o melhor exemplo de atleta que eu já vi. Porque eu estou morando na Bahia e o Robson treina muito. Ele chegou, alcançou um título olímpico e, pra mim, [para] alcançar esse nível que ele tem hoje, só treinando muito. fuzuê: Como é seu estilo de luta atual? N.S: Eu já tenho 12 anos de esporte, então eu consigo estar trabalhando dentro de tudo. Por exemplo, Muhammad Ali era um atleta mais estilista, um pouquinho mais defensivo. Normalmente, estilistas que jogam um pouquinho mais posturados, mais soltos, conseguem ter esse domínio da distância. Outros atletas trabalham na média distância, um pouquinho mais dentro, com entrada, com contragolpe. Outras pessoas gostam de trabalhar com golpes mais curtos, por exemplo, o Mike Tyson. Então tem vários estilos, eu gosto mais desse que tem um pouquinho mais de distância, de contragolpe. Hoje eu consigo variar entre essas três distâncias e estar aí mais ou menos trabalhando dentro de tudo. fuzuê: O que é mais difícil nessa trajetória? N.S: Acho que querer é o mais difícil, porque dificuldade tem pra todo mundo. Para todas as profissões é o querer, o quanto você quer, o quanto tem coragem de dedicar tempo, abrir mão da vida, da família, de tudo. Não consigo pensar em outra coisa, porque recentemente eu fiquei nove meses em Salvador e, se eu não quisesse muito continuar lutando, eu teria parado. fuzuê: Quais são os principais desafios de quem pratica o boxe em Mato Grosso? N.S: O boxe mato-grossense já foi uma potência. Já brigou com os maiores estados do Brasil: Bahia, Pará, Rio de Janeiro e São Paulo. [Atletas] Já lutaram de igual pra igual em questão de medalha e, hoje, pra mim, alcançar isso novamente é um grande desafio. Nós temos alguns atletas de base da classe cadete e juvenil despontando, alcançando medalhas nacionais. Hoje, esse crescimento está voltando por causa do trabalho de algumas pessoas, de técnicos, apesar de que precisamos também da federação, né?! “O boxe mato-grossense já foi uma potência, entendeu? Já brigou com os maiores estados do Brasil. [Atletas] Já lutaram de igual pra igual em questão de medalha e hoje é um grande desafio.” fuzuê: Que atletas você destacaria hoje em Mato Grosso? N.S: Aqui, temos o Tomas Santos, Danilo Samuel, João Pedro e Mateus Reis, que têm alcançado resultados em campeonatos nacionais, alguns chegaram até a final, outros ficaram pela semifinal com medalhas de bronze. fuzuê: Como esses atletas praticam o boxe? N.S: São atletas que fazem parte do projeto social “Guerreiros no Ringue”, sempre estamos fazendo alguma interação junto, algum treinamento. Este ano não participei da base de preparação deles, porém, nos anos anteriores sempre estava participando. Eles são hoje a nova geração, quem vai representar o estado daqui para frente e, quando eu parar, acredito que eles vão continuar mantendo o nome do Mato Grosso e de Cuiabá em alto nível. fuzuê: Que tipo de dificuldades e oportunidades eles têm, na sua avaliação? N.S: A questão financeira principalmente. Hoje eles têm acesso ao projeto Olimpus, à Bolsa Atleta Nacional, que é pelo Ministério do Esporte. Mas, no geral, uma das dificuldades é o transporte, porque, muitas vezes, o dinheiro que eles recebem é para a alimentação dentro de casa e para ajudar o pai e a mãe. Então, normalmente é o sonho de toda criança, de todo adolescente, querer ajudar o
pai e a mãe. O dinheiro da bolsa diminui uma conta dentro de casa, mas ainda precisam pagar passagem, vestir e viajar para fora do estado, para continuar competindo em alto nível. Eu acredito que essa seja uma das maiores dificuldades. Além do bairro que eles moram, perigoso, geralmente são parte de projetos sociais de regiões periféricas. fuzuê: Como patrocínios chegam até vocês? N.S: É muito difícil. Por exemplo, hoje eu tenho um pouquinho mais de exposição e sou o principal atleta do estado, com um pouco mais de acesso à mídia. Eu tenho a possibilidade de ir para fora do Brasil, em alguns lugares e eventos, então tenho esse trânsito maior de informação e consigo ter acesso a empresas que estão procurando por divulgação, ou querem entrar nesse meio, apresentando a marca deles ali. Agora, para outros atletas, por exemplo, do Boxe Olímpico, é um pouquinho mais difícil, porque, normalmente, eles não têm tanta mídia, exposição e contatos. O maior campeonato que eles vão ter no amador vai ser o Campeonato Brasileiro, que eles vão em busca da bolsa atleta, de uma possível convocação para a seleção brasileira. E, quando chegam lá, eles já têm todo um teto salarial. Eles também têm uma estrutura melhor: fisioterapia, odontologia, psicologia. Fora isso, o patrocínio para o esporte amador é mais difícil para quem ainda está começando a crescer. fuzuê: O que te motiva a permanecer no esporte? N.S: Tenho um sonho desde criança de alcançar o título mundial, mas é difícil. Atualmente eu estou em 170° do mundo. É difícil, mas, financeiramente, o principal, mesmo que eu não alcance o título, é estar e lutar nos maiores centros do mundo, nas maiores promotoras de boxe. Eventos onde eu possa receber mais e ter mais exposição.
É dada a largada! São quatro horas da tarde e a sensação térmica é mais de 40 graus quando Carina Antiga, 18 anos, estudante de Nutrição, se prepara para mais um treinamento ao lado do namorado, Daniel Morais, 22 anos. Mais do que apenas uma prática esportiva, correr se tornou um estilo de vida, sinônimo para alguns de companheirismo e bem-estar. Carina pratica corrida há seis anos e já esteve entre as seis melhores do país. A atleta explica que, além da questão de saúde, existem as amizades e companhias que a corrida pode proporcionar. "Por mais que seja um esporte individual, treina todo mundo junto, se torna uma comunidade”, declara. Daniel, que é atleta e estudante do curso de Educação Física na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), é um dos profissionais que atua no Correndo Com Ciência, uma parceria entre a UFMT e a Fundação Uniselva. O projeto trabalha com supervisão para iniciantes na corrida. Para ele, há benefícios da prática para todas as idades. “A galera se junta com os amigos para fazer um treino em grupo ou uma corrida de rua. Na saúde mental, a prática é uma das mais indicadas, já que consegue se sobrepor pela sua coletividade", conta o atleta. Texto: Giovanna Baiocco, Luana Moreira e Nathália Shizuka Foto: Nathália Shizuka e arquivo pessoal CORRE DURO 53
Foco e paixão foram atrativos que levaram o paratleta Daniel Nascimento a começar na corrida de cadeira de rodas. Para ele, a prática esportiva proporciona energia de viver e propósito: “Sempre que for praticar o esporte, tem que ser por amor. Eu não faço pela necessidade, eu pratico porque eu gosto”. Em 2018, com o incentivo de um amigo, experimentou a corrida de rua e gostou da modalidade. Isso ocorreu seis anos após sofrer um atentado que o deixou paraplégico, em 2012. Daniel é tricampeão da Corrida de Reis, maior competição de rua do Centro-Oeste, e esteve em terceiro lugar na Corrida de São Silvestre, em São Paulo. Além disso, participou de campeonatos promovidos pelo Comitê Paralímpico Brasileiro em Goiânia, conseguindo o segundo lugar na prova de 100m e primeiro nos 200m. Segundo o ranking de 2022 do site oficial do Comitê ParaUM ESTILO DE VIDA límpico Brasileiro, o corredor de Mato Grosso está em 7º lugar na modalidade de 100m e em 12º na modalidade de 100m dentre competidores na classe 754, que disputam, em cadeira de rodas, provas de pista e de rua, além de saltos. Outra apaixonada pela corrida é Maria Júlia Souza, 27 anos, jornalista e meia-maratonista, denominação de quem compete em provas acima dos 20km. Ela afirma que seu coração bateu mais forte pela velocidade em 2018, quando participou da Corrida de Reis, na época em que estava sedentária. Em 2019, Maria Júlia decidiu embarcar na corrida acompanhada de mudanças em seus hábitos, além de treinamento profissional para as competições. A corrida traz para a atleta, diagnosticada com Transtorno Generalizado de Ansiedade, uma espécie de autocontrole. “Na corrida encontrei a sensação de controle, momento em que eu só devo vencer a mim mesma. Meu corpo cansa e minha mente descansa”, explica a jornalista, que já participa de competições fora de Cuiabá e vai para cidades do interior para correr, geralmente, na companhia de amigos corredores. POSSO CORRER TAMBÉM? O especialista em corrida Glauber Arruda comenta sobre algumas recomendações para quem quer iniciar essa modalidade. Para ele, primeiramente, é importante procurar um cardiologista que avalie sua condição física para a prática esportiva. Também é necessário evitar correr em dias muito quentes, devido ao risco de desidratação e de baixa pressão, diante da baixa umidade do ar. Além disso, o treinador indica que, com o avanço da caminhada leve, a pessoa pode começar a correr moderadamente, respeitando o limite do próprio corpo e sempre buscando a supervisão profissional. Glauber também fala sobre ações que devem ser evitadas: “Nunca 54
NA CORRIDA ENCONTREI A SENSAÇÃO DE CONTROLE, MOMENTO EM QUE EU SÓ DEVO VENCER A MIM MESMA. MEU CORPO CANSA E MINHA MENTE DESCANSA. - MARIA JÚLIA DE SOUZA • Antes de tudo, faça avaliação médica e saiba sobre os benefícios e riscos para a sua saúde; • Comece com uma caminhada leve, de 20 minutos; • Siga os horários recomendados: cedo da manhã e depois do pôr do sol; • Use creme e roupas com proteção solar e contra raios ultravioleta; • Prefira calçados confortáveis; • Antes de sair de casa, hidrate-se e coma algo leve, carregue consigo uma garrafa d'água durante sua prática esportiva; • Use roupas leves: regatas, camisetas dry fit (com furinhos), tops esportivos, shorts leves de treino, bermudas curtas e leggings; • Pratique corrida em lugares indicados: praças, parques e ambientes abertos com arborização; • Busque um profissional para orientação. MOVIMENTE-SE saia para correr sem se hidratar ou sem ingerir algo leve. É perigoso. Se você não tem nutrientes suficientes, pode desmaiar ou ter alteração na pressão”. Mesmo que correr possa proporcionar muitos benefícios para a saúde, existem pessoas a quem esse exercício é contraindicado. Pessoas com problemas de pressão (baixa ou alta), doenças ortopédicas (ossos e coluna), reumáticas (articulações, tendões, cartilagem e músculos) e cardíacas são exemplos de restrições ao esporte. Para a engenheira agrônoma de 25 anos Sarah Gonçalves, a prática não é recomendada, pois foi diagnosticada com uma doença no joelho direito que necessita de mais atenção. Ela compensa de outras formas a sua impossibilidade de correr, como a partir do fortalecimento na bicicleta, que não causa impacto direto ao joelho. Marta de Oliveira, 56 anos, servidora pública da educação, convive com fibromialgia e artrite reumatoide. Por isso, não consegue correr. Mesmo sentindo dor, foi recomendada pelos médicos a estar sempre em movimento, mas, nesse caso, a caminhada foi a solução: “eu não consigo correr por conta das dores, mas preciso me movimentar”. Ela também relembra a importância do acompanhamento de um profissional: “com a ajuda médica e dos profissionais de educação física, tudo fica mais fácil”. Para quem deseja começar a correr com supervisão, existem iniciativas como o Correndo Com Ciência, que visa promover a prática através de treinamento supervisionado. Há também o Segundo Tempo Universitário, direcionado prioritariamente aos estudantes, ambos oferecidos pela UFMT de forma gratuita ou a preço acessível para a comunidade. 55
… Nos sepulcros que habitam o Cemitério Nossa Senhora da Piedade, em meio ao agito de Cuiabá, não repousa apenas o descanso eterno, mas também vibrantes capítulos da história da cidade. Esculpidas em pedras antigas, majestosas obras de arte contam narrativas que se entrelaçam com disparidades sociais, os tempos de fúria da Guerra do Paraguai e a dolorosa epidemia de varíola. Entre lápides e mausoléus, encontramos vestígios de quem desenhou o destino da cidade. Fundado no fim de 1863, ele se ergue como um museu a céu aberto, ostentando o título de Patrimônio Histórico Estadual, honra conferida desde 1998. IXPIA LÁ Entre Lápides e Esculturas Texto: Gustavo Klimiuk Foto: Carol Matins e Elisandy Mio O patrimônio cultural e histórico escondido entre os túmulos do cemitério da piedade 56
ORIGENS DO CEMITÉRIO MAIS ANTIGO DE CUIABÁ No século XIX, em Cuiabá, houve o movimento conhecido como secularização, com o objetivo de romper os laços que uniam estreitamente as instituições religiosas e o governo. Com ele, vieram impactos profundos sobre a forma como os rituais fúnebres eram conduzidos na cidade. Antes desse processo, estes encontravam abrigo dentro e ao redor das igrejas locais, o que representava um risco para a saúde pública à época. Em 1901, a Câmara Municipal de Cuiabá assumiu a gestão desses campos sagrados. Essa ação foi justificada alegando o abandono por parte da Igreja e resultou em uma ausência de cerimônias católicas nos cemitérios de Cuiabá, que durou de 1901 a 1923. Apenas com a chegada do coronel José Antônio de Souza Albuquerque, em 1923, o culto católico no cemitério foi restaurado, apaziguando a relação entre Estado e Igreja. PERSONALIDADES SEPULTADAS O Cemitério da Piedade, como também é conhecido, é um portal para o passado, um refúgio de histórias que ainda sussurram nos ventos cuiabanos, lembrando todos que a história e a cultura estão entrelaçadas, mesmo nos lugares mais inesperados. Lápides e mausoléus mantêm vestígios daqueles que definiram rumos da cidade durante a Guerra do Paraguai, como o almirante Augusto João Manuel Leverger, conhecido como Barão de Melgaço, e dos coronéis Rogaciano Monteiro de Lima e Antonio Peixoto de Azevedo. No entanto, ele não se limita apenas aos bravos combatentes. É fácil perceber a presença de figuras notáveis para a história cultural, política e intelectual de Cuiabá, como Rubens de Mendonça, que ocupou a cadeira número 9 da Academia Mato-Grossense de Letras e deixou um legado significativo na literatura regional; Dante de Oliveira, o arquiteto da emenda que desencadeou a luta pela volta das eleições diretas após o período da Ditadura Militar; Maria de Arruda Müller, fundadora da primeira revista feminina de Mato Grosso, A Violeta; e Liu Arruda, ator e jornalista cuiabano que transformou a história do teatro na capital. Conforme avançamos e subimos pela passarela central do cemitério, alcançamos os locais mais privilegiados, próximo à capela central. Nessa área repousam os jazigos pertencentes à elite e figuras importantes da cuiabania do século XIX. Depois, chegamos ao topo do cemitério e, logo ao lado da capela, uma imponente presença não passa despercebida: o mausoléu da família Orlando, que, entre o fim do século XIX e XX, era dona do único local em que eram feitas as transações bancárias e comerciais da cidade, a Casa Orlando Irmãos e Cia. Sua estrutura assemelha-se a uma capela católica, com traços neoclássicos marcantes. Em meio às lembranças eternizadas no cemitério, um túmulo se destaca como um elo com o presente, um testemunho da evolução arquitetônica ao longo das gerações. O sepulcro é de Dante de Oliveira, ex-governador e fervoroso defensor da democracia, cuja tumba contemporânea se ergue em contraste marcante com a atmosfera tradicional que envolve o ambiente. MARCAS INVISÍVEIS No Cemitério da Piedade encontramos não apenas um local de descanso eterno, mas um museu a céu aberto que nos convida a viajar no tempo. Ele não se limita a ser um local de sepultamento, mas é o testemunho perene da resiliência que Cuiabá e seu povo demonstram ao longo dos séculos. Ele se revela como uma ligação viva, um recurso inesgotável para adquirir conhecimento e promover reflexões sobre as marcas sutis que são deixadas pela passagem do tempo nos túmulos, vidas, famílias e na história da capital. 57
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REALIDADE INVENTADA Texto : Iasmim Sousa Cineastas revelam outras realidades em Mato Grosso Foto : Ana Luiza Queiroz e Iasmim Sousa “O OLHO VÊ, A LEMBRANÇA REVÊ E A IMAGINAÇÃO TRANSVÊ” 61 disquê
O relógio marca 7h da manhã e o sol começa a esquentar enquanto a equipe do Santo Inquérito chega ao bloco de tons cinzas do Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso. É dia de mais um set de gravação; dessa vez, da última cena do curta. O grupo começa a preparar o equipamento, a maquiagem, as câmeras, o microfone e os quatro ventiladores para amenizar o calor que faz em Cuiabá. A diretora dá as orientações aos atores, que estão sendo maquiados, e todos aguardam pacientemente a hora marcada no estúdio que está, mais uma vez, com o ar-condicionado estragado. Ao todo, 25 pessoas voluntárias estão envolvidas na gravação, que é o trabalho final de direção. Apesar da construção coletiva e parceira dos colegas para a realização do curta, os obstáculos, especialmente de financiamento, ainda são muitos. Esse é o primeiro filme dirigido por Leandra Martins, estudante paulistana que veio a Cuiabá cursar Saúde Coletiva, mas que se encontrou mesmo no curso de Cinema e Audiovisual da UFMT. “São situações bem difíceis. É o famoso cinema de guerrilha, em que a gente não tem orçamento pra fazer nada e faz aos trancos e barrancos. Fico pensando, se já é tão foda o que a gente faz, imagina se tivesse investimento”, ressalta Leandra. Durante a última diária, entre as poucas mulheres no set, Duda Priotto dava os retoques finais nos elementos cenográficos. Ela ficou responsável pela direção de arte do curta. Duda também já atuou na direção de arte de outros filmes como Fritz (2022) e É proibido sonhar? (2022), mas relembra que nem todas as experiências em sets foram positivas. Quando ainda estava no ensino médio, em Bauru-SP, a estudante viveu, pela primeira vez, uma situação constrangedora durante uma gravação. “Fui bem desincentivada, porque um dos diretores do curta falou ‘você é mulher, tem que assistir esse documentário sobre como as mulheres são tratadas no audiovisual’. O que era documentário? Misoginia! Essa coisa de ‘você não vai conquistar nada’”, destaca a diretora. Com a teimosia característica de quem se propõe a fazer filmes no Brasil, ela decidiu não ser apenas público, mas veio se juntar ao povo que faz 62
é o famoso cinema de guerrilha, em que a gente não tem orçamento pra fazer nada e faz aos trancos e barrancos cinema pro lado “de cá”. Fora das guaritas da UFMT, mas ainda atravessada pelo mundo acadêmico, Juliana Segóvia também traz consigo a determinação própria de quem ainda é estudante. A cineasta cuiabana registra em suas obras a - Leandra Martins potência das “escrevivências”, uma tentativa de resistir através do seu próprio olhar, muitas vezes negligenciado pela literatura e pela sétima arte. Inicialmente pensada pela escritora mineira Conceição Evaristo, a “escrevivência” ecoa pelos mais diferentes lugares de um Brasil marcado pelo apagamento e violência contra mulheres negras que usam seu “corpo-voz” para contar as próprias histórias. É o caso do filme A velhice ilumina o vento (2022), dirigido por Juliana, que surgiu em homenagem à amizade entre ela e uma mulher que frequentava bailes de lambadão na capital mato-grossense. O filme foi produzido por 24 integrantes do coletivo Aquilombamento Audiovisual Quariterê, grupo que surgiu em 2019 com o objetivo de incentivar a produção de realizadores negros, além de engajar a luta por melhores condições de financiamento e trabalho. A estreia de A velhice ilumina o vento marcou especialmente Sophia Cardoso que, além de integrar o coletivo, também pôde participar pela primeira vez de uma gravação. Desde então, ela acumula várias experiências em produções audiovisuais e, em 2023, ganhou o prêmio na categoria de melhor curta universitário experimental, na Mostra de Audiovisual Independente da América Latina (Maual), com o filme Entrelaços (2023). 63
eu vi a importância desse ritual, o laço, a história que ele tem por trás e a valorização da mulheR - Suyani Terena “O cinema é uma arte e ela é muito profunda. Acho que, às vezes, eu fico muito insegura do que eu vou representar, de como isso vai sair. Então, Entrelaços, pra mim, é uma obra que reflete esse amor, não só o amor romântico, mas conta a história de um amor entre duas mulheres racializadas e traz essa perspectiva de falar sobre o amor de forma sensível”, ressalta Sophia. Nesse cinema-teia que liga de forma invisível as realizadoras do audiovisual, Sophia e Glória Albues se conectaram no filme-ensaio Albuesas (2022), produção em que a estudante ficou responsável pela edição. Glorinha, como é chamada carinhosamente por amigos, possui um vasto conjunto de obras documentais e é reconhecida como a primeira documentarista de Mato Grosso, mas acredita que está se distanciando da concepção tradicional do gênero. Em uma relação com o lírico, a cineasta revela que hoje se interessa por histórias que vão ao seu encontro, e não necessariamente aquelas por que busca. “No filme-ensaio você pode trabalhar com várias linguagens, você pode transitar pelo lírico, pelo mistério, e eu acho que a arte aí se expressa com mais liberdade. É o que eu estou tentando fazer, um trabalho em que eu não vá em busca da razão, que a razão não seja minha ferramenta principal e eu vá em busca da emoção. Então me interessa a arte e, voltando ao Manoel de Barros, ele tem uma frase que fala: ‘O olho vê, a lembrança revê e a imaginação transvê’. Eu quero fazer um cinema que a imaginação possa transver”, ressalta a cineasta pioneira. A partir desses novos olhares que procura trazer em seus filmes, Glorinha recebeu, após tantos anos de produção, seu primeiro prêmio em Mato Grosso com o curta Itinerário das Cicatrizes (2022), que ganhou a cate64
goria de melhor curta metragem mato-grossense durante o encerramento da Maual, no mesmo dia em que foi exibido também, pela primeira vez, o documentário Sawana - Rainha das Formigas (2023), dirigido por Suyani Terena. Moradora da Terra Indígena Tirecatinga, a jovem Suyani percorreu aproximadamente 500km até Cuiabá para participar da estreia do seu primeiro filme, que gravou com apenas 17 anos. No documentário, ela mostra todo o processo do ritual da Menina Moça, uma tradição que marca a passagem da infância para a juventude das mulheres do povo Nambikwara. “É um processo que eu passei também, entre meus 11, 12 anos. Então, eu vi a importância desse ritual, o laço, a história que ele tem por trás e a valorização da mulher também”, conta Suyani, que se emociona ao lembrar dos ensinamentos que recebeu de sua mãe, avó e bisavó. Diante do medo de que a memória do ritual enfraqueça com o tempo, ela gravou o filme com uma câmera da Thuthalinansu, uma organização que reúne 50 mulheres dos povos originários Paresi, Nambikwara, Manoki e Terena, que moram no seu território. Para Suyani, a Thuthalinansu não é apenas uma associação, mas uma entidade que, mesmo sem um corpo físico, se comunica através dela e de seus filmes. Leandra, Duda, Juliana, Sophia, Glória e Suyani são alguns dos rostos que buscam transver as suas próprias realidades, inventando e narrando a partir de suas próprias perspectivas, em um estado de proporções gigantescas, como é Mato Grosso. Em diferentes regiões e partindo de suas próprias escrevivências, as histórias de cada uma delas se cruzam e criam novas possibilidades para as futuras cineastas que estão por vir. Para o espectador, o tempo de espera acabou. Abram-se as cortinas, o filme do futuro já vai começar. 65
Mulheres do Mixto Esporte Clube se destacam nos campos de Mato Grosso e driblam barreiras para tentar alcançar o topo “Em 2022, viramos referência para o mundo inteiro. Não só no futebol, mas no jornalismo também. Hoje vemos mulheres aqui, o que não tinha antes. A gente acabou abrindo portas para a igualdade”, enfatizou a jogadora Marta Silva, da Seleção Brasileira de Futebol Feminino, em uma coletiva de imprensa em Melbourne, na Austrália, antes do treino da Copa do Mundo de 2023. O que une essas mulheres? A paixão pelo futebol, a identificação com o esporte desde crianças, mas também as lutas para chegar aonde estão hoje. Quando se fala de mulheres nos esportes, sobretudo aqueles de alto rendimento, é difícil não considerar os preconceitos, que por sua vez não ficam restritos apenas ao contexto do futebol. Isso não se restringe aos grandes times e clubes do país, mas perpassa todos os estados e, olhando para Mato Grosso, e especificamente Cuiabá, é notória a presença desses problemas vinculados à prática do futebol feminino. Aos 24 anos, Kethleen Azevedo se tornou técnica de futebol e assumiu seu primeiro time, ainda em seu estado natal, Minas Gerais. Hoje, aos 32 anos, é técnica do time feminino do Mixto Esporte Clube. Aliada à história e à forte tradição do clube, a responsabilidade de liderar as Tigresas em campo torna-se ainda maior. “Quanto mais a gente busca ser competente, quanto mais a gente se profissionalizar, mais difícil vai ficar deles tirarem a gente desses cargos. Então, é o que eu busco fazer: me qualificar e ficar melhor, para que, assim, eu possa ter o direito de exercer minha profissão. É difícil, é uma luta e nós, mulheres, vamos nos unir e não vamos desistir!”, enfatiza Kethleen. QUEM BRILHA SÃO AS TIGRESAS Texto: Fabrício Baldini e Giovanna Jesus Baiocco Foto: Olímpio Vasconcelos corre duro 66
Se, por um lado, o futebol feminino está crescendo, por outro, ainda está muito longe do espaço e do prestígio que poderia ter. A realidade se distancia, em diversos aspectos, em relação ao time masculino. Depois de terem enfrentado diversas dificuldades, as jogadoras dentro e fora de Mato Grosso servem de combustível para que nunca se deixe de sonhar e acreditar no futebol feminino. Anos atrás, muitas mulheres se rebelaram e desafiaram essa lógica machista. Em Mato Grosso, Zulmira Canavarros, uma das mulheres mais marcantes na história da cultura cuiabana, fundou, junto a outras pessoas, o time feminino do Mixto Esporte Clube, em 1928. Em Mato Grosso, existe uma lei que assegura, às equipes femininas do estado, o mesmo incentivo financeiro concedido às masculinas, além de atender aos clubes participantes de todas as séries das competições organizadas pela CBF. A Lei nº 11.734 corrigiu distorções do projeto do Executivo aprovado em 2021, que beneficiava apenas a Série A, contemplado com R$3,5 milhões, sem prever aportes para o futebol feminino. A chamada “Lei Avallone” mantém o incentivo de R$3,5 milhões para a Série A masculina e concede o mesmo valor às equipes da Série A1 feminina. Para as séries B e A2, o valor foi de R$2 milhões. Os clubes das séries C e A3 receberam R$1,5 milhão e os clubes na Série D, R$1 milhão. O aporte de R$ 1,5 milhão junto ao time feminino do Mixto contribuiu para que o clube montasse uma equipe fortíssima, que conseguiu ser campeã da série A3, feito histórico para Mato Grosso. Foi primeiro título nacional de futebol para o estado, 67
CRISTIANO RONALDO (AL-NASSR) R$ 400 milhões ao ano X SAM KERR (CHELSEA INGLATERRA) R$ 2,5 milhões ao ano \ KYLIAN MBAPPÉ (PARIS SAINT-GERMAIN) R$ 384 milhões ao ano X ALEX MORGAN (SAN DIEGO WAVE - EUA) R$ 2,16 milhões ao ano \ LIONEL MESSI (INTER MIAMI) R$ 240 milhões ao ano X MEGAN RAPINOE (OL REIGN - EUA) R$ 2,1 milhões ao ano \3 2 JOGADORES VS JOGADORAS MAIS BEM PAGOS DO MUNDO 68 considerando-se qualquer time, tanto no masculino quanto no feminino. Além de nos colocar no cenário do futebol feminino nacional, as tigresas jogarão a Série A2, equivalente à Série B do Brasileirão. “Estamos no caminho certo, principalmente de investimento cada vez maior dos clubes. A visibilidade que tem dado para o futebol feminino, as atletas estão se preparando cada vez mais. Eu não tenho dúvidas de que, a cada ano que passar, o futebol feminino vai crescer mais no Brasil”, finaliza Kethleen, treinadora das tigresas. Ainda existe uma discrepância muito grande quando se observa o salário do futebol feminino, com valores muito inferiores aos profissionais do masculino nas mesmas funções. Além disso, o salário de um jogador pode depender de vários fatores, como títulos conquistados, tempo de carreira, time e patrocínios. Porém, mesmo em grandes clubes como Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Flamengo, o salário das atletas pode chegar, quando muito, a R$100 mil reais por mês, enquanto o salário de atletas homens pode ultrapassar os R$10 milhões mensais. O Palmeiras, campeão masculino no ano de 2022, recebeu cerca de R$45 milhões de reais da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Já o time feminino do Corinthians, também campeão no mesmo ano, recebeu cerca de R$1,8 milhão, o que representa um percentual de 2,7% recebido pelo Palmeiras. Para efeito de comparação, o time masculino do Cuiabá, que terminou 2022 em 16º lugar, recebeu cerca de R$15,2 milhões em premiação. Há uma enorme discrepância na receita entre jogos. Na seleção brasileira masculina, a CBF gera mais receita com a venda de direitos de transmissão e cotas de patrocínio do que com o futebol feminino. ELAS DOMINAM?
NHA CÁ 69 COM QUANTAS PESSOAS SE FAZ UM JOGO DA SELEÇÃO? Texto: Ana Luiza Queiroz e Fabrício Baldini Foto: Ana Luiza Queiroz Fundamentais para viabilizar um evento gigantesco, centenas de pessoas atuam nos bastidores e garantem a atenção do público apenas ao campo de futebol ixpia lá
O som da furadeira imvade o ambiente, ecoa pelos corredores subterrâneos vazios e cheirando a tinta. O barulho dos pés nas escadas de metal consegue harmonizar, como numa música, com o dos homens trabalhando. Usualmente, este não é o som que se espera de um estádio poucos dias antes de um dos jogos mais importantes de sua história, mas era assim que estava a Arena Pantanal em outubro de 2023. Os sons de um canteiro de obras destoavam do objetivo dela e poderiam ser até despercebidos diante da euforia de torcedores, mas eles fizeram enorme diferença para muita gente longe dos holofotes das coberturas jornalísticas. A três dias de um jogo de eliminatórias da Copa do Mundo de 2026, as paredes estavam sendo lixadas, pintadas e vários espaços estavam sendo revitalizados para passar uma imagem melhor e não relembrar as pessoas de que a arena está, na maior parte do tempo, com problemas em sua infraestrutura. Para receber a seleção brasileira de futebol masculino é necessário atender às exigências feitas pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e pela Federação Internacional de Futebol (FIFA), que não são poucas. Na sala onde a imprensa fica, localizada no terceiro andar e acessada principalmente por um elevador pequeno, o primeiro dia de pré-evento está longe de qualquer glamour. O que se vê são buracos deixados pelos painéis de gesso abertos são remendados por homens que se infiltram entre jornalistas e assessores, como se aquilo fosse rotineiro. Mesmo sem painéis abertos, ainda se pode ouvir homens andando no teto, enfiando cabos de internet pelos vãos, tentando acomodar o número crescente de profissionais de comunicação na sala. Um trabalhador carrega uma escada para fora do media center. Não é a primeira vez que ele, que prefere não se identificar, está trabalhando na Arena Pantanal, apesar de ser a primeira oportunidade em que está encarregado de tapar os problemas espalhados por ali. Agora, não mais encarregado pela venda de pipoca, não consegue negar o entusiasmo. “É a primeira vez que eu vejo a Seleção Brasileira. O coração de torcedor fica ansioso!”. É apenas um de centenas de funcionários e prestadores de serviços terceirizados que perambulam pela coxia do espetáculo que vai ser o jogo das eliminatórias. Valéria Barreto passa a maior parte do tempo atrás de um grande balcão de mármore, também no media center, onde estão servidos todo tipo de quitutes, com foco especial no tradicional bolo de arroz cuiabano. Ela e sua equipe ficaram responsáveis pela alimentação da área da imprensa e a responsável pelo buffet tinha o desejo de ver o Brasil ganhando de 3x0 da Venezuela. Assistindo pela primeira vez a seleção de perto, a animação ao falar sobre aquele momento era contagiante: “Eu até publiquei no grupo da família: ‘ah, vamos estar servindo o pessoal da imprensa que vai vir’. Fico muito contente de estar aqui nessa data, nesse jogo!”. A corda que entrelaça boa parte dos trabalhadores da arena está carregada de emoção. Mesmo não acompanhando de perto o time, a coordenadora de catracas Karize Becker, 48 anos, se sentia satisfeita. “É muita emoção, porque há todo esse tempo ele não joga aqui e eu nunca assisti a um jogo da seleção”, diz ela, antes da abertura do acesso ao interior do estádio. Em Cuiabá, o futebol parece ter se afastado de sua essência. Só assiste ao jogo, em geral, quem tem condições financeiras de pagar o alto valor dos ingressos e de se deslocar por quilômetros para chegar à capital. A grande maioria das cadeiras é ocupada por pessoas brancas. Os venezuelanos, por outro lado, ficaram restritos a uma pequena porção da arqui70
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bancada do setor norte superior, escondidos na imensidão amarela que toma o estádio, confinados e isolados dos demais torcedores. Enquanto a bola ainda não rolava pelo campo, os funcionários se agrupam num canto, ao lado das cabines de rádio, para acompanhar a partida. Dali não se ouve muita coisa e a narração vem de dentro do lugar: uma mistura bagunçada de vozes para descrever os lances. É nítido o recorte de classes quando se olha pela janela: não houve como driblar a desigualdade. Do lado de fora, também, grades caem ao chão. São mais funcionários desmontando tendas e barreiras de contenção. O que mais chama atenção estava em volta do campo: uma corrente laranja fluorescente cercava o gramado. Eram trabalhadores que nem podiam ver o jogo, ficando de costas e sentindo tudo através da tradução dos sons e olhares da torcida. Quem não teve oportunidade de assistir ao jogo, mesmo estando ali, trabalhou duro. Inúmeros vendedores se revezam num sobe e desce frenético das escadas carregando pipoca, pastel e churros. Outros sequer podem ver o verde do gramado. Ficam escondidos atrás de longas filas para vendas de fichas ou retirada de bebidas. Camila Gonçalves, vendedora de fichas, continuará a nunca ter assistido a um jogo da seleção masculina, impossibilitada de acompanhar qualquer lance da partida. Apita o juiz Quando o jogo começa de fato, vários trabalhadores já realizavam suas funções há pelo menos duas horas, alguns há muito mais que isso. Além deles, jornalistas também estavam acompanhando a seleção há muito mais que os noventa minutos em campo. É o caso de Jorge Ventura e Kiyomi Nakamura, que têm um longo histórico de coberturas quando se trata da seleção masculina. Ventura faz esse trabalho há dez copas do mundo, enquanto Kiyomi acompanha a Seleção desde 2001. Conhecida não só pelos jogadores, mas também pela própria CBF, Kiyomi tem espaço para falar em todas as coletivas e seu português, misturado à entonação de sua língua materna, o japonês, chama atenção. “Seleção não é apenas um time de futebol, a seleção brasileira não é normal. Então, para saber o que era a seleção, melhor morar no Brasil, respirar o mesmo ar, falar o mesmo idioma, comer a mesma coisa”, conta Kiyomi. Embora não pareça, Ventura chega aos 80 anos ainda trabalhando na cobertura de futebol. Depois de ser parte importante da extinta TV Manchete, acumula as funções de câmera, produção, agenda e edição de conteúdos gravados durante suas andanças para acompanhar os jogos. Produz, com Nakamura, reportagens da emissora japonesa para a qual trabalham. Das alas superiores, a visão do campo é comprometida. Porém, os torcedores sentados nas piores cadeiras estão igualmente animados, vibram e cantam “É muita emoção, porque eu nunca assisti a um jogo da seleção” - Karize Becker 72
como aqueles que estão nas alas inferiores, ficam de pé e balançam bandeiras do Brasil e dos próprios clubes. Assistindo ao jogo, as palavras do técnico Fernando Diniz, em coletiva no dia anterior, não deixam de ecoar: o jogo truncado já era esperado. Mesmo assim, a torcida brasileira continua a cantar, variando entre animar jogadores e xingar árbitro e bandeirinhas. O primeiro gol da partida, que só aconteceu quatro minutos após o início do segundo tempo, pelos pés de Gabriel Magalhães, foi um alívio diante das brechas na defesa brasileira, que deixavam corredores vazios para que, vez ou outra, a Venezuela atacasse. Nas cabines destinadas à cobertura radiofônicas, no interior do estádio, a narração popular se misturava aos termos técnicos: era “Gabriel na briga de touca”, outro jogador estaria “tricotando”, um comentarista dizia que alguém “joga um bumba-meu- -boi” no campo; próximo ao local, uma das trabalhadoras do buffet apela para São Benedito quando vê o risco de a Venezuela fazer gol. O Brasil se mantinha em vantagem e, mesmo com um gol de Vini Jr. anulado por impedimento, a torcida continuava confiante e animada. A alegria durou até que, aos 39 do segundo tempo, Bello, número 13 da seleção venezuelana, marcasse um golaço de puxeta (meia bicicleta), encerrando a festa brasileira. O empate tinha cara de derrota e tornou a espera pelo apito final ainda mais tortuosa para torcedores brasileiros. Apesar de o árbitro ter cedido mais dez minutos de jogo, ele acabou repentinamente, com jogadores das duas seleções se estranhando, conflito chamado de “sururu” por um radialista. O gosto de vitória da torcida venezuelana, ainda que diante do empate, se ouviu mais alto pelo silêncio raivoso da torcida brasileira. Tanto que, por um breve momento, no balanço da rede, se viu, em meio à torcida brasileira sentada na ala oeste superior, uma bandeira da Venezuela se levantando. Ali, rodeada de adversários, estava Nathaly, dona de casa venezuelana assistindo sua seleção na arena pela primeira vez. Para ela, o empate foi histórico. Junto do marido e da filha, o pequeno grupo estava radiante com o fim da partida e o resultado. Em menos de uma hora após o jogo, as luzes do campo se apagaram: é como se nada tivesse acontecido em campo. No interior do estádio, o cansaço reinava sobre a esperança dos brasileiros em ver sua seleção ganhar, depois de 21 anos de espera, nos gramados cuiabanos. Apesar do empate, o interior das paredes de concreto abrigava quem arduamente fez o jogo acontecer. Suspiravam satisfeitos. O resultado foi decepcionante, mas eles presenciaram um momento histórico. 73
Aline TEXTO: ALINE COSTA FOTO: ARQUIVO PESSOAL O F I M É S Ó P O R H O J E , P O R Q U E A A R T E DEVE SEMPRE CONTINUAR O PROPÓSITO DE ALINE por Aline crítica 74
O Propósito de Aline é um livro com capacidade de encantar qualquer mato-grossense que se interesse um pouquinho por arte, ainda mais se o leitor em questão for estudante da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). A obra é uma biografia sobre uma mulher que nasceu antes mesmo da divisão de Mato Grosso e que trabalhou na cena artística do estado. Em 28 capítulos curtos e 200 páginas, a história une o público à trajetória de Aline Figueiredo, renomada crítica de arte e vencedora do prêmio da Associação Brasileira dos Críticos de Arte (ABCA) em duas ocasiões. O biógrafo, Rodrigo Vargas, nos apresenta uma pessoa que está sempre em movimento e que, de certa forma, teve os rumos de sua vida encontrados em um livro. Depois de ler Moulin Rouge, Aline percebeu que amava arte e decidiu que queria fazer dela o propósito de sua vida. E fez. Sua paixão a levou para fora de Mato Grosso, passando por parte do Brasil e até pela Europa. Rodrigo, além de ouvir a história de Aline, fez uma extensa pesquisa que resultou em seis páginas de referências que se apresentam nas páginas finais da obra. A escrita poética não apenas narra a vida de Aline, mas nos convida à imersão, traz uma história digna de ser conhecida. Os fatos são narrados cronologicamente, iniciando antes mesmo do nascimento da crítica de arte, o que serve para situar o leitor e entender o contexto do lar da biografada. Aline é construída na narrativa como uma pessoa com muitas histórias, que conheceu pessoas admiráveis. Enquanto lia, percebi um certo tom de romantização em torno desta grande mulher, provavelmente fruto de um biógrafo admirador de seu legado. Seria possível não admirá-la?! Imaginava que Aline dificilmente se viu entediada algum dia e que, quando encontrou algo que realmente amava, traçou um caminho em que é impossível separá-la daquilo que dá sentido à sua vida. Com a leitura, é possível se teletransportar para os locais por onde Aline passou, lutando para conseguir divulgar a arte mato-grossense não só aqui, mas pelo Brasil e pelo mundo afora. Pelo fato de Aline ter nascido antes da divisão de Mato Grosso em dois estados, emerge um sentimento, no mínimo, curioso. Consegui acompanhar a história a partir de uma perspectiva que não vivi e ler sobre uma Cuiabá com menos de 100 mil habitantes, que já não existe mais há algum tempo. Com o passar das páginas, a característica de Aline que mais se sobressai é a de que ela é uma mulher que não desiste fácil de seus objetivos. Acompanhamos as várias vezes em que essa mulher recebeu recusas e olhares tortos, mas também somos convidados a segui-la em busca das coisas que planejava. Se, por um lado, eu não conhecia Aline Figueiredo antes da leitura do livro, por outro foi uma surpresa encontrar, espalhados pela história, nomes como Adir Sodré, Almir Sater e Assis Chateaubriand, além de entender como essas pessoas passaram por sua vida. Também foi uma novidade saber que ela idealizou a construção do Museu de Arte e Cultura Popular (MACP), da UFMT, e entender como esteve engajada na história do museu até ele se tornar aquilo que conhecemos hoje. Além do livro sobre Aline, o jornalista Rodrigo Vargas produziu um documentário sobre a vida dela, em que narra sua história e mostra sua casa. Eu sou Capim Navalha, título do documentário, pode ser facilmente encontrado no Youtube e é uma indicação para quem tem interesse por essa personagem da cultura mato-grossense. Fora das páginas da biografia impressa, olhos mais atentos podem encontrar Aline por Cuiabá, seja em sua casa com seus cães, seja visitando as exposições do MACP, onde hoje existe uma sala em sua homenagem. 75
Na tranquila manhã de uma terça-feira, a sala de Dona Marcilene é tomada por um perfume familiar que envolve o ambiente. O aroma nostálgico vem da cozinha de sua vizinha, onde uma tradição da culinária cuiabana está viva e forte: a famosa Maria Izabel. Para Marcilene, este prato traz à tona lembranças preciosas de sua querida mãe, que o preparava sempre que a família numerosa se reunia. Essa tradição continua acesa entre os descendentes da matriarca e, toda semana, em um dia específico, Marcilene se dedica a recriar o prato tão especial. O segredo por trás desse sabor incomparável? Marcilene compartilha, com um sorriso: “O verdadeiro segredo está no carinho com que preparamos o prato. Ah, e claro, não podemos esquecer de fazer a nossa própria carne de sol”, diz sobre a fórmula do sucesso. Do outro lado da capital, no aconchego da cozinha de Tiana, um aroma delicioso envolve o ambiente, preenchendo não apenas o seu apartamento, mas todo o corredor do hall do andar do prédio em que vive. Distantes fisicamente, porém próximas em um aspecto: Marcilene e Tiana guardam em suas cozinhas um espaço especial repleto de memórias felizes. “Quando eu era criança, minha mãe sempre fazia Maria Izabel, e isso marcou minha infância, porque era uma das poucas comidas que eu gostava. Geralmente, nos finais de semana, especialmente aos domingos, a família se reunia para saborear esse prato típico”, lembra Tiana com carinho. Ao longo do tempo, Tiana abraçou o veganismo, abandonando produtos de origem animal em seu cotidiano, sobretudo no cardápio. No entanto, ser vegana não a fez deixar a tradição familiar de lado. Ela criou sua própria versão de Maria Izabel. Memórias Saborosas Texto: Elisandy Mio e Fabrício Baldini Foto: Elisandy Mio CRÔNICA 76
Tiana concorda com Marcilene sobre a diferença que faz a fabricação da própria “carne”, mas, na versão vegana, é feita de glúten retirado do trigo: “O prato se torna especial quando eu mesma o preparo, especialmente a ‘carne’”. Uma característica única da versão vegana de Tiana é o uso de especiarias. “Para dar cor e sabor ao arroz, eu uso molho shoyu ou caramelizo o açúcar”, revela. Tive o prazer de experimentar esse curioso prato. Na primeira mordida, já consigo sentir. Huuum… o gosto da criatividade de Tiana se transforma em uma experiência única! É impossível parar na primeira mordida. Repito três vezes. Em todas elas, parecia ser a primeira. E quanto à “carne”, muito mais saborosa do que eu poderia imaginar! Tão macia e incrivelmente temperada que, mesmo acostumado a me alimentar de animais, mal percebo a ausência da carne bovina na refeição. Depois de alguns anos em Cuiabá, em cada casa que visito e com cada pessoa com quem converso, é notável o sentimento comum que o típico arroz com pedaços de carne (bovina ou não) transmite: uma mistura de amor e saudade. O aroma, repleto de temperos nem sempre reconhecíveis, é a porta de entrada para mergulhar em um leque de lembranças intermináveis. A comida, com sua cor e textura características, tem o poder de despertar emoções. Depois que comecei a participar da comunidade Santa Rita, a Maria Izabel passou a ser um momento de partilha de amor. Essa iguaria regional não se restringe apenas aos laços de sangue, está presente em toda parte. A Maria Izabel também é personagem marcante nos eventos de comunidades religiosas, onde o arroz com carne de sol é servido frequentemente com um outro prato clássico cuiabano: a farofa de banana. “Tem cheiro de felicidade e infância”, relembra Daniel, ao sentir o aroma vindo da cozinha de um evento comunitário do bairro. Para ele, a Maria Izabel sempre foi o prato que o faz lembrar de sua avó: “ela sempre me levava para as festas da igreja, e lá sempre tinha esse prato”. Para Celina, que também associa a comida à comunidade religiosa, não é diferente. “Depois que comecei a participar da comunidade Santa Rita, a Maria Izabel se tornou ainda mais especial, porque agora passou a ser um momento de partilha de amor”, explica a devota. O tempero das memórias e o sabor da tradição mostram como a simplicidade de uma refeição popular pode se tornar uma viagem no tempo, um resgate de conexões afetivas. A Maria Izabel, com suas várias versões, une famílias e comunidades, aquece corações e é mais que uma receita: evoca raízes, os paladares conectados ao passado e gera pertencimento. - Celina Maria Izabel Vegana
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75 Anna Giulia Magro e Aline Costa Na semana dos Povos Indígenas, em 2023, Cuiabá recebeu o 10º Encontro Indígena sob o tema Territorialidade. Para as 43 etnias que habitam Mato Grosso, território é algo muito maior que uma palavra ou algo delimitado por cercas: revela particularidades na culinária, em crenças, rituais e nas formas de organização de cada povo. O ensaio fotográfico Terra foge do olhar caricato com que indígenas ainda são vistos e convida a observar tradições passadas entre gerações, vozes que clamam por contar sua própria história. Pinturas, padrões e peças artesanais significam mais do que é possível ver com um olhar branco, como é o caso do ritual Hetoroky, da passagem de meninos da etnia Karajá para a vida adulta. As cores vivas e os grafismos nos provocam a repensar passado, presente e futuro, além de nossa relação com o planeta que nos abriga.
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