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Pedimos licença aos Orixás e a todas as entidades de terreiro para a veiculação desta edição. Sem axé, a força vital que em tudo habita, não seria possível trazer esta revista para você que nos lê e, a partir de agora, mergulha neste novo número da Fuzuê. Pelo caminho, vamos apresentar aquilo que foge aos estereótipos de nosso estado, transitando por universos tão particulares e tão próprios dele, sobretudo por aqueles entrelaçados pela cultura negra, que atravessa muitos aspectos aqui trazidos. Eles se espalham por terreiros, ruas, campos de futebol, quadras de acesso público e ringues de luta; podem morar em bairros periféricos aparentemente conhecidos pela maioria dos que vivem na capital, mas cujas histórias ainda estão silenciadas. O percurso tende <br>a ficar um pouco agitado, mas não será preciso correr, aproveite o caminho com <br>tranquilidade! O quicar de bolas, o folhear de livros, frigir dos temperos e o ecoar do berimbau serão parte da trilha sonora escolhida para a sua viagem.<br> Então, faça sua mala e embarque nesta edição! Aproveite cada página, <br>ela será única. Boa leitura!

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Published by Revista Fuzuê, 2024-04-15 12:27:40

Fuzuê | Edição 11

Pedimos licença aos Orixás e a todas as entidades de terreiro para a veiculação desta edição. Sem axé, a força vital que em tudo habita, não seria possível trazer esta revista para você que nos lê e, a partir de agora, mergulha neste novo número da Fuzuê. Pelo caminho, vamos apresentar aquilo que foge aos estereótipos de nosso estado, transitando por universos tão particulares e tão próprios dele, sobretudo por aqueles entrelaçados pela cultura negra, que atravessa muitos aspectos aqui trazidos. Eles se espalham por terreiros, ruas, campos de futebol, quadras de acesso público e ringues de luta; podem morar em bairros periféricos aparentemente conhecidos pela maioria dos que vivem na capital, mas cujas histórias ainda estão silenciadas. O percurso tende <br>a ficar um pouco agitado, mas não será preciso correr, aproveite o caminho com <br>tranquilidade! O quicar de bolas, o folhear de livros, frigir dos temperos e o ecoar do berimbau serão parte da trilha sonora escolhida para a sua viagem.<br> Então, faça sua mala e embarque nesta edição! Aproveite cada página, <br>ela será única. Boa leitura!

Keywords: Cultura,Culture,Esporte,Sports,Brasil,Brazil,Mato Grosso,Cuiabá,Jornalismo,Journalism,UFMT,Fuzuê,Revista Fuzuê

EDIÇÃO 11 - 2023


10 E X P E D I E N T E COORDENAÇÃO DO CURSO DE JORNALISMO VINÍCIUS SOUZA PROFESSORA RESPONSÁVEL TAMIRES COÊLHO EDITOR CHEFE FABRÍCIO BALDINI EDITORES DE TEXTO SILVANO COSTA, THAYLISE OLIVEIRA, ALINE COSTA, ANA LUIZA QUEIROZ EDITORA DE FOTOGRAFIA E ARTE ANA LUIZA QUEIROZ REPORTAGEM ALINE COSTA, ANA LUIZA QUEIROZ, ANDRÉ MACEDO, CAROL MARTINS, CRISTINA MARIA SOARES, ELISANDY MIO, EMANUELLE CAROLINE COSTA, EMANUELLY SANTOS, FABRÍCIO BALDINI, GIOVANNA BAIOCCO, GUSTAVO KLIMIUK, IASMIM SOUSA, JORGE AMORIM, KARINE ARRUDA, LUANA MOREIRA, MARIANA FREITAS, MARYELLE CAMPOS, MIRIAN GRAÇA, NATHÁLIA SHIZUKA, STEFANI FIXINA FOTOGRAFIA ALINE COSTA, ANA LUIZA QUEIROZ, BIANCA MORTELARO, CAROL MARTINS, ELISANDY MIO, EMANUELLE CAROLINE COSTA, EMANUELLY SANTOS, IASMIM SOUSA, LUANA MOREIRA, MARIANA FREITAS, NATHÁLIA SHIZUKA, STEFANI FIXINA DIAGRAMAÇÃO ALINE COSTA, ANA LUIZA QUEIROZ, ANNA GIULLIA MAGRO, KARINE AR- RUDA, MARIANA FREITAS, MARYELLE CAMPOS, STEFANI FIXINA MÍDIAS SOCIAIS E AUDIODESCRIÇÃO ELISANDY MIO, FABRÍCIO BALDINI, GUSTAVO KLIMIUK, JOSEMAR MACENA, LETICIA HADDAD, PAULO HENRIQUE MONITORIA ALEXIA OLIVEIRA PRODUÇÃO PUBLICITÁRIA CIBELE CAMPOS GEOVANNA MARQUES WALLACY CAMPOS PRADO COLABORADORES REPÓRTER E FOTÓGRAFA COLABORADORA: AMANDA WATHIER FOTÓGRAFO COLABORADOR: OLÍMPIO VASCONCELOS ILUSTRAÇÃO: BIANCA MORTELARO CAPA ANA LUIZA QUEIROZ E BIANCA MOR- TELARO REVISÃO ALINE COSTA, ANA LUIZA QUEIROZ, ANNA GIULIA MAGRO, GIOVANNA BAIOCCO, KARINE ARRUDA IMPRESSÃO GRÁFICA UFMT TIRAGEM 1.000 EXEMPLARES INSTAGRAM @FUZUE.UFMT EDIÇÕES ANTERIORES ANYFLIP.COM/HOMEPAGE/UVZLU/ AUDIODESCRIÇÃO DAS REPORTAGENS https://open.spotify.com/show/ 2gE2PyPEIgATVM0OwL3LUf PRÊMIOS MELHOR FOTOGRAFIA ARTÍSTICA DO BRASIL EXPOCOM NACIONAL 2020 MELHOR REVISTA-LABORATÓRIO DO CENTRO-OESTE EXPOCOM INTER-REGIÕES 2020 MELHOR PRODUÇÃO EM JORNALISMO DE OPINIÃO DO BRASIL EXPOCOM NACIONAL 2021 MELHOR FOTOGRAFIA ARTÍSTICA DO CENTRO-OESTE EXPOCOM REGIONAL 2022 MELHOR REVISTA CUSTOMIZADA DO CENTRO-OESTE EXPOCOM REGIONAL 2022 MELHOR PRODUÇÃO EM JORNALISMO DE OPINIÃO DO CENTRO-OESTE PRÊMIO EXPOCOM REGIONAL 2022 MELHOR REPORTAGEM EM JORNALISMO IMPRESSO DO BRASIL EXPOCOM NACIONAL 2022 & 2023 MELHOR REVISTA-LABORATÓRIO DO BRASIL EXPOCOM NACIONAL 2023 PROFESSORES COLABORADORES FOTOGRAFIA: VINÍCIUS SOUZA REPORTAGEM: THIAGO CURY 2023 - AV. FERNANDO CORRÊA DA COSTA, 2367 BOA ESPERANÇA, 78060-900 | CUIABÁ- MT


34 25 QUANDO O SEGUNDO SOL CHEGAR.......................................05 MARIAS, MARIAS...................................................................10 UM LUGAR TÃO TÃO DISTANTE?.............................................15 PULANDO OBSTÁCULOS.........................................................18 DA COMUNIDADE PARA A COMUNIDADE..............................22 ENTRE LAÇOS E CAVALOS......................................................25 AFETOS GUIADOS POR RÉDEAS.............................................30 TEM CRIANÇAS NOS TERREIROS...........................................34 CAPOEIRA É TUDO QUE A BOCA COME.................................45 DE CUIABÁ PARA OS RINGUES BRASILEIROS......................49 É DADA A LARGADA...............................................................53 ENTRE LÁPIDES E ESCULTURAS.............................................56 REALIDADE INVENTADA..........................................................61 QUEM BRILHA SÃO AS TIGRESAS..........................................66 QUEM FAZ UM JOGO DA SELEÇÃO?........................................69 ALINE POR ALINE ..................................................................74 MEMÓRIAS SABOROSAS........................................................76 ENSAIO “TERRA”.....................................................................78 SUMÁRIO 78 49


editorial Pedimos licença aos Orixás e a todas as entidades de terreiro para a veiculação desta edição. Sem axé, a força vital que em tudo habita, não seria possível trazer esta revista para você que nos lê e, a partir de agora, mergulha neste novo número da fuzuê. Prepare-se para embarcar em mais uma viagem pela Baixada Cuiabana e por outras regiões de Mato Grosso! Pelo caminho, vamos apresentar aquilo que foge aos estereótipos de nosso estado, transitando por universos tão particulares e tão próprios dele, sobretudo por aqueles entrelaçados pela cultura negra, que atravessa muitos aspectos aqui trazidos. Sobre(vivências) iniciam o percurso traçado nesta terra quente. Por conta do calor e dos efeitos dele sobre quem mora em Cuiabá, convidamos você a seguir em frente. A partir daí, será preciso pegar carona com mulheres que “possuem uma estranha mania de ter fé na vida”: as Marias. A busca pelas raízes continua além das histórias dessas cuiabanas, que estarão na sua bagagem, enquanto você conhece melhor esportes com cavalos e pode laçar trajetórias de vida. Os percursos mato-grossenses trazidos na 11ª fuzuê se espalham por terreiros, ruas, campos de futebol, quadras de acesso público e ringues de luta; podem morar em bairros periféricos aparentemente conhecidos pela maioria dos que vivem na capital, mas cujas histórias ainda estão silenciadas. Você notará algo em comum com quem encontrar: todos sentimos a força da ancestralidade. O percurso tende a ficar um pouco agitado, mas não será preciso correr, aproveite o caminho com tranquilidade! O quicar de bolas, o folhear de livros, frigir dos temperos e o ecoar do berimbau serão parte da trilha sonora escolhida para a sua viagem. Aproveite o itinerário, pois, por meio dele, descortinamos um estado que forma uma grande aquarela, que se derrama e é parte dos “Brasis” que compõem nosso país. Podemos comparar nosso processo produtivo a uma colcha de retalhos: cada pessoa que faz parte da edição tem forma, tamanho, cor, textura, tempo de universidade, ideias e olhar específicos. Ao final, unidos pelo jornalismo, nos tornamos apenas um. Agimos como caçadores de nós mesmos, daquilo que somos e de nossa identidade, para traduzir, pelo nosso trabalho, a essência daquilo que brota nesta terra, escorre pelos rios, pulsa nas veias de cada ser e efervesce em nossa pele. As realidades que coexistem em Mato Grosso precisam ser vistas, escutadas, atentamente observadas e partilhadas. Queremos provocar você para aquilo que extrapola o curioso: temas riquíssimos, que não precisam do “luxo” de estarem em alta na mídia tradicional. Olhar o que existe à nossa volta é um desafio, porque, afinal de contas, a vida acontece em tudo e em todos. Então, faça sua mala e embarque nesta edição! Aproveite cada página, ela será única. Boa leitura!


Texto: Jorge AMORIM e Mariana Freitas Sobreviventes do calor abrasador de Cuiabá Foto: Mariana Freitas e Emanuelly santos 5 ATÉ NA ORÊIA


“Tá quente, né?”, é o suficiente para começar uma conversa com qualquer cuiabano nos últimos meses. E não foi diferente quando abordamos o vendedor de caldo de cana, apressado, que precisava vender cinco copos, antes que estragassem com o calor. Três minutos, é o que temos para conversar antes que ele perca dinheiro com dois sinais simultaneamente fechados. Vestindo uma blusa de manga comprida, calça, sapato fechado e chapéu, sob o calor de 40 graus, Renato Alves, de 35 anos, arrisca a saúde entre os carros, na movimentada avenida do CPA (Av. Historiador Rubens de Mendonça). Sinal fechado e sol a pino são sinônimos de dinheiro atipicamente nublado em pleno mês de setembro. “Simplesmente não tenho mais vaga, essa época do ano é a que mais tem procura por aulas. Normalmente, recebo cinco pedidos por dia! Meu horário é concorrido, só o frio e a chuva podem estragar a minha semana. Sem aula, sem dinheiro”, afirma a professora de natação. Acostumada a trabalhar nessa profissão há 13 anos e formada em Educação Física há 23, ela não se incomoda mais com o sol escaldante. Ainda que a pele bronzeada renda elogios por onde passe, na piscina seus maiores e mais confiáveis aliados são a blusa com proteção ultravioleta e o protetor solar. “Não posso me descuidar, vou à dermatologista frequentemente para ter certeza que está tudo certo. Tenho quase 50 anos e quero ter muita saúde pela frente. Meus alunos até brincam que eu sou o gasparzinho, com o rosto todo branco, mas não ligo”, conta Michelini, que é apaixonada pela profissão e orgulhosa dos alunos. Segundo Luciana Neder, médica dermatologista e professora de clínica médica na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Renato e Michelini estão fazendo a coisa certa ao se protegerem com roupa e protetor solar. “Hoje, as pessoas estão mais conscientes e temos mais acesso a protetor solar. Uma pessoa que está sempre exposta ao sol, onde ela não estiver protegida pela roupa, deve passar protetor. O ideal é proteção com a roupa, já que ela protege mais do que o creme, que pode escorrer”. para ele. Desempregado e beneficiário do programa Bolsa Família, recebe comissão por cada copo de caldo de cana vendido. “É ruim, mas necessário. Tudo tem o lado bom e o lado ruim. O calor é desagradável, mas eu prefiro ele ao frio. O calor te deixa ativo”, ressalta Renato, enquanto aproveita um raro momento de descanso à sombra de um prédio. Para trabalhadores como ele, que dependem do clima quente para conquistar sua fonte de renda, chuva, frio ou qualquer mudança abrupta do tempo significa que, naquele dia, não vai ter lucro. “Se for chover, que seja à noite, tenho que atender dez alunos hoje e não consigo remarcar nenhum”, diz Michelini de Oliveira - tia Mi, como é carinhosamente apelidada pelos alunos de natação infantil - ao ver o céu 6


Um estudo publicado em 2022 pelo Instituto Nacional do Câncer (Inca) mostra uma projeção dos números de casos de câncer pelo Brasil para o ano de 2023. O campeão de incidências, em todo o país, é o câncer de pele não melanoma, ocasionado por longos períodos de exposição ao sol. Em Mato Grosso, a estimativa aponta para 2.260 novos casos, 430 só em Cuiabá. Além do câncer, que vem de uma progressão crônica e lenta, podendo demorar anos para evoluir, existem doenças que têm um aumento agudo nessa época de seca e muito sol. É o caso de queimaduras, alergia ao calor e infecções fúngicas de modo geral. “Eu não me preocupo muito com a questão crônica, são mais as coisas agudas que vão acontecendo. Então, a gente orienta, além da roupa leve e de algodão, tentar estar em um ambiente mais ventilado, um local mais fresco. Se puder colocar umidificador, melhor. Tudo que você puder fazer para deixar o ambiente mais geladinho é o ideal”, aconselha a dermatologista. Mesmo na primavera, no lugar do aroma das flores ou do vento úmido das chuvas, um ar quente e seco toma conta das narinas. Nesses dias, respirar se torna fatigante. O médico otorrinolaringologista Raul Aureliano chama atenção para o aumento nos casos de inflamação na garganta e sangramento nasal, sobretudo em crianças e idosos. “Toda a via aérea fica afetada. Sangramento no nariz e rinite nasal é muito comum em Cuiabá nesta época. Toda semana a gente vê um caso”. Beber muita água, manter o ambiente limpo de poeira, fazer lavagem nasal com frequência, umidificar o ar e tomar cuidado com exercícios físicos de longa duração ao ar livre são as principais prescrições do médico quando o assunto é prevenir as doenças respiratórias causadas pelo tempo seco e quente. Segundo Raul, ofícios como os de Michelini e Renato, devido à longa exposição ao sol, são prejudiciais à saúde. O médico também ressalta que a idade, aliada a outros cuidados, pode ajudá-los a enfrentar o calorão de Cuiabá. “A idade deles é um fator positivo, no quesito proteção. É só tomarem um pouquinho mais de cuidado e podem ficar tranquilos em relação aos outros grupos vulneráveis”, explica o médico especialista em sistema respiratório. Tanto para Raul quanto para Luciana, crianças e idosos fazem parte do chamado “grupo de risco”, pessoas mais propensas a terem reações negativas a uma determinada doença ou ação externa. “O pessoal da terceira idade tá sofrendo bastante. A gente não tá sofrendo porque temos um relativo conforto, só por isso”, reconhecem Benedito e Mirtes Rondon, que só saem para fazer suas atividades pela manhã e, durante a tarde, ficam em casa aproveitando o ar-condicionado, que se tornou um grande amigo no tempo quente. “A gente não tinha ventilador, o calor era suportável. Nós não tínhamos nem geladeira! Tomava água natural. Então, não era tão absurdo, este calor não existia. O quente, na época, era de 28 a 30 graus”, relembra Mirtes Rondon. Nascidos em Cuiabá na década de 50 e casados há 48 anos, o casal relembra uma cidade que não existe mais. “Olha, como era tranquilo naquela época! As estações do ano eram bem definidas, a gente tinha primavera, verão, outono e inverno. Era frio desde a festa de São João até o desfile de sete de setembro, quanto fazia frio”, recorda a cuiabana, com saudade na voz. “Tudo era divertimento pra nós, cuiabanos. Em 1970 foi acabando. Em 1975, Cuiabá já estava mudada”, afirma Benedito, se referindo às transformações urbanas e climáticas da capital. Para se ter uma noção, a última vez em que os termômetros marcaram temperaturas negativas foi na década de 70, quando o frio chegou à casa dos três graus, conforme Rodrigo Marques, professor de Climatologia do Departamento de Geografia da UFMT, com doutorado em Meteorologia. Rodrigo relembra que, so7


mente a partir de 2009, Cuiabá começou a registrar temperaturas na casa dos 40 graus. Ele aponta para um gráfico em seu computador que indica que as temperaturas mínimas também estão aumentando, ou seja, comprovadamente está fazendo menos frio, como também lembram Benedito e Mirtes. A justificativa seria a de que Cuiabá cresce em um ritmo cada vez mais veloz. Atualmente, a capital possui mais de meio milhão de habitantes e, para onde se olha, há prédios sendo erguidos. As numerosas construções espalhadas pelo espaço urbano contribuem para o aumento significativo das temperaturas. O climatologista ressalta que a pressão imobiliária para diminuição do tamanho das áreas permeáveis também contribui para o aumento da temperatura. Hoje, os quintais estão cada vez menores, o que dificulta que as pessoas plantem árvores frondosas. A função da árvore, além da sombra, é infiltrar água da chuva no subsolo. “Cuiabá sempre foi quente. Desde quando se tem notícia dessa região. Desde os primeiros registros. O calor é natural. O que não é natural é essa troca da vegetação por concreto que teve. Tem terreno de cem metros quadrados. Você faz uma casa e sobra o quê de terreno? Esta é uma outra coisa que o poder público precisa pensar”, aponta o professor. A Lei n° 231 de 2011, que dispõe sobre o uso e ocupação do solo, destaca que o município deve criar áreas de uso comum para o povo, destinadas à implantação de praças e parques públicos, também denominados de espaço livre, sistema de lazer, praça ou área verde, com pelo menos 50% de sua área total com vegetação arbórea. No entanto, o que está na lei nem sempre é o que se vê na cidade. Doriane Azevedo, docente do curso de Arquitetura e Urbanismo na Faculdade de Arquitetura, Engenharia e Tecnologia (FAET) da UFMT, coordena desde 2009 o Grupo de Pesquisa e Extensão Estudos de Planejamento Urbano Regional (EPURA), onde são desenvolvidas análises críticas e propositivas, a fim de produzir políticas públicas. Ela percebe que Cuiabá não vem se estruturando urbanisticamente para lidar com esse clima. “Acumulamos um conjunto de equívocos que mostram que, de fato, Cuiabá não tem se preparado. Muito pelo contrário, tem se despreparado”. A pesquisadora se refere ao histórico de ações do poder público que vão na contramão de uma cidade mais sustentável, como a canalização de córregos, expansão da área urbana e o fato de que, em meados de 2012, Cuiabá quase permitiu que áreas de interesse ambiental fossem urbanizadas. Esses questionamentos são feitos em diversas pesquisas e artigos produzidos por Doriane, que ressaltam os erros cometidos pelas gestões de Cuiabá. Outro ponto debatido atualmente é o Plano Diretor de Desenvolvimento Estratégico, que deve ser alterado ainda em 2023 e cuja última edição é de 2007. A pesquisadora acredita que as questões climáticas devem sim ser abordadas no novo projeto, mas, se isso vai acontecer, ainda é incerto. 8 “Eles vão precisar de um salário muito bom. Só assim vão ter mais conforto. Vai ser um futuro muito cruel o que vamos enfrentar” - Mirtes Rondon


O sol não é o mesmo para todos Existe uma fábula da Grécia Antiga, do escritor Esopo, em que as rãs, ao saberem que o sol iria se casar, logo entraram em desespero. Presumiram que outros sóis nasceriam dessa união - dando um fim rápido e cruel à lagoa onde viviam. “Imaginem só: vários sóis a brilhar nos céus, a ressecar os campos! Adeus lagoas, adeus pântanos, adeus canaviais, adeus juncos! Nossa desgraça será completa!”, reclamavam em coro. Séculos depois, a história possui semelhanças com a Cuiabá do nosso tempo; o mesmo calor autoritário impõe sua vontade de cima para baixo e não liga para quem o sente queimando na pele. No entanto, assim que toca a superfície da terra, ele sabe onde esquentar, e os mais pobres não escapam desse mapa. São os mais afetados pela “ira” do sol, assim como as rãs. No artigo “Segregação espacial no município de Cuiabá: um olhar a partir da localização dos conjuntos habitacionais”, publicado em 2014 pela revista científica Humanidades em contexto, da UFMT, Vanessa Sampaio é enfática sobre a questão habitacional em Cuiabá. “A urbanização ao acentuar a questão habitacional forçou os trabalhadores a residir onde sua renda lhe permitisse, por isso as possibilidades de localização habitacional da população estão diretamente ligadas à renda familiar, o que explica o alarmante número de moradores vivendo em casas precárias”, afirma a pesquisadora. A capacidade de resposta à crise climática que acomete o planeta está diretamente relacionada à classe social de quem é afetado. “Os mais pobres são vulneráveis a esse tipo de evento. O tipo da casa não é o mais adequado, a maioria da população, às vezes, não tem nem acesso a uma casa com terreno”, aponta o professor Rodrigo Marques. Algumas vezes, não é nem tanto pelo calor em si, mas pelo tipo de construção que foi erguida, e que faz com que ele seja potencializado e fique mais quente ainda. As casas, nesses terrenos, são construídas dentro do possível, conforme o poder aquisitivo permite. No mesmo quintal, há várias famílias morando juntas. Isso faz com que todo o terreno seja impermeabilizado, ou seja, mais concreto em vez de árvores plantadas. Não há dúvidas de que o sol há de brilhar mais uma vez, e, agora, em dupla. Isso aflige Mirtes, que teme pelo futuro dos netos e bisnetos, em uma cidade cada vez mais quente. “Eles vão precisar de um salário muito bom. Só assim vão ter mais conforto. Não significa que vai ficar bom, mas vai amenizar. Vai ser um futuro muito cruel o que vamos enfrentar”. 9


MARIAS, MARIAS Todos conhecem uma Maria, ou vieram de uma. Como lembra Milton Nascimento, é “nome de quem possui uma estranha mania de ter fé na vida”. Algumas delas não tiveram a chance de contar a própria história, como aquela que ainda vive nos relatos que correm pela cidade. Outra organiza a tilho, 78 anos, nos recebe em sua casa. É uma residência típica cuiabana, com um pé de manga carregado, que dispensa apresentações. Mais alguns passos e estamos na sala de Dona Eugênia, diante de uma estante com muitos livros, porta-retratos espalhados pelo cômoMesmo com o mar no nome, construíram a vida nesta terra que nunca viu litoral Texto: Jorge Gabriel Amorim Foto: Ana Luiza Queiroz, Bianca Mortelaro e Emanuelle Caroline 10 vida e o passado de maneira distinta, busca, nos objetos, fragmentos da própria história. Uma delas está atenta à passagem do tempo e a registra nos livros que escreve. De laço na cabeça, bochechas rosadas de blush e calçando um sapato de salto baixo, Dona Eugênia de CasQUEM QUE ESSAS?


do e o tecido de chita estampando as capas das almofadas. Ela foi vizinha de uma personagem fundamental da cultura cuiabana, Maria Taquara, que ali viveu por volta de 1940, onde hoje fica localizado o shopping Goiabeiras, no bairro Santa Rosa. “Quando Maria Taquara chegou ali, eu tinha 11, 12 anos. Ela já era adulta. Assim, moça grande. Eu acho que ela já tinha uns 17 ou 20 anos, por aí. Quando a gente ia pra escola, minha irmã mais velha tomava a bênção dela. Eu falava: ‘o que é isso?’. Agora, ela viu a Maria Taquara no meu livro e comentou: ‘Eugênia do céu, mas cê homenageia essa mulher?’. Ela achou maravilhoso, mas ficou assim [espantada] porque morria de medo da Maria”, conta. De lavadeira durante o dia na região da Prainha até prostituta durante a noite, há também versões que a consideram “revolucionária”, por ter sido a primeira mulher a usar calças na região. Taquara não possui lugar certo na história cuiabana. “Ela ficou sozinha aqui. A mãe e a irmã foram embora, não quiseram ficar. Ela comprava o fumo dela, a comida, tudo que precisava. Não tá certa essa história que alguns contam que ela era puta. Ela nunca precisou de pedir um fundo de agulha para ninguém. Porque quando ela precisava, já arrumava um feixe de lenha e vendia lá no centro. Ela vivia do que ela fazia”, declara, em defesa de Maria. Após a morte do pai, Taquara, a mãe e a irmã vieram para Cuiabá em busca de uma vida melhor, com mais oportunidades. Desde que chegaram, se alojaram em um barraco de madeira onde hoje é o bairro Goiabeiras. No entanto, nem a mãe nem a irmã se adaptaram ao ambiente urbano, logo decidiram se mudar para a região de Livramento, conta Eugênia. Taquara decidiu ficar e viver sozinha aqui. Eugênia explica ainda que o termo “Taquara” veio da região do Taquaral, próxima ao distrito de Nossa Senhora da Guia, mais uma teoria para as possíveis origens de seu nome: “Ela falava que veio do Taquara. Por isso que começaram a chamá-la de Maria da Taquara. Na verdade, o nome era Maria Conceição”. Além de fumar, Taquara também gostava de tomar cachaça no Bar do Bugre, conta a ex-vizinha. Em uma dessas saídas para o bar, o que era para ser mais uma noite de lazer e descanso para Maria, se tornou, provavelmente, o momento mais emblemático do que se especula sobre sua vida. As calças “Numa dessas noites, acho que ela exagerou na quantia de bebida e a distância até a casa dela era grande. Então, ela atravessou a praça Alencastro e foi subindo a [avenida] Getúlio Vargas, carregando as sacolas dela. Ela viu que não dava mais para andar e sentou no degrau de um hotel que ficava por ali. Quando ela se sentou, acabou caindo de lado e ficou estirada ao chão”, relembra a ex-vizinha de Maria. Ainda nas memórias de Eugênia, Maria Taquara não menstruava, portanto, este era um dos motivos de não usar roupas íntimas por baixo dos vestidos. Na noite em que ficou deitada nas escadas do hotel, segundo 11


Eugênia, um vento forte estava vindo da direção da Prainha. Maria, aproveitando o sono induzido pelo álcool, não reparou que o vento “lambia sua pele”, como Eugênia registra no livro “Meu Gonçaleiro”. “E o vento levantou a saia dela. A parte de baixo tava tudo ao natural. E a roupa tudo virada pra cá [parte superior do corpo]. Foi quando os homens que moravam ali naquele hotel, gente chique, subiram lá e falaram para as esposas: ‘Cês não sabem o que tá lá embaixo! Eu quero que cês dê uma olhada’. As mulheres saíram lá na janela, olhou e [disseram] ‘Meu pai do céu!’. A mulher deitada nuzinho, com a perna bem esticada, não estava nem aí”, conta Eugênia. As mulheres teriam pedido que uma funcionária do hotel vestisse um par de calças nela. No outro dia, ao acordar, Maria juntou suas coisas e terminou de subir a avenida, vestindo as calças por baixo do vestido. Dali em diante, percebeu a praticidade da peça e resolveu adotá-la como parte de seu guarda-roupas. Maria MEU BEM Eugênia conta que um dia Maria lavava as roupas dos clientes nua, a fim de economizar as suas próprias roupas, talvez uma maneira de afugentar o calor cuiabano. Os rapazes que trabalhavam no batalhão próximo à casa de Maria passavam o dia a observá-la, à noite abandonavam seus postos para irem ao barraco dela. “Os soldados iam lá, sim. Largavam a arma, o posto e ficava com ela. Mas não é aquela soldadaiada igual eles falam. Ela nunca mexeu com o marido de ninguém. Nunca foi de dar muita confiança, assim”. Durante o dia, enquanto encarava o sol com uma trouxa de roupas na cabeça, sempre séria e de rosto rígido, os mesmos rapazes que se deitavam com ela zombavam de suas características físicas e do seu jeito de agir. “Um dia desses, com as roupas limpas e passadas na cabeça, ela disse aos meninos: ‘É! De dia, ‘Maria Taquara’, de noite, ‘Maria, Meu Bem!’”, conta Eugênia em meio a gargalhadas. “Eu acho que ela ia gostar da Cuiabá de hoje, assim como ela gostou da calça”. Não há registros sobre a morte de Maria Taquara. Eugênia acabou descobrindo, por um tio que morava na cidade à época, que Maria já estava velha, teria sido acometida por uma grave doença e foi encontrada morta em seu barraco. Maria era de Cuiabá, mas Cuiabá não era dela. Sobreviveu, a seu modo, em uma sociedade conservadora e elitista. Andou pelas ruas de Cuiabá e hoje tem uma praça pra chamar de sua. Porém, não há fotografias da sua pessoa e os boatos dão conta de uma mulher diferente da que Eugênia conheceu e defende. BAILES E PRATELEIRAS Um salto no tempo. Em uma pequena casa, no bairro Planalto, mora Maria Conceição Ramos, de 76 anos. Acometida pelo começo do mal de Alzheimer, ela vive entre passado, presente e esquecimento. Imagens de santos e anjos na sala de casa contrastam com sapinhos e galinhas de porcelana nas estantes, flores nas estampas do sofá e nos jarros dos cantos do cômodo. Porém, é no coração da casa (a cozinha) que ficam as joias de Maria Conceição. Reluzentes, de diferentes cores, tamanhos e formatos distintos, novas e antigas, são suas panelas, em muitas prateleiras. “Aqui tem panela de quando ela se casou com meu pai. Ela não deixa dar nenhuma”, conta Adenair Ramos, de 58 anos. Chamada carinhosamente de Tika, a primogênita de Conceição dedica os dias a cuidar da mãe que, devido aos problemas de saúde, não pode mais ficar sozinha. Somente as duas moram na casa. “Eu gosto das minhas panelas bem lavadas, bem areadas. Pode deixar que eu mesma lavo. Minha mãe me ensinou assim”, exclama Maria Conceição. Tika demora 15 dias para limpar e organizar tudo em seu devido 12


lugar: “Ela é assim, gosta das coisas dela limpas e forradas”. Em seis anos, Maria Conceição teve dois episódios de Acidente Vascular Cerebral (AVC), o que pode ter favorecido o início do mal de Alzheimer. “Ela é tudo pra mim! Vale por todos os filhos que eu não tive!”, relata Tika, que também cuidou do pai até o final da vida. A mãe é muito apegada a outros objetos espalhados pelos cômodos, coisas que foi juntando ao longo dos anos. Maria Conceição nasceu em Poxoréu (a 260km de Cuiabá) e passou a infância e juventude em Dom Aquino (a 170km de Cuiabá), depois se mudou para a capital mato- -grossense com a família, onde mora há mais de 50 anos. “Você era considerada a mulher mais bonita de Dom Aquino, né, fia?”. É como a filha, carinhosamente, chama a mãe. Conceição relembra que não gostava de Cuiabá quando chegou, porque tinha “muita gente”. Ela não abandonou a vaidade. Faz questão de manter as unhas grandes e vermelhas. “Desde que me entendo por gente, ela nunca teve unhas pequenas. Vermelho e café são as cores de esmalte preferidas dela”. A filha insiste para que a mãe fale sobre sua juventude namoradeira e de como conheceu Espedito, falecido marido e pai de seus nove filhos. Além dos filhos biológicos, Maria Conceição criou mais cinco. É avó de 28 e bisavó de 19. Nas palavras de Tika, a mãe era uma jovem muito bonita, “parecia uma cigana”. Quando jovem, fugia para os bailes e dançava a noite toda. “Não tinha hora pra voltar, não!”, relembra Conceição, com uma risada tímida. “Ela gostava muito de dançar. Conheceu papai em um baile”. Uma noite, Maria Conceição saiu para o baile (festa de santo). Ao chegar, avistou um músico que lhe roubou a atenção. Era Espedito. Entre um passo e outro, a troca de olhares entre os dois ficou intensa. Embora estivesse noivo, Espedito estava apaixonado por Conceição; separou-se da então noiva. Daí pra frente, foram 30 dias de namoro e 30 de noivado. Depois, o sim, que durou 30 anos. “Ela sempre conta essa história, e com gabo: ‘tomei mesmo ele da noiva!’”, diz a filha, entre risadas. Enquanto a primogênita costura as memórias da mãe, Maria Conceição concorda com as lembranças. Irmã mais velha de sete irmãos, Maria Conceição teve que parar os estudos para ajudar a cuidar dos irmãos. “Minhas tias veem nela uma mãe, porque ajudou a criar elas”. Mesmo com a memória lhe pregando peças, a filha conta que a mãe possui um mapa da casa na cabeça. “Quando ela vê uma vasilha dela na casa de alguém, ela já fala: ‘essa é lá de casa!’”. Além das inúmeras panelas, Maria Conceição tem baús espalhados pela casa, onde guarda fragmentos de toda uma vida. Sempre que possível os acessa e, de alguma maneira, rememora sua história. Ao sinal de que Tika irá se desfazer de algo, ela logo protesta: “O que é meu é meu, não vai jogar fora!”. paixão por cuiabá Em outro ponto da cidade, a quase 10km da casa de Conceição, no bairro Popular (próximo à Praça Popular), Maria Lygia Garcia já está na porta, à espera da entrevista e de companhia para um café da manhã. Ao telefone, ela não escondeu o espanto sobre o interesse de jovens estudantes em entrevistá-la: “Fiquei contente em saber que vocês queriam entrevistar uma pessoa da minha idade”. A conversa começa com ressalvas quanto aos cliques da câmera, mas logo ela se solta. Ainda no processo de marcar a entrevista, ressaltou que gosta de ser chamada de Maria Lygia, pois, não se escreve mais Lygia com y. “É nome de Lygia velha”, afirma entre risadas. No 15° andar, de um edifício aparentemente modesto, porém 13


suntuoso, fica o amplo e arejado apartamento de Maria Lygia. À mesa do café da manhã, o primeiro assunto é saudade, tema pelo qual demonstrou possuir vasto conhecimento, mas é também incisiva: “Não gosto de sentir saudade, dói fisicamente”. Apesar do tema denso, ela logo diz gostar de “fuzuê”, no “bom sentido”, como observa. Assim como Maria Conceição, Maria Lygia tem o passado e o presente pairando pelos móveis da casa. Na sala, uma cama, que dividiu por muitos anos com o falecido marido. Hoje, são os filhos e netos que se deitam nela após o almoço de domingo. Nas mesas de canto, pratarias bem polidas e reluzentes. A luz e o frescor da chuva do dia anterior invadem seu lar. Aos 16 anos, acompanhada da família, Maria Lygia percorreu os rios amazônicos até atracar na região do Porto, em Cuiabá, em meados dos anos 1940. Vivia na capital do Amazonas, Manaus. No entanto, a família sofreu dificuldades causadas pela eclosão da 2ª Guerra Mundial, daí vieram para Mato Grosso. “Quando cheguei aqui, tive a impressão de ter encontrado o paraíso”, relembra. Vivendo em Cuiabá, encontrou aquele que diz ter sido seu grande amor, José Garcia Neto, com quem foi casada por 63 anos. Acredita que a relação com Garcia foi proporcionada graças a uma força de atração na qual acredita veementemente: “Não foi amor à primeira vista, foi de muitas vistas”. José Garcia Neto foi prefeito de Cuiabá (1955), deputado federal (1966) e governador de Mato Grosso (1974). Sergipano, veio para Mato Grosso a serviço das obras do então interventor Júlio Muller. Maria Lygia se lembra do marido com saudade, o sentimento difícil. Outra paixão que encontrou em Cuiabá foi o artesanato. Ela foi uma das fundado - ras da Casa do Artesão, em 1975. No mesmo período, a ex-primeira-dama levou as peças produzidas pelas artesãs mato- -grossenses para grandes desfiles nacionais na cidade do Rio de Janeiro. “Eu queria que os costureiros famosos da época se animassem com as roupas que eu apresentei, e utilizassem as belezas daqui em suas produções. Não adiantou”. O carinho por Cuiabá é todo o tempo reafirmado por ela. “Eu amo Cuiabá não é à toa. Fui feliz aqui, como uma pessoa qualquer pode ser. Vivi meus dramas aqui, mas essa terra foi onde eu poderia viver melhor na vida”. Maria Lygia teve cinco filhos. Dois morreram, ainda na juventude. Ficou viúva há 14 anos. Do alto de seus 95 anos, assistiu as mutações pelas quais Cuiabá passou. A que mais lhe incomodou foi a destruição da antiga Catedral Basílica do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, em 1968, por bombas dinamites. Ali foi onde se casou, sob a benção do bispo Dom Aquino Correia. “Os altares onde rezávamos eram de ouro”, recorda. “Não sou uma pessimista, nem juíza das coisas que fazem. Faço a minha parte, aquilo que acho que devo fazer”, afirma, sobre as transformações de Cuiabá. Arremata sua posição com um trecho do poema “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, de Luís Vaz de Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda- -se o ser, muda-se a confiança; todo o Mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades”. Anda em passos ligeiros pela sala e também é rápida quando perguntada sobre o futuro. “O futuro é imprevisível, não acha?! Mas temos que ser otimistas”. Maria Lygia de Borges Garcia é mãe de cinco, avó de treze, bisavó de 22 e tataravó de um. Diz que agora os papéis se inverteram, ela é quem foge dos filhos para “aprontar”. “A gente envelhece e eles tratam a gente igual criança. Mas isso é sinal de cuidado”. *** Três Marias que brilharam em Cuiabá, que coexistiram e compõem uma mesma cidade, próximas e distantes, ao mesmo tempo. Mulheres que fazem suas histórias ecoarem pelo tempo e apesar dele. 14


Uma viagem de 20km, partindo do centro da capital mato-grossense, leva ao Pedra 90. Com mais de 100 mil habitantes e considerado um dos bairros mais populosos de Cuiabá, suas ruas carregam singularidades que já não existem nos grandes centros urbanos há muito tempo. É como se, naquele ambiente, o tempo tivesse feito uma pausa para permitir que as crianças continuassem brincando nas ruas e os vizinhos pudessem sentar na calçada para tomar um tereré. O barulho das buzinas, os latidos de cachorros, o lambadão ecoando nas caixas de som de várias lojas, misturados com as conversas paralelas dos vizinhos nas ruas, compõem a trilha sonora peculiar de um trânsito agitado, quase caótico, que dá as boas vindas a quem chega. Há várias versões que explicam como o bairro iniciou, mas a que mais se destaca é a de que tudo começou na década de 1990, quando algumas pessoas começaram a migrar para uma grande área rural, posteriormente parcelada em pequenos terrenos que foram ocupados, que serviu de moradia para pessoas em situação de vulnerabilidade e pouco poder aquisitivo. Texto: Stefani Fixina Foto: Emanuelly Santos e Stefani Fixina 15 Por muito tempo, o bairro foi marcado pela localização afastada da parte urbana da cidade, e o que era para ser apenas um lugar tão tão distante, se tornou único, independente e uma oportunidade de mudança de vida para muitos cuiabanos. Anos depois de sua fundação, em 2013, uma jovem empresária de 24 anos, Maiara Cristina Caprini, decidiu chamar o Pedra 90 de lar. Sua história como empreendedora começou quando ainda era adolescente e sonhava em ser uma profissional renomada. Após vários anos de experiência na área de manicure, ela viu nesse espaço populoso e multifacetado uma oportunidade de montar seu próprio negócio: um salão especializado em unhas. Quando cogitou mudar para lá, estava cheia de medos e receios. Na época, o bairro tinha a fama de ser violento e perigoso, mas o sonho de empreender fez com que ela olhasse além. Casada e mãe de três filhos, ela e a família arriscaram tudo e chegaram lá há quase 11 anos. “Eu sei que o Pedra 90 não é um bairro perfeito, mas eu amo morar aqui e é um ótimo lugar para se viver”, afirma Maiara, que viu sua esmalteria se consolidar. Semelhante à história da jovem, diversas outras pessoas têm enxergado no Pedra 90 uma oportunidade para empreender. A localização afastada tem sido uma das motivações para todo esse avanço. Os moradores não precisam mais se locomover para o centro da cidade, já que a principal avenida, a Av. Newton Rabello de Castro, é repleta de mercados, clínicas, lanchonetes, agências bancárias e outros serviços. Em uma visita ao bairro, é possível perceber comércios dos segmentos mais variados, suprindo várias das necessidades de seus moradores. QUEM QUE ESSE?


Mesmo com um crescimento econômico significativo, a comunidade continua abrigando uma parcela da população empobrecida de Cuiabá. O Pedra 90 ainda enfrenta problemas associados à vulnerabilidade social. Em 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) classificou o bairro como de renda baixa e de uma densidade demográfica média-alta, com a média de 28,77 a 57,39 habitantes por km². Nos jornais da cidade, violência e tráfico de drogas costumam enfatizar o estereótipo que há anos a periferia tem carregado: o de 16 ser um local completamente perigoso, quase desumanizado. Marcos Antônio, conhecido como Marcos Baiano, de 51 anos, atual presidente da Associação dos Moradores do bairro, explica que toda essa fama negativa existe desde sua fundação. “A falta de infraestrutura básica, como água, luz e saneamento levou a uma situação de necessidade entre os moradores. Não existiam casas de alvenaria, eram feitas de lona. A criminalidade realmente era alta, teve meses que morreram 12 pessoas por semana em brigas e conflitos”, relembra. Baiano recorda também que, naquela época, as pessoas se sentiam abandonadas pelo poder público e, muitas vezes, não tinham escolhas senão recorrer à violência para enfrentar as dificuldades do cotidiano. No entanto, ele e diversos membros da comunidade se empenham até hoje para mudar essa narrativa. Os desafios socioeconômicos enfrentados pela população têm atraído olhares políticos para o bairro, trazendo aos moradores a expectativa de que o crescimento continue, mas com melhores estatísticas de qualidade de vida. O início conturba-


17 do, os índices de pobreza e as associações à violência talvez tenham reforçado o imaginário de uma parcela dos cuiabanos de que o Pedra 90 não é um local bom para se viver. Quem vai em determinados horários do dia pode até estranhar o cheiro de lixo na praça principal, sinalizando que falta limpeza urbana mais eficaz nesta parte da cidade, pouco atrativa para quem não costuma andar por ali. No entanto, para os moradores, “Pedra 90, só vem quem aguenta” é mais do que uma frase rimada do senso comum, mais do que um local distante ou violento. É o cheiro, nas manhãs de domingo, atravessado pelo vai-e-vem da feira de rua do bairro, anunciando o pastel e a tapioca ficando prontos. É passar na rua 15 e sentir o odor de borracha característico da borracharia do Joilson. É poder comer um lanche, mistura de baguncinha e podrão, na praça à noite, a qualquer dia da semana, seguido de um clássico picolé da Sorvepic, tudo com preço acessível. Tem cheiros de casa, cenário de lar e uma promessa de dias melhores.


A iluminação é baixa. O aro meio torto, a tabela balança a cada impacto. O chão de cimento revela buracos. Algumas dezenas de pessoas aguardam para jogar. Além do barulho das bolas quicando e atingindo a tabela e o aro, também é possível ouvir algumas rimas de hip-hop emanando de uma caixa de som. Esse é o cenário de diversas quadras de basquete espalhadas pelas ruas Brasil afora, mas esta, em específico, se localiza na região do Coxipó, em Cuiabá, onde o projeto Mandy’s Basquete e Cultura de Rua se organiza atualmente. Ali, diversos moradores dos bairros da Zona Sul da cidade se reúnem para praticar o esporte que se tornou um sucesso na baixada cuiabana, promovendo uma cultura de inclusão, lazer e oportunidades. Criado em 2004 por um grupo de amigos apaixonados pelo basquete, o Mandy’s começou na quadra de um dos bairros mais populosos da capital mato-grossense, o Tijucal, JOVENS EM QUADRAS COMUNITÁRIAS PULANDO SONHAM EM CHEGAR AO BASQUETE PROFISSIONAL 18 CORRE DURO


com o objetivo de fomentar o esporte na região. Depois de o espaço ser depredado, o grupo se mudou para uma quadra, à primeira vista, inviável para a prática esportiva, localizada no bairro Vista Alegre. Com o esforço dos idealizadores houve uma reforma completa do projeto: “Não tinha tabela e nem aro, começamos aqui do zero. Revitalizamos toda a quadra, arrumamos ela e estamos aqui na correria”, conta Fred Antonio, de 35 anos, cofundador do projeto Mandy’s. Lance livre na madrugada Gildo Marques, aos 50 anos, é a prova viva de como as pessoas podem ser movidas pelo basquete. Motorista de ônibus em tempo integral, o cansaço do trabalho não impede que ele bata ponto na quadra do Coxipó quase que como um ritual: “é complicado auxiliar a vida pessoal com o esporte. Eu venho e jogo basquete nas minhas horas de folga, no tempo que sobra pra mim”, relata. Nem mesmo o horário tardio foi capaz de cessar o amor pela bola laranja: “Eu saía do serviço meia noite, duas da manhã. Eu ia para a beira da quadra aberta com a minha bolinha e começava a praticar”, afirma Gildo. Por conta do tempo curto, a organização do Corujão (programações realizadas no período da madrugada) durante os finais de semana e vésperas de feriado se torna cada vez mais comum entre os entusiastas do esporte: “A gente começa o Corujão depois das dez, onze horas da noite, e vai jogando até o sol amanhecer. Tinha o pessoal que trabalhava e que ia chegando lá pelas oito, nove horas da noite, e não conseguia jogar muito. Nós sentamos e conversamos: ‘o que acham de fazer um basquete até o amanhecer?’. E estamos aí”, conta Fred Antonio, responsável por muitas edições do Corujão em Cuiabá. Muito além da música que toca nas caixas de som, frequentadores da quadra do Coxipó incorporaram a cultura hip hop como parte da atividade esportiva: todas as quartas-feiras, a partir das 19 horas, são realizadas batalhas de rima no local. Mais do que um ambiente de socialização e projeção do esporte enquanto lazer, os moradores da periferia são incentivados a se manifestarem artisticamente por meio de versos e rimas. TEXTO: NATHÁLIA SHIZUKA E LUANA MOREIRA FOTO: LUANA MOREIRA E ARQUIVO PESSOAL OBSTáCULOS 19


DA RUA PARA O PROFISSIONAL Do outro lado da capital, também em uma quadra pública, outro grupo de jovens se reúne para jogar basquete. Há quase 20 anos, o bairro CPA se tornou mais uma casa do esporte na cidade. Atualmente, é a equipe KiModelo que domina as quadras da populosa região. A comunidade utiliza a praça diariamente para praticar o esporte. “A gente é como uma família, uma grande família”, conta Jorge Henrique, de 19 anos, com os olhos completamente vidrados no “bate bola” rolando em quadra. Jorge é “cria do CPA” e se apaixonou pelo esporte aos 12 anos. Junto com um amigo, era o mais novo durante as partidas e dedicava boa parte de seu dia para praticar o esporte. Agora, após se destacar na região com seu talento, Jorge se prepara com o objetivo de, em 2024, tentar uma vaga de bolsa para estudar no exterior. Outro prodígio cuiabano que iniciou nas praças da cidade é Gabriel Cardoso, 20 anos, que hoje atua no Botafogo, equipe do Rio de Janeiro com projeção nacional. Gabriel desenvolveu sua paixão pelas quadras no ensino médio, quando foi apresentado ao esporte no Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT), mas foi nas ruas de Cuiabá e Várzea Grande que o jovem aprimorou suas habilidades: “conheci o KiModelo, um dos maiores times adultos da época e evolui muito por ter 17 anos e estar entre jogadores com mais de 20 anos no esporte”, enfatiza. “o que me fez apaixonar foi a emoção do jogo” - Castelino Roberto 20


Ter em que se inspirar é essencial. Renata Giuni, de 34 anos, conta que sempre gostou de praticar esportes, mas não se arriscava no basquete por achar que a altura era uma barreira. Foi no Ginásio Aecim Tocantins, assistindo a um campeonato, que Renata se apaixonou pela modalidade, sobretudo ao ver que um dos jogadores que competia junto aos gigantes também tinha baixa estatura: “se esse cara consegue, eu também consigo!”, pensou à época. Atualmente, a poliatleta se tornou referência entre jovens e adultos na cena do esporte, principalmente, junto a praticantes do gênero feminino. Renata conta que, quando começou a jogar na praça do CPA 1, dividia a quadra primordialmente com homens. Hoje, o público alcançado é mais diverso. “Quando tem esses campeonatos em bairro e aparece uma menina jogando, começa a trocar uma ideia e conversar, e aí joga, assim como eu comecei”. Para Gabriela Arduini, de 26 anos, o basquete de rua mantém a prática de esportes viva em Cuiabá, porém, reconhece que ainda falta representatividade feminina nas quadras. Ela atribui essa dificuldade a um problema maior, no âmbito do estado, e que se agravou após o distanciamento social desde 2020. “Principalmente depois da pandemia, o número de meninas diminuiu bastante”, relembra a atleta. Outro apaixonado pela modalidade, Castelino Roberto, de 20 anos, é atleta universitário e destaca que, em 2019, durante as olimpíadas escolares, a emoção do jogo fez com que ele quisesse se aprimorar no esporte. “Eu vi o pessoal torcendo, vibrando, gritando, xingando a torcida rival. Aí eu falei: ‘eu vou ver, né?’. Fui lá. Era um jogo de basquete, uns caras dando a vida na quadra, exaustos já. O que me fez apaixonar foi a emoção do jogo, tá ligado?!”, ressalta. Castelino reconhece a importância de os jovens terem em quem se espelhar: “Eu acho que o Mandy’s está fazendo algo incrível, assim, porque eles estão no corre desde muitos anos, chamando os meninos da periferia para ensinar os valores do basquete mesmo. O time KiModelo também. Eles querem chamar as categorias de base sub-13, sub-14, sub-15 e sub-16 para participar de campeonatos, ajudar a molecada e continuar o legado deles”. Estimular a juventude é a possibilidade de manter o baquete vivo nas praças e quadras públicas dos bairros da Baixada Cuiabana. será que eu também consigo? 21


No céu, pipas de diversas cores dançam com o vento e indicam que o caminho logo chega. Foi também olhando para o alto, mais especificamente para o abrigo oferecido por uma caixa d’água, que surgiu, há 20 anos, o espaço que hoje abriga a única biblioteca comunitária da região do Coxipó, em Cuiabá-MT. Anseios que pareciam distantes, como sonho de criança, tornaram real o Centro de Cultura Popular (CCP) do bairro Parque Geórgia. Não é uma estrutura adequada às demandas do bairro, mas é um dos poucos espaços que promovem uma infância melhor. Localizado no cruzamento entre duas ruas, o portão aberto é convidativo e o local reúne algumas crianças e cachorros. O tempo passa, a criançada chega e todos estão prontos para uma nova oficina. A estrutura antiga mudou da caixa d’água para o que eles chamavam de barracão. Ficava onde deveria ser a praça do bairro, que nunca existiu, e evoluiu, ao longo dos anos, até se tornar um pequeno prédio construído por moradores e voluntários. Patrícia Dayane Acs, professora de português e uma das curadoras do CCP, integra o grupo que coordena as atividades do local desde 2013. O centro é aberto duas vezes por semana para os adultos semi- -alfabetizados terem aula, após uma demanda da própria população. Conforme a relação de escolas que ofertam Educação para Jovens e Adultos (EJA), feita pela Secretaria de Educação (Seduc) de Mato Grosso, o colégio mais próximo do Parque Geórgia é no Parque Cuiabá, bairro vizinho. “Então, nesse sentido é uma contribuição para a comunidade que é construída a partir da própria c o m u n i d a d e ” , ressalta Patrícia Acs sobre o espaço que atende tanto crianças que querem jogar bola quanto aqueles moradores que desejam retomar os estudos e aprender a ler e escrever. Centro de Cultura dribla condições precárias e marca gerações no Parque Geórgia 22 DIGORESTE Texto: Emanuelle Caroline Costa Foto: Iasmim Sousa


Isis Valentina Freitas Lopes, de apenas cinco anos, compõe a terceira geração que passa pelo Centro de Cultura. Rosilda Barbosa da Silva, avó de Isis, ajudou na construção do prédio que abriga hoje o espaço e viu Vanessa da Silva Freitas, mãe da menina, participar das primeiras atividades no local. A poucos metros dali, na casa de Rosilda, Vanessa fala com carinho sobre a infância que teve, graças ao CCP. “Na época, nem um barracão tinha, a gente só se reunia e, com o tempo, foi construindo a estrutura de madeira. A gente ia todo domingo, tomava o café da manhã e passava o dia brincando, tinha festival de pipa e aulas de percussão”, relembra a mãe de Isis. Faça chuva ou faça sol, Nicolly Gabrielly Ferreira Fernandes e Nicoly Rafaelly, de 13 e 14 anos respectivamente, saem do Coophema até o Parque Geórgia todo sábado por volta das 15h. Elas fazem o trajeto a pé, são cerca de 4km e 45 minutos de caminhada. As melhores amigas fazem tudo juntas, incluindo a ida ao Centro de Cultura, onde participam do grupo de percussão e da roda de conversa do projeto voltada para jovens mulheres, conhecida como “Roda das Minas”. Nicolly Gabrielly ressalta que não consegue ter, em outro lugar, as conversas que ela tem lá. Ali, as discussões giram em torno de racismo, gênero e classe. “Aqui eu discuto os temas que geralmente não são falados em casa. Depois eu pesquiso pra tentar entender e saber o que é. Aqui eu posso conversar sobre o que eu quiser”. Biblioteca Letra Livre Em um cômodo amplo, as paredes têm cor de creme e sustentam prateleiras de metal abarrotadas de livros que compõem a Biblioteca Letra Livre. Andressa Mendes a conheceu na época em que ainda ficava embaixo da caixa d’água. Passando por ali, a advogada de 29 anos começou a tecer um sonho: o de um dia poder contribuir com o desenvolvimento de uma biblioteca e apresentar para mais pessoas o sentimento de estar rodeada de livros. É o que conta em seu depoimento para o documentário “CCP doc 2021”, exibido na data da reinauguração da biblioteca, com direção de Sérvulo Castillo. Andressa foi a responsável por inscrever a biblioteca no edital do MT Nascentes, com a Lei Aldir Blanc (Lei Federal nº 14.017/2020), legislação brasileira criada em 2020 em resposta aos impactos da pandemia da Covid-19 no setor cultural do Brasil. Na revitalização, em outubro de 2020, Andressa alinhou o projeto com o consenso dos participantes e resultou em quatro partes: a revitalização da infraestrutura, não só da biblioteca como também do espaço em si, a arrecadação de livros, a entrega do documentário na reinauguração e as oficinas que seriam realizadas. Com cerca de três mil livros, a biblioteca abriga diversos exemplares da literatura mato-grossense doados pelo projeto LiteraMato, da Unemat, além de coleções infantis com temas voltados a debates raciais para crianças, livros que foram doados pela Casa das Pretas, em Cuiabá. Assim como a biblioteca Letra Livre foi a primeira experiência para Andressa, ela pode representar uma alternativa de infância para outros pequenos moradores do bairro, que encontram ali, no CCP, um espaço de acolhimento, lazer e cultura ainda não oferecido pelo poder público que as negligencia. 23


NHA CÁ Entre laços e cavalos De origem gaúcha, o Laço Comprido atravessa gerações em Mato Grosso 25 Texto: Aline Costa Foto: Aline Costa e acervo pessoal Ilustração: Bianca Mortelaro O sol está escaldante. É mais uma tarde tipicamente mato-grossense. Sentada sob sombra, ao lado vejo minha família. Em nossa frente há uma pista com areia, pronta para receber os competidores. O locutor narra as palavras tão freneticamente que é difícil entender. Até que, de repente, ouço um nome conhecido em meio às palavras rápidas e atropeladas. Adelar Costa, meu pai. Laçador e a pessoa por quem sou acostumada a torcer desde que me entendo por gente. Assim que o nome sai dos lábios do locutor, eu corro para a beira da cerca e aguardo, ignorando o sol. Alguns segundos depois, sai um boi de dentro dos bretes* e, logo atrás dele, correndo sobre um cavalo tordilho, está meu pai, girando um laço de oito metros sobre a cabeça. * Brete é um curral em formato de corredor, onde o gado espera ser solto, um por vez, para que o competidor tente laçá-lo. No laço comprido, há dois bretes, um no início da pista, para o boi ser solto, e outro, ao final da pista, para que o boi entre após a finalização da armada. DIGORESTE


Ele tem apenas 100m de distância para arremessar o laço e acertá-lo ao redor dos chifres do boi, se quiser continuar na competição. Meu coração acelera, eu estou esperando. Ele lança o laço… E acerta. O juiz levanta a bandeira vermelha e, antes que eu perceba, um grito já escapou da minha garganta. O boi, com o laço ao redor dos chifres, entra nos bretes no fim da pista e o cavaleiro precisa retornar ao brete inicial para que possa fazer sua próxima armada. Ele conduz seu cavalo no corredor anexo e, quando passa à nossa frente, sorri, acenando com a cabeça. A cena, que já se tornou tão comum na minha vida, faz parte da tradição de Paranatinga (a 380km de Cuiabá), e da vida dos mais de 50 laçadores da cidade. Grande parte dos competidores, assim como Adelar, de 58 anos, são homens que trabalham no campo, com gado, e que encontraram no laço comprido uma paixão e forma de lazer. Participar de provas de laço os leva a conhecer lugares, colecionar memórias, fazer amigos e a ter ali uma espécie de família, mesmo que nenhum deles faça disso sua forma de sustento. Em uma casa aos fundos do Parque de Exposições de Paranatinga mora João Batista Stefanes, um senhor que todos conhecem como Tita, e que relata ter 23 anos na idade do boi*. Ele chegou a Paranatinga em junho de 1983 e o esporte ainda não era praticado na cidade. A história de seu Tita com o laço comprido começou quando tinha 15 anos de idade, morava em Santa Catarina e tinha um tio que competia. Ao chegar à pequena cidade do interior de Mato Grosso, havia quem praticasse outros esportes com cavalos e bois em uma Pista no Parque de Exposições. Tentou, mas não gostou de nenhum deles. Junto a um amigo, decidiu praticar o esporte que mais gostava, o laço comprido, sem saber o peso que a prática teria mais de 30 anos depois. Ao se falar de laço comprido, um nome sempre é dito com reverência, admiração e agradecimento: Javet Marinho Ferreira. De acordo com informações da Prefeitura de Arapoti, no Paraná, ele chegou a Paranatinga no ano de 1987 e foi responsável pela fundação do Centro de Tradições Gaúchas (CTG) na cidade mato-grossense, local que passou a abrigar o esporte. A partir daí, viriam competições, inclusive em outros municípios, e a disputa sobre qual lugar teria os melhores laçadores. Javet não laçava ou praticava esportes com cavalos, mas foi um grande incentivador. João Batista relembra, com um sorriso no rosto, quando o paranaense o estimulou a ir para competições e treinos. *De acordo com seu João Batista, a idade do boi é ter a idade “zerada” ao se atingir 50 anos. Assim, dali em diante, um homem de 73 anos tem 23 na idade do boi. 26


27 Na vez do competidor, um boi é solto no início da Pista de Laço. O objetivo principal é acertar ao redor dos chifres do animal. Caso o laço pegue outras partes, como pernas, pescoço ou rabo, a pontuação é negativa. Assim que o bovino sai dos bretes, o competidor, montado no cavalo, deve sair correndo atrás, girando o laço acima da cabeça. O competidor tem 100 metros para lançar o laço. Como funciona? 1 2 3 “Ele não laçava, mas gostava. A gente saía laçando e ele ficava lá em cima gritando ‘joga, joga, joga’!”, recorda João Batista. Um tempo depois, o CTG fechou, mas isso não significou o fim do laço comprido. Entre os anos de 2000 e 2001, foi feita uma nova pista de laço no Parque de Exposições, local quepermanece recebendo diversos esportistas e a população. De lá para cá, o número de participantes aumentou e a prática se difundiu. Surgiram pistas criadas em propriedades de chacareiros e fazendeiros da região, com treinos que envolviam até apostas. O laçador que pontuasse menos, deveria pagar uma rodada de coca-cola aos vencedores, brincadeira que ficou tão comum que existe até hoje. Em uma chácara, não muito distante da cidade, onde nem há pista de laço, alguns garotos se reúnem em torno de uma moto em que está amarrado um boi confeccionado em madeira e couro. Assim foi a forma encontrada para treinar. Adelar Costa, vê neles o futuro do esporte. Rafaela Warmeling, laçadora experiente de 33 anos, também acredita que o esporte nunca vai deixar de existir: “O Laço Comprido em Paranatinga nunca vai acabar. Nós somos apaixonados e vamos lutar sempre pelo que a gente gosta”.


28 Cultura Gaúcha, não! Tradição de Paranatinga! De acordo com o documentário 70 Anos do Tiro de Laço e com informações da prefeitura de Esmeralda, no Rio Grande do Sul, foi lá a primeira prova de laço. Na cidade de Paranatinga, essa manifestação já foi incorporada como parte da cultura da cidade, praticada por gerações de famílias. Ela atrai também um público que vai apenas para apreciar as competições. Rafaela Warmeling, vem de uma família engajada no esporte. Seu pai e seu irmão mais velho eram laçadores e, aos seis anos de idade, ela começou laçando “vaquinhas paradas”, modalidade em que a criança laça um animal confeccionado em madeira. Hoje, ela vê isso como algo importante para sua cidade natal. “O esporte não só pode, mas deve ser considerado cultural dentro de Paranatinga. Ele significa entre nós uma união, um legado que vai sendo deixado de pai para filho”, afirma a laçadora. Casada há 11 anos com Lazaro Rodrigues, que também é laçador, ela tem dois filhos, ambos incentivados pelo casal no esporte. João Matheus, seu filho mais velho, tem nove anos e já compete nas provas infantis que envolvem animais de verdade. Mesmo sendo muito comum ver famílias torcendo umas pelas outras, as festas de laço não se limitam a isso. A popularidade das provas se tornou tão grande, que muitas pessoas comparecem apenas para acompanhar o esporte. A entrada no Parque de Exposições durante as festas é gratuita e qualquer pessoa pode prestigiar as provas. Jucineide Leite, de 38 anos, acompanha as competições há quatro, geralmente acompanhada por seu esposo e sua filha. Eles não têm familiares que participem das competições e o interesse é acompanhar a tradição, pois seu esposo já trabalhou em fazendas de gado. Apesar de gostar das festas, Jucineide sente falta de uma estrutura melhor para acomodar as pessoas e de uma frequência maior de festas no Parque de Exposições. Elielen Silva, professora, conheceu o laço comprido com o esposo, que é laçador. Seu filho mais velho, Gabriel, tem sete anos e, assim como o pai, participa das competições. Enquanto o filho galopa competindo, Elielen assiste de perto, receosa, sobretudo após um acidente em que Gabriel foi socorrido por uma ambulância, em 2022. Eles estavam em uma fazenda e, durante uma competição, o garoto caiu do cavalo, desmaiou e foi encaminhado ao hospital de Canarana-MT, cidade mais próxima. Ele ainda retornou para acompanhar o final da festa. “Hoje, a decisão de participar é dele, e ele ama!”, relata a professora.


29 Amazonas Se os homens são denominados cavaleiros, as mulheres são as amazonas. O número de inscritas na última edição da Copinha, competição anual de Paranatinga, revela que elas compuseram menos de 20% das participações. É comum ouvir que esse número é considerado “grande”, por ser maior do que alguns anos atrás. Ainda que estejam ocupando mais espaço, a quantidade de competidoras está longe de ser igual à dos homens. Rafaela Warmeling explica que as mulheres são, muitas vezes, responsáveis por suas famílias e seus filhos, o que dificulta ter tempo disA Copinha Em 2021, laçadores de Paranatinga fundaram a Associação de Laço Comprido (ALC). Com ela, foi criada a Copinha do Laço Comprido, para incentivar a participação de mais competidores. Ela funciona em várias etapas e, mesmo que a associação seja a responsável pela organização, cada etapa fica sob responsabilidade de um dos laçadores da região, que podem organizar a festa em suas pistas particulares ou no Parque de Exposições. A pontuação é cumulativa ao longo do ano e, após a última prova, os vencedores são nomeados. Adelar Costa, hoje vice-presidente da associação, foi um dos idealizadores da Copinha, aberta apenas para residentes da cidade de Paranatinga. Na competição, podem participar equipes de cinco pessoas e duplas, além da modalidade individual. No ano de 2023, a última etapa da Copinha ocorreu em agosto, com 12 equipes (10 masculinas e 2 femininas) e 70 pessoas inscritas. Crianças e amazonas contaram com premiações específicas. ponível para treinos e para aprimorar a habilidade no esporte. Além da sobrecarga com as tarefas de cuidado doméstico e familiar, muitas vezes não compartilhadas com os homens, grande parte dos praticantes do esporte na cidade já tem o laço como uma forma de serviço, nos campos, ao lidar com o gado, o que ajuda na habilidade com os animais. Muitas mulheres precisam começar do básico: aprender a andar a cavalo antes de adquirir habilidades para utilizar o laço. “Para a mulher é um tanto quanto demorada a evolução, não é algo que chega rápido”, explica a amazona. Rafaela não sentiu dificuldade em ser acolhida dentro do espaço pelas pessoas que praticam o esporte e, geralmente, recebe admiração por ser uma mulher que laça. No entanto, só o fato de a modalidade feminina ser denominada “laço perfumado” já revela muito sobre um olhar masculino sobre as competidoras. Laçadores de Paranatinga viajam a muitos lugares para competir, dentro e fora do estado. Mas é necessário possuir um cavalo, ter caminhões para transportar os animais e dispor dos valores de inscrição, o que faz com que o esporte ainda não seja acessível para todos.


AFETOS GUIADOS POR RÉDEAS Muito além da dimensão competitiva, o animal não é apenas objeto de montaria A conexão entre o cavalo e o homem é milenar, mas a forma como o hipismo se desenvolveu na sociedade ocidental demonstra mudanças intensas ao longo do tempo. Quando o uso dos cavalos passou a não mais se restringir para fins militares ou à vida no campo, no século XIX, iniciaram-se competições que envolviam o salto junto a esses animais. Em 1881, a Real Sociedade de Dublin, em Bell’s Bridge, desenvolveu o que ajudaria a servir de modelo para as competições de hipismo como conhecemos hoje. Eles criaram uma pista em que cavalo e cavaleiro tinham que superar quatro obstáculos. No início do século XX, o italiano Federico Caprilli, para quem o cavalo correria melhor quando tem mais liberdade de movimento e consegue estender o pescoço, avançou nas técnicas de saltos com cavalos e desenvolveu um método usado até hoje. Ele criou uma técnica conhecida como “assento adiantado”, para que o animal não sofresse com o puxar das rédeas, de forma que o cavaleiro pode saltar sentado, sem precisar se inclinar para trás. Não é tra a conexão entre animais e humanos é que cavalos são efetivamente considerados parte da equipe. O esporte envolve uma espécie de “arte equestre”, na qual se demonstra a beleza e a elegância do cavalo em movimento, podendo ser denominado de “Ballet Equino” ou “balé do hipismo”. Além de características comuns a outras práticas esportivas como disciplina, técnica e harmonia, a sintonia entre cavaleiro e o cavalo é decisiva e não pode contar com uma comunicação que envolva sons Texto: Amanda Wathier e Karine Arruda Foto: Amanda Wathier 30 à toa que Caprilli é considerado o pai da equitação moderna. Como esporte olímpico, o hipismo estreou em 1900, nos Jogos Olímpicos em Paris, com a prova de saltos, mas só retornou à competição em 1912, em Estocolmo. A categoria permanece até hoje, mas novas modalidades foram incluídas além dos saltos, como o adestramento e o concurso completo de equitação (CCE). Pode haver a disputa em provas mistas, ou seja, homens e mulheres concorrem em igualdade de condições. Nas Olimpíadas de Atlanta, em 1996, o Brasil conquistou duas medalhas de bronze na prova de saltos em equipes. A primeira medalha individual veio em Atenas, no ano de 2004, com o cavaleiro Rodrigo Pessoa, que conquistou a prata, mas acabou levando o ouro após a desclassificação do então vencedor. Um diferencial que demons- DISQUÊ


entre eles. Juízes avaliam aspectos como precisão, fluidez, postura e harmonia do conjunto, além da elegância das “figuras”, séries de movimentos predeterminados. Segundo a cartilha disponibilizada pelo Instituto de Pesquisa Inteligência Esportiva em parceria com o Ministério do Esporte, nos saltos, o competidor deve ter habilidade, sincronia e velocidade do conjunto para superar os obstáculos distribuídos pelo percurso, que podem variar em altura, largura e dificuldade. É necessário percorrer o circuito no menor tempo possível e os erros cometidos acrescentam tempo ao resultado final. Na prova individual, há três eliminatórias para chegar ao número de cavaleiros para a disputa das medalhas. Na prova por equipes, cada uma é formada por quatro conjuntos, e as oito melhores se classificam para a final. O Concurso Completo de Equitação (CCE) é composto por três provas diferentes (saltos, adestramento e Cross Country). Ele exige habilidade, resistência e a harmonia do conjunto. Nas provas de saltos e adestramento, é importante ter precisão, técnica e elegância ao superar os obstáculos e realizar os movimentos. Na prova de Cross Country, os conjuntos enfrentam um percurso com obstáculos na forma de elementos da natureza, como cercas, troncos de árvores, lagoas, barreira de pedras e outros, de modo a ser necessário ter velocidade, coragem e equilíbrio. Ela é a prova mais desafiadora e difícil do hipismo, podendo ser disputada individualmente ou por equipes. Atletas que competem nas provas de hipismo também precisam de preparos e cuidados tanto com o âmbito físico quanto com o mental. Habilidades motoras como flexibilidade e coordenação, além de boa resistência muscular nos membros inferiores, são desejáveis. Aquecimento e alongamento durante os treinos contribuem para criação de elasticidade muscular, maior relaxamento, aumento de mobilidade nas articulações, prevenção de possíveis lesões e melhoria na agilidade, entre outros benefícios. Uma vez que o cavalo é considerado tão atleta quanto o cavaleiro que o conduz, o animal necessita de cuidados e preparações específicas, começando pela alimentação. O hipismo é um esporte de muito impacto, por causa dos saltos, então os equinos devem ter uma boa estrutura óssea e biomecânica de musculatura. Por isso, os cavalos suplementam a alimentação para evitar lesões e a dieta varia de acordo com a necessidade de cada um, mas o instrutor da So- “Cair do cavalo faz parte, igual cair de bicicleta. Essas coisas acontecem, é igual brincar no parquinho.” - Elinalva Aparecida ciedade Hípica Cuiabana e presidente da Federação Hípica de Mato Grosso, Caio Paes, explica que geralmente eles comem um concentrado de ração, sal e aveia, ofertados em quantidades e em horários específicos. Outros cuidados são tomados com esses “atletas equinos”, como a manutenção odontológica a cada 90 dias e a manutenção de casco a cada 45 dias, assim como uma análise clínica a cada três meses. O hipismo também pode estimular a sociabilidade. Elinalva Aparecida Ferreira, avó da pequena Alice, de apenas 4 anos, conta que o esporte veio na hora certa para sua neta. Com apenas um ano de idade e em plena pandemia, Alice só tinha contato com quatro pessoas: seus 31


pais e avós. “Ela ficou sem contato com os parentes, primos, amigos. Não tinha parquinhos, pula-pula, não tinha nada. Ela não estava socializando, então nós ficamos preocupados”, lembra Elinalva. Pagode, ou Pagodinho, como chama Alice, é o cavalo que a acompanha em suas aulas. Com apenas dois anos de idade e ainda sem um equilíbrio completo em cima de Pagode, Alice já fazia suas primeiras aulas. Sem medo de deixar a neta praticar hipismo, Elinalva acredita que possíveis machucados fazem parte do aprendizado. “Cair do cavalo faz parte, igual cair de bicicleta. Essas coisas acontecem, é igual brincar no parquinho. Tudo corre risco”, diz. Agora, com apenas quatro anos, Alice já galopa, trota e já consegue dar todos os comandos para o cavalo. Já participa das competições internas e ganha medalhas. Tão jovem e pesando pouco mais de 15kg, ela ainda não está pronta para competir fora, mas pode ser apenas uma questão de tempo. “Ela faz outras atividades, além do hipismo: teatro, balé e gosta de nadar na escola. Nosso objetivo é que ela faça várias atividades, para, no futuro, escolher o que realmente vai querer fazer. São atividades para ela brincar, se divertir, mas que ajudam no desenvolvimento”, explica Elinalva Ferreira. Caio diz que esse esporte é um grande aliado no desenvolvimento de quem ainda está na infância e enfatiza que, diferentemente dos adultos, crianças são mais receptivas e flexíveis às orientações. Silvia Marangoni Fagundes, mãe de Isabele, de 11 anos, Melissa, com 8, e de Rafaela, de apenas 4, conta o esporte entrou na família há cinco anos, quando as filhas ganharam uma égua do pai e do avô. Apesar de morrer de medo de cavalos, Silvia entendeu que 32 as meninas deveriam aprender a lidar com o animal. “As meninas sempre foram muito apaixonadas pelo hipismo. A Isabele teve uma época que fazia balé e hipismo, e eu falei que ela teria que escolher uma modalidade. Ela sempre foi apaixonada por dança e eu nunca imaginei que ela escolheria o hipismo, até porque era muito recente. Ela disse ‘não, mamãe, eu quero o hipismo com certeza, eu abro mão do balé’. Desde então, ela segue com o hipismo e só deu uma pequena pausa durante a pandemia, mas, quando a hípica voltou, ela voltou junto”, destaca Fagundes. Tanto esforço e dedicação de Isabele renderam para ela, em 2022, o vice-campeonato estadual na categoria 0.40, isto é, com obstáculos cuja altura máxima é de 0,40m. No Campeonato Mato-Grossense de Escolas, Aspirantes, Jovens Cavaleiros A e B e Amadores B, Isabele disputou juntamente com o cavalo Pagode, o mesmo com que Alice faz as aulas.


Com tão pouca idade e já apaixonada pelo esporte, Isabele conta os dias para chegar sexta-feira, seu dia de aula. Ansiosa para saltar e realizar percursos, ela descreve a sua relação com seu cavalo, o Firme, que abriu caminho para que outros animais fizessem parte de sua vida. “Pra mim é muito bom, ele é sempre muito carinhoso comigo. Toda vez que eu chego, ele abre o olho e já fica atento, ele deixa eu fazer carinho nele, sempre no final da aula ele vem com a cabecinha dele e me dá um abracinho do jeito dele”, comenta Isabele. Diferente das provas internas, nas quais a família e o público ficam torcendo e conversando, no campeonato, quando é soprado o apito, o silêncio deve prevalecer. Isso se deve à concentração do conjunto. “Eu não achava que ia ganhar, tinham muitos competidores e muitas pessoas na minha categoria. Eu fiquei muito nervosa, mas eu sei que deu certo”, afirma Isabele sobre vice-campeonato de 2022. Melissa, a filha do meio, adquiriu maturidade e um comportamento mais respeitoso após praticar hipismo. “A Melissa sempre foi muito enérgica e a vontade dela tinha que prevalecer. Depois que ela começou com o hipismo, ela viu que tinha que respeitar o animal, respeitar os limites. Ela evoluiu demais. Ela aprendeu que não é só a vontade dela, e, sim, também a vontade do outro e esse outro era um animal, Considerado um dos esportes mais caros para se praticar, o hipismo exige uma série de condições. Apesar de algumas hípicas cobrarem somente um valor de mensalidade, disponibilizando, assim, o cavalo e os equipamentos necessários, ainda existem gastos extras, pois certas roupas e botas são exigidas para a prática esportiva. “Eu não acho caro, pelo benefício que faz. Mas depende muito, pois uma pessoa assalariada talvez não teria como fazer, é complicado. Ficaria quase 50% do salário comprometido”, diz a avó da pequena Alice. “Aqui na hípica, elas, a princípio, não precisavam ter nenhum equipamento, apenas a mensalidade. No início, eu não comprei, elas fizeram por meses com os equipamentos da hípica. Quando elas pegaram gosto pelo esporte, eu fui atrás dos materiais delas. O capacete é regulável, então, conforme o crescimento da criança, o capacete acompanha. Ele não é barato, mas, calculando o tempo de uso, vale a pena, pois ele cresce junto com a criança. O colete é dessa mesma forma e o chicote é independente”, afirma Silvia. Para quem quer praticar o esporte por conta própria, é preciso investir em cavalos de alto desempenho, treinamento especializado e cuidados adequados. É necessário dispor de um local apropriado para acomodar o animal. Com gastos tão altos e visando manter a qualidade da prática, o valor cobrado pelas hípicas não é acessível. que ela teria que dominar e ter carinho. Depois do hipismo, ela se tornou outra criança”, aponta Silvia Fagundes. Atividades junto a cavalos podem auxiliar em âmbitos como o desenvolvimento da coordenação motora, do equilíbrio, do ritmo, da postura e da resistência aeróbica. O hipismo ajuda na ativação e fortalecimento de muitos grupos musculares, existem ainda benefícios psicológicos, como redução de estresse e autoconfiança, algo já reconhecido também em práticas como a Equoterapia, que utiliza da conexão com os cavalos para promover confiança, bem-estar e equilíbrio, além de estimular funções neuromotoras, psicomotoras e neuropsíquicas. De acordo com a Associação Nacional de Equoterapia (ANDE-BRASIL), esse é um método terapêutico e educacional em que o cavalo é utilizado como agente reabilitador e promotor de ganhos físicos, psicológicos e educacionais. 33


Tem crianças nos terreiros: Texto: André Macedo, Cristina Silva e Maryelle Campos Foto: Bianca Mortelaro e Nathália Shizuka a continuidade de um legado ancestral “Eu quero doce Eu quero bala Eu quero mel pra passar na sua cara” 27 de setembro de 2023, dia de São Cosme e São Damião. Aos fundos da casa nº4 está o Centro Espírita Nossa Senhora do Carmo (CENSC), onde acontece a Festa dos Erês, espíritos de crianças na umbanda. Envolto com plantas medicinais, como espada-de-são-jorge, guiné, babosa e árvore-da-felicidade, um verdadeiro cenário de festa de aniversário infantil está sendo montado. Gilda Portela Rocha, Mãe de Santo e historiadora, tem 53 anos e organiza a recepção e decoração do espaço junto a seu companheiro, Dionildo Campos, e seus filhos de santo, vestidos com roupas brancas e guias no pescoço. O cheiro adocicado das guloseimas domina o ambiente e relembra a infância. Balões coloridos, pipoca, algodão-doce, suspiros, jujubas, bolos, brigadeiros, refrigerante, pirulitos, balinhas, maria-mole, pão de mel e todos os doces imagináveis estão em uma mesa e grudados na parede. Apesar do clima de brincadeira e da agitação das crianças, os doces são oferendas para os Erês. É uma


forma açucarada de receber o axé. “O açúcar é um elemento purificante”, explica em voz alta Giuliana Altimari, Mãe de Santo do Centro Espírita Santa Sara e São Francisco de Assis, para todas as pessoas ali presentes. Algumas orientações são dadas a quem vai consultar os Erês. O anúncio de que “não tem nenhuma restrição de perguntas” tira o receio de abordar assuntos “de adultos” diante de entidades infantis. Orando e cantando vários pontos (músicas) no ritmo dos atabaques, a gira começa. Quando as entidades chegam, é impossível não perceber. Cheios de energia, pulam felizes, riem, gargalham, falam alto, chupam a chupeta presa nas guias e começam a brincar. Cada Erê é único, com nome, história e jeito próprio de se comportar. Em menos de dez minutos, as músicas param, os atendimentos começam e as pessoas são chamadas pelo número da senha recebida. Enquanto isso, as crianças correm, gritam, brincam, conversam e se lambuzam com chatilly. É assim que elas tomam a benção e recebem proteção. Em um ritmo eufórico, voltam várias vezes aos Erês e gargalham das brincadeiras, o que desperta, desde a infância, a fé, o respeito e o conhecimento. A inocência delas faz com que o momento seja mágico, sem estigmas, transmitindo tranquilidade e alegria. É emocionante ver a empolgação no contato com entidades. As memórias da infância de Gilda em Torixoréu, cidade no Vale do Araguaia a cerca de 570km de Cuiabá, atravessam elementos culturais da religiosidade, principalmente a relação afetiva da mãe com os filhos nos momentos das festas e no ato de fazer o “pitu”, “que é aquela comida que você faz, aquele bolinho que você faz amassado. É uma prática familiar, de você pegar comida, amassar, é uma relação afetiva da comida da mãe com o filho, você amassa e dá na boca pra criança comer”, como explica a Mãe de Santo. Gilda aprendeu a rezar durante as novenas feitas em festas religiosas. São nove dias rezando o terço e, no último, é feita a comida para o santo padroeiro. Ela relembra a novena para São João Batista, quando, no último dia, é feita uma fogueira com distribuição de comida. Essas práticas são herança de seus avós. Na umbanda, criança é vida e renovação. Esses seres ainda em desenvolvimento são a continuidade da fé e da cultura, são o futuro materializado no presente. A vivência religiosa desde a infância garante que novos aprendizados estejam sendo construídos e que o terreiro continuará


existindo. Para elas, o aprendizado ocorre de modo diferente ao dos adultos. Brincando, entram em contato com ensinamentos umbandistas e, no cotidiano, veem tudo com espontaneidade, sem preconceitos. Caminho espiritual lúdico Paola Altimari Silva, 11 anos, filha única, adora séries da Netflix e o mundo mágico de Harry Potter. Apesar de ser batizada na Igreja Católica, ela se identifica como umbandista. Filha de Giuliana Altimari, a menina não lembra exatamente quando começou sua iniciação no terreiro de umbanda. Porém, segundo sua mãe, já frequentava as giras ainda na barriga. Muitas vezes, quando sua mãe estava em atendimento, ela, ainda sem entender, observava curiosamente. Com 8 anos de idade, Paola teve sua primeira manifestação espiritual sensitiva. Desde então, já participou de trabalhos na mata e na cachoeira, viu oferendas e já ajuda na decoração de festas de santo. As práticas ritualísticas são parte de sua história de vida antes mesmo da sua chegada ao mundo. Paola é uma criança com uma percepção e sensibilidade muito lapidada para sua idade, com pensamentos e atitudes consideradas mais maduras. Em um primeiro momento, é tímida. Mas, dentro do terreiro, traz para si todo o conhecimento adquirido com suas vivências, repassando seus ensinamentos sobre amuletos, banhos, velas e entidades. Para ela, terreiro é lugar de amparo e suporte espiritual, assim como parte de sua família. Na escola, seus amigos sabem que é umbandista e respeitam sua fé. Junto de sua mãe, ela auxilia na confecção de produtos religiosos e artesanais vendidos em uma loja na qual produz guias espirituais, incensos, banhos e velas. Paola conta que aprendeu a fazer as guias com sua mãe desde muito pequena e não se recorda exatamente quando começou. “Terreiro é um lugar onde a gente pode encontrar uma religião, uma fé, um lugar para você evoluir. Eu tento ajudar as pessoas que entram no terreiro. No dia do meu batizado, foi bem legal, outras crianças também batizaram no mesmo dia. Eu fui batizada duas vezes”, relata Paola. A mãe explica que ela quis ser batizada por Ogum, o Orixá que recebe a grande devoção da menina. Para Paola, a rotina e os preparativos nos dias de gira não fazem de sua infância diferente da experimentada por outras crianças. “Normalmente eu entro no passe para conversar com a Vó Nina, entidade da linha dos Pretos-Velhos”, conta, explicando que também gosta de cantar alguns pontos. João Victor Penna Lesco, 16 anos, frequenta o terreiro às quartas-feiras desde os seis anos e assiste aos trabalhos da sua mãe, Anita Teixeira Penna, tomando bênção dos Pretos-Velhos e recebendo orientações. Lá, aprendeu a tocar atabaque, sendo também cambone das entidades “Vó Nina” e “Vô Joaquim”. Sensibilizado pelo pertencimento ao terreiro, sempre participa da gira, auxiliando recém-chegados nas consultas espirituais. Além dos pontos que aprendeu na casa, buscou aulas na internet de outros pontos cantados e procura aprimorar novos toques. João Victor se iniciou com a entidade Vó Maria José Matos, do Centro Espírita Pai Jeremias, e hoje é ogã oficial (médium responsável pelo canto e pelo toque) do Centro Espírita Nossa Senhora do Carmo. Recentemente, participando dos trabalhos na mata, ele usou um timbal (modelo de tambor) e ficou tão encantado com a sonoridade do instrumento, que sua mãe lhe deu um de presente de aniversário durante uma gira.


Giuliana Altimari um elemento purificante. açucar é O O adolescente conversa naturalmente com o Preto-Velho Vô Joaquim das Cachoeiras (entidade da sua mãe) no terreiro ou em sua casa, buscando orientação e acompanhamento das coisas de seu cotidiano. Vô Joaquim está sempre perto, basta pensar ou chamar por ele, que vem ajudar. Quando fica angustiado, deita a cabeça no colo da mãe incorporada e desaba no choro, se recompõe e segue em frente após o desabafo feito em segurança. Hoje, João Vitor tem a sensibilidade mais aflorada do que no início, vê e sente as energias, é apaixonado pela religião. A pequena Helena Santana da Costa, 11 anos, quando veio ao terreiro pela primeira vez, manifestou imediata identificação e sentimento de pertencimento. Emocionada, chorou ao conversar com os Pretos-Velhos. Em lágrimas, pediu à mãe para que frequentasse o terreiro e quis ser batizada desde o primeiro dia. Foi amor à primeira visita. Normalmente, as crianças são levadas pelos pais ao terreiro, mas, no caso de Helena, foi ela quem levou sua mãe, Janaina Santana da Costa Prado, atualmente médium do CENSC, que frequentam toda quarta-feira. Quando ela chega ao espaço sagrado, tira os sapatos, bate a cabeça no altar e toma benção de todos os trabalhadores presentes. Ela se entrega na gira, mesmo com tão pouca idade. A mãe, de frequentadora, tornou-se trabalhadora e já está incorporando e atendendo. Valentina Vannucci Vieira Untar veio ao CENSC com um ano e meio. Atualmente com 7 anos, é encantada pela entidade Rosa Caveira e por Xangô. Já dançou junto com sua amiga Paola na festa cigana. O batizado foi uma escolha sua, assim como o uso do escapulário de Xangô e da guia de Iemanjá. Ela adora conversar com Vó Sebastiana, guia de sua mãe, Tahirih Claussen Vannucci Untar, médium do centro. Em seu próximo aniversário, Valentina quer que a festa seja feita no terreiro e diz que vai pedir autorização à Rosa Caveira para fazer dela o seu tema de aniversário. Os costumes e práticas umbandistas são parte da vida familiar, afetam suas vivências culturais. A mãe de Valentina relata que ela sempre saúda as entidades ao passar em frente ao cemitério, como uma demonstração de respeito e aprendizado religioso. Gilda relata que uma criança com transtorno do espectro autista (TEA) frequenta o terreiro há algum tempo. “Ele pede à sua mãe para trazê-lo até aqui. Ele chega, olha tudo “ 37


36 atentamente, presta atenção nas imagens, nos cantos, nos movimentos dos corpos e nas palmas. Aqui, ele se sente em casa e em paz”, detalha a Mãe de Santo. Ela fala também de outro menino que, numa ocasião, enquanto brincava com as demais crianças, imitava com gestos e articulava como se estivesse incorporado. Colocou a guia no pescoço, fechou os olhinhos e brincava de ser 38 um Preto-Velho. As crianças olham com inocência e simplicidade para os terreiros, ansiosas por aprender tudo o que ali se manifesta. Em breve, multiplicarão esses conhecimentos e vivências em espaços mais distantes, ajudando a quebrar preconceitos que nossa sociedade ainda alimenta sobre religiões de matriz africana.


Ao entrar, ao lado do portão da casa, há um grande vaso de barro com água. Todos os filhos de santo, inclusive as crianças, ao chegarem, pegam uma caneca branca de uso coletivo e a enchem com o líquido sagrado. Então, ela é elevada ao topo da cabeça em um movimento circular, seguido pela ida até a rua para jogar aquela água em quatro cantos. Cada canto remete aos elementos naturais: água, ar, terra e fogo. Ao jogar a água, os caminhos são acalmados. Essa é uma forma de pedir licença e dizer que chegou ao seu ambiente sagrado, o centro cultural Ilè Okowoò Asè Iyá Lomin’ Osà. No entanto, esse não é o único rito de entrada. Antes de fazer qualquer atividade ali, é preciso se limpar. Então, o Omieró, um banho de folhas, é tomado, assim como as roupas são trocadas pelas de cor branca. O banho, por sua vez, é feito por um filho da casa que se prepara para ser o Senhor das Ervas. Ele coleta e amassa as folhas em um pilão para tirar seu sumo, o “sangue verde”. Ilè Okowoò Asè Iyá Lomin’ Osà, em iorubá, significa “casa de Oxóssi e Senhoras das águas doces e salgadas”. Donas da casa, as senhoras são as Orixás Oxum e Iemanjá. Já Oxóssi é o rei da nação Ketú. Localizada no bairro Parque Universitário, em Cuiabá, sua existência ainda é nova. O Ilè (casa) foi fundado há 13 anos pelo Babalorixá e professor de História João Bosco da Silva, ou Pai Bosco, de 59 anos, que tem como Orixá de cabeça o rei Xangô, o senhor da justiça, que é também o patrono da casa. No final de 2015, Pai Bosco reinaugurou o Ilè Okowoò Asè Iyá Lomin’ Osà, que passou um tempo fechado. Nessa reinauguração, começaram os preparativos da feitura de santo de alguns irmãos e, nesse barco (grupo de pessoas que fazem a iniciação juntas), no dia 4 de janeiro de 2016, estava a pequena Anna Beatriz Lima da Silva, de apenas oito meses. Apesar de iniciada recém-nascida, ela “frequenta” o terreiro há mais tempo, desde o ventre de sua mãe. Cristina Susana da Silva, 51 anos, nascida e criada em Cuiabá e professora de Língua Portuguesa, mais conhecida como Mãe Suzy, explica que a vivência de Anna Beatriz no terreiro é “desde sempre”. “Quando eu soube que estava grávida, depois de ir ao médico, eu vim até aqui… bati paó, pedi pras yabás que eu queria esse presente, que elas me ajudassem, ajudassem o meu corpo a conseguir ficar com o bebê. Fiz todo o repouso, tomei todos os remédios, fiz todo o ritual, fiz oferenda pra Oxum, fiz oferenda pra Iemanjá, porque eu queria esse bebê. Eu sabia que era um presente de Orixá. Então, a Anna Beatriz sempre foi do terreiro”, afirma. Dentro do ilè, a iniciação das crianças é a mesma que a dos adultos: “Não há nenhuma diferença. A criança é uma criança, mas ela é um iaô. A mesma ritualística que um adulto passa, ela passa. O que pode mudar é o recolhimento dela: o pai e a mãe podem acompanhar, mesmo não sendo iniciados, observando tudo o que o babalorixá está fazendo, mas não recolher-se dentro do ambiente sagrado. A iniciação é a morte para o mundo físico, o nascimento para o mundo espiritual. Não é um batismo. É encontrar com a ancesLaroyê, Exu! Exu é Mojubá!


ele não vai punir. Para começar, na nossa religião não se tem a punição, não tem essa conotação de acertos e erros. Tem a conotação de você fazer consciente ou não”, explica o babalorixá Pai Bosco. Como filha de Orixá, Anna Beatriz diz que ser do candomblé é fazer parte de um ciclo: “É como o xirê, é o círculo, e a gente não pode desmembrar o círculo. Eu comecei com oito meses, e esse círculo irá até eu receber meu cargo dentro da casa, quando eu for maior de idade”. O referido cargo é recebido após passar pela obrigação dos sete anos. Porém, dentro do Ilè Okowoò Asè Iyá Lomin’ Osà, crianças não são instituídas com um cargo ou posto. “A partir do momento que ela toma a obrigação de sete anos, ele passa a ser o mais velho dentro da casa. O mais velho pode ter posto, pode auxiliar o babalorixá em algumas funções. Mas, na minha casa, isto é uma posição minha: eu não dou um posto para uma criança, para respeitar a idade dela. A criança tem que viver como criança, crescer como criança. Depois que a gente perceber que ela cresceu, cronologicamente, aí sim ela vai ter responsabilidades maiores, porque o posto requer responsabilidades, requer ser chamado de ‘senhor’ e ‘senhora’ o tempo todo. Então, é preciso ter bom senso. A Anna Beatriz, por exemplo, já é uma adulta dentro do candomblé, ela já deu obrigação de sete anos, mas chamá-la de ‘senhora’? Qual a lógica disso? Então, deixa ela viver como criança. No momento adequado, que ela crescer cronologicamente e também crescer na condição de ebomi, aí sim a gente pensa num posto, através do jogo de búzios”, ressalta Pai Bosco. Caminhos de axé O candomblé de nação Ketú é uma vertente que dá continuidade à cultura do povo iorubano, cultuando as divindades denominadas Orixás e utilizando a língua iorubá. Além dela, existem a nação de Angola e a nação Jeje, em que tudo é diferente, inclusive as divindades. Na nação de Angola não existem Orixás, mas Inquices, enquanto na nação de Jeje são Voduns. Pai Bosco explica que são formas de cultuar, crer e louvar totalmente distintas umas das outras. Isso é consequência do processo de escravização de pessoas negras que vieram de vários países do continente africano ao Brasil, com crenças e tradições distintas entre si. Ainda que possam existir dentro de uma mesma vertente, os terreiros possuem suas especificidades. Cada um é uma unidade e funciona de uma forma única, com suas regras, geografia sagrada, dias específicos de função, dias de aprendizado, divindades cultuadas, ritos, fundamentos, itans (histórias e feitos de cada Orixá), orins (músicas para Orixás) e assentamentos (pontos fixos de culto) em que se materializa o Orixá, por meio de artefatos que remetem à divindade. Há também diversidade na forma de organização e nas relações construídas dentro dos terreiros, definidas pela condução da Mãe ou do Pai de Santo. Fundado no século XIX, pelas mulheres negras que tentavam encontrar conforto diante da opressão e da injustiça da escravização, o candomblé nasceu na Bahia como resistência ao sistema que tomava seus filhos e separava famílias. São as mulheres que têm funções primordiais dentro do terreiro, ocupando posições de destaque. Pai Bosco afirma que, sem essa presença feminina, não existe candomblé, já que são elas as mães ancestrais. Na estrutura hierárquica, há papéis atribuídos por gênero e idade de santo, as relações têm como termos principais aqueles que geralmente usamos para falar de família (pais, mães, irmãs e irmãos). Somente após cum-


prir a obrigação de sete anos é que a pessoa iniciada pode receber um cargo, sendo ele quem define a forma de chamamento. As ekedes, cargo dado às mulheres que não entram em transe, são chamadas de mães e os ogãs, cargo dado aos homens que não entram em transe e tocam os atabaques para invocar Orixás, são os pais. Mãe Suzy é uma das ekedes da casa e tem Oxum como Orixá de cabeça. Ela ajudou seu irmão consanguíneo (e de santo), Pai Bosco, a abrir a casa Ilè Okowoò Asè Iyá Lomin’ Osà. Nela, além dos afazeres como ekede, ela é uma das responsáveis pelos ensinamentos do candomblé às crianças, por meio de brincadeiras e atividades lúdicas. Para as ekedes, o processo de aprendizagem das funções que vão desenvolver dentro do terreiro é como se fosse um grande curso intensivo. “A gente começa a aprender a partir do momento que a gente é confirmado. Isso aqui é tal coisa, isso é assim, acorda Orixá assim, dança com Orixá desse jeito, é tudo um intensivão, na realidade. Na espiritualidade, as ekedes já nascem predispostas a essa missão. Então, o aprendizado tem que ser para ontem”, afirma Mãe Suzy. Dentro de um terreiro, além da hierarquia, há também diversas funções individuais e coletivas. Uma dessas funções é a de iamorô, que é a mulher responsável pelo Ipadê de Exu, mãe dos fundamentos. Uma das iamorôs da casa é Paloma, filha de Oyá, para quem os filhos da Orixá são explosivos e muito verdadeiros. O senso de coletividade e fraternidade presente entre os filhos de axé é alimentado pelos estudos que Pai Bosco conduz aos sábados: além dos fundamentos da religião, o porquê de cada coisa, eles aprendem a se defender, a saber lutar, não no sentido literal da palavra, mas lutar com argumentos que possam defendê-los dos preconceitos da sociedade. Além dos estudos formais, são considerados também os conhecimentos que emergem no próprio corpo, como acontece com Anna Beatriz. Para ela, a ancestralidade está ligada a tudo o que sente manifestado em seu corpo: “Além dos meus antepassados, a ancestralidade são os Orixás e como eles se manifestam no meu corpo. É acreditar na minha fé”. Dentro do terreiro, o nascimento de uma criança significa renovação, a preparação e a preocupação com o futuro do candomblé: “[...] É isso, não tem outra coisa a não ser a preparação para aqueles que vão assumir, um dia, uma casa de candomblé, aqueles que vão ser os herdeiros e as herdeiras do axé. Não tem outro significado mais rico e mais importante do que aqueles e aquelas que estão se preparando para assumirem o compromisso de continuar louvando os Orixás e lutando por uma sociedade justa, fraterna, feliz… que é o que todo candomblecista deveria ser. As crianças são a continuidade da existência e da resistência do candomblé”, conclui o babalorixá Pai Bosco.


“Olha só como Deus é bom Confortou meu coração Minha vida é brincadeira Me fez um capoeira Agora só posso me orgulhar Pois não me canso de cantar” (Música: Você disse um dia, Capoeira Brasil) É no comecinho da noite que a roda inicia. O corpo arrepia apenas com o toque do berimbau, músicas cantadas e palmas ritmadas. O movimento dos corpos e dos instrumentos ajuda a mergulhar na ancestralidade. Expressão cultural brasileira, a capoeira combina elementos de dança, música e luta. As raízes remontam ao período colonial do Brasil, época em que era praticada como forma de resistência nas senzalas. A princípio, era proibida e considerada como ato criminoso, mas, ao longo do tempo, teve reconhecimento por parte de diversos setores sociais. Desde 2013, a capoeira é considerada Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Dentre os diversos grupos e mestres que mantêm viva essa tradição em Mato Grosso, está a professora de Educação Física Ketlyn Inaiá Pereira de Almeida, conhecida como Dandara, de 22 anos. “Iniciei na capoeira em 2013, no programa Mais Educação, na Escola Darcy Ribeiro. O mesmo grupo que dava aula na escola, tinha uma academia [local de treino de capoeira] no bairro, então fui treinar com eles, onde até então eu só frequentava para participar de apresentações de dança”, explica a capoeirista. Há um consenso de que a capoeira promove desenvolvimento físico e social, equilíbrio emocional, respeito, disciplina e habilidades que envolvem o trabalho em equipe. No entanto, sua presença pode ser tão significativa a ponto de CAPOEIRA É TUDO QUE A BOCA COME Texto: Carol Martins, Emanuelly Santos e Mirian Graça Foto: Carol Martins CORRE DURO 45


VOCÊ DISSE UM DIA CAPOEIRA BRASIL direcionar importantes decisões, como foi o caso de Ketlyn, para quem o esporte foi determinante para cursar educação física. “Aprendi sobre hierarquia, empatia e amizade. Aprendi muito sobre minha história enquanto mulher negra, a ensinar, e que não pode existir a prática pela prática. Muitas pessoas morreram para que pudéssemos desfrutar da capoeira enquanto manifestação, então tudo tem um significado”, aponta ela. De modo semelhante a Ketlyn, Visquival de Campos Martins, que prefere ser chamado de “mestre Visk”, nutre um sentimento de pertencimento e gratidão à luta. Nascido no dia do capoeirista, 3 de agosto, ele coordena o tradicional grupo Capoeira Vip, que existe há 17 anos e promove rodas em frente à Escola Estadual Liceu Cuiabano Maria de Arruda Müller, todas as sextas-feiras, às 19h30. O esporte também se destaca como um espaço de sociabilidade e de construção de um senso 46


“Agora só posso me orgulhar Pois não me canso de cantar” comunitário. As rodas proporcionam um ambiente acolhedor e inclusivo, onde os participantes podem estabelecer novas amizades e conexões com pessoas de diferentes bairros. Através do convívio durante as aulas e eventos, os capoeiristas têm a oportunidade de compartilhar experiências, trocar conhecimentos e construir laços de solidariedade. É isso que acontece nas aulas do mestre Visk, em que a roda desenhada no chão conta com alunos vindos de vários bairros da capital. “Aqui, nós temos pessoas dos bairros Primeiro de Março, Baú, Jardim Industriário, Pedra 90, CPA, Dom Aquino, Tijucal e até mesmo de Tangará da Serra”, comenta sobre a diversidade dos integrantes. Além de movimentos físicos, a capoeira também é uma manifestação de almas, fonte de energia positiva e uma forma de se conectar com a própria essência. Ewerton Aparecido Salgado, conhecido como mestre Weto, é o atual presidente da Federação Mato-grossense de Capoeira (FMTC). Ele conta que seu primeiro contato com o esporte aconteceu aos cinco anos de idade, no grupo Roda Viva, com o professor Bozó. “Capoeira é tudo que a boca come, é vida, emoção, sentimento, dança, luta e está enraizada na nossa cultura brasileira”, relata o mestre. Para algumas pessoas, assim como mestre Weto, a capoei47


48 ra é uma forma de distração para os problemas, pois, durante a roda, o foco está nos movimentos, na música e performance. Isso ajuda a afastar a mente dos contratempos cotidianos, proporcionando um momento de descontração e alívio do estresse. Além disso, pode ajudar na reabilitação física e emocional, promovendo o fortalecimento muscular, a coordenação motora e o equilíbrio. “Eu tenho osteoartrose [doença articular] nos dois joelhos, duas hérnias de disco, cinco pinos no cotovelo direito e outras coisas que se manifestam no corpo. Mas, quando entro na roda, eu acabo esquecendo tudo, não tenho nada, parece que estou curado e não tenho dor nenhuma”, afirma. Mesmo diante de sua trajetória na história do Brasil, a capoeira enfrenta desafios significativos em sua valorização como esporte. Muitas vezes, não tem a visibilidade necessária, que deveria partir dos meios de comunicação e de políticas públicas governamentais. Atualmente, mestre Weto coordena o grupo Roda Aruandê, que funciona no 3º Batalhão da Polícia Militar de Mato Grosso, na região do CPA, onde a roda acontece às segundas, quartas, quintas e sábados, às 19h30. Mestre Weto pontua sobre o desejo de levar sua roda para os campeonatos. “O maior desafio para a capoeira, como esporte, é [a falta de] valorização. Vamos continuar lutando até que é estar nas Olimpíadas, no Pan- -Americano. Estamos conversando para colocá-la nos Jogos Escolares, dentro das escolas municipais, estaduais, federais, estaduais e nas privadas”, ressalta. Poucas competições são transmitidas ou divulgadas na mídia, o que limita a exposição e o reconhecimento da modalidade, afetando a possibilidade de patrocínios e apoio financeiro por parte de empresas. Isso dificulta o desenvolvimento e a profissionalização dos praticantes. Lorrainy Luisa Noeli Campos tem 31 anos e reclama sobre a ausência de campeonatos. “Faltam campeonatos, a capoeira deveria ser olímpica. Acho que falta participação do governo, para que o esporte seja mais valorizado”, reivindica. Campeonatos e eventos Em âmbito estadual, apenas em janeiro de 2023 aconteceu o 1º Open Mato-Grossense de Capoeira. O evento, reconhecido no mundo todo, aconteceu no Ginásio Aecim Tocantins, em Cuiabá, e foi organizado pelo Instituto Semente Brasil, em conjunto com a Federação Mato-Grossense de Capoeira e apoio da Secretaria de Estado de Cultura, Esporte e Lazer (Secel- -MT). Outros campeonatos como o Open Aruandê, a Copa Nortão, a Volta ao Mundo Bambas, o Red Bull Paranauê e o World Cup Capoeira também têm ganhado visibilidade, ampliando as fronteiras da capoeira como esporte e o seu significado na vida de capoeiristas, além de também valorizar a trajetória histórica dessa manifestação longeva.


Deixar a faculdade para realizar um sonho pode parecer loucura à primeira vista, mas foi o que Nathann Siqueira, 29 anos, fez. O boxeador de origem humilde na Baixada Cuiabana viu no esporte a sua mudança de vida. Escondido de sua mãe, começou a praticar o esporte no Osvaldão, projeto social da Associação Cuiabana de Boxe. Um dia após completar 18 anos, se apresentou oficialmente em uma academia de luta. Nascido e crescido em Cuiabá e radicado na Bahia há alguns meses, o lutador saiu dos ringues mato-grossenses para os tablados brasileiros. Hoje, é o 170º no ranking mundial de sua categoria. Ele sonha, desde pequeno, alcançar o título mundial, mas se dá por satisfeito em lutar nos maiores centros de boxe no exterior, inspirado pelo seu maior ídolo, Acelino Freitas, Nathann Siqueira conta sobre o seu despertar para o boxe, revela conselho do tetracampeão mundial Popó e projeta o futuro Texto: Giovanna Baiocco Foto: Bianca Mortelaro o famoso Popó. Nathann Siqueira recebeu a equipe da Fuzuê na academia onde treina em Cuiabá, localizada no bairro Lixeira. Tatames, luvas e sacos de pancadas caracterizam o espaço de treino/ensino na realização de socos, proteções e esquivas bem tradicionais nas práticas de esportes de luta. A academia, procura oferecer também atividades para melhorar o condicionamento físico, aumentar a resistência muscular e também disponibiliza atividades funcionais. Os equipamentos são divididos de acordo com suas funções, seja para criar um ambiente de treinos de lutas, ou para manter os boxeadores em forma e devidamente protegidos durante os treinos. Xômano DE CUIABÁ PARA OS RINGUES BRASILEIROS


fuzuê: De onde surgiu esse interesse pelo boxe? Qual foi o seu primeiro contato? Nathann Siqueira: Foi quando eu conheci o boxe pela televisão, de madrugada. Minha mãe saía para trabalhar muito cedo, por causa das dificuldades que nós tínhamos. Ela acordava três horas da manhã, porque tinha que ir uma parte a pé até conseguir chegar no serviço dela. Eu tinha mais ou menos sete anos, e aí eu achei bonito e sempre tentava ficar acordado até mais tarde, aos finais de semana, pra estar vendo se passava de novo. fuzuê: Quando o boxe se tornou um sonho para você? N.S: Foi ali, dos 9 aos 12... ou 13 anos. O lugar que eu comecei era muito próximo de casa, o projeto Osvaldão, e lá na escola tinha algumas crianças que treinavam e ficavam fazendo aqueles movimentos de golpes de boxe e eu ia lá brigar, batia neles. Era aquela coisa, sabe? Foi bastante intenso. Nesse momento do meu ensino fundamental, eu estudava no colégio na Tocantins, que era muito próximo dessa academia e ficava englobado aquele pessoal que treinava e fazia parte do projeto social. Comecei a praticar na academia entre os meus 17 e 18 anos, e, com dedicação, cheguei aonde estou hoje. fuzuê: Qual foi a reação de sua mãe quando descobriu que você praticava o esporte? N.S: Aí tem uma história que é um pouquinho delicada. Eu treinei 3 ou 4 meses escondido e ela não sabia. Eu estudava, então saía da faculdade e ia treinar. Minha mãe não sabia da questão dos horários, porque ela também trabalhava para pagar a minha faculdade. Eu ainda não estava trabalhando e, nesse tempo, eu quebrei o nariz e menti falando que tinham tentado me assaltar, que tinham me agredido, e eu consegui revidar. Ela acreditou, mas logo descobriu e me disse a seguinte frase: “Na minha casa não tem lutador, não existe esse negócio! Tem engenheiro, contador, vai ter médico, vai ter tudo, menos lutador. Se você quiser seguir esse caminho, sai da minha casa”. Então eu fui. Saí de casa pouco tempo depois de ter completado 18 anos e, assim, eu já tinha esse interesse de seguir esse caminho mesmo, já tinha visto algumas coisas, competido também e, poxa, eu estava fazendo as mesmas coisas que eu via na televisão, então falei: “Cara esse negócio dá pra mim”. fuzuê: Qual foi o ponto decisivo da sua carreira? N.S: Em 2015, no interior de São Paulo, em um evento para homenagear a aposentadoria do Popó, eu lutei muito bem. Acredito que até ganhei a luta, mas o menino era da casa e acabaram dando o prêmio para ele, que também era muito bom. Então, o Popó, que era amigo do técnico que estava comigo, me disse: “Popó: Da onde que você saiu cara? Você é baiano? Nathan: Não, eu sou de Cuiabá. Popó: Pô, legal, gostei cara, mas posso falar uma coisa pra você? Eu só cheguei onde eu cheguei porque eu não brinquei no ringue, não ficava fazendo essas firulinhas. Eu chegava, entrava, lutava, saía e comemorava. Não ficava brincando”. Eu tinha perdido, estava triste e tomei um esculacho desse! Eu guardei aquelas palavras e não vou dizer que eu mudei, porque é um estilo de luta que tenho, mas eu gosto de definir as lutas com um nocaute, como ele golpeava. O Popó foi o maior campeão com nocautes consecutivos da história, isso foi e é, para mim, um dos maiores incentivos. Foi ali que eu pensei: “Poxa, o cara me viu!”. Ele me deu vários conselhos e eu tive esse despertar, porque quem falou isso pra mim foi um tetracampeão mundial. Naquele momento eu vi que estava no caminho certo. “Se não tivesse brincando, você teria conseguido nocautear, então tem que parar de brincar”, me disse Popó. fuzuê: Quais são as suas inspirações nos ringues? N.S: São tantas! Hoje, tem o Terence Crawford. É um [norte] americano que, atualmente, está invicto em duas categorias diferentes. Ele é um exemplo de uma pessoa mais técnica, que é o que eu estou buscando mais atualmente. Em questão de força, me inspira muito o Gervonta Davis, outro [norte] americano. Eu tenho também como referência, o que pra mim, hoje, é o melhor atleta em atividade do Brasil, o Herbert Conceição, que foi campeão olímpico. Mas, pra mim, o Robson Conceição é 50


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