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Published by destino: abaton, 2023-09-14 12:11:01

Marrocos 2019

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consciência do frio, ainda que por debaixo das roupas esteja quente. Ao acordar, o interior da tenda mudara, agora forrado por uma fina camada de gelo, sobre o edredão, nas paredes interiores, no tecto. A condensação da nossa respiração foi a vítima da noite na montanha, congelada numa fotografia para recordar a experiência. A luz que chega de fora ainda é ténue. É aquela hora mágica, quando o Sol se faz anunciar dardejando raios que desenham o recorte da montanha. Para sair, não preciso de vestir muito mais roupa, afinal dormiramos com quase toda vestida. Nos bolsos do quente casaco encontro as luvas, antes que o malvado esquilo me descubra as pontas dos dedos. Vou precisar deles para disparar alguns tiros, caçando os troféus que colocaremos sobre a lareira lá em casa. Cada um lembrar-nos-á que não é no sofá que viverás a vida em pleno. Que mesmo as dentadas do frio de uma manhã limpa no Alto Atlas te lembram o que é estar vivo Aproveitar para tirar uma fotografia enquanto os narizes não caem. 53 marrocos‘19


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A pé não é a melhor forma de vencer as dunas no deserto e de gatas menos ainda. Para isso, contámos com a «Navarrita» e uns dromedários. 56 marrocos‘19


Magnético. Se me perguntassem como definiria o deserto numa única palavra, esta seria a minha escolha. Quando estou nele, sou capaz de ficar a olhar para as dunas e deixar o tempo escorregar pelas encostas abaixo como se fora uma ampulheta gigante. Mas está longe de ser uma relação fácil. Coloquem-me aos comandos de um 4x4 ou de uma moto e a atracção esmorece, presentindo que não é o meu território e ele, como um cão nervoso, também o sente. Olhamos um para o outro e perguntamo-nos em silêncio — «Como é que vamos fazer isto?» Lá por ser difícil não se desiste dessa paixão. Trabalha-se nos pontos onde somos piores, com a esperança de, no final, a relação se tornar prazeirosa e ambos tiremos dela o máximo, o deserto e eu. Como resultado, nesta viagem prolongámos o tempo passado nas suas areias, ora montados em dromedários, ora a pé, ora a conduzir. Escolhemos Erg-Chebbi, Ouzina e Ramlia para as sessões de «terapia de casal», promovendo Mohammed a conselheiro. Quando damos por nós num aperto, gritamos «Mohammed, tira-nos do buraco!» e prontamente nos acode DESERTOde duna em duna Merzouga Foum Mharech Ouzina «Mohammed, tira-nos do buraco!» 57 marrocos‘19


É difícil não nos sentirmos privilegiados e agradecidos num cenário assim, no sopé da duna de Erg-Chebbi. 58 marrocos‘19


KSAR SANIA PASSEIO DE DROMEDÁRIO SUBIDA A PÉ AO CIMO DA DUNA ERG-CHEBBI MERZOUGA OUZINA FIM DO PERCURSO DE DROMEDÁRIO Deserto de areia Contrariamente à ideia generalizada, Marrocos não tem extensos desertos de dunas, como associamos ao Saara ou à Península Arábica. Acampar no deserto Em poucos anos, multiplicaram-se os acampamentos no meio de Erg-Chebbi, resposta à grande procura. Hoje, foram proibidos com apenas uma mão-cheia de licenças atribuídas, em mais uma demonstração de mão firme e sabedoria do Rei de Marrocos, adepto fervoroso do turismo no seu reino. Cem Dirhams Naquele que é o país de África com o custo de vida mais baixo, por dez euros o jovem Mohammad (outro) leva-nos aos dois na sua cáfila para um passeio de duas horas. MERZOUGA Um pequeno sistema dunar atrai para a vila muita gente à procura do deserto de areia, algo raro em Marrocos. ARGÉLIA 59 marrocos‘19


Uma combinação da hora do dia e altura do ano ditaram a sorte de todo o percurso ser apenas nosso. 60 marrocos‘19


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Os compridos lenços tuaregues vão para lá da funcionalidade para proteger do sol e poeiras, acrescentando uma compoente estética, com cores fortes constratantes com o laranja do deserto. 63 marrocos‘19


Deserto de Ramlia Cimo da duna em Erg-Chebbi Vista da aldeia de Merzouga a partir da duna mais alta. O regresso da cáfila ao abrigo para a noite. 64 marrocos‘19


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PISTE DE OUZINA AUBERGE OUZINA RIMAL NOSSO ITINERÁRIO PISTA PARA ALIF PISTA AO LONGO DO VALE DO DAOURA-ZIZ AVARIA E CAMINHO ERRADO MERZOUGA FOUM MHARECH ARGÉLIA TRAVESSIA NOCTURNA DE DUNAS VALE DO ZIZ O longo vale do Ziz deixa Erfoud para continuar para sul, antes de se entregar ao Rheris, o qual morrerá no enorme Saara. “Paris-Dakarˮ A ligação de Merzouga por Ouzina e Ramlia é incluída em várias edições de provas de desporto motorizado. Daoura e Ziz Com nascente no Atlas, o Ziz percorre 450 km para sul onde se torna o Daoura nesta zona, para se juntar ao Rheris que acaba perdido nas areias do Saara. ! Avaria e engano A fechar o grupo, seguíamos o «Jeep Wrangler» até ao momento em que se perde e avaria. Nada que não se remedeie e resolva. ! 66 marrocos‘19


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Na zona de Ramlia é raro encontrar água à superfície. À procura de alguém que se distanciou. 69 marrocos‘19


Oued onde se avariou o «Jeep» ao final do dia. Pequeno palmeiral a caminho de Foum Mharech 70 marrocos‘19


Por mais de uma vez, foi graças a este hábil homem que aprendemos como sair dos «buracos» em que nos metemos e como evitar cair neles no deserto. Mas, também foi nas mãos dele — Obrigado, Mohammed — que a «Navarrita» saíu de alguns... Calhou a ambos, a honra de atolar a «Navarrita» na areia das dunas. 71 marrocos‘19


Sem a força das águas depois do degelo da Primavera, o rio Unila permite a travessia, pedra sobre pedra. 72 marrocos‘19


São muitas as dimensões que contribuem para que associemos a Marrocos uma envolvência no território do fantástico, do imaginário. Desde o chamamento à oração cantado pelos muézinns do alto dos minaretes que sobressaem na silhueta das povoações, pequenas e grandes, à elegante escrita indecifrável que acentua o enigmático e misterioso, como um penetrante olhar tuaregue que emerge de um lenço a cobrir o rosto. Coisas pequenas e grandes ajudam este reino a compor este quadro maior de fantasia. Os universos que cidades como Chefchaouen ou Aït-Be-Haddou criam é genuíno e envolvente. A própria paisagem onde se inserem acentua esse efeito, ao ser despojada de tudo, um oceano ondulante feito apenas de pedra e areia que dramatiza o momento de revelação destas singularidades, ali, no meio do nada, como que escondidas à vista de todos FANTASIAlugares improváveis Aït-Ben Haddou Chefchaouen 73 marrocos‘19


A localização da fortaleza dá um dramatismo a quem chega vindo de Sul, numa envolvente despojada de tudo. 74 marrocos‘19


Todo o conjunto é composto por casas privadas debaixo de uma associação de moradores que procura promover a beneficação e manutenção das fortalezas, sob o olhar atento da UNESCO. A lista é longa, antiga e actual — os filmes «Lawrence d'Arábia» e «Gladiador», a série «Guerra dos Tronos». O cinema tem procurado encontrar no kasbah de Aït-Ben-Haddou uma atmosfera romântica nos seus corredores escuros, ao mesmo tempo que dura e primordial nos tons de terra. A estrutura multi-familiar chegou a alojar quase cem famílias, hoje reduzida a apenas cinco que detêm a maioria do espaço, adaptando-o para melhor receber quem visita e honrando a sua história e tradição 75 marrocos‘19


PATRIMÓNIO AÏT-BEN-HADDOU MUNDIAL UNESCO (1987) No sopé do Alto Atlas, o rio Unila desce até desaguar no rio Ouarzazate, ao longo da antiga rota de caravanas onde se erigiu no ano 757 DC o «kasbah», cidade feita de pequenas fortalezas. “Lawrence d'Arábiaˮ Palco de inúmeros filmes, o «kasbah» é um espaço único, recriando muitos dos imaginários das mil e uma noites. Lama e madeira A luta contra os elementos é um desafio sempre presente no «ksar» de Aït-Be-Haddou, resistindo a introduzir outros materiais mais modernos, muito graças ao controlo apertado da UNESCO. “Pas de Silenceˮ Reservado com antecedência, quando chegámos não tinham a nossa reserva. Arranjaram-nos outro hotel. Respingámos. Mas no final, apercebemo-nos que tínhamos sido nós a marcar para o mês errado. RIAD PARADISE DU SILENCE MARRAQUECHE OUAZARZATE KASBAH AIT-BEN HADOU DAR MOUNA LA SOURCE 76 marrocos‘19


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«Dar Mouna La Source» Arte popular lembra ter sido paragem de uma rota de comércio com um «caravanserai» no interior do «kasbah». 78 marrocos‘19


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É uma cor que traz tantos até aqui. Dentro, o azul mantém a disputa com todas as demais cores que enchem as ruas, as lojas, as árvores. 82 marrocos‘19


Ao mistério sobre o que terá levado esta cidade na montanha do Rif a pintar-se de azul, junta-se um dialecto falado e escrito com elementos estranhos, diferentes, exóticos. Um enclave berbere é cada vez mais uma surpresa, tão a norte. Liberta do jugo de Espanha a ques teve sujeita entre 1920 e 1956, hoje a cidade pinta-se a cada dois anos para manter o ar fresco azul que a caracteriza 83 marrocos‘19


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PÉROLA CHEFCHAOUEN AZUL É comum ouvir-se falar tamazigue nesta região, sendo um enclave berbere ou amazigue um refúgio que acolheu e protegeu judeus e muçulmanos expulsos de Espanha a partir de 1492. “Os Cornosˮ A cidade vai buscar o nome da expressão amazigue/berbere «che chaouen» que significa «olha os cornos», pela forma da montanha acima dela. 1471 DC Construída no séc. xv pouco antes da conquista do último território muçulmano na Península Ibérica pelos Reis de Espanha, desempenhou um papel importante para as comunidades que aí viviam. Uma questão de fé Das várias teorias para as origens da côr azul, uma das principais está ligada ao judaísmo. O pigmento azul com que tingiam os xailes de oração — uma forma de recordar o poder de Adonai num reflexo do céu — terá sido estendido às pinturas de casas e ruas. JBEL KALAA TÉTOUAN FÈS CHEFCHAOUEN “A PÉROLA AZULˮ VALE DO OUED LAOU 85 marrocos‘19


Povos berberes escrevem usando o «tifinague», um alfabeto próprio com origem fenícia, significando «letras fenícias» («tafineqq») ou «nossa invenção» («tifin negh»). Originalmente escrito na vertical, as versões modernas optaram da esquerda para a direita. 86 marrocos‘19


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Recordo a questão que mais me colocavam enquanto dirigi uma revista de viagens de moto pelo mundo — «Qual a melhor moto para viajar?» A resposta, como a pergunta, foi sempre a mesma — «A melhor para viajar é a que tens na garagem.» Sempre que as perguntas de viagem são sobre qual o melhor modo de transporte, são as questões erradas. Marrocos é um destino dado a ser vivenciado por inúmeras perspectivas. Conseguir fazê-lo de carro, moto, bicicleta a pé ou de camião é tanto um privilégio, quanto um pormenor. Levámos neste regresso ao Reino de Marrocos o que tínhamos na garagem — uma pick-up com vinte anos de idade, sem preparação alguma especial para lá da verificação do bom estado do essencial. Não é a melhor em nada, para quem a vê do lado de fora. De dentro, não tem concorrência. É família, não se escolhe — estima-se. Fora neste Verão que o meu pai falecera e, na garagem dele, estava a Navarrita que nunca fez viagens, preferindo sempre a companhia dele, algures no Alentejo remoto entre vacas e sobreiros. Ao levá-la connosco para África — aparte o simbolismo de ser o continente onde nascera e combatera uma guerra que nunca foi sua — era uma forma de o levar também a ele a viajar. Marrocos representa tudo aquilo que sempre rejeitou sem discussão — o estranho, desconhecido, inquietante. Pelo caminho demonstrou o mesmo carácter trabalhador de sempre, apesar de ferida e apenas mais tarde o descobrirmos, em Portugal. Uma bomba de combustível danificada negava-lhe a potência exigida pelas areias marroquinas. Foi uma boa companheira, perdoando-nos a falta de jeito e competências de pilotos de todo-terreno. Por ela e como recompensa, fizemos um curso de condução, entretanto... mas isso é história para outro dia NAVARRITAnobre corcel 89 marrocos‘19


Tenda de tejadilho Esta «Gordigear Explorer», a nossa primeira tenda de tejadilho, ainda hoje deixa saudades, muito pela qualidade de construção e dos materiais, mas também pela vista desimpedida a toda a volta. Em vários momentos ao longo da viagem poder abrir a tenda e dormir ali perto é reconfortante de ter como opção. Em Ouzina, por exemplo, se viajássemos sozinhos, teríamos aberto a tenda nas dunas quando fomos surpreendidos pelo cair da noite. 1 Colchão De todos os colchões que já testámos em tendas de tejadilho flexíveis, o da Gordigear é o melhor, com isolamento adicional da plataforma, muito útil em climas agressivos como este. «Só faltou a escalfeta» Sem aquecimento para além dos nossos dois corpos, uma tenda de tejadilho pode ser inclemente debaixo de frio sub-zero. O colchão isolado da plataforma conta com um edredão de penas, dois sacos-cama (um de 5º C o outro do «Sr. Encalorado» para 15º C), uma manta de polar revestida a lã. Seria tudo isto suficiente para o pino do inverno a 3000 m de altitude na montanha marroquina? 2 Tecido Apesar de utilizar um poli-algodão de alta densidade, este não foi adversário para o frio que caíu sobre nós durante a noite. Ficou a fazer falta um forro interior amovível para um comportamento térmico aceitável. 3 Vista desimpedida Por não ter o avançado do lado da escada — como a sua «irmã» Explorer Plus — a vista não fica obstruída, permitindo tirar o máximo partido da janela de topo, bastando apontar a traseira da «pick-up» para o melhor azimute. 4 Acesso Esta configuração, que combina uma tenda flexível na zona de carga da «pick-up», facilita muito a abertura e arrumação, ficando tudo à mão, sem recorrer a escadotes ou «banquinhos do IKEA». Fechada, a tenda encaixa na perfeição, sem perturbações aerodinâmicas algumas, como que feita por medida. 5 Escada extensível Esta escada de dois corpos pode parecer inferior às escadas telescópicas tubulares, mas isso muda quando começar a entrar poeira e areia entre os tubos e deixarem de funcionar. 6 Fechos da mala Com o peso da tenda sobre a tampa da zona de carga, os solavancos exigiram demasiado dos fechos, duas frágeis placas metálicas que se quebraram para impedir que a tampa se abrisse em cada salto. Durante a viagem foi remendada a situação apertando a tampa através de uma cinta ao pára-choques traseiro. 4 1 3 2 5 8 6 7 Bomba de combustível Danificada, comprometeu a entrega regular de potência, mais sentida em regimes mais exigentes, como na negociação de dunas ou em subidas arenosas. 8 Osgas no frio? Não se assustem — é apenas o logotipo da marca. 7 90 marrocos‘19


No Alto Atlas abrimos a tenda de tejadilho para passarmos a noite junto ao lago d’Isly (página 39). 91 marrocos‘19


Último a entrar, primeiro a sair — «Incha!» Operação incontornável para conseguir progredir na areia, mas não facilitar nas pedras aguçadas. Muito gosta a malta da fotografia com os carrinhos alinhados... Por muito que estivesse habituada ao frio dos montes alentejanos, aqui morde com mais força. 92 marrocos‘19


Amarrada com uma cinta ao pára-choques, remediamos os fechos partidos com os solavancos recentes. «Inês Catarina! Sai de cima da Navarrita!» «E temos aqui este modelo, saído do Salão de Genebra, equipado com a mais recente tecnologia.» 93 marrocos‘19


Recuperadas as funções motoras e a sensibilidade nos dedinhos... 94 marrocos‘19


Primeiras horas da manhã na estrada para Imilchil, com o Atlas em fundo. 95 marrocos‘19


GIBRALTAR CHEFCHAOUEN LAC D’ISLY COLUNAS DE HÉRCULES Para entrar no mar de Alborão há que passar por elas, entre o Rochedo de Gibraltar e o monte Hacho em Ceuta — 23 km de distância, com uma profundidade de 365 m, um por cada dia do ano. IMILCHIL, ATLAS Os dois lagos — «Tislite» e «d’Isly» — a norte da pequena vila de Imilchil são resguardados pelas montanhas do Atlas. PÉROLA AZUL É comum ouvir-se falar tamazigue nesta região, sendo um enclave berbere ou amazigue, outrora refúgio que acolheu e protegeu judeus e muçulmanos expulsos de Espanha a partir de 1492. 8 85 42 96 marrocos‘20


ERG-CHEBBI PISTE DE OUZINA AÏT-BEN-HADDOU VALE DO ZIZ O longo vale do Ziz deixa Erfoud para continuar para sul, antes de se entregar ao Rheris, o qual morrerá no enorme Saara. MERZOUGA Um pequeno sistema dunar atrai para a vila muita gente à procura do deserto de areia, algo raro em Marrocos. PATRIMÓNIO MUNDIAL No sopé do Alto Atlas, o rio Unila desce até desaguar no rio Ouarzazate, ao longo da antiga rota de caravanas onde se erigiu no ano 757 DC o «kasbah», cidade feita de pequenas fortalezas. 59 66 76 marrocos‘20 97


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