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Published by destino: abaton, 2023-09-14 12:11:01

Marrocos 2019

MARROCOS 2019 Marrocos — África


marrocos


Como é que um reino muçulmano, rico em envolvências e experiências, tão próximo de Portugal, ainda permanece desconhecido para tantos de nós? Até esta viagem, a Inês pertencia a esse grande grupo de portugueses. Está longe de ser um grupo homogéneo, cada um com razões distintas para não o fazer. Uns paralisam com a ideia preconcebida que serão constantemente assediados por hordas de marroquinos, mal ponham o pé na rua. A convivência de várias décadas com visitantes permitiu aos locais definir melhor as fronteiras, encorajados pela mão de ferro do Rei Maomé vi, o mais ferveroso impulsionador do crescimento de Marrocos como destino de férias, lazer e negócios. Para outros há o pavor que a imprensa e cultura norte-americana tem instigado face às sociedades muçulmanas. Apesar de informados e indíviduos atentos e «com estudos», alguns levam isto ao extremo, associando ao islamismo uma agenda de reconquista de territórios antigos, Portugal incluído. Todos aqueles que continuem a resistir ao magnetismo de Marrocos perderão muito, como o verdadeiro sabor dos vegetais ou a força do silêncio do deserto. Se ao invés, abraçarmos culturas diferentes, há muito para aprender e coisas para reaprender, como a educação cívica e o respeito mútuo. Com várias viagens a Marrocos, todas únicas e longe de se esgotar como destino, é para mim um mistério inconcebível estar tão perto deste reino mágico e não querer senti-lo na pele. Não me ocorreu melhor prenda de Natal para oferecer a alguém que amo — festejar a entrada em 2020 vestindo Marrocos por peça de roupa nova marrocos‘19 3


Lema: «Allah, al Watan, al Malik» (trad. «Deus, Nação, Rei») Religião oficial: Islamismo Governo: Monarquia Constitucional Área total: 446 500 km2 (57.º do mundo; ~5 x Portugal) População: 35 milhões hab. (2016) IDH: 0,686 (121.º mundial) Capital: Rabat Moeda: Dirham marroquino (1 € ~ 10.8 Dh) Fuso horário: GMT MARROCOS Reino de Marrocos 4marrocos‘19


ROTA NAVARRITA p. 7 p.89 DESERTO p.57 de duna em duna FANTASIA p.73 lugares improváveis ATLAS p.39 sol frio na montanha uma colecção única ZELLIGE p.29 mosaicos e labirintos nobre corcel marrocos‘19 5


OCEANO ATLÂNTICO MAR DE ALBORÃO Algeciras Tanger-Med Tarifa Imilchil Ouarzazate Casablanca Rabat Agadir Mogador Mazagan Méknes Beni Melal N’Kob Boulmane Dadès Gorges du Todgha Midelt Errachidia Arfoud Zagora Khénifra Ceuta Azrou Asilah Alnif Tétouan Chefchaouen Merzouga Ouzina Aït-Ben-Haddou Marraqueche Fez Lac d’Isly MoulayBousselham A B C SERPENTES Na praça de Jemma-El-Fna, ouvimos as flautas dos encantadores de serpentes, o tinir dos pratos e a algazarra das bancas de comida. F F G SABOR A SAL Preâmbulo de uma futura viagem maior pela costa atlântica marroquina, esta estadia serve para ver o mar e sentir-lhe o cheiro. G D E MIL E UMA NOITES Cenário habitual do grande ecrã, a fortaleza dos «kasbahs» de Aït-Ben-Haddou recebe-nos. E DUNAS DO DESERTO No mais famoso cordão dunar de Marrocos, esperam-nos os dromedários e as aventuras fora-de-pista. D MONTANHA A cadeia montanhosa do Atlas traz o frio e a neve, com pouco mais que uma dezena de pastores no camnho. C MEDINAS E BAZAAR A maior e mais antiga medina do mundo de Fez, as tanoarias, os labirintos de ruas estreitas, vendedores de tudo e de nada,sob um coro de «muezzins» a encorajar as cinco orações diárias. B AZUL As paredes e ruas pintam-se de azul na cidade de Xexuão que forra a encosta de Jbel Kalaa. A ARGÉLIA ARGÉLIA ARGÉLIA ARGÉLIA 6marrocos‘19


ROTA Uma colecção única Aceite o convite de integrar a nossa viagem com a de um grupo informal de amigos nos seus jipes, combinámos que os acompanharíamos uma parte da viagem, mas que, nas restantes seguiríamos outros caminhos. A ideia principal seria adoptar a recomendação prudente de fazer os troços de deserto e fora-de-pista em grupo, permitindo-nos apoiar- -nos mutuamente em caso de avaria, falha de navegação, inépcia ou acidente. Destes quatro cenários, ocorreram três... mas lá chegaremos, a seu tempo. Sem uma viatura com preparação especial para maiores durezas, nem treino ou experiência de condução fora-de-estrada relevante, nós dois e a Navarrita podemos ser considerados novatos. Em Marrocos seria a estreia absoluta para a Inês e a pick-up, regressando eu onde já estivera por quatro ocasiões, todas a viajar de moto. Preparámos o percurso tendo presente tudo isto e procurando ter uma amostra das envolvências variadas que Marrocos tem — montanha, deserto, praia, bazares e medinas Lisboa Tétouan Fez Imilchil Ouzina Aït-Ben-Haddou Marraqueche Moulay-Bousselham Lisboa Merzouga Chefchaouen Tanger-Med Algeciras Ramlia Algeciras Tanger-Med 26 DEZ 2019 27 DEZ 28 DEZ 30 DEZ 2 JAN 3 JAN 4 JAN 5 JAN 31 DEZ 1 JAN 2020 29 DEZ 7marrocos‘19


MARROCOS GIBRALTAR TÉTOUAN MAR DE ALBORÃO ATLÂNTICO ROCHEDO DE GIBRALTAR MONTE HACHO PORTO DE TANGER-MED PORTO DE ALGECIRAS COLUNAS DE HÉRCULES Para entrar no mar de Alborão há que passar por elas, entre o Rochedo de Gibraltar e o monte Hacho em Ceuta — 23 km de distância, com uma profundidade de 365 m, um por cada dia do ano. Chegada Uma única funcionária faz o registo de entrada, enquanto uma legião de dezenas de homens cá fora não faz nada — como resultado, as habituais horas de espera. Travessia Em apenas noventa minutos, os ferries da FRS fazem a travessia do estreito, aproveitando o tempo a bordo para preencher os impressos de controlo de fronteira marroquina. Partida Ainda com luz do dia, a saída de Espanha e o embarque no porto de Algeciras são rápidos e sem grandes sobressaltos. FERRY FRS DIA 01 Até Tétouan ! 8marrocos‘19


Os documentos da nossa pick-up — dos antigos, com livrete e registo de propriedade — ainda estão em nome do meu pai. As regras de entrada em Marrocos com viatura própria determinam que, se não for nossa, devemos ter uma declaração do proprietário a autorizar a entrada em Marrocos. Tendo falecido nesse Verão e a decisão de alinhar na viagem ter sido em cima do acontecimento, não foi possível actualizar o registo para meu nome. A nossa esperança é que para os marroquinos na alfândega «José Maria» e «José Manuel» fossem a mesma coisa. Até tinha preparada uma argumentação algo desesperada — que «Maria» era abreviação de «Manuel Vieira Correia» em português, os únicos nomes que diferem entre nós. Já em Tanger-Med, o controlo de documentos é lento e pouco claro. Em cada via movimenta-se uma pequena legião de agentes oficiais e quatro vezes não-oficiais. Os que estão fardados ocupam-se da recolha dos documentos, passaportes e registos das viaturas, os quais entregam a alguém dentro de uma única cabina. O tempo vai passando e não parece haver resposta da misteriosa cabina. Insistimos uma e outra vez junto do agente que nos atendeu, o qual acaba por ceder e, para nos sossegar, leva-nos cordialmente até ao interior da cabina. Revela-nos uma única funcionária, atrapalhada para despachar uma pilha impressionante de documentos, envolvendo documentos manuscritos e entrada de dados num computador com o qual não se parece ajeitar muito bem. O ritmo continuaria lento, mas agora compreendido. Mais meia-hora terá passado antes de nos devolverem os papéis, entre os quais um cartão novo reutilizável em várias entradas durante o período de um ano para esta viatura. As unhas roídas voltarão a crescer OCEANO ATLÂNTICO MAR DE ALBORÃO Tanger-Med Ceuta Tétouan Algeciras Tarifa ! «MARIA OU MANUEL?» As nossas hipóteses de sermos bem sucedidos no intento de entrar no Reino de Marrocos dependia de uma pequena diferença entre estes dois nomes. Se para alguém que fale árabe forem o mesmo, entramos. Se não for, temos um problema e um possível regresso, recambiados para Espanha. ! Estadia no «Hotel Kabila», M’Diq Route Tetouan-Ceuta, Km 20, BP 81, M’diq 9marrocos‘19


O estacionamento onde parámos, chegada a hora da oração, torna-se uma extensão da mesquita vizinha. Decidimos sentarmo-nos numa esplanada perto a beber um chá de menta enquanto esperamos pelo grupo voltar ali. Quando regressamos ao parque, já todos saíram, devotos e companheiros do grupo, «sem dar cavaco»... 10 marrocos‘19


DIA 02 Um dia no azul Azul é a cor dominante na cidade de Xexuão, plantada nas encostas de Jbel Kalaa, parte das montanhas do Rif. A proximidade com o mar Mediterrâneo e as culturas de canábis tornam-na um dos centros de comércio de haxixe e marijuana «oferecidos» abundantemente pelas ruas e praças aos turistas. Fora isso, convida ao passeio, sempre com a sensação de se estar num local único, excepcional. A manhã é passada deambulando pela cidade antiga. O resto do dia seria para chegar a Fez ainda com luz do dia e encontrar o riade «Dar Tamo» OCEANO ATLÂNTICO MAR DE ALBORÃO Tanger-Med Méknes Ceuta Asilah Tétouan Chefchaouen Fez MONTANHAS DO RIF 11 marrocos‘19


Grande Fezada Fora o fim-de-ano marcado no Sul, os planos são feitos ao sabor dos dias que vão correndo. Assim acabamos por decidir ficar em Fez um dia completo, dormindo aí duas noites no riade «Dar Tamo». A Navarrita fica no parque de estacionamento do lado de fora da medina, onde combinámos encontrarmo-nos. Jantamos no riade uma tagine de frango e legumes para dividir. O quarto sub-comprido fica no terceiro e último piso, com as janelas para o terraço. Há um leve aroma a urina de gato e, caída a noite no inverno na cidade, fica rapidamente gelado, sendo necessário reforçar os aquecedores. Os pequenos-almoços no cimo com vista para a medina foram uma das melhores partes, junto com a simpatia do serviço. Os dias são preenchidos a calcorrear as ruas da antiga e maior medina do mundo, visitando as tinturarias, as oficinas de artesãos e as lojas DIA 03 12 marrocos‘19


No amplo terraço com acesso directo ao quarto tomamos os pequenos-almoços com vista para a antiga medina de Fez. «Riad Dar Tamo» (estadia de duas noites) 89, Derb Mzerdeb, Gzira 13 marrocos‘19


Os caracteres amazigues lembram que estamos em terras berberes. 14 marrocos‘19


DIA 04 Imilchilled Em quase todas as vindas a Marrocos, Imilchil faz parte. Muito por força da intensidade das histórias vividas no «Auberge Tislite», gerido pela Malika, uma força da natureza. Desta feita, não nos encontrámos, ausente na cidade quando aí fomos. Acabamos a jantar lá, acompanhados pelo simpático «Monsieur Merci» e seu amigo, uma omelete berbere feita no momento, aquecendo as mãos num chá quente e conversando enquanto o lume vai cozinhando a comida. Antes, fôramos ver o local para acamparmos junto ao lago mais longe da estrada, o d’Isly. Esperava-nos uma noite fria, característica esperada no Alto Atlas. Os sons e paisagens são de uma calma que se consegue nesta região durante a época mais baixa, ainda que no Sul seja alta, na verdade Imilchil Méknes Beni Melal Midelt Khénifra Azrou Fez Lac d’Isly FLORESTA DOS CEDROS ALTO ATLAS 15 marrocos‘19


É só garganta A travessia do Atlas pelo vale do rio Todgha (lê-se «Todra») reforça a bondade da escolha em visitar Imilchil. É facilmente trocado pelo vale paralelo do Dadès que liga Agoudal, Msemrir e Boulmane du Dadès, local de uma das fotografias mais repetidas nas viagens de Marrocos. Quem o faz, habitualmente continua para nascente ao longo da movimentada N10 — liga Agadir a poente, a Ourzazate e Errachidia — para ir visitar as turísticas gargantas do Todra, onde termina o vale que percorremos para sul. Por um acaso, reencontramos o grupo em Arfoud, parados na mesma ruela onde compramos água. Fazemos o acesso a Merzouga juntos, seguindo fora da estrada num pequeno e fácil percurso pelo hammad, o deserto negro de pedra DIA 05 Imilchil Beni Melal Boulmane Dadès Gorges du Todgha Agoudal Midelt Errachidia Arfoud Merzouga Lac d’Isly ERG-CHEBBI VALE DO TODGHA Agadir Ouarzazate N10 N10 N10 ARGÉLIA 16 marrocos‘19


O vale do Todgha tem paisagens dramáticas entre Agoudal e as gargantas. 17 marrocos‘19


«Auberge Amazir» ou «Ksar Sania ‘Chez Françoise’» (estadia de duas noites) Moh Ait Bahadou, BP 9, Merzouga. 18 marrocos‘19


DIA 06 «Mohammed, tira-nos do buraco» Esperava encontrar mais movimento aqui, em Merzouga, atraídos como nós pela perspectiva de passar o ano nas dunas do deserto, perto da fronteira com a Argélia. O dia reparte-se entre um passeio motorizado à volta do singular sistema dunar de Erg-Chebbi, guiados pelo experiente Mohammed. Cunhou a expressão «Mohammed, tira-nos do buraco» tal a frequência com que nos ajudou a tirar a Navarrita de dois ou três atascanços na areia funda das dunas. Mais tarde, viríamos a descobrir que a falta e irregularidade na entrega de potência se devia a um defeito na bomba de combustível, reparado meses mais tarde em Portugal. Marcado algo em cima da hora para essa tarde, confiámos em dois dromedários para adentrarmos sozinhos nas mais altas dunas de Erg-Chebbi Arfoud Merzouga ERGCHEBBI ARGÉLIA ! TAMPA Com os solavancos no fora-de-estrada, agravados pelo peso da tenda, os fechos da tampa da zona de carga cedem, partindo. Faríamos o resto da viagem com uma cinta amarrando tampa e pára-choques. ! 19 marrocos‘19


Ouzina ou sopas Mohammed manter-se-ia ao serviço do grupo, guiando-nos pelo percurso até Ouzina, evitando a pista famosa para procurar alternativas menos evidentes. O dia terminaria já noite adentro, com um erro de navegação dos carros à nossa frente e a avaria do Wrangler, «consertado» para seguir viagem, enquanto regressam para nos encontrar num oued onde virámos à direita quando devia ter sido na outra direcção. As dunas de Ouzina são feitas no escuro, dificuldade acrescida pela insuficiente capacidade de iluminação da Navarrita. As tendas berberes reservadas para nós geram alguma confusão, em menor número do que o tamanho do grupo. A esta distância, teríamos ficado melhor abrindo a nossa tenda de tejadilho e dormindo nela, poupando aquela que seria a mais cara de todas as estadias DIA 07 Arfoud Alnif Merzouga Ouzina ! AVARIA Demorados a resolver uma avaria de um companheiro de viagem num «Jeep», acabamos a fazer a travessias das dunas em noite escura. ! ARGÉLIA 20 marrocos‘19


Camping «Ouzina Rimal» (estadia de uma noite) Piste Ouzina Com a avaria do «Jeep Wrangler», a travessia do cordão dunar é feita de noite. 21 marrocos‘19


Riade «Dar Mouna la Source» (estadia de uma noite) Aït-Ben-Haddou Camp «El Mharech» Pista Foum Mharech Kasbah Ait-Ben-Haddou 22 marrocos‘19


DIA Foum Mharech— Aït-Ben-Haddou08 Regressamos aos dias sozinhos, apontando à cidade de fantasia e imaginário das «mil e uma noites» — Aït-Ben-Haddou. Pelo caminho passamos em N’Kob, ignorando a sabedoria do ditado «Não voltes onde foste feliz», ficando desapontado descobrindo uma vila descaracterizada e cheia de construções. Já no destino, e depois de uma tentativa falhada para ficar no riade «Paradise du Silence» — falha nossa, apercebemo-nos mais tarde, com a reserva para o mês seguinte... —, sugerem-nos o «Dar Mouna la Source», colado ao rio do ksar, o principal atractivo. Não parece haver muita gente nesta altura do ano, sendo uma boa opção vir agora, longe do calor e multidões Ouarzazate N’Kob Zagora Alnif Merzouga Ouzina Aït-Ben-Haddou ARGÉLIA 23 marrocos‘19


Cobras e Lagartos O dia começou com um passeio demorado em Aït-Ben-Haddou e um pequeno-almoço calmo. Já na estrada para chegar a Marraqueche, demoramos muito a completar a curta ligação, devido a obras na estrada e uma paragem (muito) prolongada. Depois de Fez, a medina de Marraqueche tem um trabalho dificultado em impressionar-nos. Deixa essa tarefa a cargo da famosa praça Jemma El-Fna, cheia de vida, música e cor. Estacionámos a Navarrita fora da medina e fazemos o caminho para o riade «Les Lauriers Blancs» a pé, numa marcação feita no próprio dia. Come-se nas bancas de grelhados ao ar livre, compram-se tâmaras e amendoins torrados, debulhados e comidos enquanto vemos os grupos de dançarinos e músicos, encantadores de serpentes e adestradores de pequenos macacos-de-Gibraltar DIA 09 Ouarzazate Agadir Mogador Aït-Ben-Haddou Marraqueche ! EXPLOSÕES Obras de reparação da principal (e única) estrada que liga Ouarzazate e Marraqueche ditam uma paragem forçada de quase duas horas. ! 24 marrocos‘19


Riade «Les Lauriers Blancs» (estadia de uma noite) 156 Derb Sidi Messaoud, Bab Doukala, Marraqueche O progresso não pára em Marrocos. O preço a pagar são as esperas ocasionais, retidos na estrada. 25 marrocos‘19


Preferimos ficar em MoulayBousselham em vez de Asilah, repetindo a «Villa Nora» de viagens anteriores. O final de dia é passado ouvindo o mar, o mesmo que conhecemos em Portugal, com ondas e tudo. 26 marrocos‘19


10 MoulayBousselham No regresso, para embarcar no ferry usando a reserva já efectuada, fazemos escala em Moulay-Bousselham. Na manhã seguinte, a pouco mais de cem quilómetros do porto de Tanger-Med, saímos antecipando duas horas para o caminho. A saída de Marrocos é feita de sucessivas verificações se não levamos nada ou ninguém clandestino. Mesmo depois de passar a Navarrita por dois gigantes aparelhos de raios-X, não nos livrámos de ter de abrir a zona de carga, para a qual terá chamado à atenção estar presa por uma cinta vermelha. Foi uma corrida contra o tempo para apanhar aquele ferry, evitando assim esperar pelo próximo daí a muito tempo. E, de facto, parecia uma corrida, tanto que dois marroquinos — cada um a pilotar um «Mercedes Class A» quase novo — após sucessivas acelerações bruscas e manobras arriscadas, se embrulham numa das muitas rotundas, embatendo com alguma violência. Ambos estão bem, mas vão ter de contar uma história a alguém. Somos o último carro a embarcar, mas apenas depois de vermos todos os camiões no porto entrar e, a cada um, apostarmos entre nós dois que «este já não vai caber». OCEANO ATLÂNTICO Ouarzazate Casablanca Rabat Mogador Mazagan Asilah Marraqueche MoulayBousselham «Au Revoir, Le Maroc» 11 MAR DE ALBORÃO Algeciras Tanger-Med 27 marrocos‘19


Ela nem pode acreditar — deve ser o equivalente ao «Tio Patinhas» mergulhar no cofre de moedas. 28 marrocos‘19


As sensações em Marrocos são tão fortes como os seus aromas e cores. Em Fez, a hortelã tanto ajuda a fazer o famoso chá de Marrocos, como é oferecida num pequeno molhe no acesso aos terraços a partir dos quais vemos a laboração nas tinturarias. A sugestão é para que a coloquemos junto ao nariz e assim nos resguardarmos de outro aroma forte, o qual torna infâme a indústria dos curtumes, desenvolvida numa atmosfera de amónia e excremento de pombo. Enquanto subimos essas escadarias no interior dos edifícios das ruas, vamos passando lojas revestidas a produtos de pele, atravessando nuvens de aroma de couro e um mosaico de malas, sapatos, casacos e carteiras. Em Chefchaouen, o aroma é do haxixe e azul, a côr, em camadas infinitas de pinceladas nas paredes e até no chão. Já Marraqueche tece uma manta colorida pelas bancas de fruta e das flores secas e dos pigmentos, num sem-fim de ruas que convergem para a mais icónica praça marroquina, Jemma El-Fna. Nos pequenos barcos de pesca artesanal na costa de Moulay-Bousselham vamos encontrar as mesmas cores garridas. ZELLIGE mosaicos e labirintos de aromas e cores Chefchaouen Marraqueche MoulayBousselham Aït-Ben-Haddou Fez 29 marrocos‘19


Por que há pão nos terraços e qual a ligação com as peles que secam ao Sol? A resposta está nos pombais que vemos em muitos prédios, pois o excremento de pombo contém amónia, essencial para amolecer as peles e permitir que absorvam os pigmentos. 30 marrocos‘19


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Como não gostar dos postais que (ainda) se encontram em Marrocos, comidos pelo Sol, encarquilhados pelo tempo, feitos há trinta anos, escritos por nós hoje... E o melhor? Apenas agora começaria a última viagem deles, sussurados os destinos antes de entrarem nos marcos azuis e amarelos da «Poste Maroc». 33 marrocos‘19


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A praça que dispensa apresentações. 35 marrocos‘19


Final de dia em Moulay-Bousselham 36 marrocos‘19


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A chegada ao vale dos lagos, antecâmara de Imilchil, é sempre um momento marcante. 38 marrocos‘19


Marrocos não é só feito de Sol, deserto e calor tórrido. Um universo quase paralelo esconde-se na montanha do Alto Atlas, polvilhado de neve e roupa quente. Depois do bulício das ruas apertadas de Fez, esperava-nos o Atlas, o «Alto», o «Magnífico» que tudo testemunha desde as suas cumeadas cobertas de neve. Mas era o silêncio de um pequeno vale encaixado na montanha que nos movia. Aí dormiríamos na tenda depois das duas noites a sentir-se inútil e enxovalhada num parque poeirento às portas da maior medina de Marrocos. Reino camaleão Este é o camaleão dos países de África — um dia de viagem leva-nos do bazar frenético à calma da montanha, dividida apenas com pastores e rebanhos. Vencida a portela — ou passo — e a montanha revela o vale tranquilo de uma das aldeias que se mantém genuína, apesar de estar no caminho de uma das maiores atracções turísticas do reino — a garganta do Todgha. Já procurávamos no saco a roupa mais quente e ainda o Sol ia alto na descida para o «Auberge Tislite», reflectido no espelho de água, perfeito não fora os patos do pequeno lago. A estrada continua por mais uma meia-dúzia de quilómetros antes de se chegar à aldeia. Mas estamos interessados no ATLASnos lagos dos amantes Imilchil 39 marrocos‘19


caminho de terra que leva até às margens. Viéramos entretidos a partilhar as histórias de viagens passadas, todas feitas de moto e todas — sem excepção — com uma paragem para visitar Malika. Uma mulher pastora simples, tomou nas suas mãos explorar o pequeno albergue com apenas quatro quartos em volta de um páteo interior coberto e um fogão a lenha. Reconhecimento O ritmo lento da viagem e os dias curtos do Inverno roubam-nos as horas de sol que ainda doura o vale. Perseguimos a nossa sombra em direcção ao segundo e maior lago, para fazer um reconhecimento do local para passar a noite. Marrocos muda a cada ano que passa. Estradas que se pavimentam, linhas de electricidade que rasgam as montanhas, tendas glamping que sarapintam o pequeno deserto de Erg-Chebbi, como se estivesse doente. Soubéramos que estes haviam sido alvo de uma razia das autoridades e quase todos fecharam. Tudo isto nos aconselha a não tomar nada por certo — o que foi, pode já não ser. Depois de completarmos uma pista rápida endurecida pelo frio e sem ainda sentir os efeitos do degelo que torna em lama a terra compacta, chegamos ao grande lago. Senti aquele reconforto egoísta e algo infantil em ver que nada mudara. Até a neve no alto dos cumes parece a mesma. Afinal, amanhã termina Dezembro, ainda que o branco aí perdure até à Primavera. Na margem, apenas um carro e uma tenda de um grupo de três jovens marroquinos. — Estamos a fazer um ensaio de material de campismo — explicam-me quando 40 marrocos‘19


De manhã, o gelo vai derretendo do pára-brisas com os primeiros raios de sol. 41 marrocos‘19


IMILCHIL, ATLAS Os dois lagos a norte da pequena vila de Imilchil são resguardados pelas montanhas do Atlas. LAC D’ISLY A não perder O «Auberge Tislite» e a anfitriã, Malika, valem a viagem por si só. Uma opção para dormir num contexto óptimo, para comer uma omelete berbere genuína ou simplesmente ficar à conversa. A nossa escolha O segundo e maior lago oferece mais opções nas suas margens, vistas de encher a alma e um silêncio que já não se ouve hoje em dia. Uma alternativa No primeiro lago, algumas auto-caravanas apreciam os patos por entre os juncais que bordejam o mais pequeno dos lagos, acessível a qualquer viatura e à vista de todos. Queres saber onde fica e como lá chegar? Descobre este e outros «spots». IMILCHIL UMA ALTERNATIVA AUBERGE TISLITE A NOSSA ESCOLHA 42 marrocos‘19


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entabulo conversa. — Mas não dormimos aqui. Está demasiado frio — rematam. Ainda solto um riso nervoso, enquanto recito para mim o inventário de agasalhos e roupa quente, como se rezasse um terço. A noite fria deixara de ser apenas uma promessa — era agora uma certeza. Quente e bom Regressamos ao albergue, movidos pela perspectiva da comida quente e da conversa à volta de um thé marrocain. A porta envidraçada permanece repleta de autocolantes de expedições e aventuras passadas. Descubro com o dedo duas das minhas que aponto a Inês, sobreviventes das muitas que se lhe seguiram, um preâmbulo para contar histórias à volta do velho fogareiro a lenha. Este lembra um altar num lugar de culto religioso, na posição nobre ao fundo da nave central do pequeno edifício. Em cada parede lateral interior, as pinturas de cores vivas ilustram as celebrações e tradições berberes, aludindo aos noivos que a lenda assevera terem enchido os lagos com as suas lágrimas trágicas. Oferecem-lhe as costas as mesas rudimentares de bancos corridos e cadeiras, protegidas por toalhas de plástico, onduladas pelos fundos escaldantes dos inúmeros chás de menta que aqui se serviram, dando as boas-vindas e enxotando o cansaço, frio e desidratação. Mesmo com as mãos aquecidas nos pequenos copos de chá servido, arrepio-me. Sabe bem estar de volta também a um país que não é o nosso, afinal. Monsieur Merci Recebem-nos dois homens de pele curtida pelo Sol e cabeça enterrada num quente gorro. Perguntamos pela Malika. — Foi à cidade abastecer e só regressa amanhã — respondem-nos. Mas a desilusão não terminara ainda, pois a razão que a levara à cidade deixara a despensa quase vazia e sem grandes opções para preparar uma refeição quente. — Mas podemos fazer uma omelete berbere — arrisca «Monsieur Merci», o mais alto dos nossos anfitriões. Havia sido ali, na sua aldeia que eu comera com o Daniel a que, até esse dia, seria a melhor omelete da minha vida. Aceitamos de imediato. Uma fina camada de gelo cobre toda a paisagem, tendo a audácia de subir a escada e se aninhar também sobre o edredão no interior da tenda. 44 marrocos‘19


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O recorte da montanha a nascente na hora mais fria do dia 46 marrocos‘19


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A refeição toma-se aqui como as conversas — em boa companhia. Num francês que não é deles nem nosso, lá vamos encontrando as palavras para partilhar os planos para a noite e a ouvir como é a vida deles durante o Inverno marroquino. — C’est dure, lá bas — avisa Merci, deixando a sugestão de voltarmos aqui se não aguentarmos o frio da noite. Enquanto trocamos contactos, a porta abre-se. Lá fora já está escuro, com uma réstia de luz apenas a bordejar a montanha. Entra uma rapariga que havia ido à aldeia comprar os ingredientes para a refeição que lhe confeccionariam na cozinha. Despedimo-nos com um a tout a l´heure. Com o desenrolar da viagem, mantemos o contacto com Merci por mensagem. Cada uma que enviamos para ir documentando com vídeos e imagens, é recebida com entusiasmo e alegria. Mas nunca nos devolve uma mensagem escrita, sempre uma gravação de voz a acompanhar as imagens captadas bem cedo do alto da montanha, orgulhoso da sua terra. Quando logo no início lhe perguntamos por escrito o seu nome, devolve-nos uma gravação. — Merci, Merci — ouvese. Era improvável ser o seu nome, mas hesitamos em perguntar novamente. Era agora evidente que Merci não sabia ler francês, nem entendera a questão. Deixamos cair as mensagens e adoptamos o registo de voz para a reportagem. Ainda hoje, em Portugal, trocamos imagens das nossas terras, um modesto agradecimento pela que fora a melhor omelete berbere das nossas vidas. Dentadinhas de Esquilos O caminho de regresso ao lago maior é feito com os tons laranja do lusco- -fusco que ainda nos permite ver algo enquanto montamos a tenda. Sentimos a falta do nosso microfone para captar os poucos sons da montanha — o ocasional chocalho distante de uma ovelha com insónias, um latir quase indistinto e o silêncio. Olhamos para a cama feita de edredão, manta e sacos-cama e parece-nos pouco. Vestimos a nossa roupa mais quente, sobrepomos meias e anichamos os corpos na esperança que chegue. Não tardou a entrar connosco na tenda, o frio penetrante. Sempre que emergimos do sepulcro de roupa, sentimos a sua mordida, como um esquilo de volta da avelã que é o nosso nariz. A noite passa com a constante 49 marrocos‘19


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