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É com imenso prazer que anunciamos mais uma edição da nossa querida revista Fuzuê, que está cheia de reencontros. Re. en. con. tro / Redescobrimento, tornar a encontrar, restabelecer relações. Em cada processo de apuração e de escrita, na sala de redação cheia novamente. Reencontros com as pautas, com as fontes, e com a RUA. Sabemos que, para você, esses meses também foram de reencontros e redescobertas. Queremos propor o reencontro com o prazer de folhear uma revista física, com os espaços da cidade, com pessoas e lembranças. Para além da capital, percorremos os interiores do estado em busca de histórias de gente que está à nossa e à sua volta. Em meio ao distanciamento de relações e de um tempo cada vez mais acelerado, paramos para escutá-las. Que cada página, cada reportagem e cada foto possam transportar, inspirar e fazer você se lembrar dos reencontros da vida. Aproveite!

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Published by Revista Fuzuê, 2023-10-25 15:25:34

Fuzuê | Edição 09

É com imenso prazer que anunciamos mais uma edição da nossa querida revista Fuzuê, que está cheia de reencontros. Re. en. con. tro / Redescobrimento, tornar a encontrar, restabelecer relações. Em cada processo de apuração e de escrita, na sala de redação cheia novamente. Reencontros com as pautas, com as fontes, e com a RUA. Sabemos que, para você, esses meses também foram de reencontros e redescobertas. Queremos propor o reencontro com o prazer de folhear uma revista física, com os espaços da cidade, com pessoas e lembranças. Para além da capital, percorremos os interiores do estado em busca de histórias de gente que está à nossa e à sua volta. Em meio ao distanciamento de relações e de um tempo cada vez mais acelerado, paramos para escutá-las. Que cada página, cada reportagem e cada foto possam transportar, inspirar e fazer você se lembrar dos reencontros da vida. Aproveite!

Keywords: Cuiabá,Mato Grosso,UFMT,Esporte,Cultura,Sports,Culture,Brasil,Brazil

fuzuêedição 9- ano 2022


A revista Fuzuê é uma produção da disciplina de Jornalismo de Revista, feita por estudantes da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). COORDENAÇÃO DE JORNALISMO Thiago Cury Luiz PROFESSORA RESPONSÁVEL Tamires Coêlho EDITORA-CHEFE Arielly Barth EDIÇÃO DE TEXTO Geovanna Torquato Maria Vanessa Araujo EDIÇÃO DE FOTOGRAFIA André Prado EDIÇÃO DE ARTE Willian Ramos MÍDIAS SOCIAIS Giovana Giraldelli Victória Ellen MONITORA Andrelina Braz FOTOGRAFIA André Prado Mariana da Silva DIAGRAMAÇÃO Ana Julia Santos João Roberto Martins Jolismar Bruno Leticia Pereira Mariana da Silva Marina Camargo Willian Ramos REPORTAGEM André Prado Geovanna Torquato Giordano Tomaselli João Roberto Martins Jolismar Bruno Leticia Pereira Mariana da Silva Maria Vanessa Araujo Marina Camargo Murilo Siqueira Vitória Kehl Araujo Yasmim Di Berti PRODUÇÃO PUBLICITÁRIA Gabriella Ferreira CAPA André Prado Willian Ramos COLABORADORES Andrelina Braz Bruna Cardoso Luciana Ângelo Nathalee Buttner REVISÃO Arielly Barth Jolismar Bruno Leticia Pereira Mariana da Silva Maria Vanessa Araujo 2022 Av. Fernando Corrêa da Costa, 2367 Boa Esperança, 78060-900 Cuiabá-MT fuzuê - 2 EXPEDIENTE


5 8 15 18 26 37 41 45 48 50 53 A vida ribeirinha e a lenda do Minhocão Muito além das quatro linhas A medalhista que golpeou traumas no tatame Cavalhada, a encenação de uma herança colonial em Poconé STRIKE OUT Sem funk, sem festa: a ascensão do ritmo em Cuiabá Nos cantos do mundo, a menina dança Nos pontos da vida Fragmentos para recriar o divino Dos fundos da academia aos pódios O chamado da arte Além dos olhos vendados: um esporte jogado de corpo e alma fuzue - 3 57 SUMÁRIO


com imenso prazer que anunciamos mais uma edição da nossa querida revista fuzuê, que está cheia de reencontros. Querido Público, fuzuê - 4 EDITORIAL É Em cada processo de apuração e de escrita, na sala de redação cheia novamente. Reencontros com as pautas, com as fontes, e com a RUA. Sabemos que, para você, esses meses também foram de reencontros e redescobertas. Queremos propor o reencontro com o prazer de folhear uma revista física, com os espaços da cidade, com pessoas e lembranças. Para além da capital, percorremos os interiores do estado em busca de histórias de gente que está à nossa e à sua volta. Em meio ao distanciamento de relações e de um tempo cada vez mais acelerado, paramos para escutá-las. Do centro geodésico da América do Sul, seguimos por 218 km atravessando linhas e fotografias até Rondonópolis, para mostrar mais de um esporte que já vimos bastante estereotipado em muitos filmes de Hollywood, e que talvez você não faça ideia de que está ligando vários cantos do mundo ao interior do nosso estado. Seguindo nossa rota pelo interior, nos deslocamos [inclusive temporalmente] até a porta de entrada do Pantanal. Convidamos você a visitar um passado distante que se tornou um grande espetáculo na cidade pantaneira de Poconé. Os reencontros conectam a novidade e o presente às nossas heranças, marcadas pela colonialidade. Fazendo um retorno e seguindo um traçado misterioso, a fuzuê chama você de volta à Baixada Cuiabana. Vamos mergulhar no rio Cuiabá e nas lendas populares que fazem parte da cultura da Barra do Pari. Sabe aquele aquecimento que faz lembrar do condicionamento físico perdido durante a pandemia? Em Cuiabá, você encontra um time de olhos vendados e de perder o fôlego! O nível de condicionamento físico de quem joga goalball por aqui só perde para o bom humor e energia da equipe. Passeando por Cuiabá, você pode se deparar com os treinos de basquete no Aecim Tocantins durante o dia e, noite adentro, você pode mergulhar nos sons do beat cuiabano que tem levado o nome de jovens músicos ao reconhecimento nacional. O que não falta é close na madrugada cuiabana. No ensaio fotográfico, as cores parecem vazar nossas páginas. É a arte convidando a olhar para dentro da gente, provocando um reencontro com camadas e sensações que estão aqui, mas nem sempre enxergamos. As nuances e os sentimentos explodem em cores, em um aparente caos artístico que revela beleza na confusão de cada pincelada. Que cada página, cada reportagem e cada foto possam transportar, inspirar e fazer você se lembrar dos reencontros da vida. Aproveite! Re. en. con. tro / Redescobrimento, tornar a encontrar, restabelecer relações.


MUITO ALÉM disque Foto: Andre Prado Murilo Siqueira fuzuê - 5 do prazer esportivo. [...] Graças ao basquete, hoje sou 100% independente”. O jogador mato-grossense de basquete adaptado Gabriel Aguiar traz, na sua fala, a realidade de muitas pessoas em cadeira de rodas que tiveram suas vidas mudadas pelo esporte. Nada acontece de um dia para o outro: a adaptação ao esporte é gradativa e remonta às suas origens, como conta Robson Andrade, professor de Educação Física. Ele relembra que, após a Segunda Guerra Mundial, viu-se a necessidade de achar um meio de incluir novamente na sociedade os soldados feridos que não conseguiriam mais andar. Assim, o basquete foi enxergado como esporte mais propício para essa adaptação, por exigir movimentação rápida e desempenho versátil. O basquete se tornou a modalidade paralímpica mais disputada no Brasil e, mesmo assim, quando se analisa o cenário do esporte em Mato Grosso, em vez de encontrar um meio de inclusão e incentivo com inúmeros integrantes, vê-se uma única equipe lutando para permanecer viva e dar sequência ao que Sérgio Del Grande e Robson Sampaio iniciaram no Brasil em 1958, quando surgiu a prática do basquete adaptado de forma oficial e competitiva. O nome Cuiabrasa se torna um elemento importante para o esporte no estado e para a manutenção da prática que transforma vidas de maneira profunda e duradoura, como conta o bicampeão da corrida de Reis e jogador da equipe Cuiabrasa, Daniel Nascimento. O jogador afirma que a qualidade de vida oportunizada pela prática esportiva é imensa e que, desde 2017, quando iniciou no esporte, sonha e trabalha duro para um dia defender uma grande equipe e, até mesmo, ir para a Seleção Brasileira. São altas as expectativas quanto à disputa de uma copa nacional no final do ano, para a qual está se preparando com a equipe. O início Vê-se que 2017 não foi um ano qualquer para marcar o começo da trajetória de Da- “A importância do basquete na minha vida vai além DAS QUATRO LINHAS


fuzuê - 6 niel, pois foi o período de criação da equipe. O time surgiu a partir de um projeto de pesquisa de Pós-graduação em Educação Física na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) que visava entender como o basquete ajuda no desenvolvimento do indivíduo com cadeira de rodas e trabalhar a reabilitação. Para tanto, o professor Carlos Fert e a fisioterapeuta Rosilene Rodrigues, juntamente com Robson Nascimento, escreveram e deram início à pesquisa. Após um processo de seleção e triagem para dar sequência ao projeto, nasceu a equipe Cuiabrasa, com 24 atletas. Durante os quatro anos de duração da pesquisa na UFMT, tiveram toda a assistência e estrutura de um time profissional, fruto de uma parceria da Secretaria Estadual de Saúde (SES-MT) com a Associação Mato-grossense da Pessoa com Deficiência. O apoio da equipe multidisciplinar do hospital Júlio Muller conferiu uma estrutura nunca antes tida para outro projeto no país. Porém, a pesquisa se encerrou. Robson resume a situação da equipe hoje: “Somos um time tentando sobreviver”. Ele conta que, com o término do projeto, automaticamente toda essa logística cessou. Além dos atletas, sobrou Robson, sozinho e fazendo de tudo um pouco, inclusive na função de técnico. Ele tenta dar sequência à equipe por gratidão, pois foram essas pessoas, entre 18 e 56 anos, que abriram a possibilidade de, no futuro, ele ser grande como técnico. O elo que une Robson a Daniel é a vontade de ampliar as fronteiras do esporte e ser reconhecido nele. Quanto aos desafios estruturais, Gabriel conta que a mobilidade ainda é um problema. “As quadras são de péssimo acesso. Infelizmente, as quadras de basquete ainda só são feitas e pensadas para pessoas que andam. O único lugar que a gente consegue treinar tranquilamente é no Aecim Tocantins, tanto é que é onde a gente treina há mais de cinco anos”. Não somente o acesso às quadras é um desafio, mas a locomoção por toda a cidade é difícil. “A falta de acessibilidade está presente de ponta a ponta. A gente só consegue ir treinar porque a maioria dos atletas possui meio de locomoção próprio ou conta com projetos como o ‘Buscar’, para ir ao treino. A gente dá carona um para o outro quando precisa, porque sabemos a dificuldade que é por conta da falta de acessibilidade”, explica Gabriel. Foi por iniciativa dos próprios atletas que houve o deslocamento por mais de 300 km até Araputanga, no interior do estado, para um jogo amistoso em maio deste ano. Além de impulsionar a criação do segundo time do estado na modalidade, a experiência os motivou a continuar no esporte. Guilherme, também jogador da equipe cuiabana, destaca que nunca pensaria em estar lá. “O basquete me levou até lá. Isso é uma coisa que ficou marcada pra mim, a primeira cidade onde o basquete me levou. Não


fuzuê - 7 Somos um time tentando sobreviver “ ” Robson Nascimento, técnico do Cuiabrasa fui por acaso, eu fui em função do basquete. Então, a gente vê que, através do esporte, através do basquete, as portas estão se abrindo para a pessoa com deficiência”, conclui ele. O poder de mudança O mesmo Guilherme que hoje se vê como parte importante do time caracteriza sua primeira experiência com o basquete como “estranha”. Ele nunca tinha se identificado com nenhum esporte antes. O que era, inicialmente, “estranho” mudou sua vida. Ele ressalta o apoio da família para sua performance de atleta, destaca como melhorou seu dia a dia, desde a realização dos afazeres domésticos até os assuntos conversados com amigos. “Agora, tenho o que contar para meus amigos sobre meu dia. Além disso, fiz muitos amigos aqui!”. E as relações não ficam apenas dentro das linhas da quadra. O “jogo” começa quase duas horas antes do treino, quando atletas e técnico se reúnem nos arredores do ginásio para falar do seu dia, contar como foi o final de semana e compartilhar histórias de conquistas, como fez Daniel ao ser campeão da Corrida de Reis pela segunda vez. Ele levou seu troféu para o pré-jogo e todos os seus amigos tiraram fotos com ele, compartilhando a vitória como coletiva. Muito além das quatro linhas, Guilherme e Daniel convidam os amigos cadeirantes a experimentar o basquete, onde poderão, como eles, se enxergar para além da cadeira que usam. Gabriel Aguiar, em seu livro “Uma cadeira de rodas, Mil e um desejos’’, fala sobre isso. Ele começou a escrever o livro por diversos motivos, mas a razão principal foi por não ver a si e aos amigos em filmes e livros. Eles estão distantes da representação de filmes como “Intocáveis”, de 2011, dirigido por Eric Toledano, que retrata Philippe (François Cluzet), um aristocrata rico que, após sofrer um grave acidente, fica tetraplégico e decide contratar Driss (Omar Sy) como assistente, um jovem problemático que não tem nenhuma experiência em cuidar de pessoas. Outro exemplo é “Como eu era antes de você”, filme de 2016 dirigido por Thea Sharrock que retrata o bem sucedido Will (Sam Claflin), que, após ser atingido por uma moto, se torna tetraplégico e é forçado a permanecer em uma cadeira de rodas. Ele fica depressivo e seus pais buscam inúmeros profissionais para ajudá-lo até contratar como cuidadora a jovem Louisa Clark (Emilia Clarke), que acaba se envolvendo com ele. Para Gabriel, esses filmes e livros passam a ideia de que o cadeirante sempre precisa de alguém para cuidar dele ou está sempre depressivo. A decisão de escrever contando sobre sua vida e suas experiências pode fazer com que outras pessoas se descubram por meio do basquete. Acima de tudo, é uma forma de desconstruir narrativas capacitistas (quando a ausência de deficiência é vista como normalidade) e que reduzem pessoas complexas a um discurso simplista de superação. f


A vida ribeirinha e aAndré Prado Foto: André Prado digoreste fuzuê - 8


a lenda do Minhocão fuzuê - 11 Enchente de 1974 Comunidade do Pari Muito tempo atrás, em meio às águas do rio Cuiabá, vivia um ser gigante que assombrava a vida dos pescadores. Com cerca de 20 metros de comprimento, o Minhocão do Pari, como ficou conhecido, tinha o costume de atacar embarcações e banhistas de acordo com os relatos dos ribeirinhos. Historiadores explicam que o Minhocão era como um vigia, sua fúria tinha raiz: quando algum dos pescadores não respeitava o período de reprodução dos peixes, o que, na época, não era proibido nem regulamentado. O movimento das águas era espantoso. O deslocamento das águas era tão grande e intenso, que nem os barrancos se continham, motivo do alargamento das encostas do rio. Ainda que com muito pouca informação disponível, grande parte da história do paradeiro do assombroso Minhocão está na tradição oral daqueles que viveram em sua época. Relatam que, desde a grande enchente que ocorreu em 1974 na capital mato-grossense, a criatura não foi mais avistada. Alguns ainda insistem em alegar que não se pode reformar a igreja Matriz, pois o Minhocão está preso nos fios de cabelo da imagem de Nossa Senhora. Contudo, a lenda permanece viva na mente dos que viveram na época ou ouviram os relatos sobre o Minhocão, o terror dos ribeirinhos. A comunidade Barra do Pari Conhecida como terra de Padre Ernesto, a Comunidade do Pari dá origem ao nome Minhocão do Pari, conservando, em sua essência, a humildade e o espírito acolhedor de Cuiabá. Pertencente à família Barreto há 142 anos, Padre Ernesto veio da Bahia e, surpreendentemente, teve oito filhos na capital. O sacerdote era devoto de São Benedito, motivo de todos os seus descendentes se chamarem também Benedito, motivando também a construção de uma igreja em homenagem ao santo na comunidade. Mantendo-se firme na fé e na tradição de sua terra, dona Antônia Maria vive na região há 36 anos e, aos 74 anos, é coordenadora da igreja e das festas de São Benedito do Pari na comunidade, que tinham o costume de acontecer anualmente até a pandemia de COVID-19. Ela conta com fuzuê - 9 Igreja de São Benedito do Pari


fuzuê - 10 muito orgulho que nenhuma das festividades tinha fins lucrativos, mas prezavam pela comunhão dos moradores, que partilhavam refeições oferecidas nas celebrações. Quando questionada sobre o Minhocão, ela lembra que seu Benedito Oscarino, antigo senhorio da comunidade, fazia questão de manter viva a lenda, quando se reuniam. “Ele contava que era lá pelos fundos da comunidade, bem na entrada do rio, que tinha um caminho de pedras, que o cortava até certo ponto e ali era de onde o Minhocão saía. A gente tinha certeza que ele estava por ali sempre que surgia um redemoinho no meio das águas, que fazia as flores florescerem”, finaliza dona Antonia. Para Antônio João, 67 anos, zelador da comunidade, e Wanderley Campos, aposentado de 62 anos, o assombroso ser talvez não tenha habitado aquelas águas. Permanece na história, e apenas nela, como um mito. Ambos vivem ali há muitos anos e não tiveram o prazer, ou desprazer, de observarem o Minhocão com os próprios olhos. Ainda que acreditem que a enchente tenha levado o Minhocão para outras águas, ela não poupou os ribeirinhos de dias muito difíceis. Wanderley lembra que precisou deixar tudo para trás ainda jovem. As perdas materiais foram grandes, as casas mais próximas ao rio foram todas atingidas e, atualmente, não é possível enxergar uma lasca de tinta que preenchia as paredes das casas da época. “Ficamos ilhados aqui. Só conseguimos sair por conta do helicóptero do Exército que veio socorrer a gente”, lembra Campos. Uma vez habitada pelos descendentes do padre Ernesto, a Barra do Pari hoje conta com moradores de diversas regiões do país que, por sua vez, não puderam ouvir a lenda instigante que rondava o leito do rio Cuiabá e os pesadelos dos pescadores. Edisséia Barreto, 58 anos, é a atual proprietária das terras do Pari, além de filha adotiva de Benedito Oscarino. Ela chegou à comunidade com apenas três dias de nascida. “Toda vida eu escutei sobre o Minhocão, era real demais para os pescadores, tem uns que acreditam até hoje”. Com as mudanças de tempo e com as transformações das águas do rio, os moradores da Barra do Pari começaram a trabalhar fora, deixando de lado a pesca. Atualmente, o trecho do rio que passa pela comunidade serve para o lazer de seus habitantes. De maneira curiosa, apesar de contar com uma associação de pescadores, somente quatro pescadores são registrados como profissionais na região. “A comunidade passou por uma reestruturação material desde a enchente de 1974, a gente quer ter a oportunidade de manter vivo o que é imaterial. Os mais novos têm que aprender com os mais velhos que já estavam aqui, pescaram nesse rio, que ficavam assustados por conta do Minhocão, têm que ter interesse”, reitera Edisséia, preocupada. Caminho de Pedras Vila dos Pescadores Estátua do Senhor Bom Jesus


fuzuê - 11 “O rio Cuiabá guarda muitas histórias de vidas que não se encontram nos livros, que só é possível saber, se você se dispuser a ouvir”, explica Nelson Correa. Sempre que tem a oportunidade de ir pescar com seu sogro, volta com novos relatos e experiências de vida que faz questão de passar para os outros, uma delas é a lenda do Minhocão do Pari. Em muitas dessas pescarias, não se falava em outra coisa. A minhoca gigante que ficava no rio Cuiabá é muito mais que uma lenda para o sogro e para os amigos dele. Ao adentrar às partes mais profundas do rio, onde se encontram também poços (um dos locais favoritos do Minhocão), os pescadores ficavam em alerta, temendo o aparecimento da criatura medonha e de seu terrível ataque. Logo, as preferências do Minhocão se tornaram as dos pescadores. Para a marmita durante um longo período de pescaria, nada de suínos, já que a carne de porco revoltava a criatura. Sobretudo, ao embarcar para mais uma missão arriscada para levar o sustento à sua família, os pescadores recorriam à fé. O Senhor Bom Jesus era quem recebia as súplicas ardentes dos ribeirinhos antes de entrarem no rio, o mesmo que se encontra nos lábios, nas orações e em uma estátua em frente à Vila dos Pescadores na comunidade de São Gonçalo Beira Rio. É ele quem permanece, nos dias de hoje, como protetor de muitos pescadores da região. Atento ao movimento, Antônio Silva, de 74 anos, pesca na região há muito tempo. Mesmo com a idade avançada, a crença no terror do rio Cuiabá não findou, apesar de nunca ter visto nenhuma de suas ações. “A gente não sabe se ele saiu daqui mesmo, né? Eu tenho minha tradição e respeito o Minhocão. Mas já teve gente que, anos atrás, deixou de vir para o rio, se mudaram da região por conta da lenda”, complementa. “Mas eu resisti. Isso aqui é a minha vida, estar no meio das águas do rio Cuiabá. Enquanto eu tiver força para pegar minha canoa e remar, me verão aqui. Foi através dessas águas que eu sustentei toda minha casa, que eu tive a oportunidade de construir meu barraco. Com certeza não foi fácil, mas é nessa canoa que se escreve a minha história”, completa seu Antônio, triunfante sob um vigor de espantar seus amigos pescadores. Assim como seu Antônio, João Magalhães é pescador desde que se entende por gente. Morador do Coxipó, todos os dias vai em busca de seu sustento, de bicicleta, na região do São Gonçalo Beira Rio, na conhecida Vila dos Pescadores. “Depender do rio Cuiabá atualmente tem sido cada vez mais difícil e eu não estou nem falando de medo do Minhocão, mas dos órgãos que sempre estão contra nós, pescadores”, protesta João. “A água do rio já não é mais a mesma, você acha que a culpa dos peixes sumirem cai sobre quem? Sim, sobre nós. Mas subindo o rio acima, identificamos diversas tubulações de esgotos desses grandes condomínios que são despejados diariamente aqui, porém, os grandes empresários jamais serão afetados. Isso você não vê na mídia”, o tom de voz é aumentado pela revolta do ribeirinho. “As dragas estão instaladas em local inadequado, fazendo com que o rio se alargue ainda mais, aí você imagina ‘se nem os peixes estão aparecendo, imagina o Minhocão?’”, indaga João. Dependência e resistência


fuzuê - 12 “A origem da lenda” é o subtítulo que Salles Fernandes traz em seu curta metragem sobre o Minhocão do Pari. Morador da cidade de Sorriso desde 2000, sempre fez produções independentes, até ser contemplado com a Lei Aldir Blanc para desenvolver esse projeto. “Uma das prioridades para o projeto foi ter uma equipe toda da própria cidade, ainda que com pouca experiência, facilitaria todo o processo. Porém, a pandemia fez com que alguns desafios fossem enfrentados, como integrantes acometidos pelo Covid-19 e o fechamento dos possíveis locais para gravação”, narra Salles sobre o início de sua aventura em contar a história do Minhocão. Outro obstáculo surgiu no decorrer da produção: Sorriso, sendo uma cidade jovem, não possuía uma casa que representasse a época (anos de 1860 a 1870) na qual o filme se passaria. A equipe teve de construir sets de filmagem e produzir todos figurinos. Apesar das dificuldades, o resultado do filme foi positivo, possibilitando que o curta alcançasse circulação em 15 festivais, até o momento, e a conquista com premiações fora do Brasil. Uma das conquistas foi o prêmio, na Itália, como “Melhor História Original”, além do reconhecimento no Alternative Film Festival (Festival de Cinema Alternativo), em Toronto, no Canadá, nas duas categorias principais de “Melhor Curta Metragem”, tanto no júri técnico quanto no popular. Ainda que com poucos elementos disponíveis, Salles explica que a história do filme conta uma nova versão para essa origem. “Nós aproveitamos outras lendas existentes e trouxemos para esse contexto figuras como Maria Pari, inspirada em Maria Taquara, e o Boto, pertencente à lenda amazonense, trazendo o Minhocão como fruto desse relacionamento”. Mantendo viva, visualmente, a lenda do Minhocão na capital, o escultor Jonas Corrêa, de 57 anos, relata que ela percorre o mundo todo com diferentes nomes. Por mais que seja conhecida na região da Barra do Pari, ela se estende por todo o Rio Cuiabá até outros lugares no Pantanal. Paranaense, Jonas conta que sempre ouvia sobre as ações do Minhocão e isso fez com que ele desejasse concretizar, de alguma forma, esse elemento do imaginário popular. “Eu escutava sobre o fenômeno que ocorria no desbarrancamento do rio, eles falavam que era o Minhocão que estava revolvendo, tanto pelo barulho, quanto pela queda em efeito dominó fazendo uma grande borbulha, parecendo que havia um bicho ali mesmo”. Em sua primeira oportunidade, Jonas relata que o seu projeto seria para o Sesc Pantanal, no Hotel de Porto Cercado, com duas obras, uma do Minhocão e outra da Sereia Iara. Infelizmente, a motivação inicial não se concretizou. Dessa maneira, o escultor decidiu oferecer a obra sobre o Minhocão ao Shopping 3 Américas. A lenda viva através da cultura


fuzuê - 13 Alice Almeida Alice Almeida Gravação do filme “O Minhocão do Pari” Artesanato produzido pela Casa do Artesão Alice Almeida, ceramista de 75 anos, confirma a grande extensão que a lenda do Minhocão tomou. De acordo com ela, os moradores de São Gonçalo Beira Rio nunca chegaram a presenciar o monstro na comunidade . Nascida e criada na região, Alice lembra que, apenas uma vez, certo pescador relatou ter visto a criatura. Presidente da Casa de Artesão da comunidade, a trajetória de Alice na cerâmica começou aos dez anos de idade para ajudar sua mãe nas despesas de casa e nunca mais parou. “Eu pretendo continuar até o dia que Deus permitir”, diz, com os olhos cheios de orgulho. Como produz vários tipos de peças, a artesã menciona que muitos turistas vêm em busca dos artesanatos relacionados ao Minhocão do Pari. Anos atrás, Alice, sua irmã e sua mãe precisavam atravessar o rio para buscar argila. “Na época, a comunidade de Gonçalo Beira Rio era f desconhecida, uma vez que as peças eram levadas para a Casa do Artesão, sendo ali vendidas”, relata. O fechamento da Casa do Artesão fez com que muitas famílias desistissem do ofício de ceramistas, mas possibilitou que as produções fossem vendidas na própria comunidade, após recusarem um espaço no centro da cidade para produção das peças. Conhecida como “lojinha”, está localizada em uma antiga escola desativada. Foi assim que vimos a comunidade de São Gonçalo Beira Rio se tornar o que é hoje, um bairro tradicional de Cuiabá que mantém, em sua essência, a cultura viva através da arte, seja no artesanato ou através do Siriri e Cururu. “Atualmente, somos em seis artesãs na comunidade, e estamos aqui mantendo viva essa cultura. Ficamos muito felizes em poder retratar lendas como a do Minhocão e enviá-las pelo mundo afora através dos diversos turistas que nos visitam”, encerra dona Alice. Ainda que a enchente de 1974 tenha levado o Minhocão do Pari para fora dos limites do rio Cuiabá e, até então, a criatura não tenha sido mais vista, ela permanece no imaginário popular cuiabano. Mesmo que tenha seguido rumo a outros afluentes, sobrevivem histórias na cultura ribeirinha e na oralidade do cotidiano, mantendo viva a lenda que entretém, amedronta e alerta os moradores da região.


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A MEDALHISTA QUE GOLPEOU TRAUMAS NO TATAME QUE(M) que É ESSa? Vitória Kehl Araújo fuzuê - 15 A jovem de cabelos pretos curtos, não muito alta, sempre está na academia. Após muito tempo perdida, o Jiu-jitsu a encontrou. Mato-grossense nata, da pequena cidade de Canarana, a 836 km de Cuiabá, Letícia Godoy dos Santos, de 19 anos, sonha em ser campeã mundial no Jiu-jitsu feminino. “Lê”, como prefere ser chamada, desde a infância, surpreende quem a conhece. No dia em que nasceu, seu pai, Raimundo, estava na obra de sua casa e a mãe, Sandra, na casa da sogra. Quando as contrações começaram, a mãe foi levada ao hospital. Quando o pai chegou, a apressada Letícia já havia nascido. A lutadora tem duas irmãs. A mais velha mora em Minas Gerais e seu “xodozinho”, a caçula, mora em Canarana. Pessoas próximas a Letícia a definem como o retrato de uma pessoa forte, sincera, simpática e carinhosa. Lê adora cozinhar. Sua família adora o estrogonofe e o frango assado que ela prepara. Os pratos são apreciados sempre em um momento com mesa cheia. Com um perfil de pessoa cujo afeto está nos atos de serviço, prefere ações do que investir em palavras. Pode inclusive ser considerada de personalidade fechada, com alguma dificuldade de se expressar. Durante muito tempo, como a maioria dos adolescentes, Letícia não estava decidida sobre qual rumo deveria tomar em sua vida. Em sua festa de quinze anos, a cerimonialista anunciouaos convidados que Letícia desejava fazer Medicina. Foto: Nathalee Buttner


Contudo, ao final do Ensino Médio, as opções passaram a ser Gastronomia e Publicidade. Até passou pela sua cabeça juntar as duas formações e ter seu próprio negócio. Ao terminar a escola, Lê começou a preparar e vender geladinhos gourmet, além de ter trabalhos de freelancer como gestora de mídias sociais para algumas empresas de Canarana. Era 2019 e as artes marciais chegavam à vida dela, por sugestão de sua psicóloga. O objetivo era colocar no tatame todas as angústias que Letícia guardava dentro de si desde seus 13 anos, quando ocorreu o desaparecimento da mãe, nunca solucionado. “Sempre que eu luto e pratico, eu dedico à minha mãe. Eu comecei por ela, foi uma coisa que me ajudou muito com o luto, em um período que me senti muito sozinha. Aos poucos, fiz amizades aqui dentro da academia e, agora, as pessoas daqui são parte da minha família”, afirma a atleta. Por não se sentir acolhida pelos colegas na aula experimental, o Jiu-jitsu foi descartado de início. Durante quase dois anos, Letícia iniciou no Tae Box, modalidade que envolve Taekwondo, Boxe e Judô, bem parecido com Muay Thai. Ela praticava com foco na defesa pessoal e virou um verdadeiro “piolhinho” do tatame, querendo treinar toda hora, segundo seu sensei. Com a intenção de se graduar, mudou para o Tae Boxe Fitness, que consiste em técnicas de socos e chutes e aborda algumas projeções. Devido a uma lesão no pé, ela resolveu dar mais uma “Sempre que eu luto e pratico, eu dedico à minha mãe. Eu comecei por ela, foi uma coisa que me ajudou muito com o luto, em um período que me senti muito sozinha. Aos poucos, fiz amizades aqui dentro da academia e agora as pessoas daqui são parte da minha família” chance ao Jiu-jitsu com kimono, em que as lutas são desenvolvidas no chão. Com poucos meses, passou a ser monitora e a auxiliar o sensei nas aulas. A paixão pela modalidade de luta foi certeira, não conseguiu largar mais. Por sugestão do pai, alinhou aquilo que mais gostava com a faculdade de Educação Física. “Para mim, o começo foi um pouco complicado. As crianças são muito afetuosas, então elas chegam e abraçam, já vêm falando que te ama. Chegou um momento em que eu não conseguia mais ficar sem vir dar aula para as crianças. Os alunos são meus pequenininhos e eu os adoro!”. Letícia é uma atleta determinada a fazer o seu melhor a cada dia. Acorda às cinco horas da manhã e pratica musculação durante uma hora, quatro vezes por semana. Os exercícios na academia são adaptados por ela para, por exemplo, fortalecer a pegada quando usa o kimono. As sessões de treino de Jiu-jitsu duram uma hora e meia, de segunda a sexta. Às vezes, surgem treinos extras. De manhã estuda, à tarde trabalha como recepcionista na academia, auxilia nos treinos das crianças e treina durante a noite. Atualmente, Letícia compete na categoria feminina faixa branca até 62kg. Desde que começou no Jiu-jitsu, a lutadora participou de competições e conquistou medalhas de ouro e prata. Em novembro de 2022, vai competir o mundial em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos. Para conseguir comparecer ao fuzuê - 16


campeonato, os custos foram exorbitantes. A passagem já foi comprada, mas custou cerca de R$5.000, parcelados em doze vezes. Em seu segundo campeonato, ao ganhar sua primeira medalha de ouro, a garota passou pelo primeiro constrangimento na modalidade. Às garotas, é obrigatório usar rash guard (camiseta de lycra), mas os garotos podem usar em alguns campeonatos, e em outros não. “Como eu tenho cabelo curto, nesse campeonato a moça me impediu de entrar na área de aquecimento, pois eu estava usando [rash guard] e ela disse que era proibido [por achar que eu era um garoto]. Então, tive que passar pelo constrangimento, na frente de um monte de pessoas, para explicar que eu era uma menina”. Até 1971, a prática do Jiu-jitsu e outros esportes de luta por mulheres era proibida. Ainda hoje, nas categorias femininas, por vezes não há competidoras o suficiente, variando conforme faixa e peso. Quando não há, saem vitoriosas por W.O. (Walkover). Eventualmente, no tatame, ainda há certo desconforto no espaço que é tipicamente masculino. “Aqui na academia, enquanto tem oito caras treinando, tem duas meninas. O tatame é bem grande para a quantidade de alunos que temos em cada horário, mas, às vezes, os homens ultrapassam a área reservada para cada dupla lutar e já chegaram a mandar duas mulheres saírem ou caíam próximo das que estavam treinando. A justificativa dada é que estão na emoção da luta e não querem perder a posição, mas as mulheres também estão e isso levou a [atleta] que estava em vantagem a perder a posição e precisar recomeçar o rola [a luta]”, explica. A jovem atleta acredita que, apesar dos desconfortos relacionados ao espaço, não deve haver separação de horário dos treinos masculinos e femininos. O tatame pode ser um espaço para atletas aprenderem o respeito mútuo, independentemente de gênero. Além disso, o treino com atletas de maior rendimento ajuda a entender onde podem melhorar, ao se prepararem para campeonatos. Por ser um esporte com muito contato físico, Letícia teve dificuldade para se adaptar no início. A medalhista foi vítima de abuso sexual aos cinco anos de idade e, mesmo após receber acompanhamento psicológico ao longo de sua vida, qualquer toque em seu corpo ainda gerava desconfortos. Aos poucos, criou confiança para rolar [lutar] com as meninas e com o sensei. Mais tarde, quando se sentisse pronta, passaria a rolar também com os homens. A Letícia de antes era retraída, mas se empoderou e se fortaleceu para enfrentar os temores e traumas de uma biografia que não pode ser resumida pelos momentos ruins. Há muito pela frente e ela sabe disso. Atleta competitiva e focada, o objetivo é crescer no Jiu-jitsu.O ensino funciona como uma terapia. As crianças, com aconchego e carinho a envolveram, inverteram os papéis e ensinaram a professora a ser mais atenciosa com aqueles que ama. fuzuê - 17 f


Festá tEXTO: Giordano Tomaselli e marina camargo Foto: Giordano Tomaselli, Andrelina Braz, Bruna Cardoso e Luciana Angelo fuzuê - 18 Cavalhada, a en herança coloniaO relógio marcava pouco mais de sete e dez da manhã de um domingo atipicamente nublado e frio, quando o famoso “castelinho” foi avistado, monumento que fica na entrada do município de Poconé, cidade 100 km ao sul de Cuiabá, conhecido por ser a porta de entrada para o pantanal mato-grossense. A avenida que veio em seguida dava o tom do clima que encontraríamos na cidade de 35 mil habitantes: todos os postes tinham penduradas bandeiras que alternavam entre as cores vermelha e azul. Elas representam os Exércitos Mouro e Cristão, que disputam a tradicional “Cavalhada”. A encenação revive a luta travada entre o imperador do Ocidente, Carlos Magno, e os Mouros, nome dado pelos cristãos às pessoas de pele negra e de religião muçulmana que habitaram a Península Ibérica do século VIII ao XV. O professor Lawrenberg Advíncula da Silva, que estuda a Cavalhada desde 2014, explica que ela destaca a supremacia do imaginário cristão europeu e exalta as virtudes dos reis católicos da época, em contraste com o repúdio às culturas islâmicas. Inclusive, ela foi introduzida no Brasil pelos colonizadores portugueses como forma de catequização nativos.


fuzuê - 19 ncenação de uma al em Poconé “As Cavalhadas assumem uma característica singular no Brasil, enquanto na Europa eram realizadas mais como torneios (disputas coletivas) e justas (disputas individuais), no Brasil elas assumem o formato de folguedo [festa popular] no Nordeste e no Centro-Oeste, principalmente em Mato Grosso e Goiás, aliam jogos equestres com teatro religioso”, conta Lawrenberg. Presente também em estados como Paraná, Rio de Janeiro e em alguns municípios no interior do Rio Grande do Sul, a primeira Cavalhada em Mato Grosso foi realizada em 1769 para recepcionar o Capitão-General e 3º Governador da Capitania de Mato Grosso, Luiz Pinto de Souza Coutinho. A partir disso, ela se fixa em Poconé como ato de louvação a São Benedito e ao Divino Espírito Santo. Após 36 anos de pausa, em 1991 durante a Festa de São Benedito, os festeiros retomaram a tradição que permanece até hoje. Tudo começa com a escolha de 24 cavaleiros para encenar a batalha entre os dois exércitos, são eles que participam das provas que compõem a batalha medieval. No percurso da entrada da cidade até o Clube Cidade Rosa (CCR), local onde ocorre a Cavalhada a partir das 8h da manhã,


fuzuê - 20 nos deparamos com diversas faixas parabenizando os cavaleiros, a rainha, os pajens e até os festeiros, como também a movimentação nas ruas, agitadas para uma manhã de domingo em uma cidade de interior. Definitivamente não era uma manhã de domingo qualquer, a cidade estava prestes a realizar seu maior evento anual, pelo menos em termos de quantidade de público. O evento mobiliza paixões. Diversas famílias mostram para quem vai sua torcida e estampam em suas residências bandeiras azuis ou vermelhas nas grades, nos muros e até nos telhados, como se fosse um dia de jogo de Copa do Mundo. Na chegada ao CCR, tudo isso fica bem mais nítido. Faixas, bandeiras e gente apaixonada estão amontoadas em um só lugar. Atrás da arena, escondidos do grande público, os poucos minutos que antecedem o início do evento são especiais para cavaleiros e suas famílias: é hora de fazer suas orações e pedir para que tudo ocorra dentro do esperado durante o “dia de batalha”. A mistura de orações e discursos motivacionais, intercalados de gritos de bravura e empolgação, marca a preparação do longo dia que virá pela frente, tudo isso já do alto de seus cavalos. Os pajens, que estão ao lado, parecem estar menos tensos, talvez porque ainda não entendam a dimensão e o peso que o evento tem para a comunidade, ou simplesmente por enxergarem tudo com olhos de crianças deslumbradas, mas acabam contribuindo para deixar o clima um pouco mais leve. O semblante menos comovido dos meninos contrasta com as lágrimas de emoção que insistem em escorrer dos olhos de alguns cavaleiros e de suas esposas e mães. Ao fim, os homens se despedem e já se encaminham para o local onde farão sua entrada na arena, logo em seguida. O ritual é o mesmo para cada exército, confinados separadamente nos extremos do local. A arena é dividida. De um lado, uma arquibancada para cada exército é separada pelo palanque oficial ao meio, lugar destinado à Rainha da Cavalhada, às autoridades, aos festeiros e às suas famílias. De outro, estão os camarotes, barracas que ocupam toda a lateral. Cada uma pertence à família de um cavaleiro. Agrupadas por exército, elas deixam a visão frontal dividida: metade azul, metade vermelha. O castelo fica na ponta sul. De repente, um som nos chama à arena e toma conta de nossos ouvidos. Ainda não é a voz dos narradores, mas o barulho de repiques em um tambor tocado repetidamente, na beirada da pista. Junto ao tambor está Ângelo Jesuíno Leite, conhecido popularmente como “Ângelo Caixeiro”. Dificilmente uma reportagem conseguiria falar de Cavalhada sem esse personagem. Seu papel não começa


fuzuê - 21 naquele horário, nem naquele dia, mas uma semana antes. Por volta das 4h da madrugada, Ângelo sai pelas ruas da cidade tocando o instrumento para “acordar” cavaleiros e pajens para os treinos. “O primeiro que entra na arena ‘é eu’ e esse aqui [aponta a caixa] acompanha”, conta Ângelo. A caixa é feita de madeira guatambu, amarrada com jenipapo e tem couro de veado na extremidade, percutidos por duas baquetas que ele tem em mãos. Ângelo relata que confeccionou o instrumento sozinho durante a adolescência e que é o mesmo que o acompanha até hoje. Para o professor do Departamento de Artes da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e pesquisador da viola-de-cocho, Abel Santos Filho, esse instrumento é um modelo de herança medieval, ainda usado por quilombolas brasileiros. “Somente difere de outras caixas devido a profundidade do cilindro do corpo. Alguns tem 30 cm, esse não tem mais que 20 cm. Ele é de fabricação artesanal. No nordeste por exemplo, temos as bandas de pífano que fazem dessa maneira as suas alfaias e também usam o jenipapo”, explica. No domingo, Ângelo fica o dia todo ao lado da arena acompanhando e tocando seu tambor, ditando a emoção e o clímax das provas ao acelerar o ritmo em momentos decisivos. Enfim, a voz dos narradores ecoa repetidamente, dando início ao evento. Dentre eles está Lauro Eubank, que participa do espetáculo há quase 30 anos. “Nesses trinta anos, eu paro nesses quinze dias do mês de junho para preparar os cavaleiros. Sou eu que preparo o treino e faço a locução. Este ano nós estamos comemorando trinta anos de Cavalhada. Pra mim é um prazer muito grande, mas desgastado, cansativo. Já não dou conta de correr o dia inteiro, mas faço porque amo”, declara Eubank. Lauro também explica como ajudou a apaziguar os ânimos de competição que havia entre os exércitos, o que estava criando uma rivalidade nada saudável e fugindo do objetivo do evento de celebrar a fé e a tradição. “Antigamente, as disputas eram canetadas, por exemplo: um a zero, dois a zero… E aí começou muita rivalidade entre os exércitos.


fuzuê - 22 Aos poucos, meu pai foi dizendo ‘olha, entra lá e diminui um pouco essa animosidade aí’, e nós fizemos isso. Hoje você vê que todo mundo continua correndo, mas nós não incentivamos a disputa. É aí que a festa fica mais bonita, mais emocionante!”. A Batalha Os primeiros atos da Cavalhada seguem o cerimonial. No início, ocorre a entrada das bandeiras, onde pessoas a cavalo percorrem a arena portando as bandeiras do município, do estado, do país, da paz, do Divino Espírito Santo e de São Benedito. Ao final, autoridades presentes são chamadas na pista para, simbolicamente, receberem cada bandeira e levá-las ao palanque oficial. Após as formalidades, a Cavalhada começa. “PELA MINHA DIREITAAA… EXÉRCITO MOURO!”, esbraveja o narrador no centro da pista ao anunciar o primeiro exército a pisar na arena. Ao som do seu hino, os cavaleiros desfilam em festa com suas roupas vermelhas adornadas com detalhes azuis e brilho dourado. Ao lado de cada cavalo se encontra um pajem, que vem ricamente enfeitado, recebendo o carinho e os aplausos da torcida, especialmente da moura. “Sol vermelho, que aquece o meu pantanal. Avise o povo poconeano, que o exército Mouro está chegando!” Trecho do hino do Exército Mouro A arena que, até agora, foi pintada de vermelho, fica ainda mais rubra com a entrada da bela Rainha Moura. Montada em seu cavalo adornado, ela porta um suntuoso vestido rodado de seda escarlate abaixo da coroa dourada em sua cabeça. Com um sorriso em seu rosto satisfeito, acena para a plateia, conciliando a gentileza com a condução do cavalo e a mão nas rédeas. Escoltada pelo mantenedor e dois soldados, a bela Rainha sobe até seu castelo, com uma visão privilegiada de todo o campo de batalha e, de lá, acena para toda a arena. Grande parte das garotas da cidade sonha em ocupar um dia o posto de Rainha, principalmente aquelas que vêm de famílias que tradicionalmente participam do evento. “PELA MINHA ESQUERDAAA… EXÉRCITO CRISTÃO!”, esbraveja novamente o narrador, arrancando a euforia da torcida. A entrada segue o mesmo ritual do exército mouro. Seu hino cristão é a trilha sonora para as roupas dos cavaleiros, pajens e cavalos, que embelezam a pista com seu azul chamativo, tons brilhantes de vermelhos e acessórios dourados e prateados. “Azul, sempre azul. Sou do exército Cristão da paz!” Trecho do hino do Exército Cristão


fuzuê - 23 Assim como nas capitanias hereditárias da época da colônia, há uma “herança” passada entre as gerações. Assim que um dos cavaleiros se aposenta, a vaga passa a ser de seu filho, primo ou algum parente próximo de mesmo sobrenome, garantindo a manutenção da vaga da família na arena. Já a Rainha da Cavalhada é escolhida em consenso entre os festeiros, mas a tradição atesta que é o Capitão do Mastro quem tem esse poder de escolha. Muitos deles já exerceram essa função com a intenção de possibilitar que suas jovens filhas pudessem ficar no topo do castelo. Já no caso dos festeiros, esse direito é concedido a quem é membro da Irmandade do Glorioso São Benedito e dispõe de condições financeiras para bancar uma festa de grande porte. A celebração possui duração de oito dias, com vários eventos além da Cavalhada. Iolete Guimarães acompanha todas as edições do evento e o faz com orgulho. “Estamos sempre aqui. É aqui a tradição da cidade, né? Se nós não vier, quem que vem?” questiona. Apesar de ter boas condições e propriedade de terras, a família de Iolete não tem ninguém participando dentro da arena. “Nós temos fazenda também. Eu tenho um filho, mas ele não participa. Aqui ainda não teve oportunidade porque tem certos grupos. Morreu um colega nosso, jovem, ano passado, e já tinha outro no lugar dele. Até vieram convidar meu filho, mas o pai dele [cavaleiro que morreu] já tinha colocado [outro no lugar]”. Ser um cavaleiro requer recursos financeiros generosos, uma vez que, além de possuir seu próprio cavalo pantaneiro e arcar com os custos de Incitados pelos encapuzados a iniciarem uma guerra, o mantenedor cristão e dois soldados se dirigem até o outro lado da arena, travam uma luta com os guardas do castelo e roubam a Rainha Moura. Provando que nem sempre o melhor fica para o fim, essa é a melhor parte da festa: com a dama em sua guarda, avistam de longe o castelo se desfazer em segundos, consumido pelo fogo que eles mesmo atearam. As labaredas quentes são observadas com admiração pelos olhos do público, assim como pelas lentes das câmeras das centenas de celulares posicionados em direção ao fogo. A guerra se inicia. As batalhas se desenrolam com diversas provas ao longo do dia, com direito a bandeira branca de trégua na hora do almoço. Cada prova disputada é acompanhada de muita emoção pelas torcidas, principalmente pelos camarotes cheios de familiares e amigos. Bastidores A Cavalhada, dentre muitas coisas, é um evento familiar. Feito pelas famílias tradicionais e mais abastadas da região, as vagas para estar entre os cavaleiros são disputadíssimas, e ainda mais acirrada é a competição pela coroa da Rainha Moura. A totalidade dos cavaleiros dos duelos de hoje descende daqueles que retomaram a tradição e correram na arena em 1991.


fuzuê - 24 cuidados do animal, é necessário estar totalmente disponível por mais de uma semana para o evento, como explica o cavaleiro Cleyton Lacotis. “Quem assiste, acha que nós não temos gastos pra correr Cavalhada. Cada cavaleiro deve gastar de sete a oito mil reais para estar correndo na arena”. Um evento desses não se faz do dia para a noite. Assim como as escolas de samba se preparam o ano todo para o dia do desfile no carnaval, os cavaleiros e suas famílias se mobilizam nos preparativos cerca de seis meses antes do dia da batalha. “Não é pegar um cavaleiro e falar ‘Ah, você vai correr Cavalhada!’. O cavalo tem que estar preparado fisicamente para estar participando da festa. E aí entra gastos com camiseta, roupas, etc”. Cleyton e sua mãe, Taisa Assis Silva, contam que a tradição da família na arena veio do avô, pai de Taisa, cuja vaga passou para Cleyton e deverá ser repassada para o filho, que ainda é criança. O papel das mulheres na confecção de roupas e nos bastidores também é passado das mães para as filhas. Curiosamente, uma das coisas que mais chamam atenção dos olhos dos espectadores na Cavalhada são as roupas de cavaleiros, pajens e até dos cavalos. Taisa conta que as peças são confeccionadas com muito orgulho pelas mães ou esposas dos cavaleiros. “É tradição. A gente tem que deixar ele vestido. Isso vem de geração para geração, de mãe para filha, igual é com os cavaleiros”. Engana- -se, porém, quem pensa que esse trabalho é tido como uma obrigação. Taisa garante que todas fazem com o maior prazer: “A gente confecciona, reúne toda a família e essa família a gente faz em comunidade, né? Reúne todo mundo e começa a bordar. Isso tudo, feito à mão, é um amor que nasce dentro da família”.De um ano para outro, as vestimentas precisam de alguns reparos. Elas têm boa durabilidade e conseguem resistir a vários anos de corrida somente com algumas reformas “aqui e lá”, como explica Taisa. As mulheres fazem bonecos e ornamentos que são utilizados durante as provas, decoram os camarotes, assim como providenciam os alimentos servidos aos convidados presentes no camarote da família. Momentos antes de a festa começar, vestem os cavalos, ajudam seus filhos e companheiros a se vestirem e comandam a oração na concentração. Se o protagonismo é masculino, a festa não existiria sem elas. O público O evento pode ter pontos de visibilidade muito diferentes. De um lado, estão as arquibancadas, destinadas ao público geral. De outro, nos camarotes, cada família de cavaleiro tem uma tenda. As arquibancadas já não suportam a grande quantidade de visitantes que o evento recebe, restando ao público em geral lutar por cada espaço que dê para enxergar algo na pista com visibilidades. Durante o período da tarde, hora em que o sol abriu e a temperatura alcançou quase 30 graus, todo o público sofreu com o sol em sua direção, deixando as tendas instaladas no topo sem nenhuma utilidade na proteção. Quem está nas barracas dos camarotes tem muito mais comodidades à sua disposição, além de sombra, cadeiras, bebidas e comida à vontade, inclusive o almoço, geralmente preparado por cada família. Para quem está nas arqui-


fuzuê - 25 f bancadas, a única possibilidade é recorrer às barracas autorizadas para venda de comidas e bebidas, ou aos ambulantes. O retorno da Cavalhada em 2022 acabou sendo uma oportunidade para essas pessoas ganharem um dinheiro extra em tempos tão difíceis. Maria Célia todo ano costumava ir vender salgados no evento, mas neste ano não conseguiu prepará-los devido aos cuidados de seu filho doente. Ela acompanhava a mãe, já idosa, que juntava latinhas espalhadas pelo chão atrás das arquibancadas. Apesar do sol forte e das dificuldades, Maria Célia parece estar muito feliz. “Todo ano eu vendia salsicha encapada, salgado, coquetel, cocada, maçã do amor… mas eu tô muito feliz de ver quem tá vendendo, né? Quem tá ganhando o dinheirinho deles também, que precisa, necessita. É muito importante essa festa pra nós”, afirma. Ela também cita que a festa e a Irmandade sempre ajudam as instituições de caridade do município. Neste ano, o almoço servido no Clube era beneficente para o Lar dos Idosos da cidade. Mulher humilde, nascida nas entranhas do Pantanal e negra retinta, diz que se sente representada pelo evento, que ainda não teve uma rainha da mesma cor de pele que a sua: “essa festa é linda, maravilhosa para nós ‘festar’! Me representa e eu digo com todo prazer”, finaliza. A ligação do povo poconeano com o município é visceral, o que talvez o faça esquecer de se importar com os turistas. Uma das maiores dificuldades de quem vem de fora para acompanhar a Cavalhada é a falta de informações. Ao chegar à cidade, é possível acessar o CCR com o uso de aplicativo de GPS. São poucas as placas pelas ruas que informam a direção do clube. O Centro de Atendimento ao Turista também não funciona no principal dia da festa. Falta ainda a divulgação do evento para ressaltar o potencial turístico da cidade. Marli Dresch, turista paranaense, conta que, se não fosse o hotel sugerir a ida à Cavalhada, nem saberia da realização do evento ali tão perto. A única lembrança do evento são as memórias e fotografias, pois sequer há barraca de lembrancinhas temáticas nos arredores da arena. O legado A preocupação maior daqueles que organizam a Cavalhada é que a tradição continue para as novas gerações. As crianças podem participar sendo pajens, o que pode construir uma memória afetiva, associada ao evento, que perdura por toda a vida. Eubank garante que esse interesse se mantém vivo ano após ano. “A nova geração, os pajens, são aqueles que sonham em estar algum dia no campo de batalha. Aqueles que nasceram e criaram aqui, que viveram e que vivem essa nossa cultura, todos eles estão extremamente motivados a continuar a reescrever a nossa história”. Durante a semana de treinos, turmas de Ensino Fundamental das escolas municipais são levadas para acompanhar a preparação. A Cavalhada se arrasta ao longo do dia até o entardecer, quando a paz é selada e a rainha é devolvida. O esforço de quem participa é enorme e, nesse horário, não há ser humano presente ali que não esteja cansado, depois de horas de exposição a calor e poeira, a momentos de euforia e ansiedade. Nem a exaustão apaga o sentimento de dever cumprido.


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Desde os anos 1950, o esporte trazido pelos japoneses coleciona títulos de coragem e união Geovanna Torquato e Leticia Pereira Foto: André Prado, Geovanna Torquato e Yuco Matsubara fuzue - 27 STRIKE OUT


No centro do campo, apertando o boné em sua cabeça, Lucas Oshikawa traça uma linha imaginária. Seu objetivo é a luva do parceiro de time, 18 metros à frente. O corpo se inclina em direção ao oponente no home base, inspecionando as mãos firmes do rebatedor envolvendo a base do taco. O jovem atleta pensa, respira fundo e não teme a tensão que paira sobre a torcida no Clube Nipo-brasileiro de Rondonópolis, Mato Grosso. Jogar fora de casa é um desafio que eleva o frio na barriga à décima potência. Em um relance, seu braço desenha uma meia lua desengonçada no ar e permite que a bola alcance 144 quilômetros por hora no primeiro arremesso da entrada. Não sobraram chances para a plateia sequer enxergar o que parecia um pequeno meteoro cortando o céu azul em direção ao seu destino final. O barulho da colisão entre o taco e a bola ecoa e até as árvores de eucalipto em volta parecem se inclinar pela emoção das possibilidades. A poeira sobe junto com os passos acelerados do rebatedor, agora incorporando o papel de corredor. A disputa entre o atleta e a bola é acirrada, ambos se alimentam da emoção da torcida que faria inveja em um estádio de futebol. O tempo para raciocinar é curto. Em instantes, a bola estava guardada dentro da luva de um dos defensores, mas só depois do rebatedor do VG Dragons ter alcançado com louvor a primeira base. Cenas assim acontecem, quase escondidas, no cotidiano da sociedade mato-grossense desde a década de 1950. Discretos, os campos de beisebol no estado não revelam o peso da história do esporte e sua participação na construção do Mato Grosso que conhecemos. O beisebol pode ser considerado um esporte “difícil”, já que se baseia em muitos fundamentos, principalmente se considerarmos a técnica apurada do estilo japonês. São nove jogadores em cada equipe que se alternam em posições de ataque e defesa, com o objetivo de pontuar batendo com um bastão na bola lançada pelo adversário e, depois, correndo pelas quatro bases do campo. O esporte, que foi inventado nos Estados Unidos, teve sua primeira partida em solo japonês na Universidade de Tokyo em 1873 com instruções de um professor norte- -americano. Em Mato Grosso, o primeiro arremessador na escalação foi Iosihua (Paulo) Matsubara. Paulo era o chefe da empresa colonizadora Rio Ferro, que tinha como objetivo estabelecer os imigrantes japoneses em regiões interioranas do fuzue - 28 IXPIA lá


Paulo Matsubara à esquerda e o Presidente Getúlio Vargas na Gleba , 1952 Campo de beisebol da Gleba Rio Ferro, 1955 Partida de beisebol na Rio Ferro, 1955 Brasil por meio da agricultura. Devido à amizade de seu pai, Yasutaro Matsubara, com o então presidente Getúlio Vargas, Paulo conseguiu levar 50 famílias de origem nipônica para habitar a região norte de Mato Grosso e praticar o cultivo de seringa. Os imigrantes saíram dos estados de São Paulo e Paraná para o que daria início à Gleba Rio Ferro, que hoje compreende o município de Feliz Natal, a 511 km de Cuiabá. As memórias da trajetória de Paulo Matsubara são guardadas com carinho pela sua esposa, Yuco (Adair) Matsubara. Mãe de quatro filhos e enérgica aos 82 anos, a viúva fala com afeição dele: “Ele assumiu a empresa do pai mesmo não sendo o filho mais velho, porque se sentia no dever de ajudar os seus conterrâneos a encontrarem uma vida melhor aqui no Brasil”. Segundo ela, Paulo foi um dos primeiros a desbravar o norte de Mato Grosso e o esporte não deixou de acompanhá-lo. “Depois do campo de aviação, fizeram o campo de beisebol e essa era a alegria deles”. Autoridades do Japão que vinham para o Brasil visitavam a gleba e presenteavam os habitantes com tacos, bolas e outros equipamentos para prática do esporte. “E eles treinavam mesmo! O nosso time de Mato Grosso chegava a vencer o time de Mato Grosso do Sul”, conclui Yuco. Em meio à rotina árdua do campo e em busca diária de sobrevivência no desconhecido, os habitantes de Rio Ferro encontraram no esporte da terra natal uma forma de transformar Mato Grosso em lar. primeira entrada “Eu era gurizote lá no Rio Ferro. A gente jogava beisebol com a bola que a gente fazia de pano para não doer tanto, o taco era o pedaço de madeira e a gente brincava”, começa o senhor Massami Harima, de 71 anos. Massami percorreu um longo caminho até se estabelecer em uma das casas da Gleba. Aos dois anos de idade, deixou o Japão e veio para o Brasil, acompanhando o desejo de seu pai de plantar café no Paraná, e buscava deixar fuzue - 29


fuzue - 30 no passado as dificuldades enfrentadas durante a Segunda Guerra Mundial. Eles não esperavam pelo golpe em que estavam prestes a cair: o comandante da embarcação guiou todos os passageiros para o Amazonas, que só descobriram o desvio na metade do caminho. “Meu pai ficou um tempo lá no Amazonas, uns três anos, mas ele queria plantar café no Paraná de qualquer jeito e foi pra lá. Um dia, ele encontrou com seu Paulo Matsubara e ficou sabendo que tinha terra boa e barata lá no Mato Grosso. Meu pai nem foi primeiro examinar, já foi com a mudança e tudo”, comenta Massami. A estrada era de chão, o sacode dentro dos veículos causava náuseas e o cansaço pesava os ombros de qualquer um que se submetesse à aventura de desbravar o interior do Brasil. Coragem, disposição e esperança enchiam o coração de quem avistava o horizonte de pés de seringa, mudas de pimenta-do-reino e bastante terra vermelha. O gosto pelo beisebol de Massami surgiu ao ver os adultos jogarem e, sempre após a escola, toda a “gurizada” se reunia para jogar. “Juntava gurizada pequena, grande, eu tinha uns sete, oito anos, e brincava, porque não tinha outro esporte e eu adorava mais o beisebol, né?”, lembra ele com humor. Falar sobre a infância no Rio Ferro reúne sentimentos de saudade e, ao mesmo tempo, de revolta, uma vez que não tinha nada, mas tinha a felicidade de poder rebater algumas bolas. “Ah! Eu gostava muito de jogar beisebol! No meio da colônia pobre, não tinha nada mesmo pra fazer. E era descalço mesmo, sem uniforme, o pé ficava quase aberto por conta do pé na terra”. Aos 18 anos, depois de sua mãe ter ficado perto da morte, Massami estava convencido de que a Gleba não o levaria para um futuro próspero. Com a terra ácida e poucas oportunidades, o então jovem não hesitou em sair da colônia na primeira chance. Terceiro de oito filhos, Massami deixou o Nortão para cuidar de hortas em Cáceres, plantando, podando e sempre jogando beisebol com os outros japoneses da cidade. “tem que pegar essa bola” Assim como o senhor Massami, muitos habitantes de Rio Ferro se dispersaram por Mato Grosso buscando novas oportunidades, integrando os pequenos núcleos nipônicos já existentes nas cidades do estado. Desde 1960, os jogos de beisebol entre cidades já aconteciam e, com a fundação das Associações Nipo- -brasileiras em 1980, os campeonatos ficaram ainda mais frequentes. Era comum passar pela rua Castro Alves, em Várzea Grande, e ouvir o som animado da torcida - até mesmo xingamentos -, enquanto um ônibus atrapalhava o trânsito perto da entrada.


fuzue - 31 O amor pelo beisebol fez surgir seis equipes em todo o estado: Cáceres, Rondonópolis, Dom Aquino, Dinossauros Cuiabá (antigo Cuiabá), VG Dragons e VG Spartans, o último treina no Campo dos Sonhos, na Associação Nipo- -brasileira de Várzea Grande. Em jogo amistoso, o uniforme dos Spartans se destaca no azul das arquibancadas. Os meninos passam pelo banco preocupados, estavam perdendo, mas seu Mário permanecia calmo, sorrindo fraco e encarando o campo. Os atletas do time têm desde 14 anos até mais de 40, todos unidos e discutindo as estratégias para virar o placar. No banco direito do Campo dos Sonhos, viam- -se bonés de times dos Estados Unidos, chuteiras jogadas e sujas de terra, capacetes e vários tacos - os batas, como chamam carinhosamente. É o gosto pelo esporte que faz Mário Shimazu, 69 anos, viajar 160 km todos os sábados para se encontrar com os rapazes do VG Spartans, o time com os jogadores mais jovens da Federação Mato- -grossense de Beisebol e Softbol (FMBS). A jornada semanal de Shimazu começou há 22 anos com o objetivo de passar adiante o que sabia sobre o esporte que praticava na infância, nas proximidades de Birigui, interior de São Paulo. Na verdade, ensinar é uma palavra muito forte, seu Mário prefere dizer que vai “brincar” com a rapaziada. “Se eu não tenho compromisso, meu compromisso é aqui”, diz Shimazu, apontando para o Campo dos Sonhos à sua frente. Ele tira o boné e continua falando sobre o privilégio que é estar em contato com os novos entusiastas do esporte. Os olhos com as pálpebras caídas pela idade não se desviavam do amistoso que acontecia - VG Spartans vs. Dom Aquino - e de quem entraria depois para arremessar. “Eu costumo dizer que tem gente que vai pro boteco pra se distrair. Eu venho pra cá, é disso aqui que eu gosto”. O esforço e o carinho ao falar com os meninos, na escalação e na construção de uma família de bonés azuis e luvas de couro, é nítido na fala de Mário. Viúvo há 15 meses, conta que sua esposa era a mãezona do time. “Ela sempre me incentivava, falava ‘você não vai? Os meninos estão te esperando!’ e eu vinha”. O VG Spartans se tornou sua segunda família e não há dúvidas de que o esporte deixou essa mesma marca nos meninos que ali se aqueciam para entrar em campo como rebatedores. Atualmente, o VG Spartans treina todos os sábados no Campo dos Sonhos e não recebe patrocínio ou ajuda de custo. De acordo com seu Mário, existe uma cotinha mensal de 50 reais, mas que não é obrigatória. “A gente pede só pra quem pode, quem não pode, a gente dá um jeito. Eu mesmo já tirei dinheiro do meu bolso pra ajudar a meninada”, revela o técnico. Após 22 anos e tantos garotos que já passaram pelos cuidados generosos de seu Shimazu, ele conta que também já recebeu muito carinho dos seus pupilos. “Quando minha esposa faleceu, os meninos fizeram uma cotinha para fazer uma camiseta com o nome dela e o número que ela usava sempre, o 20”. Um dos rebatedores se colocou em posição. O número


fuzue - 32 quatro era a única informação que se tinha daquele que se colocava como alvo das bolas rápidas do arremessador do Dom Aquino. Capacete, óculos, taco, tudo pronto para dar início à esperança de mais um ponto para os Spartans. O silêncio mínimo do trajeto da mão do pitcher até o taco do rebatedor dura menos do que os olhos conseguem captar. Logo vê-se o número quatro em direção à primeira base, enquanto a primeira bola voa longe e cai certeira no repouso da luva de um dos jogadores da defesa do Dom Aquino. Assim, Lucas Scala, estudante de 18 anos, parte para a arquibancada após ser eliminado. O número quatro é atleta do time de seu Mário Shimazu desde 2015 e possui uma relação de paixão com o beisebol. “Não tem como não gostar”, relata Scala, que conheceu o esporte por meio de dois amigos japoneses durante o Ensino Fundamental. A curiosidade aumentou depois de conhecer um dos treinadores da Agência de Cooperação Internacional do Japão (JICA), que fornecia técnicos japoneses para serem professores nas escolinhas de beisebol nas associações - e de receber o convite para treinar no Campo dos Sonhos. O encontro entre o jovem e o esporte aconteceu no final de semana do XIII Sul- -Americano de Beisebol em 2014. “Tinha a seleção da Argentina, da Bolívia, do Peru, do Brasil e, depois desse dia, eu passei a vir nos treinos todos os sábados”, comenta. Após o episódio, o garoto coleciona momentos memoráveis com os colegas de equipe, muito unidos e muito “zoeiros”, segundo o estudante. Ao longe, é possível ver Yorman Mejias se aproximar com o equipamento de catcher - jogador que pega as bolas que o rebatedor perde - sobre o corpo. O cabelo grande é revelado após tirar a proteção do rosto, a barba meio preta e meio branca se destaca em meio aos rostinhos adolescentes da sua roda. Mejias é venezuelano e está há dois anos e três meses no Brasil. Devido à crise econômica na Venezuela, o jogador de 33 anos deixou seu país de bicicleta, pedalando por 28 dias até chegar ao Peru. “Lá não prestou pra mim, então vim a pé até o Brasil, pedindo carona, até chegar aqui. Só depois de oito meses fiquei sabendo que tinha beisebol aqui, então eu vim”, explica Yorman. As palavras saem junto com as luvas e o colete de proteção. O venezuelano conta, em um intervalo rápido durante a partida, que joga beisebol desde os


fuzue - 33 três anos de idade. Yorman já se prepara para sua vez na rebatida, capacete já posto, balança o corpo se aquecendo. “O beisebol é o meu maior amor depois do meu filho. Eu já tive oportunidade de jogar profissionalmente na Venezuela”. O carinho dos Spartans não possui barreiras culturais e tem três idiomas em sua torcida - o português, o japonês e, agora, o espanhol. Assim como seu Mário, Yorman ajuda os outros rapazes com sua experiência fora do Brasil e tem elevado o nível dos jovens atletas, já que, assim como Mejias, desejam alçar voos maiores com suas rebatidas. home run O uniforme dos Spartans carrega a reputação de representar grandes fenômenos. Foi aos sete anos, após sair de uma das aulas de japonês oferecidas na Associação Nipo-brasileira, que Lucas Alexandre Oshikawa da Silva viu os primeiros treinos no Campo dos Sonhos. Os incentivos do avô vieram à memória naquele momento e o jovem decidiu dar uma chance ao esporte. Hoje, com 19 anos, o jovem coleciona momentos felizes junto ao beisebol. Muito longe do campo da associação, Lucas dedica seu dia e noite nos treinos no CT Yakult, o centro de treinamento da Confederação Brasileira de Beisebol e Softbol (CBBS), em Ibiúna, São Paulo. “Foi um processo bem difícil por conta da distância da família e o nível de beisebol aqui é muito elevado”, relata Oshikawa. “Eu sempre joguei beisebol e aqui aprendi muito mais, foi um processo difícil e prazeroso ao mesmo tempo”. Considerado da “turma das antigas” do beisebol mato-grossense, o atleta mostrou seriedade, competência e talento como defensor na terceira base em sua estadia no CT. Ainda membro da categoria sub-23, Lucas foi convocado para a seleção adulta que disputará o Campeonato Sul-americano de Beisebol em Lima, Peru. O grande sonho do jovem se repete: defender seu país em um megaevento esportivo. O sorriso disputa espaço com os olhos pequenos em seu rosto ao tocar no assunto. Da primeira vez, para os Jogos Pan-americanos da Juventude de 2021, a realidade se misturava com os sonhos mais altos, era difícil de acreditar ao vestir a jersey amarela e permanecer titular em todos os jogos. Não suficiente, 2022 ainda aguarda o talento de Lucas e sua sensibilidade com suas conquistas. “A emoção foi muito grande para mim, para os meus familiares e para o pessoal de Mato Grosso. Foi uma experiência incrível jogar com caras firmados, com contratos assinados por times da Major League”, conta Oshikawa animado ao lembrar da ocasião. “Ganhei roupa e tudo, me senti um atleta profissional! Lá o pessoal pedia autógrafo, pedia pra gente dar as coisas, como se a gente fosse estrela! Mesmo conquistando o quinto lugar, eu só tenho coisa boa para falar desse cam-


fuzue - 34 peonato!”. Mesmo ganhando espaço fora de casa, o jovem jogador não se deixa convencer pelo sucesso que vem alcançando e, sempre que pode, volta às suas origens para disputar os campeonatos com os Spartans, seu time em Mato Grosso. A última oportunidade foi nos dias 4 e 5 de junho de 2022, na segunda etapa da Copa Mato- -grossense de Beisebol Adulto. Vestido com o número oito, Lucas conduziu os aquecimentos para a semifinal do campeonato e, também, puxava a orelha de seus companheiros de time a cada intervalo entre as entradas. Ainda que fosse duro nas palavras, sabia parabenizar a cada corrida anotada. Sobre voltar a Mato Grosso, Lucas não esconde a felicidade. “Eu sempre vou pensando em me divertir, estou com amigos ali, com quem joguei desde pequeno, me acompanham desde o começo. Sempre que eu vou já penso ‘caramba, eu vou jogar em Cuiabá!’”. Lucas não deixa de mencionar seus familiares. O rapaz é bisneto de japoneses e possui três irmãos, dois deles também amam o esporte. Um dos motivos que o fazem ir além é saber que serve de inspiração para seus irmãos mais novos, Gabriel e Davi, que também almejam uma trajetória profissional. “O que eu quero é que os meus irmãos cheguem muito mais além do que eu consegui ir”. A paixão do jovem motivou também o pai, Alexandre, a entrar para o time. Em campo, um terço dos jogadores partilha metade dos genes, incluindo o talento. Apesar de estar alguns degraus acima, Lucas também contou muito com a ajuda dos companheiros de time, amigos e familiares para o auxílio financeiro no esporte. O “paitrocínio”, como ele apelida, foi o que o fez dar passos suficientemente largos para chegar a São Paulo, à Colômbia e, logo menos, ao Peru. Lucas, determinado, joga com voracidade, munido de sua calça suja pela terra e o boné da seleção brasileira na cabeça. strike out? Atualmente, a FMBS não recebe qualquer tipo de financiamento. “Só de apaixonados, só de pessoas que amam o esporte: os próprios jogadores, os loucos!”, relata Carlos Filho, em meio a risos tímidos. O empresário é o atual presidente da federação, o primeiro sem ascendência nipônica. Natural de Maringá, Paraná, Carlos conta que começou tarde no beisebol, aos 14 anos, mas isso não o impediu de, no ano seguinte, participar dos campeonatos. Com pesar na fala, Carlos elenca os desafios do beisebol em Mato Grosso. O presidente não deixa de expressar sua preocupação diante do mais intimidador dos problemas que o esporte encara neste jogo: sua própria extinção. Até 2020, o Campo dos Sonhos era sede de uma escolinha de beisebol administrada


fuzue - 35 pela própria Associação com o apoio da JICA, que cedia professores diretamente do Japão, a fim de difundir o esporte no país. Infelizmente, com a pandemia de Covid-19, os senseis tiveram que retornar ao seu país e a iniciativa ainda está suspensa. As atividades na escolinha eram de terça-feira a domingo e gratuitas, atraindo crianças da idade de Oshikawa quando começou. Além da falta de popularidade no estado, o retrato do beisebol em Mato Grosso passa pelos fios grisalhos e marcas de expressão aparentes na expressão de um sorriso após a marcação de uma corrida. Dos 80 atletas nos seis times que a federação contabiliza, cinco deles possuem média de idade de 35 anos. O Dinossauros Cuiabá, a equipe mais experiente e segunda família de Carlos, ultrapassa os 40 anos com facilidade. “É muito triste. Vamos ter uma janela e, se não tivermos a retomada das crianças, esse esporte vai acabar”, diz o presidente. Os apaixonados arremessam, rebatem, correm e, sobretudo, lutam para manter viva a prática que toma parte dos seus corações. Com o caminho definido, o esporte de 70 anos de idade no estado se veste de novos equipamentos para a difusão do beisebol. O novo aquecimento antes das partidas é apertar o botão de iniciar a transmissão no painel do YouTube. A FMBS tem transmitido as etapas da Copa Mato-grossense de Beisebol Adulto. A ideia surgiu por um amigo de Carlos que opera transmissões de jogos fora de Mato Grosso e, com o primeiro arremesso, o avanço pelas bases foi certeiro. As câmeras são cedidas por comodato (empréstimo) e o notebook é do presidente. O próprio Carlos Filho é quem faz a narração. A segunda etapa da copa em Rondonópolis reuniu 51 pessoas assistindo simultaneamente pelo canal da Federação. bases lotadas Com dois jogadores eliminados, o final da entrada parece fadado a acabar a cada rebatedor que se desloca para o home base. Diante do placar desanimador, não há nenhuma cova à vista onde a esperança possa ser enterrada. Mesmo com o pulso quebrado, Adrian Gabriel vibra escondido no banco dos Spartans. O atleta de 16 anos se contundiu no torneio de Rondonópolis semanas antes. Ainda que triste, mantinha fé em seus amigos e irmãos. “Foi amor à primeira vista. Cheguei e gostei”, conta o jogador sorrindo e olhando para o campo. Adrian chegou ao VG Spartans com nove anos de idade e, mesmo querendo desistir em alguns momentos, confessa o firme desejo de seguir profissionalmente no esporte: “se tiver uma oportunidade de ir pro centro de treinamento, eu vou abraçar”. Os obstáculos não impedem o crescimento do amor de quem conhece o beisebol mato-grossense. Em meio aos jogadores uniformizados, um rapazinho de camiseta laranja e chinelos se movimenta oferecendo água, alcançando as bolas que iam para fora dos limites do campo, anotando os pontos e puxando o coro da torcida. Com o esporte presente na família,


fuzue - 36 Davi Oshikawa não joga no Spartans, mas o sorriso vem da paixão e admiração pelo irmão, Lucas. Davi tem doze anos e consegue imergir qualquer um no universo específico do centro de Várzea Grande com alguns dedos de conversa. Bisneto de japoneses, tem o sucesso de seu irmão como alvo. “Ele é como um espelho pra mim!”, diz, sem tirar o sorriso do rosto. A chance do desenvolvimento de jovens como Davi se aproxima com a previsão da volta dos professores da JICA em agosto deste ano. A sensação de estar em um filme com temática esportiva é inegável ao se deparar com o Campo dos Sonhos. A estrutura é palco de uma nova paisagem que vem se formando para o beisebol em Mato Grosso, com a inclusão de outros imigrantes no cenário. O beisebol é o esporte que faz o coração dos venezuelanos vibrar. Leidimar Palma, 39 anos, é um exemplo de fã emocionada. Durante o amistoso ela grita, xinga e comemora cada ponto marcado, tudo em espanhol. A venezuelana conta que o beisebol é o “esporte nacional” de sua terra natal e, acompanhada das duas noras e duas netinhas, o coração quase salta pela boca enquanto torce pelos filhos Deivison, de 21 anos, e Davi, de 19 anos, que jogam pelo Dom Aquino. Com a adesão dos venezuelanos e o vigor da nova geração de jogadores, o beisebol encontra saídas para voltar a crescer em popularidade e respirar sem a névoa de poeira dos acervos de tacos e luvas. Os caminhos difíceis que o esporte percorreu para chegar ao território mato-grossense não possuem mão dupla, visto que o tom familiar que impera sobre os campos possui sempre espaço para mais um que queira se juntar. Ricardo Nagai, contador e ex-jogador do Rondonópolis, relata a satisfação em rever os amigos e ex-colegas de equipe aos finais de semana no Clube Nipo da cidade. “É ótimo ver a alegria da mãe torcendo, porque geralmente é só a mãe que grita pelo filho. Só quem gosta mesmo do beisebol é que vai lá, grita, torce, até xinga”, descreve Ricardo. O contador vestia uma camiseta de seu clube e estava atento ao jogo, sentado na estrutura de metal de uma cadeira sem assento, por vezes se revoltava com as bolas perdidas pelos jogadores. “Espero que o beisebol nunca acabe aqui, porque o meu filho também joga”, finaliza Nagai esperançoso. anotar uma corrida Diante da perda contra Dom Aquino, Mário Shimazu não desanima: “A gente perce-


Glossário Strike out Pitcher Bata Catcher Jersey Corrida anotada Senseis Home base Quando o rebatedor é eliminado após perder três arremessos válidos; Arremessador; Taco que o rebatedor usa para rebater a bola; Receptor; Nome dado às camisas que compõem o uniforme; Ponto marcado com uma corrida nas quatro bases; Treinadores, professores ou quem estiver liderando os jogadores; Local que o atleta se posiciona para efetuar a rebatida. fuzue - 37 f be pelo que os meninos falam que estamos fazendo alguma coisa para melhorar”. Ainda que saltem aos olhos os títulos mais exuberantes, como ter o primeiro mato-grossense na seleção brasileira de beisebol, percebe-se que o esporte é muito mais do que um álbum de figurinhas a ser completado. Assim como aquelas que dona Yuco guarda em sua casa, o esporte possui potencial para muitas outras memórias diante da iminente superação das dificuldades financeiras. Os meninos dos Spartans se mobilizam, convidam os amigos das escolas, chamam para os campeonatos e, ali, o conhecimento do esporte se alastra. Mesmo tendo encerrado sua carreira em 1981, em razão do nascimento de sua primeira filha, seu Massami não abandonou o gosto pela emoção dos campos e da feliz agilidade dos jogadores. “Eu sempre vou quando tem jogo, até me chamam pra ser árbitro. Seja campeonato, jogo normal, amistoso, eu to lá”. O beisebol conseguiu superar a malária em Rio Ferro, a pandemia de Covid-19 e continua resistindo às bolas rápidas que tentam eliminar seu espaço no estado. Entretanto, enquanto existirem pessoas como seu Massami, seu Mário e Ricardo, que guardam com carinho o respeito à sua história com o esporte, e como Lucas Oshikawa, Davi, Adrian, Lucas Scala e Yorman, que não querem largar os tacos no chão, o futuro pode permitir que muitas crianças lotem as arquibancadas do Campo dos Sonhos. Aliás, lá é o lugar perfeito para sonhar! “Eu quero viver de beisebol”, diz Lucas Oshikawa confiante. “Quero conseguir um contrato, jogar por alguma universidade de fora, quero ser profissional”. Não restam dúvidas: o beisebol também deseja viver.


O QUE OS OLHOS NÃO VÊEM, O CORAÇÃO sente.


ALÉM DOS OLHOS VENDADOS: UM ESPORTE JOGADO DE CORPO E ALMa fuzue - 39 Foto: Giordano Tomaselli Giordano Tomaselli Quiet please. Play! (O árbitro pede silêncio e, em seguida, autoriza o início da partida/jogada) O vento jogava em minha direção o som de conversas e risadas de um grupo sentado na arquibancada, à beira da quadra, em que a maioria vestia um uniforme azul e parecia bem à vontade. À medida que fui me aproximando, a interação não diminuiu, o que só aconteceu quando um senhor que estava em pé disse “boa tarde” para mim. Era Leonardo Carlotto Ribas, que se apresenta como Léo. O técnico da equipe masculina de futebol de cegos, nesse dia, também treinaria a equipe feminina de Goalball. Nessa altura, todos ali já tinham percebido a minha presença, eu era o único “estranho” ali. Depois de me apresentar, me juntei ao grupo e percebi o porquê das risadas que ouvi quando cheguei. O bom humor da turma era contagiante, nem eu resisti a algumas “zoações” feitas entre eles e esbocei alguns sorrisos. Pontualmente às 14 horas, todos se levantam e se dirigem para dentro da quadra: o treino ia começar. Antes do início, o treinador entrou comigo em quadra e explicou as especificidades dela para o Goalball. As dimensões são 18 metros de comprimento e 9 de largura, as mesmas medidas de uma quadra de vôlei. Já os gols têm 9 metros de comprimento e 1,30 metro de altura. Um time é formado por 6 atletas, 3 titulares e 3 reservas, que disputam o jogo em dois tempos de 12 minutos. O pivô fica no centro e os outros dois são os alas direito e esquerdo. Como os olhos estão totalmente vendados, há marcações na quadra com barbante, para que os atletas consigam localizar pelo tato sua posição. A bola também é específica para a modalidade: tem cerca de 75 cm de diâmetro, pesa 1,250kg e contém um guizo dentro que produz um ruído sonoro, o que ajuda os atletas a perceberem a movimentação da bola em quadra. Por isso, o árbitro pede no início de cada jogada um “silêncio, por favor” em inglês, pois, quanto menos barulho houver no local durante a partida, melhor, já que outros ruídos atrapalham os atletas a escutarem o som que vem da bola. As jogadas partem de um arremesso que obrigatoriamente precisa fazer a bola quicar em 3 áreas: a quadra de arremesso, a quadra central (ou neutra) e a área de defesa da outra equipe, antes de entrar para o gol (ou não). Importante ressaltar que o Goalball, diferente de modalidades paralímpicas adaptadas, é o único desenvolvido exclusivamente para pessoas com deficiência visual. Durante a partida todos utilizam uma venda e isso permite que atletas de vários níveis de percepção visual possam competir em condições de igualdade. Cada nível está incluso em uma das três classes: B1, B2 e B3. Segundo o Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), B1 são os cegos totais ou com percepção de luz, mas que não reconhecem o corre duro


fuzue - 40 formato de uma mão a qualquer distância; B2 são os atletas com percepção de vultos; e, por fim, B3 são atletas que conseguem definir imagens. Depois de tantas informações técnicas, a partida começou. EU (Expressão usada no jogo para que outros atletas do time se localizem em quadra) Excepcionalmente no treino deste dia, os atletas do futebol de cegos do time masculino iriam jogar Goalball com as mulheres. Algumas atletas faltaram e não haveria número suficiente para completar dois times no treino. Ambos os times representam a Associação Matogrossense dos Cegos (AMC), instituição sem fins lucrativos que, desde sua fundação em 1990, tem por finalidade promover a inclusão das pessoas com deficiência visual no estado de Mato Grosso. Quando a partida começou, “eu” foi a expressão que mais ouvi. Os pivôs ficavam repetindo a palavra enquanto algum de seus alas estava prestes a fazer um arremesso. Com isso, o ala que está em pé saberia com mais facilidade se está mais ao centro da quadra ou mais perto da ponta. Essa é uma das poucas palavras em português citadas ao longo da partida. Léo explicou que, para manter uma unidade internacional do esporte, os lances são todos nomeados em inglês. Algumas dessas expressões mais utilizadas durante a partida você vai conhecer ao longo desta reportagem. High Ball (A bola não toca no solo em um dos campos, é considerada bola alta, uma penalidade) Uma atleta logo me chamou a atenção, em especial pelo jeito como fazia seus arremessos, ninguém ali fazia nada igual. Ela se virava de costas, erguia os braços segurando a bola, afastava as pernas e arremessava passando a bola entre as pernas. A jogada saía forte, com velocidade e rendeu vários gols à equipe dela. Fiquei curioso para saber se eram particularidades dela ou se eram movimentos que tinham nomes. Como só poderia conversar com ela ao final da partida, até lá, teria de continuar com essas dúvidas. Enquanto isso, em quadra, a partida estava emocionante: as meninas saíram na frente abrindo o placar, o que logo foi respondido com os meninos marcando, empatando e virando o jogo, abrindo 4 a 1. Quando o primeiro tempo já se encaminhava para o final, as meninas ensaiaram uma reação, empataram em 4 a 4. A somente 28 segundos do fim, conseguiram a virada, 5 a 4, placar final do primeiro tempo. Um desses cinco gols foi fruto de uma penalidade cometida pelo time adversário. Quando fez seu arremesso, um dos atletas do time masculino cometeu a chamada highball, quando a bola arremessada não toca no solo de um dos campos da quadra, o que é obrigatório em toda jogada. O time feminino ganhou um arremesso onde somente um dos três jogadores, ficaria em quadra para tentar defender. Não deu… Amor à primeira bolada Com o fim do jogo não me segurei e fui logo conversar com a atleta que tinha me chamado a atenção pelo modo como arremessava.


fuzue - 41 lar do Brasil e que aprendeu desde cedo, quando começou na prática do esporte. Não tem um nome específico, mas ela chama de “arremesso de costas”, que exige mais força e causa um desgaste físico maior. “É um arremesso que desgata o corpo! Eu corro giro e salto, além de ter que fazer a alavanca muito forte na coluna. O arremesso de frente é bem menos agressivo, canso mais no arremesso de costas”. Por outro lado, prefere fazer o de costas, pois não tem tanta prática no arremesso de frente, a jogada “não fica tão boa”. Block-out (indica que a bola saiu da quadra após ser bloqueada) Carol conta que não nasceu cega. Logo depois de adquirir a deficiência visual, aos 12 anos de idade, ela iniciou no Goalball nas aulas de educação física, aos 13, no Instituto Benjamin Constant, uma escola tradicional e especializada para o público não vidente no Rio de Janeiro. A maioria dos que praticavam o esporte era formada por garotos, porque a bola é pesada e exige força. Ela, que decidiu praticar somente para “cumprir tabela”, acabou se apaixonando pela modalidade. “Foi amor à primeira bolada”, afirma aos risos. Esse amor se comprova quando ela começa a contar sua trajetória. Com 35 anos de idade, mais de 21 são dedicados ao Goalball. Nos últimos 18 anos ela esteve na Seleção Brasileira. Em 2021 participou de sua quinta Paralimpíada, em Tóquio, no Japão, além de já ter disputado diversos outros torneios internacionais. A carioca veio a Cuiabá para se juntar ao time feminino da AMC, que é uma das maiores potências nacionais no esporte. Só nos últimos meses, a AMC ficou em terceiro lugar na série A da Copa Brasil, no final de 2021, e foi campeã da Supercopa Nacional em março de 2022. Elas têm um novo desafio muito em breve: de 13 a 17 de julho acontece a Regional Centro-Norte, em Campo Grande-MS, foco dos treinos no momento. Financiamento e estrutura A AMC é quem financia a maior parte dos custos para a prática do esporte, inclusive o apoio em viagens para competições, mas é uma associação que depende diretamente de doações do poder público e do setor privado. Carlos Henrique de Almeida, diretor de esportes da AMC, explica que os atletas têm um convênio com a Univag, onde eles fazem parte de um programa chamado “atleta- -divulgador”, uma parceria da Associação com a instituição em que a AMC fornece recursos humanos e a faculdade auxilia com salário e espaço para os treinos. Nesse vínculo de “funcionários-atletas”, podem representar a Univag em campeonatos e receber um salário mínimo por mês para treinar, benefício que continuou sendo pago durante a pandemia, mesmo com treinos suspensos. Todos os entrevistados, citaram o apoio do Projeto Olimpus, programa do governo estadual que concede o bolsa- -atleta, ajuda de custo para incentivar a continuidade da prática desportiva pelo esportista. O projeto se tornou referência nacional no apoio ao esporte e a atletas em um país que pouco investe em seus talentos. Ball over (Quando o time faz a defesa, mas a bola fica na área livre, devolvida ao adversário) Apesar de todo esforço e de as condições estarem melhores do que já foram, muitos problemas, principalmente estruturais, são perceptíveis. Carol me explica que as bolas utilizadas, que são específicas para essa modalidade e são a peça central do jogo, são importadas e de alto custo, além de possuírem uma durabilidade baixíssima. “O que mais falta é a questão da infraestrutura. Essa quadra é da Univag, se precisarmos treinar em outro lugar, não tem. Há custos pros marcadores no chão, para as traves específicas, que antes nem tinha”, ressalta. Enquanto pesquisava sobre o esporte, tive contato com fotos e vídeos das partidas na internet onde as traves eram todas almofadadas, por isso, quando cheguei ali, me causou estranheza a ausência de qualquer proteção nas traves e que sequer tinham rede. “A gente precisa colocar almofadas nas traves e cada almofada dessa custa em torno de 3 mil reais, então são 6 mil para termos almofadas nas duas, para não nos machucarmos”, explica Carol. “Eu sou a rainha de bater na trave”, lamenta ela. A quadra onde o time treina, no Complexo Esportivo da Univag, é coberta, mas toda aberta pelas laterais. O goalball é uma modalidade que exige


fuzue - 42 silêncio no ambiente, justamente para que os atletas possam ouvir o barulho da bola com maior facilidade e se localizar para encontrá-la. Ali, vários fatores externos como vento, chuva, barulhos aleatórios e de manutenção nos arredores influenciam a prática do jogo. A questão das almofadas nas traves se faz importante inclusive porque elas também funcionam como instrumentos para se localizar em quadra, ou ainda como ponto de apoio e de partida no início de algumas jogadas. O contato com as traves é frequente, e qualquer movimento em falso pode gerar machucados e até lesões. Time-out (Tempo técnico. Cada equipe tem direito a 3 e ganha mais 1, se gastar 1 das 3 no primeiro tempo) A chegada da pandemia acabou interrompendo a rotina de treinos da equipe. A atleta Luzinete Antonia Pereira fala um pouco das consequências que a pausa forçada teve em sua vida, pois, além de relatar o aumento de peso em mais de sete quilos, explica que as jogadoras perderam o bolsa- -atleta durante o período de um ano, já que o requisito para o auxílio é ter participado de alguma competição e ficar nas três primeiras posições. O treinador Léo conta que depois de alguns meses de pandemia, começaram a fazer alguns treinos virtuais, cada um no quintal de casa, para manter a forma nesse período de isolamento. Outra dificuldade da equipe feminina é a carência de novas integrantes. Do atual time da AMC, duas vieram de fora do estado. Carol, uma das que migrou, conta que, neste ano, mais duas ou três atletas são esperadas para reforçar a equipe. Mato Grosso tem dois times de Goalball, o feminino da AMC e o time do Instituto dos Cegos do Estado de Mato Grosso (ICEMAT), que é o masculino. Apesar das dificuldades, as conquistas enchem os atletas e dirigentes de esperança e motivação. Carlos Henrique conta que a AMC é a atual líder do ranking nacional de Goalball e, com orgulho, diz que a equipe venceu os dois times que são a base da seleção brasileira atualmente. A força da AMC e o apoio de projetos como o Olimpus contribuem para o crescimento do cenário do desporto paralímpico no Estado. Nos dias 12 e 13 de julho, Cuiabá será, pela primeira vez, uma das sedes do Meeting Paralímpico de natação e atletismo, o mais importante evento paralímpico do país. Out (indica que a bola saiu da quadra após um lançamento, sem tocar em ninguém da defesa do adversário) Mais do que os bons resultados, o Goalball pode ser transformador na vida das pessoas. Luzinete conta como esse esporte modificou sua vida: “O goalball me ajudou muito, tanto fisicamente pelo exercício que fazemos e que é bom pra saúde, quanto socialmente, pois conheci muitas pessoas diferentes, viajei para vários lugares. Eu senti que tive mais inclusão. Antes eu andava só com as minhas primas ou irmãs, que enxergam. Depois de vir pra cá eu já consigo andar sozinha”. Carol conta que foi o esporte que lhe deu forças para superar um dos momentos mais difíceis da sua vida. “O esporte pra mim foi uma ferramenta de inclusão e de independência. Eu comecei com 13 anos no esporte e, aos 15, perdi minha mãe, que era os meus olhos. Foi o esporte que me ajudou muito nessa situação, para conseguir caminhar adiante”, desabafa. O som do apito do treinador Léo enfim anunciava o fim da partida-treino. O resultado final foi 14 a 6 para as meninas, uma goleada! Na saída de quadra, após parabenizar a equipe, pude entrevistar as atletas, elas trouxeram a certeza de que, diante de tantos feitos, este foi só um simples aquecimento. f


SEM FUNK, SEM FESTA: a ASCENSÃO DO RITMO em CUIABÁ DIGORESTE YASMIM DI BERTI Foto: André Prado Com passos no mesmo compasso, show de luzes e volume que forçam o concreto das paredes com sua potência. Ao chão, junto com os baldes de gelo e latinhas de cerveja, é possível ver os pés incorporando passadas, de acordo com o beat que o dono da festa determina. O baile do Kuririn ferve. O “verdadeiro mão de ouro”, como ele mesmo se denomina, preenche todos os espaços junto à multidão da casa de festas com seu nome no telão de led, que ofusca a visão de quem tenta olhar para o DJ no palco. O lugar já estava lotado, mas novos personagens do coro de festeiros aparecem a todo momento. fuzue - 43


fuzuê - Para além dos fones de ouvido, playlists e trilha sonoras de stories, “o ritmo de Cuiabá ‘tá’ como? Dominando tudo!”, proclama MC Dentinho, personagem consagrado da cena musical mato-grossense. Natural do Rio de Janeiro, Júlio César dos Santos, seu nome de batismo, iniciou sua trajetória na difusão do funk em Cuiabá no começo dos anos 2000. O jovem artista foi atraído sem rodeios pelo pancadão, ritmo que não deixava os bailes e casas de festa da capital na época. Por ser mais acelerado, com o padrão de 150 bpm (batidas por minuto), 23 batidas acima do costumeiro no Rio de Janeiro, o pancadão caiu no gosto, nos lábios e no molejo de quem encontrava uma música de MC Dentinho. “Como acelerava muito, era o ritmo que o pessoal daqui gostava”. Na década seguinte, o pancadão não tinha mais espaço diante da divisão que estava tomando os corações animados dos “rolês” em Mato Grosso. A preferência era o funk cuiabano. Seguindo o exemplo de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Minas Gerais, estados que já popularizaram sua batida de funk nacionalmente, os MCs e DJs de Mato Grosso conquistaram o público da região, mas não pararam por aí. O funk cuiabano, com toda a sua potência, passou a tocar nas festas Brasil afora. Fruto do pancadão, DJ Helinho se consagrou como um dos grandes precursores do funk em Cuiabá. “Helinho, Helinho, Helinho, c#r@lh#!” é o bordão do artista com 20 anos de carreira, presente na maioria de suas produções. A curiosidade começou a pairar aos 16 anos, pesquisando sobre o que era ser um DJ: “Na época era difícil achar música e eu precisava comprar CD na feira. Depois de um tempo, saí de onde eu estava trabalhando, comprei um computador, fui pesquisando os programas e comecei a fazer minhas próprias músicas”, conta. O DJ relata que o ritmo de Cuiabá se consolidou por volta dos últimos sete anos, tempo suficiente para firmar a identidade do contagiante beat cuiabano, composto por uma batida grave usada na base das músicas. “É uma pegada nossa. Acontece muito dos MCs de fora mandarem só a voz e a gente faz a nossa produção, coloca na pegada daqui”. Sobre o estilo que está presente na capital, Dentinho afirma: “O funk cuiabano está em uma ascensão e vai dominar o Brasil… na verdade, já está!”. “TRAVA NA POSE, CHAMA NO ZOOM, DÁ UM CLOSE!” Com os braços cruzados e girando a cabeça, vários internautas seguem o ritmo baseado na batida da música francesa “Prayer in C”. A voz pouco melodiosa chama todos para os próximos movimentos: ambos polegares e indicadores estendidos em L, imitando o formato de uma câmera. Com mais de onze milhões de visualizações no videoclipe oficial e 890 mil vídeos gravados com o áudio da música no TikTok, a canção “Trava na pose, chama no zoom, dá um close” foi tema de comemoração de Neymar Júnior durante a classificação da Seleção Brasileira na Copa do Qatar e se tornou uma das música de maior sucesso. O ritmo já possui passaporte e encarna sucessos que fuzue - 44


fuzuê - n ã o s a e m das mentes de quem usa redes sociais com frequência. A menção a Cuiabá que passa despercebido aos ouvidos mais distraídos enquanto tentam dançar a coreografia, chama atenção depois de um minuto e meio: “DJ Olliver, p#rr@! Moleque é brabo, mais brabo de Cuiabá. Tem que respeitar!”. O hit viralizou em vários países, tem coreografia de rede social em seu portfólio e é produção de um cuiabano que atende pelo nome artístico de DJ Olliver, morador do CPA IV, na capital. Sobre o sucesso, o também funkeiro MC Theus Cba, irmão de Olliver, conta que o dinheiro para fazer a produção da primeira música veio de uma reserva de seu pai destinada para o pagamento da conta de energia. Com o irmão investindo seu talento e dedicação na carreira musical, a mãe dos funkeiros sugeriu uma parceria: “Minha mãe falou brincando: ‘Por que você não vira DJ do seu irmão?’. Então ele começou, criou gosto e até hoje a gente ‘trampa’ junto”. Não é mais lazer ou hobby, o funk é assunto sério para os irmãos. Atualmente, a dupla de um MC e um DJ já conta com suas músicas “embrazantes” nas principais plataformas musicais, conquistando mais admiradores e propagadores. MC Theus e DJ Olliver, juntos, somam mais de um milhão de ouvintes mensais no Spotify. “É tudo feito por mim e ele. Eu compondo as músicas e ele produzindo”, explica Theus. A dupla de funkeiros fundou a produtora Ritmo Cuiabá em parceria com MC Derick PS. O canal da empresa no YouTube, desde 2019, se transformou em uma vitrine com as mais refinadas trilhas sonoras para os rolês de jovens da madrugada cuiabana. A Ritmo Cuiabá destina esse espaço para postagens de músicas e produções de artistas mato-grossenses e coleciona 5 milhões e 200 mil visualizações em seus 365 vídeos. “A cena tinha pouco apoio e eu achava que o certo seria unir todo mundo”. As redes sociais contribuíram com a ascensão do funk cuiabano na região. Hoje, o planejamento de divulgação de uma música incorpora o impacto que ela vai ter sobre as redes, ou seja, se uma música render uma dancinha no TikTok ou algum desafio pelo ciberespaço, o caminho para a viralização fica menor e o retorno financeiro aumenta significativamente. Além da plataforma de áudio favorita dos funkeiros, o Spotify, o título de melhor amigo dos MCs é dado com louvor ao TikTok: “Ele, hoje em dia, é uma ferramenta fundamental, é impossível lançar música sem pensar nele. Antes, a galera era muito preconceituosa, hoje em dia, se em uma balada não tocar funk, não é balada”, ressalta MC Derick, contente com a popularização do gênero. Como prova disso, a criação de DJ Olliver não foi filha única na exportação de produções de funk cuiabano. “Passou uma ventania”, escrita pelo carioca MC Fluup e produzida pelo cuiabano DJ Kuririn, era o tema da festa descrita no início desta reportagem. O sucesso foi estrondoso, o hit esbanja visualizações e conta com mais de 49,2 mil vídeos postados utilizando a música, que virou trend no TikTok. A trend - uma tendência que se consolida no aplicativo e gera um modelo específico de vídeo - consiste em se gravar em casa, ainda desarrumado e, depois, em alguma festa. Tudo isso enquanto, embalado pelo tradicional beat cuiabano, se escuta: “Falei pra ‘geral que ia ficar em casa, mais uma vez contei uma mentira. Passou uma ventania e me arrastou pra clandestina!”. “ESSA É A REGRA DO JOGO, GOSTE OU NÃO GOSTE, DJ KURIRIN SE MANTÉM NO TOPO” De volta à casa de festas, o topo é dominado pelo verdadeiro “mão de ouro”. A multidão estende as mãos e os celulares, cada um aproveita a festança do jeito que preferir. Não há espaço para se mexer, mas isso não é motivo para ir embora. A venta fuzue - 45


nia, além de parecer deixar os corpos do público arrepiados, contaminados, passa e deixa Kuririn verificado nas redes sociais (um reconhecimento da conta pelas plataformas), com 122 mil ouvintes mensais no Spotify. O Baile do Kuririn, em 2 de julho de 2022, não segue o estereótipo de um evento do gênero. Só começa quando se escuta pelas caixas de som do palco a seguinte frase: “O Everton Detona é um cara sem limites!”. A boate abarrotada de fãs esbraveja junto ao bordão do artista de abertura. Detona tem um nome de peso junto à categoria. É impossível desconsiderar as 25 milhões de visualizações em seu canal no YouTube. É ele o primeiro responsável por aquecer a plateia e deixá-los mais ansiosos para a chegada do anfitrião. As primeiras latinhas de cerveja começam a cair. Às duas da manhã, uma contagem regressiva desponta no gigante painel de led no fundo do palco. A sentença que segue se mistura com o ar e todos gritam junto com o artista: “3, 2, 1… Tá gostoso e tá pra cima, é o pique do Kuririn, sente a potência!”. Kuririn sobe no palco sem rodeios. Entre uma música e outra, se escuta “DJ Kuririn de Cuiabá!” e o público, quase ensaiado, completa em uníssono: “O VERDADEIRO MÃO DE OURO!”. O apelido, dado por seus amigos, pegou e virou o bordão que marca suas produções, conferindo um tom de misticismo. De camiseta preta, escorrendo gotas de suor pela testa, Igor Moreno se destacava na roda de amigos por sua plena dedicação em dançar os sucessos do DJ. Ainda que em ambiente fechado, o estudante usava óculos espelhados e conseguia alguns passos dignos de TikTok. “Eu sempre acompanhei o trabalho do DJ Kuririn e, desde o começo, já se via que era bom, sabe? É algo que conversa com a gente, é cultura cuiabana e é funk ao mesmo tempo”. O jovem de 20 anos só saiu do local da festa quando o show acabou. Maria Vitória Izoton, autodeclarada fã número um do DJ, também marcou presença no Baile vibrando, dançando e cantando cada um dos hits de seu ídolo. “Mesmo que as pessoas façam um pré-julgamento sobre o som dele, que acaba apresentando muitas letras explícitas, ainda é algo que faz a gente se orgulhar de um trabalho aqui da nossa região”. A ventania é grande e arrasta outros rapazes, que perdem o medo de se arriscar no ritmo. Diante do sucesso do colega de profissão, MC Theus Cba não nega o desejo de ver o funk de Cuiabá invadindo ainda mais os fones de ouvido dos amantes. Se antes o ritmo mais tocado nas festas mato- -grossenses era o sertanejo, o funk retoma o espaço que o pancadão um dia conquistou. Para MC Dentinho “a festa pode começar com pagode, sertanejo, forró e brega, mas, no intervalo de um e outro, o DJ sempre toca um funk”. É fato que a marginalização do ritmo sempre existiu dentro e fora de Mato Grosso. Porém, o funk vem provando sua qualidade e valor cultural. Não só Kuririn, mas todos os DJs e MCs poderiam ser considerados “mãos de ouro”, por terem trazido reconhecimento para o ritmo. Pode até existir mundo sem funk, mas não é tão divertido assim. f fuzue - 46


Nos cantos do mundo, a menina dança A jovem Nicoly Lopes, de 23 anos, é dançarina desde criança. Incentivada pela mãe, que a colocou no balé, ganhou gosto pela dança e começou a se aventurar por outros estilos. Atualmente, integra o grupo folclórico Flor Ribeirinha de Cuiabá e é Instrutora de Fitdance. Em 2021, venceu o Reality Instructor Internacional de Fitdance em que disputou com instrutores de vários países e dançou com o cantor Wesley Safadão no Festival Garota Vip 2022, na capital de Mato Grosso. Mas a garota que trancou a faculdade de Engenharia Florestal para viver apenas de sua paixão pela dança prova que, mesmo há 10 anos no meio artístico e com as conquistas que soma em sua carreira, multiplicam-se dificuldades, principalmente, por ser mulher. fuzuê: O que significa a dança para você? Nicoly Lopes: Essa semana, principalmente, está sendo um divisor de águas na minha vida. Fazia faculdade de Engenharia Florestal aqui na UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso), mas decidi trancar para viver de dança. Então, me perguntar isso hoje é bem forte! A dança para mim é tudo, não consigo me ver atuando em outra área e nem fazendo outra coisa. Amo estar em cima dos palcos dançando e ensinando outras pessoas a dançar! É muito gratificante poder ter a oportunidade de estar vivenciando do meu sonho. fuzuê: Quais são as dificuldades que você mais encontra na dança? N.L.: Sofro, principalmente, por ser mulher. As pessoas acabam confundindo ser dançarina com outras coisas. Mas fazemos arte com o nosso corpo! Minha família mesmo já me pediu para tomar muito cuidado, porque, dependendo do lugar onde vou dançar, as pessoas já me olham com outros olhos. Para mim, já é algo que está tão no automático, que nem me importo mais. É o nosso trabalho, a gente está ali, somos profissionais! Eu namoro, mas danço com outros rapazes e tá tudo bem. É a Foto: Arquivos pessoais Jolismar BRUNO fuzue - 47 xomano


“As pessoas acabam confundindo muito ser dançarina com outras coisas. Mas fazemos arte com noSSO CORPO”. mesma coisa quando uma atriz ou ator vai fazer uma cena de beijo, é tudo profissional! As pessoas têm dificuldade de enxergar isso e ficam comentando coisas do tipo: “nossa, seu namorado deixa você fazer isso?”. É minha profissão! E isso acontece até com os homens dançarinos… Confundem muito! fuzuê: Qual a sua opinião sobre os estereótipos que são colocados sobre a dança? N.L.: A gente responde, na prática, trabalhando e dizendo que “eu pago as minhas contas com a minha dança! Eu trabalho para isso!”. É um trabalho, mas ainda assim é muito complicado. Dia após dia, nós dançarinas, professoras, tentamos lutar contra esses preconceitos. Porque é uma coisa que já vem enraizada da sociedade, vem desde a família. Muita gente diz: “nossa, tadinha ela é dançarina!”. Mas conseguimos dar nossa resposta para as pessoas fazendo o nosso trabalho, em cima dos palcos, dando o nosso melhor e se destacando. fuzuê: Você recebe apoio financeiro para estar nesse meio artístico? N.L.: Atualmente, não! O Flor Ribeirinha, por exemplo, não recebe. Temos os cachês quando fazemos apresentação contratual. Mas, hoje, minha renda é das minhas aulas particulares. Dou aula em academia e é isso que está sendo meu ganho. Se eu ficasse só apresentando e não desse aula, não conseguiria ter uma renda boa. Tenho vivido da dança. Por isso tranquei a faculdade que era integral, porque não conseguia conciliar. A faculdade exige muito e ficar “empurrando com a barriga” eu não queria. fuzuê: Como é ser instrutora de fitdance em Cuiabá, onde predomina a música tradicional, como o rasqueado e o lambadão? N.L.: A Fitdance hoje trabalha com todos os estilos de dança. Funk, axé e músicas internacionais. Temos essa liberdade. Aqui temos o lambadão e o rasqueado que são muito fortes, mas a gente consegue trabalhar com essas músicas também. A fitdance é padronizada e as coreografias já vêm prontas. Porém, a gente consegue fazer um momento livre com as músicas. As que tenho trabalhado atualmente são com versões de lambadão e as alunas gostam bastante do gênero. fuzuê: Como você relaciona fitdance, que é uma modalidade de dança mais moderna, com o ritmo folclórico que é do Flor Ribeirinha? N.L.: Tem horas que dá até um tilt [sic] na cabeça (risos). Por que é tanta coreografia... É muito distinto e não tem nada a ver uma coisa com a outra. É um processo que a gente tem que ir se acostumando, principalmente o cérebro. Tem que ser tudo com calma. Tenho que trabalhar a cabeça para saber distinguir os momentos fuzue - 48


fuzuê - 49 em que estou coreografando no Flor Ribeirinha e quando estou dando aula de Fitdance. Vou acostumando minha cabeça para acostumar o corpo. Mas, hoje, para mim já é mais tranquilo conciliar. fuzuê: Como é a sua rotina e alimentação como bailarina? N.L: Dou aula todos os dias e mesclo com os ensaios do Flor Ribeirinha, com os ensaios de outros trabalhos pontuais, e também tenho dado aula particular. Então, assim, é bem corrido (risos). Agora está mais tranquilo porque tranquei a faculdade, então não tenho mais as responsabilidades dela. Porém, começou um intensivão no Flor Ribeirinha, porque vamos sair em turnê. É bem corrido (risos). Geralmente são mais na parte da noite os meus compromissos profissionais. Aulas e ensaios são sempre à noite. O ensaio geral do Flor Ribeirinha é no domingo à tarde. As pessoas costumam dizer que não tenho muito tempo para lazer, porque, nesses horários que todos estão se divertindo, tenho minhas responsabilidades com a dança. A minha alimentação agora… não está muito boa não (risos), mas tem que ser para aguentar o “batidão”. É muita coisa pra fazer, temos que batalhar muito por aquilo que a gente quer. fuzuê: Qual estilo de dança você prefere mais? N.L.: O do Flor Ribeirinha! Fitdance é algo mais comercial. Então, trabalho para uma empresa que posso parar a qualquer momento. Amo dar aula, amo minha alunas. Porém, se eu não quiser mais dar aula de Fitdance, tenho uma gama de outras opções de modalidade de dança em que posso trabalhar. O Flor Ribeirinha é algo muito específico, somos como uma família! E é muito gratificante poder colocar sorriso no rosto das pessoas quando veem a gente dançar. É muito bonito. Estar no Flor Ribeirinha, não tem preço que pague, eu amo! fuzuê: Como você imagina o Flor Ribeirinha futuramente? N.L: O grupo já existe há quase 30 anos, porém ele foi se destacar quando ganhou o primeiro título de campeão mundial de dança na Turquia. Depois disso, as pessoas passaram a olhar para a tradição de Cuiabá. Antes, as pessoas tinham vergonha da nossa cultura. Elogiavam e apreciavam a cultura de outros estados e até mesmo de outros países e se esqueciam da origem. Estamos para mostrar, principalmente, para os jovens que essa é a nossa dança e que é bonita sim! As pessoas de outros lugares, quando nos veem dançando, ficam apaixonadas. Não há motivo para os cuiabanos sentirem vergonha de algo que é nosso e que é bem visto no mundo todo. Então, vejo o grupo Flor Ribeirinha, daqui alguns anos, difundindo ainda mais a nossa cultura e não só em Mato Grosso. Estamos na função de levar o siriri ao patamar do frevo, que é conhecido em todo lugar do Brasil e até mesmo fora do país. Não só o Flor Ribeirinha está nessa função, mas também todos os outros grupos de dança folclórica aqui de Cuiabá. f


Cuiabano de alma, Alcides Pereira dos Santos nasceu em 1932 na Bahia. De vida reservada e modesta, frequentava uma igreja evangélica, trabalhava e fazia arte. Apesar disso, pouco se sabe do período anterior à sua vinda a Mato Grosso. Sua trajetória artística começa no estado de Mato Grosso, na década de 50 em Rondonópolis. Em 1976, chega a Cuiabá em um momento de efervescência da arte cultural popular. Dos 26 anos de vida em Mato Grosso, 17 deles foram na capital. Dentre as muitas profissões que teve ao longo da sua vida, foi pedreiro, sapateiro, plaqueiro, barbeiro e trabalhou no campo e na indústria. Reconhecidamente começou na pintura em 1977, quando trabalhou como pedreiro em uma obra [serviço braçal] de um promotor, que, ao ver uma de suas pinturas, incentivou Alcides a ir até o Atelier Livre da Fundação Cultural de Mato Grosso. Lá, viram nele potencial artístico. Portanto, Alcides não aprendeu a pintar propriamente no ateliê, ele apenas desenvolvia lá o que já sabia, da mesma forma como sempre fez e continuou a fazer. Semianalfabeto e sem orientação formal na pintura, criava com as tintas e desenvolvia sua arte sem interferência externa dos orientadores do ateliê, que permitiram seu livre desenvolvimento como artista, sem intervenções, para preservar seu estilo único e seu conceito. Evangélico, levava para a arte sua crença, presente em figuras e textos que fazia nas telas. Considerado rígido em seu estilo de vida, trazia para suas obras o mesmo rigor com que seguia a vida. É lembrado pelos que o conheceram por estar sempre de calça, boné, bem “engomadinho”, como cita José Serafim Bertoloto, supervisor do Museu de Arte e de Cultura Popular (MACP), da Universidade Federal de Mato Grosso. A simetria marcante é característica fundamental das obras de Alcides. Retratou majoritariamente imagens frontais, chapadas, com pouca profundidade de campo. Registrou temas religiosos, a vida no campo, a agricultura, animais como bois, pássaros e peixes. O uso de cores quentes era destaque em suas telas, bem como um branco muito característico que destacava os elementos. Fazia o uso predominante de tons terrosos, verde escuro, laranja, azul, e pintava também suas molduras, característica diferenciada e única dele, chegando inclusive a acrescentar cacos de vidro nas molduras e outros materiais de obras em que trabalhou. Na obra 3º e 4º dias da Criação, de 1979, Alcides retrata sua visão religiosa sobre a criaFragmentos para fuzuê - 50 CRÍTICA MARIANA DA SILVA


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