAS RUAS Allan Pereira Camilla Zeni
Eduardo Mafra
63 Enrolados A moda dos cachos e do alisamento na visão de quatro mulheres de Cuiabá MULHER O Brasil é conhecido há alguns anos, entre os profissionais da beleza mundial, como o país da chapinha. A moda dos cabelos lisos é unanime entre as brasileiras há mais de décadas, e não é difícil encontrar por perto alguma mulher que já se submeteu às práticas de alisamento. No entanto, nos últimos anos o comportamento feminino foi afetado por um novo movimento: o movimento das cacheadas. Seguindo o caminho contrário, algumas meninas que exibem seus cabelos naturalmente cacheados decidiram mostrar ao mundo que o padrão de beleza imposto sobre as mulheres, modelo em que o cabelo liso é a única forma de alcançar a beleza, não passa de uma grande mentira. A musa Rayza Nicácio, estudante de 21 anos, é uma das mais famosas responsáveis pelo grande sucesso da valorização da naturalidade feminina. Seguindo suas dicas, Rayza acumula mais de 300 mil seguidores, contando com seu blog, seu vlog e sua página no Facebook. Em Cuiabá, podemos perceber o quanto essa nova tendência tem se espalhado. Mato Grosso possui grande número de habitantes negros e pardos. Em 2010, segundo dados do Censo, o Estado possuía mais de 60% da população que se inseriam nos dois parâmetros, superando até a média nacional, de 51%. Sendo assim, temos uma grande porcentagem de cachinhos andando pela nossa capital. Devido ao clima da capital mato-grossense, notamos a escolha feminina em ser mais natural, desde as roupas até as madeixas. O calor excessivo faz com que seja difícil manter o visual liso conquistado pela dupla ‘secador e chapinha’. No entanto, com a ajuda da quebra de regras impostas pelos padrões de beleza, pode-se notar que é cada vez mais presente no dia-a-dia mulheres exibindo suas molinhas, sem medo de ser feliz. E para mostrar toda essa exuberância, Fuzuê traz o depoimento de três moradoras da cidade verde, contando as dores e maravilhas de assumir a ‘juba’ e mostrar sua força interior. Sara, 20 anos Com toda certeza, o cabelo é uma parte do corpo da mulher que é, indubitavelmente, importante para o convívio em sociedade. Nós crescemos ouvindo que o cabelo é o molde do rosto e que ele Eduardo Mafra deve ser bonito, macio, brilhoso, sedoso, cheiroso, liso. Sim, para o cabelo ser considerado bonito ele tinha que ser liso. Aí eu pergunto, e como ficam as irmãs, que assim como eu, nasceram com os cabelos crespos? Vocês imaginam a resposta, né? Para o bem geral da nação, a gente alisa, ou melhor, alisava. Eu tive a sorte de ter uma supermãe, uma mulher maravilhosa que entendia o meu cabelo. A maioria das técnicas que vejo hoje em vlogs sobre cabelos crespos a minha mãe já usava em mim anos atrás. Ela me ensinou a gostar do meu cabelo desde criança. Eu saía na rua, ouvia algumas coisas desagradáveis, entre elas que meu cabelo era duro, grosso, ruim. Eu tinha todos os motivos do mundo para odiar o meu cabelo. Entretanto, quando eu chegava em casa, eu tinha o apoio da minha família. Para uma criança é muito difícil lidar com o preconceito. Por isso, sem sombra de dúvida, essa base familiar foi muito relevante para a formação da minha identidade. Naquela época, usava o que hoje as vlogueiras chamam de twist (penteado onde se enrolam duas pequenas mechas dos cabelos formando cachinhos bem definidos), o tempo todo. Quando eu fui crescendo, com mais ou menos 11 ou 12 anos, comecei a usar rastafáris. Aos 17, alisei. Passei um ano com os cabelos lisos, e decidi “Sim, para o cabelo ser considerado bonito ele tinha que ser liso. Aí eu pergunto: e como ficam as irmãs que, assim como eu, nasceram com os cabelos crespos?”
voltar ao meu natural. Não foi uma decisão simples. Eu sabia que ia enfrentar muita coisa. Sabia que teria muito trabalho para cuidar dos meus cachinhos. E não foi fácil. Abrir mão da química para assumir o cabelo natural é um grande desafio. Antes de qualquer decisão sobre o corte dos fios, busquei informações sobre as fases de uma transição. E segui em frente. Cortei toda a parte com química do meu cabelo e ele ficou bem curto. Mas bem curto mesmo. Eu quase não me reconheci no espelho. Senti-me livre e, ao mesmo tempo, feia. Com isso, tomei mais uma decisão, e voltei a usar tranças até que meu cabelo crescesse novamente. Faz seis meses que tirei as trancinhas, e estou de volta. Cabelos crespos 100% naturais. Eu estou muito feliz nessa nova fase. Muito mesmo. Estou me redescobrindo. Mas vale a pena lembrar que o fato de assumir os cabelos naturais não está relacionado ao sentimento de consciência de raça, e sim à autoestima. Somos submetidas o tempo todo a um padrão de beleza do qual jamais faremos parte, por mais que dediquemos a vida a isso. Por esse motivo, é muito difícil assumir e amar os cabelos crespos como são em sua genuinidade. Difícil, mas não impossível. Joice, 23 anos Minha história capilar começou com a minha mudança pra MULHER “Mesmo me sentindo melhor com esse cabelo, confesso que já sofri algum tipo de preconceito e até desaprovação de alguns amigos” Cuiabá, em 2012. Eu morava no interior do Estado do Rio de Janeiro e tinha outro estilo de vida lá. Quando me mudei pra Cuiabá, eu usava os cabelos lisos, quimicamente tratados, compridos e tingidos. Na cidade de onde venho, eu trabalhava como fotógrafa e, inocentemente, achava mais prático e rápido quando me preparava para fotografar algum evento. Por várias vezes, quando fazia o procedimento de relaxamento no cabelo, meu couro cabeludo se feria por ser muito sensível. Mesmo assim, engolia a dor e aguentava até o final para obter o resultado esperado. Hoje sei que, na realidade, o fato era que eu não cuidava do meu cabelo como se deveria. Já no segundo ano de faculdade, residindo em Cuiabá, comecei a me incomodar com o clima da cidade e com a dificuldade de manter o aspecto liso do cabelo. Os salões muito caros e a falta de comodidade não favoreciam a que eu continuasse usando esse tipo de cabelo. Foi então que eu decidi deixar meu cabelo crescer ao natural. Morrendo de medo de perder o comprimento dele, fiquei por seis meses deixando crescer, cortando somente as pontas do cabelo, que estava muito desidratado. O resultado era um cabelo mal cuidado e minha autoestima completamente abalada. Até que um dia, uma amiga que tem os cabelos cacheados me incentivou a cortar toda a parte lisa do meu cabelo. No começo fiquei com medo de perder o comprimento, mas repensei, pois já não estava me fazendo feliz usar aquele tipo de cabelo. Não combinava mais comigo e nem com a fase que eu estava vivendo, em uma cidade nova com outras culturas e pensamentos e, principalmente, com outro clima. Aquele visual me prejudicava no “ritual” de me arruJoice assumiu os cachos depois de mudar para Cuiabá. Eduardo Mafra
65 mar e ter vontade de sair. Aquele cabelo já não me satisfazia. Decisão tomada: uma amiga me levou a um cabeleireiro, e fiz o que marcaria uma mudança na minha vida. Assim que ela cortou meu cabelo, eu já via a diferença. Eu me sentia outra pessoa. Sentia como se uma outra Joice nascesse naquele instante. Eu fiquei hipnotizada com a minha imagem, o cabelo tinha formado uma nova moldura pro meu rosto. Eu saía na rua e as pessoas não me reconheciam e quem não me conhecia ficava me encarando, tipo: “de onde é essa menina?”. Eu me divirto até hoje com os olhares curiosos. Por causa do meu cabelo, fui convidada a participar de ensaios fotográficos e comerciais, ainda não aceitei por ter vergonha, mas, com certeza, minha autoestima voltou melhor do que antes. Mesmo me sentindo melhor com esse cabelo, confesso que já sofri algum tipo de preconceito e até desaprovação de alguns amigos. Mas é dessa forma que me sinto bem, e não vou mudar por opinião alheia. Finalmente posso dizer que me encontrei. Minha vida facilitou muito mais com o cabelo cacheado, e hoje não me arrependo nem um segundo de ter mudado meu estilo de vida. Leilaine, 21 anos Era 2006, e, no alto dos meus 13 anos, eu via coleguinhas da escola sendo elogiadas pelo balanço nos cabelos soltos no pátio, nos dias de educação física. Eu também os queria. O meu, sempre rebelde e volumoso, era contido num grandioso rabo de cavalo no topo da cabeça, com a MULHER frente bem lisa, colada no couro cabeludo e emplastada de creme, gerando uma caspa sem igual. Tinha vontade de tê-los soltos. Foi quando uma cabeleireira, amiga da família, sugeriu à minha mãe que eu fizesse um relaxamento leve. Quando eu vi o resultado, não me cabia em mim. Usava solto no colégio e nos encontros de sextas-feiras. A química da amônia em combinação com sol forte modificou a cor dos meus cabelos, ficando de loiro escuro a ruivo queimado, tipo água de salsicha. Comecei a tingir, mas pouco adiantou: mais laranja ele ficava, e ainda tive um corte químico porque tentei tingir e alisar no mesmo dia. Agora, tinha falhas no cabelo, algumas partes nasciam rebeldes e não assentavam. Tinha muita vergonha. Em 2008, pintei de preto azulado, e as partes que caíram já se disfarçavam no meio da ‘juba’. Continuava com a amônia religiosamente a cada quatro ou seis meses. Usei preto até 2009 e o cabelo cresceu, chegando à metade das costas. Sofrido, muito quebrado no comprimento. Em 2012, depois de anos de químicas e cortes tentando recuperar minha autoestima, resolvi radicalizar. Fiz luzes bem platinadas. Era o sonho do cabelo loiro me dominando. Estraguei meu cabelo de vez. Fiquei cinco meses somente tratando, hidratando. Foi quando comecei a pesquisar e descobrir como realmente cuidar do “Que assumi-lo era um voto político de gratidão às minhas raízes afros, era aceitar a maneira na qual Deus sonhou comigo quando me criou. Aquela loira não era eu.” Leilaine assumiu suas raízes e enfrentou o preconceito. Eduardo Mafra
meu cabelo. Eu lia blogs (vi o lindo cabelo da Rayza Nicácio e me apaixonei. Queria ser como ela) que me mostravam que o cabelo afro tem a sua beleza. Que assumi-lo era um voto político de gratidão às minhas raízes, era aceitar a maneira que Deus sonhou comigo quando me criou. Aquela loira não era eu. Foi quando em novembro decidi cortar “tudo o que não era meu”. Cortei. Assustei todos à minha volta. Amigos, colegas de trabalho, família e namorado. Chamavam-me de louca, inconsequente. De sapatão, sim. Achavam que tinha perdido a vaidade e que isso me faria perder o namorado e admiradores. Sofri muito. Chorava quando ia sair e não sabia que roupa me deixaria mais feminina. Mas, na realidade, esses novos hábitos me fizeram uma nova pessoa. Foi um ótimo começo. Afinal, aquele simples corte de cabelo me ajudou a filtrar amizades, amores, relações profissionais. O cabelo foi crescendo e, agora sim, era eu refletida no espelho. Hoje meus cachos já estão na altura dos ombros. O volume ainda incomoda. O frizz (grande terror das cacheadas: fios rebeldes que se tornam ouriçados com a umidade), a imperfeição e a irregularidade são questionados. Mas hoje sei que tudo isso virou traço de mim, reflexo da minha personalidade, da diferença que eu faço nesse mundo velho, que tem muito que amadurecer quando o assunto são mudanças. O liso que prevalece Mesmo com a grande onda cacheada, algumas mulheres ainda preferem as madeixas lisas. E se engana quem acha que o movimento das cacheadas torce o nariz para essas garotas. A nova regra entre elas é “seja o que você quer ser, não o que querem que você seja”. Damaris, 23 anos Lembro-me de quando eu tinha uns cinco anos de idade... Eu atravessava a quadra do pátio da pequena escola de bairro onde eu estudava, e gostava de observar o vento soprando os cabelos lisos das minhas coleguinhas. Eu achava lindo. Apesar de ter cachinhos bem hidratados pela minha senhora mãe, desde criança eu sempre tive uma admiração por cabelos com essa textura lisa. A primeira vez que passei por um tratamento de alisamento aconteceu aos meus onze anos de idade, e, sinceramente, foi a realização de algo que eu sempre desejei. E uma das primeiras coisas que eu fiz foi correr para frente de um ventilador para ver meus cabelos esvoaçarem. Apesar de alguns desconfortos na infância, eu realmente não sinto pressionada pelo padrão atual de beleza. Ao mesmo tempo não me considero “escrava da chapinha”. Aliso porque me sinto bem dessa forma. A facilidade e praticidade das minhas madeixas se encaixam perfeitamente ao meu estilo de vida, por isso não pretendo deixar a química de lado. Sempre admirei e sempre desejei. Se eu posso, então por que não fazer? MULHER J. Damaris continua feliz com os fios escorridos. Eduardo Mafra