172 Capítulo 1. As imagens do céu
Fig. 33 (à esquerda) – Autor desconhecido. Estudo para o Mistério da Encarnação (O Arcanjo Miguel), c.1784. Desenho a aguada castanha
realçada a branco, 340 x 215 mm. Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga (Inv. n.º 763 Des).
Fig. 34 (à direita) – Cyrillo Volkmar Machado (1748-1823). Nossa Senhora do Livramento, com São João Baptista, São Carlos e Santo
António Intercedendo pela Sucessão do Trono, 1796. Fresco, d.n.d. Mafra, Convento de Mafra (detalhe do tecto da Capela de Nossa Senhora
do Livramento ou Oratório Real Sul).
No ano de 1789, quando a nova Basílica do Santíssimo Coração de Jesus, na
Estrela, era formalmente consagrada, em Queluz a família real portuguesa intensificava uma
vasta campanha de redecoração do palácio e, em Lisboa, os pintores estavam atarefados com
as pinturas dos tectos de múltiplas igrejas da cidade em reconstrução, em França, Luís XVI
(1754-1793), Maria Antonieta (1755-1793) e toda a sua corte eram obrigados a abandonar
definitivamente Versailles. Também nesse ano George Washington (1732-1799) é investido
pelo Congresso dos Estados Unidos da América como presidente da primeira república
moderna, cuja Constituição tinha como primeiras palavras «Nós, o povo …». Mas é igualmente
em 1789 que Mozart (1756-1791) compõe o seu Così fan tutte, uma comédia de enganos que,
numa visão mordaz e cruamente humana, questiona a possibilidade do amor terreno poder
corresponder ao ideal sacro do amor absoluto e imaculado. Nesta sucessão de
acontecimentos aparentemente desconexos mas, para nós hoje, suficientemente significativos,
o ancien régime e a igreja triunfalista saída do Concílio de Trento caminhavam a passos largos
para o seu ocaso e, com eles, o mundo que tornara possível as grandes máquinas celestiais
barrocas que, em Portugal, têm em Pedro Alexandrino o seu último brilhante representante.
Capítulo 1. As imagens do céu 173
1.2.3.4. A disseminação por todo o país
Lisboa, capital do reino e do império, constitui um caso distinto pelo número e,
frequentemente, qualidade de tectos pintados ao longo do século XVIII. No entanto, um dos
aspectos mais notórios deste género pictórico e da sua importância no contexto da cultura
visual e artística do Barroco em Portugal, é a sua disseminação por todo o país. Vimos já
como Santarém, o Alentejo, a Beira Alta e a região em torno de Lisboa, nomeadamente a área
norte até Torres Vedras, reúnem um conjunto muito significativo destas obras. Há que
acrescentar, na primeira metade do século, Braga ou, na segunda, Trás-os-Montes e o
Algarve. Porém, esta visão, necessariamente simplificada esconde o facto de, com poucas
excepções, como o caso do Porto (restrito à Sé e a Nasoni), a representação do espaço
celestial nos tectos das igrejas, segundo modelos e conceitos internacionais – mesmo que
cruzados com características regionais ou pessoais dos artistas envolvidos – é uma das
facetas dessa alargada participação do país, ao longo de todo este período, na emergência de
uma moderna cultura visual europeia.
Em Braga, nas décadas de vinte e trinta, pontifica o pintor Manuel Furtado de
Mendonça (act.1722-1738), do qual pouco sabemos e a quem estão atribuídos um conjunto de
tectos: na Sé (nomeadamente, o tecto do subcoro, do zimbório do cruzeiro, da caixa dos
órgãos e, directamente relacionado com ele, o destruído tecto do coro), na capela-mor da
Igreja do Convento do Salvador e no Salão Nobre do Palácio dos Biscaínhos295. No entanto,
estes dois últimos surgem notoriamente distintos dos primeiros e, dentro destes, o dos órgãos
e o do coro apresentam um notável nível de sofisticação e de conhecimento da arte italiana
contemporânea.
Em Trás-os-Montes, a actividade de Manuel Caetano Fortuna (act.1733-1766), de
Jerónimo da Rocha Braga (act.1739-1743), aparentemente o ajudante de Mendonça em Braga
(cf. Doderer, 1992: 12), de Damião Bustamante (act.1711-1763) e, eventualmente de outros
artistas, conduzem aos tectos das igrejas da cidade de Bragança (Santa Maria, Santa Clara,
São Francisco e, o mais espectacular de todos, o de São Bento), da Misericórdia de Chaves,
ou das pequenas igrejas espalhadas pelos concelhos de Macedo de Cavaleiros e Mogadouro.
295 A que se acrescenta o tecto da nave da muito arruinado Capela do Recolhimento de Santa Maria Madalena,
ou das Convertidas. A data deste é de 1722, o dos Biscaínhos é de 1724 e o do Salvador está datado de 1726
(cf. Oliveira, 1994: 54, 106). Na Sé o tecto acima dos órgãos está assinado e estes datados de 1737-38, existindo
os documentos da obra (cf. Doderer, 1992). Sobre o tecto do subcoro e do zimbório tudo é mais vago.
174 Capítulo 1. As imagens do céu
Em Santarém, Luís Gonçalves de Sena (1713-1790), dá continuidade ao trabalho de
António Simões Ribeiro, seja no tecto da sacristia da Igreja da Misericórdia, no da capela-mor
da Igreja do Seminário ou nos destruídos tectos do subcoro do Convento de São Domingos
dos Frades e da nave e capela-mor da Igreja de São Martinho, seja ainda em Lisboa, no
também destruído tecto da Igreja de Nossa Senhora do Real Colégio dos Nobres.
No Algarve, a região que, além de Lisboa, mais sofreu com o terramoto, e da qual,
neste âmbito, pouco sabemos antes de 1755296, terá no final do século XVIII e no início do
XIX, certamente na sequência do processo de reconstrução, um surto significativo de obras:
em Tavira, Faro, Loulé, Pêra e Lagos. Três pintores destacam-se aqui: Diogo de Sousa e
Sarre (act.1737-1769), Joaquim José Rasquinho (1736-1822) e, especialmente, José Ferreira
da Rocha (act.1792-1813) – embora, uma vez mais a exacta identificação autoral e
cronológica destas obras esteja por esclarecer.
Neste processo de alargada difusão do modelo ilusionista de máquina celestial, tanto
encontramos obras que são produto da intervenção da Corte e, por isso, da influência directa
da capital sobre o país, quanto obras patrocinadas pelas diferentes dioceses e os seus
respectivos centros ou capitais, como Beja, Braga, Coimbra, Évora ou Viseu, por exemplo, ou
obras de iniciativa local, envolvendo frequentemente artistas locais, em pequenas igrejas de
vilas e aldeias, numa clara demonstração de como, independentemente dos meios, recursos e
grau de informação ao dispor das paróquias, dos fidalgos da terra e dos artistas, ocorreu uma
verdadeira disseminação deste modelo pictórico e, não menos importante, uma vontade de o
partilhar e de para ele contribuir. Neste sentido, o estudo das máquinas celestiais portuguesas
deve corresponder não apenas a um estudo de modelos, ou de obras isoladas mas,
verdadeiramente, de uma cultura, que além de religiosa é, neste período, inegavelmente visual
– e que, apesar das suas fragilidades e assimetria de resultados, é estruturalmente
cosmopolita. Ou, se quisermos, europeia. Por isso, esta integração não apenas da elite urbana
de Lisboa mas, em maior ou menor grau, de um país inteiro, de Ponte da Barca até Tavira, no
curso da cultura visual barroca é um dos traços mais importantes do fenómeno das máquinas
celestiais pintadas nos tectos portugueses ao longo deste vasto século XVIII, que, em termos
artísticos se inicia em 1690, com António de Oliveira Bernardes, e se prolonga pelos primeiros
anos de Oitocentos.
296 Duas das poucas excepções são os tectos em azulejo da Igreja de São Lourenço (1730), em Almancil, e da
capela-mor da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco (c.1718), em Faro; o primeiro assinado e o segundo
atribuído a Policarpo de Oliveira Bernardes, e reconstruído por Domingos de Almeida em 1759-61.
175 Capitulo 2. O céu nas imagens
CAPÍTULO 2. O CÉU NAS IMAGENS
2.1. Matérias: o céu como lugar
Se as representações pictóricas do céu são indubitáveis visualizações do invisível,
objectos materiais que por si próprios definem, apresentam e codificam imagens do mundo
celestial, que matérias constituem e qualificam este mundo superior, incomensurável e
extraordinário? Por outras palavras, de que matérias é feito este céu a que o sujeito só através
da arte, da imaginação ou da revelação individual acede visualmente? E de que forma é que
este céu pictórico, na sua simultânea aparência de naturalidade e sobrenaturalidade, se
relaciona com os céus da nova ciência em crescente desenvolvimento ou exprime o dos textos
e concepções da religião católica, ao serviço da qual ele constitui um precioso instrumento de
revelação, de catequização e de persuasão?
2.1.1. O céu natural: arte e ciência
2.1.1.1. O céu meteorológico
O céu, em termos de Pintura, é esta parte etérea que vemos
acima de nós mas é também, de forma mais concreta, a
região do ar que respiramos e aquela em que se formam as
nuvens e as tempestades. … O carácter das nuvens é o de
serem ligeiras e aéreas na forma e na cor; e ainda que o
número das suas formas seja infinito, é muito conveniente
estudá-las e recolhê-las a partir da Natureza.
(Piles, 1708: 209-11)297
1783 foi um ano extraordinário: chamaram-lhe anno mirabilis, ano do medo, ano de
coisas espantosas. Talvez tudo tenha começado em Dezembro de 1782 com a erupção de um
vulcão na ilha de Honshu no Japão. Em Abril de 1783 ocorre uma nova erupção vulcânica,
agora noutra ilha do arquipélago. Em Julho, de novo em Honshu, explodia o vulcão de Asama
297 «Le Ciel, en termes de Peinture, est cette partie étherée que nous voyons au dessus de nous, mais c’est
encore plus particulierement la region de l’air que nous respirons, & celle où se forment les nuées & les orages.
… Le caractere des nuages est d’être legers & aëriens dans la forme & dans la couleur ; & quoique le nombre des
formes en soit infini, il est très à propos de les étudier, & d’en faire choix d’après Nature …».
176 Capitulo 2. O céu nas imagens
(Grattan et al., 2005: 644). Nuvens de cinzas e gases sulfurosos suspensas na atmosfera
produziriam uma prolongada ocultação da luz solar, a queda da temperatura média, chuvas
ácidas e uma vaga de fome que mataria mais de 300 000 pessoas nos anos seguintes
(Hamblyn, 2001: 55). Na Europa, onde ainda era demasiado cedo para se receber as notícias
do Japão, uma série de acontecimentos em cadeia tinha-se também iniciado. A 17 de
Fevereiro de 1783 irrompe o vulcão Etna e logo depois o Stromboli, ao mesmo tempo que toda
a Calábria é sacudida por abalos sísmicos; em Agosto dá-se a irrupção do Vesúvio. Porém, foi
na Islândia que o pior aconteceu. A primeira notícia chega a Lisboa só em Agosto:
Copenhague 1.º de Julho. Falla-se aqui muito no extraordinario fenomeno de haver repentinamente formado
huma nova Ilha a 7 milhas da d’Islandia. O Capitão d’hum navio Dinamarquez, que navegava naquellas
paragens, admirado de ver huma terra desconhecida, cuja superficie exhalava hum fumo muito denso, correo á
roda della, e lhe da milha e meia de circumferencia: elle tomou-a ao principio por huma porção da Islandia
separada por alguma convulsão da natureza; mas soube-se depois que sahíra novamente do mar; e calcula-se
que isto succedera ao mesmo tempo, que a Calabria, e Messina padecêrão os primeiros abalos. Na expectação
d’noticias mais circumstanciadas, o Conselho da Fazenda foi encarregado pelo Rei de mandar tomar posse desta
porção de terreno, e lhe poz o nome de Ny Oee, ou Ilha nova. (Gazeta de Lisboa, 1783: n.º 32, Suplemento;
sexta-feira 15 de Agosto)
Para o leitor da Gazeta de Lisboa esta será apenas a primeira de uma série de
notícias vindas de toda a Europa acerca da convulsão atmosférica que dominou o continente
nesse Verão. Número a número, fenómenos aparentemente desconexos sucedendo-se um
pouco por todo o lado, começaram a encadear-se formando um puzzle com sentido. No Verão
de 1783, de Estocolmo a Lisboa, de Londres a Damasco, as notícias sobre o estado da
atmosfera irão rivalizar com as da assinatura do tratado de paz entre a Inglaterra e os novos
Estados Unidos da América que põe fim à guerra de independência americana, do iminente
conflito generalizado entre as potências europeias, da guerra declarada entre estas e o
Império Otomano ou as que chegam de Constantinopla sobre a peste que aí grassa. Também
esta última estaria, muito provavelmente, relacionada com aquela convulsão (Stothers, 1999:
719).
De facto, depois da erupção submarina de Fevereiro responsável pelo estranho
aparecimento – e posterior desaparecimento – de uma nova ilha ao largo da Islândia, a 8 de
Junho de 1783 ocorre em Laki, na Islândia, uma enorme explosão. A sua violência é tal que
hoje se considera ter sido o segundo maior acontecimento vulcânico dos últimos dois mil anos
(Demarée et al., 1996: 727). Continuará até Fevereiro de 1784, tendo dez explosões
consecutivas nos primeiros cinco meses (Chenet et al., 2005: 721). Estimativas
contemporâneas calculam que o vulcão de Laki tenha produzido colunas de gases e cinzas
com alturas de 9 a 13 km, que se mantiveram nos primeiros três meses (Grattan et al., 2005:
Capitulo 2. O céu nas imagens 177
643-4) e mergulharam a Europa, o Médio Oriente e grande parte do hemisfério norte, incluindo
a China e o continente americano (Demarée et al., 1996: 728-9; Chenet et al., 2005: 727, fig.
3) num estranho nevoeiro quente e seco que perdurará ao longo de todo o Verão desse ano: o
«nevoeiro universal» de causas incertas de que falaria Benjamin Franklin numa conferência
proferida a 22 de Dezembro de 1784 (Franklin, 1785)298. Para aqueles que viveram sob ele e
sofreram os seus efeitos, tratava-se de uma assustadora «perturbação geral da natureza»
(Jackson’s Oxford Journal, 1783: 12 Julho; cit. por Hamblyn, 2001: 50).
O sufocante nevoeiro escuro de cheiro desagradável que começou a cobrir a Europa
em Junho de 1783, obscurecendo a luz, ocultando o céu, reduzindo a visibilidade, alterando as
cores, sufocando as gargantas e os pulmões produziria um pânico generalizado e geraria toda
a espécie de rumores e de explicações assustadoras. Porém, ao longo dos meses seguintes
as suas consequências tornaram-se mais dramáticas, registando-se um aumento no número
de mortes, cujo pico será atingido nos meses de Setembro e Outubro e que se manterá acima
da média até Maio de 1784 (Grattan, et al., 2005: 647)299. No caso da própria Islândia as
consequências são devastadoras: calcula-se que cerca de 25% da sua população tenha
morrido por causas directas e indirectas das erupções (Witham e Oppenheimer, 2005: 15).
Além disso, a destruição de colheitas, a queda prematura das folhas das árvores, violentas
tempestades, observação de estranhos fenómenos atmosféricos, abalos de terra em locais
inabituais, epidemias no Médio Oriente, tudo parece ter-se reunido para tornar o Verão de
1783, nas palavras do inglês Gilbert White (1720-1793), «espantoso e portentoso, cheio de
horríveis fenómenos», no qual «além de alarmantes meteoros e tempestades tremendas» a
estranha «névoa ou nevoeiro de fumo que se manteve durante muitas semanas nesta ilha foi
um acontecimento extraordinário, diferente do tudo o que é conhecido pela memória humana»
(White, 1789: XI, carta LXV)300.
Este nevoeiro, que transformou a transparente abóbada do céu num denso e
opressivo tecto opaco, deslocando-se para oeste nas camadas da troposfera terá chegado a
298 Franklin, nessa conferência, seria o primeiro a relacionar as estranhas condições meteorológicas do Verão
de 1783 com as erupções da Islândia.
299 O tratamento destes dados refere-se, sobretudo, a França e a Inglaterra (Grattan, et al., 2005; Witham e
Oppenheimer, 2005), embora a crise de mortalidade esteja documentada também na Holanda e na Itália
(Grattan, et al., 2006).
300 «The summer of the year 1783 was an amazing and portentous one, and full of horrible phaenomena; for
besides the alarming meteors and tremendous thunder-storms that affrighted and distressed the different counties
of this kingdom, the peculiar haze, or smokey fog, that prevailed for many weeks in this island, and in every part of
Europe, and even beyond its limits, was a most extraordinary appearance, unlike anything known within the
memory of man».
178 Capitulo 2. O céu nas imagens
França a 14 de Junho e a 21 a Inglaterra (Courtillot, 2005: 635-6), espalhando-se rapidamente
por todo o continente, havendo registos de ter atingido Lisboa a 26 (Grattan, et al., 2005: 646,
fig. 1), onde, apesar de tudo, é provável que os efeitos tenham sido menores. Na sexta-feira
29 de Agosto de 1783, a Gazeta de Lisboa noticia:
Francfort sobre o Mein 22 de Julho. … Escrevem d’Embden com data de 12 de Julho, que o nevoeiro denso e
secco, que reina alli ha muito tempo, parece haver-se espalhado sobre toda a superficie da Europa: varios
maritimos o tem tambem observado no mar; durante o dia, elle encobre o Sol, e para a noite toma hum cheiro
infecto; em alguns lugares secca as folhas, e quasi todas as arvores das bordas do Ems forão despojadas das
suas em huma noite. As tempestades, que se tem multiplicado por toda a parte, são olhadas assás geralmente
como huma consequencia deste estado da atmosfera: ellas tem causado grandes desastres em muitos lugares.
(Gazeta de Lisboa, 1783: n.º 34, Suplemento)
A 5 de Setembro, numa notícia relativa a 22 de Julho vinda de Copenhague, fala-se do «calor
excessivo, e o Ceo está sempre cuberto d’huma nevoa espessa, que enfraquece muito a luz
do Sol» (Gazeta de Lisboa, 1783: n.º 35, Suplemento) e a 9 dum desmaio do Papa, ocorrido
no fim de Julho, «em razão do calor suffocante, que se tem experimentado tanto em Roma e
Italia, como em outros lugares ha quinze dias a esta parte» (Gazeta de Lisboa, 1783: n.º 36).
Também nesse número informa-se os leitores do «susto e consternação geral» em Londres
com o estado de saúde da Rainha na sequência do parto da nova princesa, igualmente
atribuído aos «excessivos calores». Dada a demora na chegada das notícias, só a partir do fim
de Agosto e, sobretudo, ao longo dos meses de Setembro e Outubro de 1783 é que em Lisboa
se começa a ter uma ideia da dimensão global do problema, com as sucessivas notícias de
tremores de terra em França, Suíça, Escandinávia, Itália e Síria; do estranho e sufocante
nevoeiro seco e sulfuroso, escurecendo e avermelhando a atmosfera, que cobre a França,
Inglaterra, Alemanha, Dinamarca, Itália, Malta, Turquia, Síria; das grandes tempestades em
França, Alemanha, Espanha e Itália; ou da erupção do Vesúvio, seguida de novas erupções
na Islândia (cf. Gazeta de Lisboa, 1783: n.os 34-42, entre 29 de Agosto e 24 de Outubro).
Porém, a mesma perturbação geral da natureza responsável pelo extraordinário
Verão de 1783 fará com que o Inverno de 1783-84, juntamente com o seguinte301, tenha sido
um dos mais frios dos últimos trezentos anos (Stothers, 1999: 718; Chenet e tal., 2005: 729),
provocando uma nova vaga de mortes que acrescem, assim, às registadas nos meses
anteriores. Por isso, no início de 1784, a Gazeta de Lisboa passa a estar repleta de notícias
sobre o rigoroso inverno europeu que, em Portugal, se manifesta sobretudo por violentas
tempestades e inundações: «Se este Paiz tem sido izento dos intensos frios, e outras
301 Gilbert White fala desses dias «Siberianos» de Dezembro de 1784 e lamenta os estragos provocados no seu
jardim em Selborne, especialmente nos loureiros de Portugal (White, 1789: XI, carta LXIII).
Capitulo 2. O céu nas imagens 179
calamidades, que tem consternado quasi todo o resto da Europa, as chuvas de tal modo tem
continuado, que o Eminentissimo Cardeal Patriarca julgou necessario ordenar Preces públicas
em todas as Igrejas, para obter do Ceo a serenidade do ar» (Gazeta de Lisboa, 1784: n.º 11,
terça-feira 16 de Março). Porém, a serenidade do ar está longe de ser obtida e, no mês
seguinte, novas medidas são tomadas: «transferir em Procissão a Imagem do Senhor dos
Passos do Convento da Graça para a Igreja Patriarcal, onde ficou exposta á veneração pública
desde o dia 20 deste mez: e a serenidade do ar, que logo se seguio, fez ver quanto he bem
fundada a confiança, que aquella devota Imagem inspira no povo desta Capital» (Gazeta de
Lisboa, 1784: n.º 16, Suplemento de sexta-feira 23 de Abril).
Ao longo de quase um ano, entre 1783 e 1784, a natureza e, em particular, o céu,
nesta sua dimensão meteorológica, tornou-se para quase todos os europeus num motivo de
atenção, consternação e temor. Para muitos, trouxe mesmo a morte. Porém, o ano de 1783 é
também atmosfericamente extraordinário por uma outra razão: é no seu Outono que se inicia,
verdadeiramente, a aventura aeronáutica humana. Assim, de forma portentosa, o céu em
todas as suas ancestrais dimensões de ameaça e sonho irrompe no quotidiano da Europa: ao
mesmo tempo que parece desabar e asfixiar os seus habitantes alguns destes encontram,
finalmente, um meio de se elevarem nele e por ele viajarem, escapando à superfície do
planeta ao ludibriarem engenhosamente as leis da gravidade. Por isso, talvez nunca como em
1783, no exacto momento em que se alterava profundamente a relação entre o sujeito e o céu,
a ideia de Tales de Mileto (c.625-545 a.C.) de que vivemos não no cume de uma terra sólida
mas no fundo de um oceano de ar pareceu tão pertinente e, sobretudo, tão manifesta (cf.
Hamblyn, 2001: 22).
Três dias antes da erupção de Laki, na Islândia, no céu ainda límpido de Annonay,
os irmãos franceses Joseph Montgolfier (1740-1810) e Étienne Montgolfier (1745-1799)
conseguem elevar na atmosfera um enorme balão com cerca de 33,5 metros de circunferência
e 10,7 de altura perante os olhares maravilhados da população. Baptizaram-no de máquina
aerostática e calcula-se que tenha atingido os dois mil metros de altitude em cerca de dez
minutos (cf. Rómulo de Carvalho, 1953: 39-41). Fascinado com a experiência, Luís XVI (1754-
1793) propõe a repetição da experiência nos jardins de Versalhes. No dia 19 de Setembro, um
novo balão transportando agora três animais – um galo, um pato e um carneiro – permitiria
avaliar até que ponto a vida era possível nesse mundo muito acima da superfície da terra. A
primeira notícia sobre a maravilhosa invenção é publicada na Gazeta de Lisboa de sexta-feira
17 de Outubro de 1783: «PARIS 23 de Setembro. … A invenção d’huma nova máquina, que
180 Capitulo 2. O céu nas imagens
sobe aos ares pela sua propria leveza, he actualmente nesta cidade o objecto da curiosidade
geral, e o assumpto de todas as conversações» (Gazeta de Lisboa, 1783: n.º 41, Suplemento).
O passo seguinte constituía o maior de todos os desafios: testar até que ponto o
homem podia ser, efectivamente, um aeronauta, elevando-se e viajando pelo céu,
exactamente como as figuras pintadas nos tectos, abóbadas e cúpulas, quebrando assim a
maldição de Ícaro. Uma outra ambição estava aqui presente: ver pela primeira vez o mundo de
cima para baixo, ver, tal como Deus, os anjos e todas as figuras celestiais, a terra a partir do
céu e não apenas o céu a partir da terra. A 21 de Novembro de 1783, perante uma assistência
de milhares de pessoas, Jean-François Pilâtre de Rozier (1754-1785) – que dois anos depois
se tornará na primeira vítima dos ares – e o Marquês d’Arlandes tornavam-se nos primeiros
homens a viajar pelo espaço da atmosfera transportados por um balão de ar quente. Desse
modo, porque «um balão de ar quente … não era mais do que uma corrente convectiva numa
bolsa», «o voo humano seria finalmente alcançado imitando não um pássaro mas uma
nuvem» (Hamblyn, 2001: 79). Neste final do assombroso e sufocante Verão de 1783, a
atenção dos europeus entregou-se inteiramente à nova aventura aérea, a esta forma de viajar
pelo céu atmosférico que abria perspectivas revolucionárias para a humanidade. No gélido
inverno que se lhe seguiu, quando o nevoeiro sulfuroso ainda não se havia completamente
dissipado da atmosfera, Jacques Alexandre César Charles (1746-1825), inventor do balão de
hidrogénio, ao terminar o voo de duas horas feito a 3 km de altitude no dia 1 de Dezembro,
gritaria para todos aqueles que o esperavam: «é o céu que agora conta para mim. Que
serenidade, que visão arrebatadora!» (cit. por Hamblyn, 2001: 80).
Em Lisboa, no Sábado 18 de Outubro de 1783, a Gazeta de Lisboa faria uma
descrição minuciosa da nova máquina aerostática e das várias experiências já realizadas em
França, salientando que «he de presumir se farão algum dia applicações uteis ás precisões da
Sociedade» (Gazeta de Lisboa, 1783: n.º 41, 2º Suplemento)302. Daqui em diante e de forma
contínua ao longo de 1784, sucedem-se as notícias que dão conta da verdadeira febre de
experiências voadoras por toda a Europa. Finalmente, a 3 de Abril de 1784, uma «máquina
partio d’hum dos jardins do Palacio d’Ajuda, 4 minutos depois do meio dia, estando o
302 «Tendo o primeiro globo volante, quando cahio, causado hum susto enorme aos camponezes de Genesse,
que julgando ser cousa diabolica pelos saltos que dava, fogirão, e convocarão outros muitos, que vierão
armados, e lhe derão combate até o destroçarem, e então o arrastarão ao rabo d’hum cavallo pelas ruas da sua
villa, &c. A Policia [em virtude disto] … fez imprimir varios milhares de bilhetes, e distribuillos aos Parocos das
Freguezias dos arrebaldes París e de Versalhes, a fim de que aquelles que descubrirem no Ceo similhantes
globos, que representão a figura da Lua escurecida, estejão prevenidos, que longe de ser hum fenomeno
temeroso, tal corpo não he senão huma máquina, que não póde causar mal algum, e de que he de presumir se
farão algum dia applicações uteis ás precisões da Sociedade» (Gazeta de Lisboa, 1783: n.º 41, 2º Suplemento).
Capitulo 2. O céu nas imagens 181
Thermometro de Reaumur em 11 graus, e o Barometro em 27 polegadas, e 11 linhas». O
balão concebido pelo padre oratoriano João Faustino, membro da Academia das Ciências
criada no final de 1779303, «s’elevou magestosamente, seguindo a direcção do vento, que era
Noroeste … chegando a atravessar uma nuvem, e a reduzir-se á apparencia d’huma bala de
24: depois desceo lentamente, e foi cahir na barreira de Cassilhas, 20 minutos depois da sua
partida, tendom corrido nesse tempo o espaço horizontal de mais de legua e meia. Os Reaes
Espectadores se mostrarão muito satisfeitos desta experiencia, que causou huma gostosa
admiração a todas as pessoas que a observárão» (Gazeta de Lisboa, 1784: n.º 14, Terça-feira
6 de Abril). A 11 de Maio afirma-se que «as experiencias aerostaticas se tem repetido nesta
Capital … Sabemos que outros curiosos preparão similhantes máquinas, e que até se cuida
nos meios de as dirigir» (Gazeta de Lisboa, 1784: n.º 19). A 26 de Junho relata-se uma outra,
realizada no dia 4 desse mês também em Lisboa, com um balão que transportava um macaco
e que, de forma infeliz, se tornou na primeira vítima da aventura aeronáutica portuguesa304.
Este entusiasmo por máquinas capazes de voar acima das nuvens chega a Coimbra onde se
realiza também uma destas experiências (Gazeta de Lisboa, 1784: n.º 28, 2º Suplemento de
17 de Julho). Mais tarde, em 1787, João Faustino constrói um novo balão que se eleva no céu
de Lisboa a 7 de Setembro, facto que é relatado no dia 11 pela Gazeta de Lisboa, embora os
seus leitores só a 21 fiquem a saber que a máquina, transportando um pombo, foi aterrar perto
de Montemor-o-Novo (Gazeta de Lisboa, 1784: n.º 37 e n.º 38, Suplemento).
1783 é ainda o ano em que, em Portugal, a nova Academia das Ciências organiza
viagens filosóficas ao Brasil e a Goa, enviando equipas de naturalistas e de artistas com a
missão de recolherem e registarem elementos notáveis dessas terras distantes. Num século
fascinado com a ideia de deambulação, de descoberta e de inventariação, estas expedições,
com intuitos científicos, por territórios inexplorados ou pouco conhecidos, são uma das várias
formas de concretização dessa curiosidade errante. As novas deslocações pela atmosfera,
303 A Academia foi criada por D. João Carlos de Bragança Mascarenhas da Silva (1719-1806), segundo Duque
de Lafões, com o patrocínio de D. Maria I.
304 «O infeliz navegante, que se vio entrar nas nuvens com a máquina, suppõe-se, que havendo saltado, se
precipitára dellas n’agua …. Dizem que hum barqueiro o víra cahir: e não vendo a máquina, concebera o terror
que he natural á vista d’huma tal figura, descendo pelos ares. A julgar-se a altura em que desappareceo a
máquina pelo seu diametro apparente, deve calcular-se, que distava da terra quasi duas leguas: e he crivel que
subisse a muito maior altura nos 20 minutos que andou superior ás nuvens. Este foi por tanto o Aerostato, que
por principios de rarefacção subio á maior distancia da terra, segundo até agora nos consta: e tambem não ha
noticia que algum outro por tal methodo chegasse como este a conservar se nos ares por espaço de 36 minutos;
pois nem mesmo a experiencia feita em París por Mrs. de Rosier e Arlandes chegou a durar tanto tempo, não
obstante o irem estes dous Filosofos na máquina, e subministrarem um fogo contínuo para conservar a
rarefacção» (Gazeta de Lisboa, 1784: n.º 25, 2º Suplemento de 26 de Junho).
182 Capitulo 2. O céu nas imagens
feitas nessa espécie de nuvens artificiais, são uma outra: a contrapartida aérea das viagens
filosóficas feitas em terra. Acima de tudo, o impacto desta invenção e as possibilidades por si
abertas – sobretudo depois da travessia do canal da Mancha a 7 de Janeiro de 1785 – causam
um profundo impacto em toda a Europa. Além disso, os relatos da visão aérea do mundo, da
experiência de atravessamento das nuvens e da elevação acima do tecto por elas formado,
estimulam a imaginação e criam uma consciência de que, afinal, a realidade se pode
assemelhar e até ultrapassar as ficções da arte e da literatura. Em Portugal, a nova máquina
reaviva também a memória das tentativas percursoras de Bartolomeu de Gusmão (1685-1724)
no início do século. De facto, em Abril de 1709, Gusmão enviara uma petição a D. João V no
qual o informa de uma máquina por si inventada capaz de «andar pelo ar, da mesma sorte que
pela terra e pelo mar», salientando tanto as vantagens bélicas que ela pode constituir para os
exércitos do soberano como as novas possibilidades de rápido transporte de pessoas e
mercadorias, de comunicação entre zonas distantes e ainda de assim se descobrirem «as
Regiões mais vizinhas aos Pólos do Mundo, sendo da Nação Portuguesa a glória deste
descobrimento» (cit. por Rómulo de Carvalho, 1953: 14). D. João V concede-lhe o privilégio
real a 19 de Abril; porém, as duas experiências feitas com o globo inventado por Bartolomeu
de Gusmão, a 3 e 5 de Agosto de 1709, resultariam num fracasso. Segundo as descrições
terão decorrido não ao ar livre mas no interior de um edifício – provavelmente na Sala das
Embaixadas da Casa da Índia, no Terreiro do Paço – e a máquina, baptizada
depreciativamente de Passarola, incendiar-se-ia logo no início da sua ascensão, ficando
depois conhecida sobretudo pela sua representação fantasiosa numa gravura que circulou
pela Europa (cf. Rómulo de Carvalho, 1953: 20-33). Porém, a ideia e, aparentemente, o
princípio técnico básico estavam lançados. Como estava o sonho de uma futura era
aeronáutica, na qual, como afirmara Gusmão, as viagens pelo ar permitiriam não apenas uma
rápida deslocação pelo mundo305 como, não menos importante, forneceriam, a partir de um
ponto de vista até aí inacessível, uma nova e inesperada visão da terra e do céu.
Entre 1783 e 1784, ao longo daquele vulcânico Verão, do Outono das viagens
aéreas e do gélido e chuvoso Inverno que se lhes seguiu, muitas são as igrejas que, em
305 Na corte austríaca, de onde provinha D. Mariana Josefa, a mulher de D. João V, uma princesa escreve à sua
mãe dizendo: «Desejaria muito estar junto de Vossa Alteza, um dia só que fosse. Tenho tantas coisas para lhe
dizer! A rainha de Portugal está disposta a ir vê-la, assim que estiver pronto um navio voador feito por um homem
que se encontra em Lisboa e que afirma ser capaz de atravessar os ares. Se esta invenção der resultado hei-de
tirar um dia, todas as semanas, para ir ver Vossa Alteza. Para mim seria um processo encantador e muito
agradável mas tenho muitas dúvidas de que o homem consiga tirar proveito da sua empresa» (cit. por Rómulo de
Carvalho, 1953: 19-20)
Capitulo 2. O céu nas imagens 183
Lisboa, estão em obras dentro do plano de reconstrução da cidade. De todas elas, porém,
duas, de forma mais provável, estariam a ser alvo de trabalhos pictóricos nas suas coberturas:
a Igreja de Nossa Senhora da Quietação do Convento das Flamengas, em Alcântara, e a
Igreja de Nossa Senhora da Encarnação, no Chiado. Destas, sabemos de forma mais segura
que a segunda teve a abóbada da sua capela-mor pintada neste período. O seu tema é o
Mistério da Encarnação cujo poder conduz à queda dos anjos rebeldes ou expulsão dos
demónios (fig. 35; cf. fig. 32, fig. 55, Apêndice: 4.1.).
Fig. 35 – Autor desconhecido e Gaspar
José Raposo (1762-1803). Mistério da
Encarnação, c.1784. Óleo sobre tela,
d.n.d. Lisboa, Igreja de Nossa Senhora
da Encarnação (tecto da capela-mor).
De facto, através do Compromisso da Real Irmandade do Santíssimo Sacramento da
Parochial Egreja de Nossa Senhora da Encarnação da cidade de Lisboa (1893) somos
informados que o projecto de reedificação da igreja, da autoria do arquitecto Manuel Caetano
de Sousa foi aprovado pela Irmandade a 15 de Junho de 1768 e que
seguidamente se deu o maior desenvolvimento ás obras, achando-se concluidas e bentas pelo arcebispo de
Lacedemonia, a capella mór, as duas do cruzeiro, sachristia e casa do despacho, ao fim de 16 annos, em 1784.
Vedou-se a continuação das obras do cruzeiro para baixo com tapume de madeira, e transferiu-se então a
184 Capitulo 2. O céu nas imagens
freguezia da dita ermida de S. Pedro d’Alcantara para a sua propria egreja em 21 de março … (Irmandade da
Igreja da Encarnação, 1893: 7-8)
Isto significa que, em Março de 1784, os actuais tectos da Sacristia e da Capela-Mor estariam
terminados, sendo que o primeiro teria sido pintado três anos antes, de acordo com a
afirmação já citada de Machado (1823: 203), e o segundo entre 1783 e 1784, já depois da
morte daquele e imediatamente antes da inauguração306. Esta é, aliás, objecto de uma notícia
na edição de 23 de Março de 1784 da Gazeta de Lisboa:
A 21 deste mez foi transferida com grande solemnidade a Imagem de N. Senhora da Incarnação, da Ermida dos
Clerigos Pobres, onde se achava depositada depois do terremoto, para a sua Igreja Paroquial, cuja principal parte
se acha reedificada com o mais elegante, e custoso trabalho. A Procissão foi composta das Irmandades do
Santissimo Sacramento, Communidades, e Clero das Paroquias, e Conventos vizinhos. Os moradores desta
Freguezia celebrárão esta trasladação com luminarias, fogos d’artificio, &c. (Gazeta de Lisboa, 1784: n.º 12)
O tecto da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora da Encarnação é, sem qualquer
dúvida, um dos mais elaborados exercícios de pintura ilusionista barroca realizados em
Portugal. Distingue-se, desde logo, pela complexa inter-relação tanto entre a quadratura e a
representação figurativa como entre a estrutura arquitectónica da abóbada e o espaço
pictórico aí criado; mas também pelo seu sentido dramático e pela eficaz representação do
escorço das figuras e de diferentes níveis de altitude, acima e abaixo da cobertura, que
operam uma persuasiva interacção visual entre o espaço celestial e o espaço real. Tirando
partido da estrutura em aresta da abóbada, é criada pictoricamente uma outra abóbada fictícia
aberta ao centro307. Por esta abertura não só somos capazes de ver uma luminosa glória
celestial desenvolvendo-se vertiginosamente em altura como, ao mesmo tempo, vemos
algumas das figuras descerem por ela em direcção ao espaço real: duas, em particular, o
Arcanjo São Miguel e Lúcifer, aparecem já abaixo dela e o último precipita-se numa queda
veloz em direcção ao chão da capela, empurrado pelo arcanjo guerreiro, ao mesmo tempo que
revira os olhos e os fixa em nós. Tudo nesta pintura parece decorrer rapidamente e, não
menos importante, vários são os acontecimentos que se desenrolam simultaneamente,
embora todos entrelaçados entre si: assistimos à queda de Lúcifer, como assistimos ao
306 Se na sua obra publicada, Machado não faz referência ao ano em que o tecto da capela-mor foi pintado (cf.
Machado, 1823: 203-4), no manuscrito que é provavelmente cópia do seu, afirma-se que Gaspar José Raposo
«em 1785 pintou o tecto da capela mór da Encarnação» (Anónimo, s.d.: 13v). No entanto, esta data parece
incompatível com o citado relato da Irmandade onde é dito que as obras estariam concluídas em Março de 1784.
307 Após o recente restauro, é possível constatar que a quadratura inicialmente concebida para o centro da
abóbada, prevendo uma abertura mais estreita para o espaço celestial e uma curvatura dos arcos laterais mais
acentuada, foi objecto de correcção, provavelmente durante a realização da pintura. Devido ao inevitável
processo de perda de opacidade que a tinta de óleo sofre com o tempo, nos extremos do espaço atmosférico, em
particular do lado esquerdo, é possível observar, como uma sombra, a pintura ou o desenho subjacente.
Capitulo 2. O céu nas imagens 185
Mistério da Encarnação anunciado à Virgem pelo Arcanjo Gabriel, o qual ocorre aqui não em
terra firme mas já a meio caminho do atmosférico Paraíso. Ao mesmo tempo, nos quatro
cantos da quadratura, outros anjos, a partir de aberturas laterais que conduzem não sabemos
onde, expulsam os outros demónios do mundo celestial e, literalmente, da própria composição:
não é com menor surpresa e maravilha que vemos os seus corpos pintados na superfície da
tela que cobre a abóbada prolongarem-se em madeira para fora dela, como semi-esculturas.
Lá no alto, Deus Pai preside assiste e comanda toda a complexa acção.
Fig. 36 – Giovanni Odazzi (1663-
1731). Queda dos Anjos Rebeldes,
1714-6. Fresco, d.n.d. Roma, Basilica
Santi Apostoli (tecto da capela-mor).
O Mistério da Encarnação e a Queda dos Anjos Rebeldes pintado no tecto do
presbitério da Encarnação estabelece relações visuais muito estreitas com alguns dos mais
espectaculares e paradigmáticos tectos pintados em Roma entre o final do século XVII e o
início do XVIII: o da abóbada da nave da Igreja do Gesù, de Giovanni Battista Gaulli, onde o
Triunfo do Nome de Jesus (1674-79) conduz, numa das componentes mais dramáticas da
composição, à expulsão dos anjos rebeldes que são atirados pela abertura ilusionista do tecto
em direcção ao chão da igreja; o da abóbada da nave da Igreja de Sant’Ignazio, na qual a
vasta e complexa Glória de Santo Inácio de Loyola (1691-94) de Andrea Pozzo envolve em
três cenas articuladas, na parte superior da parede da entrada e na zona imediata do tecto, a
representação da expulsão dos demónios pelos arcanjos; o da abóbada da nave da Igreja de
Santissimi Ambrogio e Carlo al Corso, de Giacinto Brandi onde, à semelhança do tecto da
Encarnação, se representa a Queda dos Anjos Rebeldes (1677-79), operada directamente
pelo Arcanjo Miguel, brandindo uma espada de fogo, na presença de Deus, uma corte de
anjos e a figura da Virgem ajoelhada sobre uma nuvem; ou, sobretudo, no tecto da capela-mor
186 Capitulo 2. O céu nas imagens
da Basílica de Santi Apostoli, de Giovanni Odazzi, discípulo de Gaulli, no qual também a
Queda dos Anjos Rebeldes (1714-16) é concretizada pelo Arcanjo São Miguel, de armadura e
espada de fogo, e comandada por Deus, sentado sobre uma nuvem, rodeado de pequenos
anjos e numa pose idêntica à do tecto de Lisboa (fig. 36).
Fig. 37 – Pedro Alexandrino de
Carvalho (1729-1810) e José António
Narciso (1731-1811). Adoração do
Cordeiro Místico, c.1804-07, d.n.d.
Lisboa, Igreja de Nossa Senhora do
Sacramento (tecto da nave).
No tecto da Encarnação o mundo celestial que se observa através da abertura
central, à semelhança de quase todas as suas representações na pintura europeia pós-
Correggio, é um espaço atmosférico: um lugar onde as nuvens, o ar e a luz estruturam,
preenchem e qualificam a sua natureza superior e o definem, directamente, como céu. A sua
eventual, mas de modo algum exclusiva, diferença relativamente a outros tectos reside no
facto desta luminosa matéria nebulosa, de cor dourada, ocupar totalmente o espaço celestial
visível, sem grandes nuances ou qualquer abertura para zonas ilusionisticamente mais
profundas, habitualmente pintadas de um mais sereno azul. O que aqui vemos é um mundo
tempestuoso preenchido de forma compacta por esta espécie de poeira densa ou opaco
magma no qual alguns dos pequenos anjos se dissolvem e confundem. Porém, só por si, isso
não permite com segurança diferenciá-lo dos tectos pintados antes ou depois da grande
convulsão atmosférica de 1783. A sua comparação com outros tectos da década de oitenta –
por exemplo, os das naves das igrejas do Loreto (c.1780-81) e dos Mártires (c.1785-86), ou os
vários que foram pintados na Basílica da Estrela (c.1780-89) – ou bastante anteriores, como o
Capitulo 2. O céu nas imagens 187
da nave da Igreja do Menino Deus (c.1737), ou posteriores, como o da nave da Igreja do
Sacramento (c.1804-07) (fig. 37), permite constatar que, em termos fundamentais, o espaço
celestial místico é concebido como um espaço aéreo enfaticamente atmosférico; que este
espaço atmosférico, nas suas características de agitação, conturbação e até aparente
tempestuosidade, corresponde a uma ficção que dramatiza, mais do que regista, o céu natural.
Maciços nebulosos formados em grande medida por nuvens globulares estruturam em
profundidade o espaço celestial e suportam as principais figuras do acontecimento místico
representado. É notória a forte presença de uma convenção visual, repetida e reelaborada,
como variações musicais em torno de um tema chave. Por outras palavras, este espaço
atmosférico é uma típica invenção pictórica barroca: uma artificiosa ficção que, pela imitação
de elementos naturais, procura a verosimilhança mas não a exactidão.
Por isso, é possível afirmar que este céu místico não corresponde ao céu natural,
embora mantenha com ele uma relação de permanente ambiguidade que é vital à sua eficácia
e ao seu poder persuasivo. Esta ambiguidade é, desde logo, conceptual: patente na própria
palavra que qualifica indiferenciadamente ambos, o céu, encarado como tudo aquilo que está
acima da terra, surge, no universo pós-revolução científica, como o lugar indeterminado das
manifestações aéreas da natureza terrestre, da localização distante de outros mundos e
corpos celestes e sede da morada divina. A ambiguidade é depois reforçada pela significante
associação pictórica do céu atmosférico, mais do que do céu astronómico, à representação
dessa morada, tornando-a espacialmente mais próxima do sujeito humano e dramaticamente
mais intensa por via desta sua identificação com o envolvente mundo aéreo e a sua
mutabilidade formal, matérica e luminosa308. Estes dois factos são cruciais para a associação
barroca do céu místico com o céu atmosférico, constantemente presente na pintura dos
séculos XVII e XVIII e, através da qual, as substâncias imateriais que caracterizam o segundo,
como o ar, a luz e as nuvens são, simbólica e visualmente, relacionadas com a «esfera etérea
do espiritual» (Gamwell, 2002: 17) – operação que se revelará fundamental para a futura
pintura romântica. Profundamente significativo é, portanto, o modo como os pintores,
sancionados em cada momento tanto pela autoridade da tradição como pela dos seus clientes
308 «Or l’air, qui doit avoir un si grand pouvoir sur notre machine, est un corps mixte composé de l’air élémentaire
qui s’échappent de tous les corps qu’il insère, ou que son action continuelle peut en détacher. Les physiciens
prouvent aussi que l’air est encore rempli d’une infinité de petits animaux et de leur semence. En voilà
suffisamment pour concevoir sans peine que l’air doit être sujet à une infinité d’altérations résultantes du mélange
des corpuscules qui entrent dans sa composition, qui ne sauraient être toujours les mêmes, et qui ne peuvent
encore y être toujours en une même quantité» (Du Bos, 1719: 249).
188 Capitulo 2. O céu nas imagens
eclesiásticos, recorrem a substâncias e formas do céu natural como matéria base da invenção
da aparência visual desse mundo, por definição, invisível, ficcional e não natural.
Fig. 38 - Manuel Furtado de Mendonça (act.1722-1738) (atrib.). Santíssima Trindade com São Bento e Santa Escolástica, 1726. Óleo sobre
madeira, d.n.d. Braga, Igreja do Convento do Salvador, actual Lar Conde de Agrolongo (tecto da capela-mor).
A distinção entre céu místico e céu natural, apesar da sua comum natureza
atmosférica, surge de forma clara no caso das pinturas em que ambos coexistem. Exemplo
disso, são os tectos atribuídos a Manuel Furtado de Mendonça no Salão Nobre do Palácio dos
Biscainhos (1724) e na capela-mor da igreja do Convento do Salvador (1726), em Braga (fig.
38). Neste, a representação da Santíssima Trindade com São Bento e Santa Escolástica, num
aglomerado nebuloso, surge no centro do tecto, envolta numa grande moldura formada por
volutas, grinalda, e anjos. Lateralmente, a representação dos continentes, das estações do
ano e dos quatro elementos é feita através da figuração de paisagens, arquitecturas e figuras
profanas e de um sereno céu natural no centro do qual – e ocupando a maior parte do tecto –
surge, pairando, a visão celestial. Esta, com as suas figuras e sistema de nuvens e luz
dourada, irrompe no seio da paisagem natural e destaca-se dela, tanto formal como
luminicamente. Este é o esquema também usado no tecto dos Biscainhos, onde a
representação mística do Martírio do Beato Miguel de Carvalho destaca-se do céu natural que
a envolve através de uma complexa moldura ornamental povoada de putti. Em ambos os
tectos assiste-se à simultânea contraposição e coexistência dos dois mundos, a qual é
reforçada pela oposição entre a serenidade do céu natural e a perturbação do céu
Capitulo 2. O céu nas imagens 189
sobrenatural, pelos diferentes tipos de luz envolvida mas também pela organização horizontal
da paisagem natural face à verticalidade da visão mística. No caso dos tectos de António de
Oliveira Bernardes na Casa de Santa Maria, em Cascais, ou de António Machado Sapeiro na
Sacristia da Igreja do Loreto, em Lisboa, a ambiguidade entre natural e sobrenatural é levada
ao limite, estando a qualificação destes céus inteiramente dependente da presença de seres
aéreos como os anjos. No caso do tecto da Igreja de Santo António, em Lagos, de autor
desconhecido e pintado no final do século XVIII, as figuras e os acontecimentos sobrenaturais
situam-se no espaço da igreja, abaixo da quadratura, e são as aberturas circulares desta que
nos dão a ver um céu nebuloso, mas aparentemente natural, acima da igreja. Na ausência de
seres ou acontecimentos sobrenaturais, a natureza dos céus, mesmo que inseridos num
contexto qualificadamente místico, seja por razões simbólicas ou alegóricas, torna-se
inteiramente ambígua. É o caso dos que se observam através dos óculos que, à maneira de
Mantegna, rompem as abóbadas da Igreja de São Tiago, em Évora, e da Sacristia da Sé do
Porto, de Nicolau Nasoni. Ou ainda os céus atmosféricos que se observam através das
arcadas ilusionistas nos tectos da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora das Ondas, pintado
em 1765 por Luís António Pereira, e da Capela Particular do Antigo Paço Episcopal, actual
Museu de Lamego, de autor e data desconhecidos.
Como espaço atmosférico, o céu na pintura setecentista é, por um lado, um espaço
meteorológico, no sentido em que se refere aos fenómenos celestes e atmosféricos, às suas
aparências e manifestações, e, por outro, a sua negação, no sentido em que não resulta de
um estudo sistemático deles ou de uma compreensão causal das suas leis. Neste espaço
fenoménico, a meteorologia dos céus barrocos é, por isso, de natureza pictórica, poética e
mística e não científica. Neles, a luz que o ilumina, os seres que os povoam e, sobretudo, as
nuvens que o preenchem são elementos imaginários, ficcionais, inventados e recreados tanto
a partir da natureza como da própria história da pintura ou dos textos sagrados, referindo-se a
essa natureza mas não pretendendo ser um retrato dela. Tal como as máquinas aerostáticas,
as máquinas celestiais são artifícios mas, ao contrário das primeiras, são mais produto do
sonho do que da razão. Por isso, muito antes da invenção dos balões, os pintores haviam
criado seres e objectos capazes de se elevarem e de se transportarem na atmosfera – como
os anjos ou a Santa Casa do Loreto – de serem mais leves que o ar e, mais importante,
haviam adicionado à natureza meteorológica das nuvens uma dimensão sobrenatural,
transformando-as, à semelhança do que viriam a ser esses balões, em máquinas de ar
capazes de permitirem a elevação e o transporte aéreo. Porém, as leis que as regem nada
têm de natural.
190 Capitulo 2. O céu nas imagens
Portanto, nos tectos das igrejas a emoção e a tradição mais do que a ciência e a
razão estruturam as pictóricas visões atmosféricas. Num século crescentemente científico e
onde, rapidamente, a ciência invade todos os domínios do mundo, fornecendo um pensamento
mas também uma representação dele, os pintores servem-se dessa ciência ou de
componentes dela – seja a anatomia, a óptica ou a perspectiva – mas não actuam como
cientistas. De forma consequente, o espaço visual por eles criado não é um espaço científico,
ou sequer um mero registo do espaço natural, mas antes um espaço imaginário, fantástico e
visualmente ambíguo, que não pretende ser exacto ou verdadeiro mas ficcionalmente
plausível ou, pelo menos, aceitável, desde que, usando as palavras de Samuel T. Coleridge
(1772-1834), num acto de fé poética o sujeito, num dado momento, suspenda voluntariamente
a sua descrença (Coleridge, 1815-1817: 314)309. Ou, como afirmou Reynolds num discurso
perante a Academia cerca de seis meses antes do início do extraordinário Verão de 1783,
desde que o «efeito geral e o poder do todo se apodere das mentes e, por um momento,
suspenda a consideração das belezas e dos defeitos subordinados e particulares» (Reynolds,
1769-1790: Discurso XI, 192)310. Esta era, verdadeiramente, a ambição e o génio da pintura.
Na pintura dos céus, as variações na configuração das nuvens, como em geral dos
restantes elementos atmosféricos, são, à semelhança das expressões faciais no tratado das
paixões da alma de Le Brun, manifestações do poder da emoção, dramatizações da aparência
natural para melhor representar um conteúdo espiritual: juntas formam uma espécie de
catálogo visual das paixões do céu, expressões dramáticas e cenográficas de uma visão
espiritual da natureza. Aliás, o método apresentado em 1698 por Le Brun está, apesar de tudo,
mais próximo da catalogação das nuvens feita em 1802 por Luke Howard (1772-1864) do que
o New Method of Assisting the Invention in Drawing Original Compositions of Landscape,
criado por Alexander Cozens (1717-1786) em 1785 (cf. Sloan, 1986), no qual, as nuvens, ao
nascerem de acidentais borrões de tinta e não da observação da natureza, exprimem o quanto
o olhar pictórico setecentista se dirige mais a encontrar na natureza manifestações da arte – a
natureza pitoresca ou pintoresca – do que na arte o natural: «consideramos as obras da
natureza tanto mais aprazíveis, quanto mais se assemelham a obras de arte» (Addison, 1712:
n.º 414, 60). Este diferenciação entre fantasia pictórica e natureza é expressa de forma clara
pelo italiano Antonio Conti (1677-1749): «a fantasia do pintor deve ser ampla em
309 «… that willing suspension of disbelief for the moment, that constitutes the poetic faith».
310 «This Genius consists, I conceive, in the power of expressing that which employs your pencil, whatever it may
be, as a whole; so that the general effect and power to the whole may take possession of the minds, and for a
while suspend the consideration of the subordinate and particular beauties or defects».
Capitulo 2. O céu nas imagens 191
conhecimento, delicada e correcta no desenho, viva e ardente na execução, apaixonada e
capaz de expressar os sentidos e a emoção, e graciosa para afastar-se um pouco da natureza
e adaptar-se melhor ao julgamento e ao prazer dos sentidos …» (Conti, 1756; cit. por Haskell,
1980: 319, n. 4)311.
Um tal afastamento, feito em nome do prazer dos sentidos, exprime também uma
transformação estrutural ocorrida na cultura pós-renascentista ao longo dos séculos XVII e
XVIII: a separação entre a arte e a ciência. No século XVIII, esse «mundo único» (Benevolo,
1991: 13), anunciado, sonhado e projectado pela perspectiva no século XV está morto. Por
isso, como salienta Argan, «quanto mais a ciência declarava que o que o seu objectivo (não o
seu princípio) era a verdade, mais a arte adquiria consciência que o seu único objectivo
possível era a ficção» e esta evoluía rapidamente de um devaneio artístico para uma criação
plausível da imaginação (Argan, 1989: 9). O conflito entre o natural e verdadeiro da ciência e o
artificial e ficcional da arte acentua-se ao longo do século XVIII e é sobre os seus escombros
que, em grande medida, nascem as estruturas da posterior arte romântica. Mais do que aquilo
que habitualmente se reconhece é da fantasia celestial barroca e do seu sentido dramático
que nascem os emotivos céus românticos; ao criar «exaltantes experiências estéticas»,
mundos de pura maravilha que se deleitam na sua própria visualidade e são afirmações do
«puro espectáculo da pintura» (Mariuz, 1996: 4) ela prepara o caminho à autonomia visual da
pintura moderna face à realidade. À medida que as figuras diminuem312, como na
Peregrinação à Ilha de Cítara (1721) de Jean-Antoine Watteau (1684-1721)313, ou na Festa em
Rambouillet (c.1775) de Jean-Honoré Fragonard (1732-1806)314, ou, mais ainda, nas grandes
máquinas celestiais, não só a atmosfera torna-se o verdadeiro protagonista da pintura como
assume o papel de representar o grande drama cósmico: neste sentido, o céu do Cemitério
Judeu (c.1660), de Jacob van Ruisdael (c.1628-1682)315 anuncia as tempestades de Joseph
311 «La fantasia pittoresca deve essere secondo lui spaziosa nelle cognizioni, delicata e retta nel dissegno, vivace
e ardente nell’esecuzione, appassionata e espressiva del senso e dell’affetto, e graziosa per discostarsi un poco
dalla natura ed accomodarsi meglio al giudizio e al piacere del senso …» (Antonio Conti (1739-1756). Prose e
poesie. Veneza; II, p. 278).
312 Utiliza-se aqui a observação feita por Eugénio D’Ors a propósito, genericamente, da pintura de Watteau
(D’Ors, 1935: 140).
313 Peregrinação à Ilha de Cítara, 1721. Óleo sobre tela, 129 x 194 cm. Paris, Musée du Louvre (Inv. 8525).
314 Festa em Rambouillet ou A Ilha do Amor, c.1775. Óleo sobre tela, 71 x 90 cm. Lisboa, Museu Calouste
Gulbenkian.
315 O Cemitério Judeu, c.1660. Óleo sobre tela, 84 x 95 cm. Dresden, Staatliche Kunstsammlungen /
Gemäldegalerie Alte Meister (Inv. 1502). Uma outra versão maior integra a colecção do Institute of Arts, em
Detroit (Óleo sobre tela, 141 x 182,9 cm). As pinturas parecem representar alguns dos túmulos ainda hoje
existentes no cemitério de Ouderkerk, perto de Amesterdão, lugar de enterro dos judeus portugueses fugidos
para a Holanda (cf. Slive, 2001: n.os 178, 180).
192 Capitulo 2. O céu nas imagens
William Turner (1775-1851), da mesma forma que os grandes remoinhos das cúpulas barrocas
abrem caminho para os vórtices das pinturas diluvianas do final da vida deste316.
No século XVIII, as complexas relações entre o natural e o artificial estão também
profundamente ligadas às que se estabelecem entre o caos e a ordem, continuamente
reflectidas na pintura dos céus mas também na música. A obra Os Elementos (1737), do
compositor francês Jean-Ferry Rebel (1661-1747), começa precisamente com uma introdução
denominada O caos, na qual a oposição entre desordem e ordem é expressa pela oposição
musical entre desarmonia e harmonia, tendo como pano de fundo a representação teatral da
criação do universo. Tanto como o triunfo de uma sobre a outra, é o conflito entre ambas que
parece interessar a Rebel como, aliás, à maior parte dos compositores e artistas deste
período. Este fascínio por esse momento primordial da criação do universo no qual o caos dá
lugar à ordem ressurge de forma ainda mais expressiva na abertura da oratória A Criação
(1799), a monumental obra de Joseph Haydn (1732-1809) e um dos seus maiores sucessos
em vida, baseada no relato da criação do mundo do Génesis. Também na ópera – veja-se o
caso de Rameau (1683-1764), para dar apenas um exemplo – os espectáculos da natureza,
como as tempestades, os terramotos e as erupções vulcânicas, desempenham um papel
fundamental na função dramática da música317 tal como as nuvens, instrumentos de elevação,
de voo e de aparição criados pelos pintores-cenógrafos, desempenham um papel crucial na
eficácia visual deste espectáculo total318. Tais artifícios revelam o quanto, no século XVIII, o
mundo é encarado como um espaço de tensão, perturbação e transformação, surpreendente e
espectacular e, por tudo isso, inevitavelmente teatral – o theatrum mundi.
Se o século XVIII é o século da natureza (cf. Lenoble, 1969; Calafate, 1994), o
entendimento desta oscila entre a afirmação «a Natureza é Deus», de Frei Manuel do
Cenáculo (1724-1814) (Cenáculo, 1785; cit. por Calafate, 1994: 71)319 e a sua progressiva
concepção pela nova ciência como um mundo de causas e efeitos alheios à intenção e
316 Nomeadamente, o díptico Sombra e Obscuridade: A Tarde do Dilúvio, c.1843 (óleo sobre tela, 78,5 x 78 cm.
Londres: Tate Gallery), Luz e Cor (A Teoria de Goethe) – A manhã após o Dilúvio – Moisés Escrevendo o Livro
do Génesis, c.1843 (óleo sobre tela, 78,5 x 78 cm. Londres: Tate Gallery) ou ainda O Anjo de pé no Sol, c.1846
(óleo sobre tela, 78,7 x 78,7 cm. Londres: Tate Gallery).
317 «… [storms] clearly function as figures for certain emotional excesses or the simultaneous entertainment of
conflicting states of mind. … storms become formulaic in eighteenth-century music and many operas contain
them. … Storms in eighteenth-century operas are pre-Romantic inklings which will have their fulfillment in Berlioz
and Wagner» (Harbison, 2000: 151-3).
318 Cf., p.e., os desenhos pertencentes à colecção do Museu Nacional de Arte Antiga das máquinas teatrais dos
Bibiena quer para a ópera Fetonte, representada em 1769 no teatro do Paço da Ajuda, quer para um mistério
sacro (M.N.A.A., 1987: n.os 39, 59).
319 Frei Manuel do Cenáculo (1785). Instrucção Pastoral do Excellentissimo, e Reverendissimo Senhor Bispo de
Beja Sobre as Virtudes da Ordem Natural. Lisboa: Regia Officina Typografica; p. 12.
Capitulo 2. O céu nas imagens 193
intervenção divina. Adicionalmente, assiste-se neste período ao choque final entre uma
natureza concebida aristotelicamente como domínio sublunar e a sua concepção ampla,
cartesiana e newtoniana, abrangendo tanto o mundo terreno como o celeste, regidos
unitariamente por leis deterministas, mecânicas e não teológicas (Hatfield, 1990: 23-4). Na
pintura, a «articulação figurativa entre o “céu” e a “terra”» (Damisch, 1972: 207) é expressão
dessa visão unitária embora não necessariamente das suas leis.
A citada afirmação de Frei Manuel do Cenáculo traduz de forma muito clara o
processo de naturalização do divino patente na representação pictórica barroca do mundo
celestial o qual, como reinterpretação atmosférica do céu bíblico, produz uma acentuação
natural das manifestações sobrenaturais, uma identificação do espaço celestial naturalizado
com a esfera divina e do infinito espacial com um conceito dilatado de Deus (Spinosa, 1981:
290). Como artificio ambiguamente natural, como invenção artística que tem em Correggio o
seu paradigma, este espaço dilatado, profundo e contínuo do qual, em cada momento vemos
apenas um fragmento (Martin, 1977: 135-6), é um grandioso palco atmosférico,
necessariamente aéreo, leve e mutável, onde, sob a forma de manifestações extraordinárias,
se opera a revelação e a visualização do divino. Um espaço conturbado, por vezes mesmo,
tempestuoso, e essencialmente teatral. Neste mundo celestial assim definido, a atmosfera
terrestre é prolongada e transformada de forma fantástica em espaço sobrenatural tanto
quanto este se torna num prolongamento fantástico daquela. Esta naturalização atmosférica
do espaço paradisíaco, centrada no recurso enfático à luz e à nuvem como substâncias
estruturantes, traduz não apenas uma visão fantástica e maravilhosa desse mundo para lá do
mundo mas da própria natureza, transformando ambas numa ficção extraordinária,
imprevisível e espectacular. Ao mesmo tempo, as fronteiras entre natural e sobrenatural, entre
terreno e celestial, entre real e irreal são dissolvidas ou, pelo menos, profundamente diluídas,
naquela que é, talvez, a maior consequência artística da generalizada naturalização do
universo operada pela revolução científica.
Em 1783, se a convulsão dos céus sobre a Europa seguida da elevação do homem
a essa esfera aérea, quebrando pela primeira vez as amarras que o prendem ao solo,
aparentam ser, de modos diferentes, “acontecimentos barrocos” – como se a realidade viesse
ao encontro da obsessão barroca com o poder dramático da atmosfera e tornasse possível as
ficções aeronáuticas nela imaginadas vezes sem conta – a verdade é que, por outro lado,
aceleram o processo em curso de transformação do céu, em geral, e da atmosfera, em
particular, numa província da ciência, mais do que da arte ou da religião. Esta apropriação
científica terá o seu momento culminante quando, às seis da tarde de um dia de Dezembro de
194 Capitulo 2. O céu nas imagens
1802, Luke Howard apresentou a explicação para os mecanismos que governam a formação,
suspensão e destruição das nuvens acompanhada da sua moderna classificação em três
formas básicas reconhecíveis – cirrus, cumulus e stratus – as quais, por combinação entre si,
originam outras categorias adicionais (cf. Hamblyn, 2001)320: nesse momento, «ao dar um
nome às nuvens, ao atribuir uma linguagem e uma maior visibilidade a coisas até aí
inomináveis e incompreensíveis, ele transformou por completo a relação entre o mundo e o
céu que, como uma cúpula, o cobre» (Hamblyn, 2001: 251). Assim, no curto espaço de vinte
anos, completa-se o essencial da passagem do céu do domínio da religião e do sobrenatural
para o da ciência e do natural, que se expressa nas palavras proferidas a 16 de Junho de
1836 por John Constable (1776-1837): «a pintura é uma ciência e deverá ser praticada como
uma investigação sobre as leis da natureza. Então, porque não poderá a pintura de paisagem
ser considerada um ramo da filosofia natural do qual as pinturas são as experiências?»
(Constable, 1836; cit. por Leslie, 1843: 274)321. A tensão entre a espiritualidade panteísta dos
românticos alemães e o anseio científico de Constable – demonstrado nos seus múltiplos
estudos do céu que incluem o lugar, a data e a hora do registo – demonstra o quanto o céu
moderno se tornou indissociável dessa dimensão atmosférica trazida pela pintura barroca e
depois, definitivamente, transformada pela nova ciência de Luke Howard.
Quando hoje observamos os céus pintados nos tectos, abóbadas e cúpulas
constatamos que o tipo de nuvens recorrentemente usado pelos pintores como instrumentos
de manifestação do sobrenatural – seja para o movimento, o transporte ou a suspensão de
figuras e objectos – correspondem a cúmulos: nuvens relativamente baixas que se formam a
altitudes inferiores a 2 km. Se este facto contribui para tornar esse mundo espacialmente mais
próximo do observador e, ao mesmo tempo, mais fácil de ser por este alcançado, reforçando a
ilusão do rapto ou ascensão a essa esfera, a aventura das máquinas aerostáticas traria uma
revelação surpreendente. Porque à medida que a altitude aumenta, a temperatura e o oxigénio
diminuem acentuadamente, quando em 1783 os primeiros aeronautas atingiram aquelas
nuvens puderam verificar que esse era um mundo perigosamente gélido e rarefeito. Por outras
palavras, o mundo aéreo vislumbrado na pintura revelava-se inesperadamente inóspito para a
vida humana. De algum modo era a confirmação derradeira de que esta era uma esfera
reservada a seres sobrenaturais ou puramente espirituais.
320 Howard publicaria em 1804 a sua teoria (On the Modifications of Clouds, &c. Londres: J. Taylor).
321 «Painting is a science, and should be pursued as an inquiry into the laws of nature. Why, then, may not
landscape painting be considered as a branch of natural philosophy, of which pictures are but the experiments?».
2.1.1.2. O céu astronómico Capitulo 2. O céu nas imagens 195
De dia correm nuvens, flutuantes!
De noite vivem estrelas, cintilantes!
Se ousares subir tocando em cordas puras,
Entoarás a eterna música das esferas.
(J. W. Goethe, 1815; in Barrento, 2003: 26)
O triunfo da visão pictórica barroca do céu como um conturbado espaço atmosférico,
no qual a luz e as nuvens desempenham um papel fundamental, ocorre num momento em que
o espaço sideral situado muito para lá da atmosfera terrestre se torna, num contexto de
profundas mutações da ciência astronómica, o centro de uma nova visão e compreensão do
universo. Significa isto que o céu como firmamento, como lugar onde se localizam as estrelas
e os planetas e se deslocam os cometas, é ignorado pela teologia e pela arte? A resposta,
como gradualmente se verá, é não. Na visão cosmológica da teologia cristã, o céu paradisíaco
ou divino, o céu como morada de Deus, dos anjos e dos espíritos eleitos, situa-se para além
deste céu de corpos e fenómenos físicos: isto é, ainda mais acima do que ele, impossível de
ser observado, em condições normais, pela limitada percepção visual humana. Ocupando
esferas diferentes, a terra, a abóbada celeste e o céu divino formam no pensamento cristão
um sistema fechado e hierarquicamente organizado no qual se procura harmonizar tanto as
manifestações naturais como as sobrenaturais que constituem e definem a totalidade deste
universo sagrado. Porém, o seu equilíbrio depende da clara subordinação das primeiras às
segundas e do primado das convicções teológicas sobre as leis naturais.
O cristianismo dá assim continuidade à relação hierofânica que, ancestralmente, o
homem mantém com o céu: entendido como um lugar de manifestação e revelação do
sagrado, a sua contemplação produz no sujeito uma poderosa experiência espiritual. Uma tal
experiência é indissociável das ideias de altura, inacessibilidade e de imensidão habitualmente
associadas ao céu. Por isso, ao longo da história humana «as regiões superiores, inacessíveis
ao homem, as zonas siderais, adquirem os prestígios divinos do transcendente, da realidade
absoluta, da perenidade» (Eliade, 1949: 70). Domínio totalmente distinto da terra, o céu é,
portanto, a morada dos deuses e de seres sobrenaturais ou sobre-humanos e o lugar ao qual
o ser humano apenas chega por via de ritos, instrumentos e mecanismos vários de ascensão
celeste. Acima de tudo,
196 Capitulo 2. O céu nas imagens
só pela simples existência o Céu “simboliza” a transcendência, a força, a imutabilidade. Existe porque é elevado,
infinito, imutável, poderoso. … tudo quanto se passa nos espaços siderais e nas regiões superiores da atmosfera
– a revolução rítmica dos astros, a correria das nuvens, as tempestades, o raio, os meteoros, o arco-íris – são
momentos desta mesma hierofania. (Eliade, 1949: 71-2)
É esta visão do mundo celestial que a teologia cristã transforma numa verdadeira teofania: o
céu é o um lugar de manifestação, aparição e revelação de Deus ele próprio. Neste sentido, o
cristianismo continua e aprofunda a dissociação entre a terra, lugar de nascimento e morte, de
mudança e destruição e, por isso, do humano, e o céu, lugar do permanente, do imutável e do
transcendente. Mas separa também o céu visível, o céu firmamento, finito e esférico, do céu
invisível, o céu divino, situado para além daquele. Esta ideia religiosa é, em grande medida,
uma forma de dar sentido espiritual àquilo que vemos. Hoje, como sempre, a observação do
céu nocturno conduz à percepção de uma abóbada na qual todos os corpos luminosos
parecem à mesma distância de nós: «agora “sabemos” que as estrelas estão dispersas por
distâncias imensas no espaço exterior mas até que ponto este conhecimento afecta a ilusão
do céu nocturno como uma abóbada estrelada?» (Gombrich, 1973: 222). Este ilusório tecto
curvo322, resultado de um colapso perceptivo perante as enormes distâncias envolvidas, surge
assim para nós como o limite visual do espaço que somos capazes de percepcionar – e, por
isso mesmo, como demonstração última do modo como tanto as capacidades, como as
limitações, do nosso sistema visual condicionam e determinam as nossas percepções e
concepções do mundo em que vivemos.
Foi perscrutando esta abóbada aparente que, desde sempre, procurámos
compreender os fenómenos que aí decorriam; foi nesta espécie de cobertura curva que nos
mantinha num mundo fechado e finito que procurámos, num fascinante exercício de projecção
e imaginação, afim ao da composição pictórica, criar seres que não víamos e antecipar
acontecimentos que não haviam ocorrido, interpretando e organizando o céu como se ele
fosse uma enorme pintura inacabada ou, como afirmou Bachelard (1943: 228), um gigante
«teste de Rorschach» apresentado à humanidade. Foi a nossa limitada percepção do céu
como superfície curva que conduziu, finalmente, à associação simbólica dos tectos com a
abóbada celeste, recriando nas suas superfícies a mesma visão imaginária de um mundo
maravilhoso, cujas imagens tinham o poder mágico de simbolizar o desconhecido, o espiritual
e o sagrado: «o céu é o limite do nosso mundo visual e um limite adequado pode mediar a
322 «Que o exército das estrelas rodeie a terra por todas as partes e forme assim uma espécie de abóbada quasi
circular, constituindo uma esfera completa, eis o que sobressai do facto de que, ainda que a terra seja redonda,
onde quer que os homens se encontrem eles apercebem, como nós, estrelas acima da sua cabeça» (Johannes
Kepler, 1618; cit. por Koyré, 1957: 81).
Capitulo 2. O céu nas imagens 197
percepção do céu» (Gombrich, 1974a: 168). Porém, foi este ancestral limite que no início do
século XVII foi rompido provocando uma geral convulsão na ordem dos céus e uma profunda
perturbação nos espíritos.
Quando, nas noites de Novembro e Dezembro de 1609, Galileu dirigiu o seu
telescópio rudimentar para o céu, aquilo que ele estava a fazer era a recorrer a uma máquina
óptica, recentemente inventada, que permitia, de uma forma efectiva e inteiramente nova,
transcender os limites biológicos da percepção visual humana. Não foi Galileu quem a
inventou323 nem, provavelmente, terá sido o primeiro a dirigi-la para esse mundo distante,
desconhecido e situado muito acima de si (cf. Edgerton, 1991: 231-5). Porém, nas suas mãos,
este tubo perspéctico, que fazia uso das mesmas leis que regulavam a perspectiva e
forneciam um suporte fundamental a toda a arte pós-renascentista, deixará de ser um mero
instrumento capaz de ampliar o alcance do olho humano para se tornar, acima de tudo, num
mecanismo de transformação profunda das formas de conceber, visualizar e imaginar o
mundo celestial e o espaço em geral. As suas implicações afectarão o curso da ciência e, de
forma igualmente importante, tanto o da arte como o da religião. Nesse momento, em grande
medida, o velho céu familiar sucumbia para dar lugar a um outro, cuja imensidão e estranheza
seria fonte de sentimentos novos e contraditórios: «o silêncio eterno desses espaços infinitos
atemoriza-me» dirá Pascal (c. 1655-62: 161, fr. 187)324. Porém, para Fontenelle,
Quando o Ceo não era a meus olhos outra cousa mais do que esta abobada azul, onde as Estrellas estavam
como pregadas, o Universo me parecia pequeno, acanhado, e alli me sentia como opprimido; mas presentemente
que, dividida em mil, e mil Turbilhões, se tem dado a esta mesma abobada infinitamente maior profundidade, e
extrensão, parece-me que respiro com mais liberdade, que me rodêa maior porção de ar, e que em fim o
Universo apresenta outra magnificencia. (Fontenelle, 1686: 180)
Na verdade, a transformação do velho céu aristotélico e ptolomaico, fechado,
centrado e finito, que havia perdurado durante bastante mais de mil anos, no moderno
universo, aberto, descentrado e infinito ou, pelo menos, ilimitado, iniciou-se com a revolução
copernicana (Kuhn, 1957: 17-20), isto é, a publicação em 1543 da obra de Nicolau Copérnico
De Revolutionibus Orbium Coelestium (As Revoluções dos Orbes Celestes). Nesta, de forma
fundamental, o velho sistema geocêntrico dá lugar ao novo modelo heliocêntrico, deixando a
Terra e, com ela, a humanidade, a mais importante das criações divinas, de ocupar esse lugar
323 A invenção do telescópio, tal como a de outros importantes instrumentos ópticos que, como o microscópio,
mudarão o curso e a metodologia da nova ciência ocorreu na Holanda. Galileu terá sabido da invenção em Maio
de 1609 tendo de imediato iniciado a construção dos seus próprios exemplares (cf. Edgerton, 1991: 239).
324 «Le silence éternel de ces espaces infinis m’effraie».
198 Capitulo 2. O céu nas imagens
único e privilegiado que a si própria se atribuía: o centro do universo. A nova teoria planetária
baseada num universo centrado no Sol alteraria profundamente a relação do homem consigo
próprio e, não menos importante, com Deus: «iniciada como uma revisão técnica e altamente
matemática da astronomia clássica, a teoria de Copérnico tornou-se o foco das tremendas
controvérsias de religião, filosofia e teoria social, que, durante os dois séculos seguintes à
descoberta da América, determinaram o teor do espírito moderno» (Kuhn, 1957: 18). Embora
Copérnico procurasse corrigir os defeitos do modelo ptolomaico à luz dos novos dados
astronómicos, o seu objectivo era manter e renovar os seus princípios essenciais: criar «um
universo aristotélico à volta de uma Terra móvel» (Kuhn, 1957: 101). O seu universo, embora
bastante mais vasto, permanece, por isso, finito e esférico (Copérnico, 1543: I, 1, 17) mas o
objectivo central resultou num fracasso: «os seus seguidores perceberam as consequências
totais da sua inovação, e toda a estrutura aristotélica se desmoronou» (Kuhn, 1957: 101). A
polémica, por vezes mesmo violenta, passagem de um modelo para outro, operada ao longo
dos duzentos anos seguintes, não era apenas uma disputa científica ou sequer matemática:
era desde logo um problema teológico e, por arrastamento, artístico. A estreita associação do
pensamento escolástico cristão e, particularmente, de alguns dos principais dogmas da Igreja
Católica à filosofia aristotélica e ao modelo de Ptolomeu (c.90-168) tornará particularmente
difícil o reconhecimento de que um sistema divinamente legitimado pudesse revelar-se
inadequado, ou até mesmo errado.
Quanto aos artistas, actuando no seio de uma cultura visual que estava
indissociavelmente ligada à religião e aos seus pressupostos filosóficos, estéticos e sociais,
terão dificuldade, ao longo dos séculos XVII e XVIII, em desafiar ou contrariar a autoridade da
Igreja, mas também em traduzir plasticamente os cada vez mais complexos pressupostos
matemáticos da nova ciência ou até em seriamente os compreender325. Nesse sentido,
dificilmente se poderá afirmar que o espaço pictórico ilustra as transformações do espaço
científico, embora seja verdade que as assombrosas inovações que sucessivamente ocorrem
no seio deste afectarão e influenciarão todos os domínios da cultura europeia, incluindo a
própria pintura326. Talvez isso explique que, no âmbito desta, os conceitos de espaço contínuo
325 «There is no simple connection between science and art in the Baroque and Rococo periods, but one can
track in many areas – such as map-making, natural history, geography, astronomy, microscopy – a more highly
detailed interest in this world (or this universe), not just in the next one. Empiricism was part of Baroque and
Rococo visual culture» (Minor, 1999: 211).
326 «… the notion that Baroque art with its ever moving forms was intended to represent the universe in its
constant state of flux does not bear examination. The structure of the universe, whether fixed or mobile, no longer
Capitulo 2. O céu nas imagens 199
e ilimitado oriundos da revolução artística renascentista, que de alguma forma preparam e
antecipam os da nova astronomia, adquiram na representação celestial operada pelas grandes
máquinas pictóricas uma força inusitada e constituam uma forma de comunhão com os
princípios basilares da nova visão do universo – ferreamente discutida, defendida e combatida
ao longo dos séculos XVII e XVIII. Nesse sentido, o espaço ilusionista barroco representado
nas superfícies dos tectos constitui não apenas uma reiteração da tradicional concepção do
céu como manifestação da beleza divina mas exprime, ao mesmo tempo, uma ideia estrutural
acerca dele que está mais próxima da nova ciência que dos velhos princípios aristotélicos de
finitude, descontinuidade e compartimentação entre diferentes esferas.
Gradualmente, ao longo do século XVIII, a revolução científica iniciada em 1543
triunfará completamente. Com ela, impor-se-á um novo modelo do universo, uma nova visão
do céu e, acima de tudo, consumar-se-á o domínio da nova ciência matemática. Tudo isto ao
mesmo tempo que o poder temporal da Igreja se desmorona, a sua influência espiritual é
desafiada e o mundo pictórico representado nos tectos começa a ser violentamente criticado.
Entre 1690 e 1807, entre a pintura de Bernardes em Beja e a de Pedro Alexandrino na Igreja
do Sacramento em Lisboa, a consolidação da nova astronomia parece ser total como
irremediável parece ser, apesar de todos os esforços, a dissociação entre uma visão natural
ou científica e uma visão sobrenatural ou religiosa do mundo celestial. Como expressões da
segunda dificilmente obtemos através destas pinturas, como da esmagadora maioria daquelas
que são realizadas por toda a Europa, uma ilustração da primeira. Porém, se procurarmos com
mais atenção encontramos em algumas delas, sobretudo na recta final do século, um subtil e
só aparentemente inócuo testemunho da transformação que se havia operado: as
representações alegóricas da astronomia passam a integrar um novo instrumento simbólico: o
telescópio. É assim no tecto da Biblioteca do Convento de Jesus (actual Academia das
Ciências), em Lisboa, pintado por Pedro Alexandrino de Carvalho e no do Salão Nobre do
Palácio Ferreira Pinto Basto, também em Lisboa e igualmente pintado por aquele artista. No
primeiro caso, Pedro Alexandrino pintou no vasto tecto de trinta e quatro metros de
comprimento uma alegoria com o tema central As Ciências e as Virtudes Presididas pela
Religião (c.1771-1800)327. Numa das pinturas laterais, a representação da Astronomia é
interests the artist, just as it no longer continued, except in very restricted terms, to furnish matter for dogma or
arguments of a doctrinal nature» (Argan, 1989: 17).
327 Provavelmente pintado nas duas últimas décadas do século XVIII, sofreu certamente intervenções
posteriores, especialmente notórias nos medalhões laterais. A aparição descontextualizada das figuras sobre
nuvens nos medalhões laterais apresenta semelhanças com as representações dos quatro Evangelistas nas
faces da abóbada quadrangular do cruzeiro da Igreja de Santa Quitéria em Meca (Alenquer). No grande
200 Capitulo 2. O céu nas imagens
constituída por três pequenos anjos sobre nuvens; um deles, sentado sobre um globo, espreita
por um telescópio apontado para cima (fig. 39). No caso do tecto do palácio privado Ferreira
Pinto Basto trata-se de Juno Pedindo a Éolo para Libertar os Ventos contra Eneias, pintura
central, acompanhada das representações da Astronomia, Poesia, Música e Pintura em
medalhões laterais (c.1791-1810). No medalhão da Astronomia, um dos dois anjos, junto de
um globo e de uma folha de papel com um desenho imperceptível, aponta um telescópio para
baixo – talvez para o próprio globo ou para o desenho. Nestes dois exemplos encontramos, no
mínimo, significativas provas da indissociável ligação operada por Galileu entre a nova
astronomia e este novo instrumento óptico – ligação que permanece até hoje – e, por via dele,
à visão: a nova ciência dos céus é uma ciência da observação e da óptica (Koyré, 1957: 69),
que lida por isso com as questões da percepção e da ilusão de modo a tornar visível o
invisível. Assim, sobretudo a partir de Galileu, as imagens da astronomia procuram, tal como
as da pintura, mostrar aquilo que o sistema visual humano não alcança, rivalizando com estas
na revelação dos mistérios do espaço celestial. Porém, este é apenas parte de um desafio
mais vasto: recorrendo às novas máquinas de ampliação visual, macro e microscópica, a
revolução científica traz, definitivamente, a ciência e os cientistas para um campo até aí, em
grande parte, reservado à arte e aos artistas – o da investigação da aparência visual do
mundo. O impacto deste desafio nos séculos seguintes só terá paralelo com o da invenção, no
século XIX, da máquina fotográfica, quando esta mais do que a democratização no acesso às
imagens, operada anteriormente pela gravura, inaugura uma era de democratização na sua
produção, deixando o pintor de ser imprescindível ao processo de materialização das imagens.
Porém, em 1609, as descobertas telescópicas de Galileu proporcionarão um último
mas bastante significativo momento de estreita colaboração entre a arte e a ciência. Dela
nascerá uma peculiar representação celestial, pintada na cúpula de uma capela de uma
importante basílica de Roma, que permanecerá quer como um desafio à arte religiosa dos dois
séculos seguintes quer, sobretudo, como o último testemunho do sonho renascentista. A
história dessa pintura inicia-se no momento em que, «após haver recebido a iluminação da
graça divina» (Galileu Galilei, 1610: 5v), Galileu aponta o seu óculo para o satélite da Terra e
constata que «a superfície da Lua não é suave, uniforme e exactamente esférica, como um
grande número de filósofos acredita … ser, mas é irregular, rugosa e cheia de cavidades e
medalhão central, a Igreja encontra-se acima da «Castidade, da Constância, Esperança, Caridade e Prudência
sob a representação da Filosofia; nas extremidades Minerva e Apolo e Mercúrio e, em redor, os génios
emblemáticos da Pintura, Escultura, Arquitectura, Artes Mecânicas, Música, Poesia e Astronomia» (António Filipe
Pimentel, in Fernandes Pereira e Pereira, 1989: 90).
Capitulo 2. O céu nas imagens 201
proeminências, não sendo diferente da Terra, que apresenta um relevo feito de cadeias de
montanhas e vales profundos» (Galileu Galilei, 1610: 7v)328. Por outras palavras, o telescópio
permitiu a Galileu constatar que a Lua não é, afinal, o corpo perfeitamente regular afirmado por
Aristóteles, concepção que se havia tornado um dogma científico e teológico, mas permitiu-lhe
igualmente descobrir que nos céus, além da Lua, existem outros corpos a orbitar em torno de
um planeta – Júpiter329 – e não do Sol e, finalmente, que o espaço sideral está povoado de um
número incomensurável de estrelas, sendo, por isso, muito mais vasto que aquilo que se
julgava. São estas descobertas sensacionais que ele se apressa a publicar no ano seguinte no
seu Sidereus nuncius (O Mensageiro das Estrelas).
Bastante significativos são também os desenhos que Galileu faz, na sequência das
suas observações da superfície lunar (fig. 40), reproduzidos sob a forma de gravuras no seu
tratado330. É indubitável que estes são, simultaneamente, brilhantes peças de observação
científica e extraordinários estudos artísticos. Poder-se-á pensar que a sua qualidade gráfica
advém fundamentalmente dos poderes de observação de Galileu aliados à qualidade visual
proporcionada pelo telescópio. A realidade, porém, é bastante diferente. De facto, a primeira
geração de telescópios, como aquele que Galileu usou, era bastante rudimentar. Dificilmente
produziam imagens focadas e, através deles, não era possível ver a Lua de uma forma
suficientemente nítida e completa de modo a que a sua topografia se tornasse evidente.
Assim, a Lua que Galileu terá visto era um disco brilhante, desfocado e manchado (cf.
Edgerton, 1991: 233-5). O que quer dizer que haveria uma enorme diferença entre aquilo que
ele observou e o que ele registou no papel.
Através do seu biógrafo e discípulo, Vincenzo Viviani (1622-1703), sabemos que
Galileu não só era um conhecedor e admirador da pintura como um desenhador praticante (cf.
Edgerton, 1991: 223-4; Reeves, 1997: 115) tornando-se mesmo, em 1613, membro da
prestigiada Accademia del Disegno de Florença. Além disso, era amigo de diversos artistas,
como Rubens (Reeves, 1997: 68) ou, sobretudo, Ludovico Cardi, dito Cigoli (1559-1613), o
328 «All which facts were discovered and observed a few days ago by the help of a telescope devised by me,
through God’s grace first enlightening my mind. … I have been led to that opinion which I have expressed … that
the surface of the Moon is not perfectly smooth, free from inequalities and exactly spherical, as a large school of
philosophers considers … but that, on the contrary, it is full of inequalities, uneven, full of hollows ad
protuberances, just like the surface of the Earth itself, which is varied everywhere by lofty mountains and deep
valleys».
329 Trata-se dos satélites Io, Europa, Ganimedes e Calisto, apelidados por Galileu de Medicea sideri, os astros
Medici, em homenagem ao seu patrono, o príncipe da Toscana Cosimo II de Medici.
330 Como salienta Edgerton (1991: 239-40, 245), existem diferenças importantes entre os desenhos a aguada e
as gravuras. Os primeiros, realizados pelo próprio Galileu, apresentam uma sofisticação pictórica nas transições
de claro-escuro se perdem na versão “mais dura” da gravura.
202 Capitulo 2. O céu nas imagens
mais importante pintor florentino desse período, com quem mantém uma correspondência
assídua tanto sobre questões científicas como artísticas331. É precisamente este interesse e
experiência no domínio da pintura que Galileu usará quer nas observações quer nos desenhos
que realizou a partir delas. De facto, tanto o seu conhecimento das leis perspécticas de
incidência e reflexão da luz nos corpos, estudadas por Leonardo da Vinci, como dos
consequentes efeitos de claro-escuro na sugestão visual da tridimensionalidade dos corpos,
serão fundamentais para a descoberta revolucionária de Galileu. No próprio Sidereus nuncius,
Galileu analisa detalhadamente o papel destes efeitos na percepção da irregular superfície
lunar e, dois anos depois, numa carta para Cigoli, afirma que «conhecemos a profundidade
não como objecto da visão per se e absolutamente mas por acidente e por relação com o claro
e o escuro» (Galileu, 26 de Junho de 1612; cit. por Barocchi, 1971: 709)332.
Por isso, através dos desenhos e das descrições da superfície lunar, torna-se
patente o importante papel desempenhado pela teoria da arte nas descobertas de Galileu, ao
aplicar a um corpo extraterrestre as mesmas leis ópticas e pictóricas que, desde o
Renascimento, são consideradas válidas, tanto pela ciência como pela pintura, para o
conhecimento e representação dos corpos terrestres, da sua tridimensionalidade e do espaço
em que se inserem333. Esta operação de dissolução das fronteiras aristotélicas entre o mundo
terreno e o mundo celestial permite-lhe compreender, pela primeira vez, a efectiva aparência
da Lua e, mais importante, alargar ao céu os conceitos e os instrumentos do espaço pictórico,
unindo sob as mesmas leis visuais os dois mundos tradicionalmente separados. Talvez se
possa mesmo considerar, como faz Edgerton (1991: 245), que os seus desenhos lunares
pertencem tanto à história da ciência com à história da arte, constituindo exemplos de uma
nova forma de pintura de paisagem. Um tal alargamento do conceito de paisagem ao mundo
celestial e a compreensão e representação visual deste segundo leis ópticas e pictóricas
conduz não apenas à unificação fenoménica do universo mas também a uma inevitável
desmistificação do céu, tornando-o domínio da ciência e matéria da pintura.
331 Para as reflexões de Galileu sobre os aspectos da representação artística, cf., p.e., a sua carta para Cigoli, de
26 de Junho de 1612, publicada por Barocchi, 1971: 707-11.
332 «Conosciamo dunque la profondità, non come oggetto della vista per sé et assolutamente, ma per accidente e
rispetto al chiaro et allo scuro».
333 Porém, de acordo com Winkler e Helden (1993: 111-2), nos desenhos de Galileu só algumas características
podem efectivamente ser identificadas com a topografia lunar. Por outras palavras, eles não são mapas exactos
mas brilhantes imagens pictóricas capazes de sugerir uma ideia correcta acerca de um mundo desconhecido.
Esta inexactidão surge agravada nas gravuras (cf. n. 330).
203 Capitulo 2. O céu nas imagens
Fig. 39 – Pedro Alexandrino de Carvalho (1729-1810). As
Ciências e Virtudes Presididas pela Religião, c.1771-1800. Óleo
sobre estuque. Lisboa, Convento de Jesus da Ordem Terceira
de São Francisco (tecto da Biblioteca, detalhe da Astronomia).
Fig. 40 – Galileu Galilei (1564-1642). Desenhos da Lua, 1609.
MS. Gal. 48, fol. 28r. Florença: Biblioteca Nazionale Centrale.
O seu quase certo conhecimento das investigações e demonstrações de Leonardo,
cujos manuscritos teriam também um papel fundamental no importante tratado escrito por
Cigoli (Kemp, 1990: 97; Reeves, 1997: 115; Chappell, 2003: 109)334, tornam ainda mais claro o
quanto a ênfase na luz como elemento de revelação da aparência do mundo conduziu a uma
ligação operativa entre arte e ciência na descoberta de Galileu. Um outro exemplo desta
ligação surge em 1612 a propósito da observação e explicação das estranhas e mutáveis
manchas solares: na correspondência trocada com Cigoli, Galileu defende que a sua
passagem de formas planas a formas em escorço, à medida que progridem do centro para a
periferia do Sol, só pode ser consequência do facto delas se situarem sobre a superfície e não
334 Embora nunca publicado, o tratado de Cigoli intitulado Prospettiva pratica, provavelmente escrito entre 1606 e
1613, circularia sob a forma manuscrita exercendo uma forte influência nas décadas seguintes (Chappell, 2003:
109-19).
204 Capitulo 2. O céu nas imagens
fora dela, o que resulta de uma óbvia aplicação das leis da perspectiva a um corpo esférico.
Ou seja, desempenhando um papel fundamental na interpretação das desfocadas imagens
fornecidas pela nova máquina visual e, dessa forma, na compreensão da aparência de um
mundo até aí desconhecido, nas mãos de Galileu, a pintura contribuía, uma vez mais, para o
sonho renascentista de unificar sob as mesmas leis a terra e o céu e de actuar como
instrumento de conhecimento da estrutura visual do universo. Ao mesmo tempo, associada ao
telescópio, ela encontrava novas formas de visualização do invisível e de confronto do
observador com o assombro e a maravilha, mas também com o desconcerto e a perturbação,
recorrentemente expresso nos séculos XVII e XVIII:
Mas quando contemplamos de uma só vez a Terra inteira e os vários planetas que a circundam, somos tomados
de um agradável assombro por ver tantos mundos, sobrepondo-se uns aos outros e deslizando em torno dos
seus eixos, com tão surpreendente pompa e solenidade. Se, depois, contemplarmos os extensos espaços
etéreos que, em altura, alcançam uma distância como a que vai de Saturno até às estrelas fixas, e se espalham
quase até ao infinito, a nossa imaginação esgota a sua capacidade com uma perspectiva tão imensa, esforçando-
se até ao limite por compreendê-la. Mas, se mais nos elevarmos ainda e considerarmos as estrelas fixas como
outros tantos vastos oceanos de fogo, cada um dos quais acompanhado de um conjunto diferente de planetas, e
descobrirmos ainda novos firmamentos e novas estrelas escondidas mais além, nas insondáveis profundidades
do éter, de modo a escaparem aos mais fortes dos nossos telescópios, perdemo-nos num tal labirinto de sóis e
mundos e ficamos desconcertados com a imensidão e magnificência da natureza. (Addison, 1712: n.º 420, 90-1)
Se a troca de ideias entre Galileu e Cigoli nos permite considerar que a influência
deste último foi importante para os resultados obtidos pelo primeiro (cf. Kemp, 1990: 92-8;
Edgerton, 1991: 223-53; Reeves, 1997), a influência de Galileu em Cigoli não é menor: entre
1610 e 1612, Cigoli pintou na cúpula da Capela Paolina, na Basílica de Santa Maria Maggiore,
em Roma, uma visão do céu no centro da qual a Virgem Maria se eleva (figs. 41 e 42)335. Tal
como estava estabelecido pela iconografia cristã, a Virgem Imaculada é representada de pé,
assente sobre a Lua. Porém, pela primeira vez na história, a Lua que vemos sob os pés da
Virgem é uma Lua irregular, rugosa, com crateras e montanhas – uma Lua maculada e não
imaculada, como a teologia cristã prescrevia. Vemos também a fronteira entre o hemisfério
iluminado e o hemisfério em sombra, exactamente como nos desenhos de Galileu. Esta Lua
astronómica e não teológica representada por Cigoli não é apenas uma episódica intromissão
da nova astronomia na pintura nem sequer um mero artifício visual inconsequente. O
envolvimento de Cigoli nas investigações de Galileu e a permanente troca de ideias entre
ambos, as suas próprias observações telescópicas da Lua e a sua colaboração e participação
nas observações astronómicas das manchas solares a que, em 1612, Galileu se dedicou, a
335 A pintura foi iniciada em Setembro de 1610, seis meses depois da publicação do Sidereus nuncius, e
terminada por volta de Abril de 1612 (Reeves, 1997: 167).
Capitulo 2. O céu nas imagens 205
conciliação da prática pictórica com um pensamento teórico que o seu tratado reflecte336,
demonstram de forma suficiente que a inclusão das novas descobertas numa tão importante
empreitada religiosa reflecte um propósito declarado: afirmar a intrínseca ligação da pintura às
ciências da visão, defender Galileu e as suas descobertas das críticas imediatamente surgidas
e, sobretudo, conciliar as novas descobertas científicas com a tradição religiosa337.
A cúpula de Cigoli, juntamente com a triunfal Glória de São Clemente (c.1598-1600),
pintada imediatamente antes pelos irmãos Alberti no tecto da Sala Clementina do Vaticano, e
a Assunção da Virgem (1616), pintada imediatamente depois por Lanfranco na cúpula da
Capela Buongiovanni da Igreja Santo Agostino, desempenha um papel pioneiro no processo
que conduzirá ao triunfo em Roma do ilusionismo das grandes máquinas celestiais devedoras
da herança de Correggio, que Cigoli tanto admirava (Kemp, 1990: 96). Mas ela distingue-se
também por um outro motivo: a conciliação numa superfície esférica de corpos representados
em escorço, pressupondo uma visão de baixo para cima segundo um eixo vertical, como os
anjos em torno do óculo central ou Deus Pai na luneta, e outros, como a Virgem, com um
escorço reduzido, destinados a uma visão oblíqua e a uma percepção não distorcida das
características fundamentais da sua aparência338. Curiosamente, esta questão das formas in
scorcio (em escorço) ou in faccia (de frente) numa superfície esférica esteve, como foi referido,
no centro da correspondência trocada nesse ano com Galileu, a propósito das manchas
solares (Kemp, 1990: 94-5). Mais importante, a opção de Cigoli por uma representação
celestial que procura um compromisso entre ilusão perspéctica e correcção perceptiva –
evitando transformar a pintura numa ampla anamorfose só compreensível de um ponto de
vista único – revela uma sintonia com o pensamento estético de Galileu, expresso nessas
mesmas cartas, profundamente crítico do primado da distorção dos corpos na pintura
maneirista (cf. Reeves, 1997: 7, 11, 18). Finalmente, a inserção numa representação do céu
sobrenatural de uma paisagem astronómica traduz não apenas uma vontade de conciliar uma
336 Além de Cigoli, estiveram envolvidos nestas observações directamente relacionadas com o trabalho de
Galileu, os pintores Domenico Cresti e Sigismondo Coccapani, amigos de Cigoli (Reeves, 1997: 5).
337 Curiosamente, muitos dos argumentos usados contra a visão telescópica baseavam-se na ideia de que sendo
a Lua uma esfera de cristal ou até, segundo alguns, uma espécie de nuvem luminosa, as manchas observadas
na sua superfície não eram mais do que uma ilusão provocada pela distância, em tudo semelhante àquela que os
pintores alcançam nas suas obras através do claro-escuro (cf. Reeves, 1997: 145-56).
338 A observação da Virgem deverá ser feita a partir da entrada da capela e não a partir do seu centro, ponto a
partir do qual surgirá em claro conflito com a restante representação, distorcida e parcialmente oculta pela cornija.
Numa carta para Galileu de Abril de 1612, imediatamente antes da retirada dos andaimes, Cigoli mostra-se
confiante na eficácia da pintura quando vista a partir do solo. Porém, testemunhos contemporâneos afirmam que
o pintor terá ficado profundamente insatisfeito com o resultado final (cf. Reeves, 1997: 170). De facto, a
percepção da pintura está longe da eficácia pretendida por Cigoli; a isto não será alheia a grande distância que
separa o observador da pintura, devido à altura da capela, e a própria forma alongada da cúpula.
206 Capitulo 2. O céu nas imagens
visão idealizada com uma visão objectiva, mas também a ambiciosa tentativa de combinar
modelos metafísicos com modelos ópticos do céu. Porém, o dissonante e polémico resultado
não terá qualquer consequência futura.
Fig. 41 – Ludovico Cigoli (1559-1613).
Imaculada Conceição, 1610-12. Fresco.
Roma, Basilica Santa Maria Maggiore
(cúpula da Capela Paolina).
Fig. 42 – Ludovico Cigoli (1559-1613).
Imaculada Conceição, 1610-12.
Fresco. Roma, Basilica Santa Maria
Maggiore (detalhe da cúpula da Capela
Paolina).
Portanto, através da cúpula de Cigoli podemos perceber melhor o impacto
revolucionário da nova visão telescópica e galileana da Lua. As suas implicações não são
apenas científicas mas religiosas: sendo a Lua concebida de forma aristotélica como um corpo
ideal, uma esfera perfeita e cristalina, protótipo formal de todos as estrelas e planetas do
Capitulo 2. O céu nas imagens 207
universo, o pensamento cristão – em particular o católico – associará a figura da Virgem a esta
pureza lunar: pulchra ut luna, bela como a Lua, isto é, pura e imaculada como um cristal. As
descobertas de Galileu não só ocorrem num momento de profunda discussão teológica sobre
o papel da mãe de Jesus e a sua natureza imaculada como parecem ter contribuído para a
aprofundar e radicalizar. Embora esta só se tenha tornado um dogma católico em 1854, no
início do século XVII poderosas forças movimentavam-se em prol desta posição e reflectiam a
crescente importância religiosa atribuída à figura da Virgem Maria (cf. Reeves, 1997: 138-47).
No centro da discussão estavam os Jesuítas: no seu seio encontravam-se não só os principais
defensores da teoria da Lua cristalina e da natureza imaculada da Virgem mas também
aqueles que, exprimindo a conhecida atracção da Ordem pela novidade, procuravam
reconhecer e apoiar as novas evidências científicas. Porém, a divisão entre estas duas
posições antagónicas seria ultrapassada à medida que os seguidores de Santo Inácio de
Loyola se tornaram nos principais guardiões da Igreja perante todas as ideias novas e
perigosas. A radicalização da discussão conduz Galileu a uma crítica cada vez mais aberta
aos argumentos teológicos da Lua cristalina e, consequentemente, à pertinência da doutrina
da Imaculada Conceição na compreensão dos fenómenos celestiais. A tudo isto juntava-se,
como pano de fundo, a questão do modelo do universo: por outras palavras, a defesa por
Galileu da teoria heliocêntrica de Copérnico, publicada algumas décadas antes. Não admira,
portanto, que a reacção da Igreja Católica tenha sido a de negar as consequências da visão
telescópica dos céus conduzindo, numa sucessão de acontecimentos ao longo das duas
décadas seguintes, a uma ruptura irreversível entre o pensamento teológico e o pensamento
científico339.
Galileu era, efectivamente, um coperniciano – como é provável que o seu amigo Cigoli
também o fosse. Acontece, porém, que a teoria de Copérnico constituía não apenas um repto
às velhas concepções científicas, abalando as estruturas da teoria ptolemaica em vigor há
vários séculos, como surgia no seio de uma Europa cristã conturbada pela luta fratricida entre
protestantes e católicos. Se a primeira e mais vigorosa contestação surge no mundo
339 «Estas são as pessoas escrupulosas, que poderão talvez olhar como um perigo para a Religião, a simples
supposição de existirem habitantes em outro Planeta, que não seja a Terra. … Quando se vos diz que a Lua é
habitada, imediatamente vós representaes na Lua homens feitos como vós … A posteridade de Adam nem se
estendeu até à Lua, nem mandou para alli Colonias; logo os homens, que habitam a Lua, não são filhos de
Adam. Ora, necessariamente deve ser um grande embaraço para a Theologia haverem homens, que não tenham
descendido delle. … A objecção roda pois toda sobre os homens da Lua; porém advirta-se que são as mesmas
pessoas, que apresentam uma tal objecção, e não eu, quem os faz alli apparecer. É verdade que eu supponho
habitantes na Lua, mas não são homens. Logo o que são? Não o sei, nem é, porque os tenha visto, que delles
fallo» (Fontenelle, 1686: 10-2).
208 Capitulo 2. O céu nas imagens
protestante, em nome de um regresso às Escrituras como fonte única do pensamento cristão,
gradualmente a Igreja Católica é obrigada a reagir, a despeito do facto de Copérnico ter sido
um clérigo respeitado, o seu livro dedicado ao Papa e os seus trabalhos usados, em 1582, na
reforma do calendário por Gregório XIII (cf. Kuhn, 1957: 208-15). No auge da Contra-Reforma,
a teoria de Copérnico, confirmada e desenvolvida pelas descobertas de Galileu, torna-se
assim um desafio demasiado perigoso para os dogmas cristãos e, em 1616, o livro é banido e
substituído por uma versão “corrigida”. Galileu é por isso aconselhado a abandonar as suas
teses copernicianas e «todos os esforços frutuosos para reconciliar o novo sistema do mundo
com as Escrituras são fortemente desencorajadas» (Reeves, 1997: 193). Porém, tudo se
precipita quando, em 1632, Galileu publica, em Florença, o seu Dialogo sopra i due massimi
sistemi del mondo, Tolemaico e Copernicano, uma poderosa crítica à visão aristotélica e
ptolemaica do universo e uma apaixonada defesa do sistema de Copérnico (Galileu Galilei,
1632). O Papa Urbano VIII considera-se enganado340, a estrutura da Igreja reage, e o
resultado é o famoso julgamento de Galileu pelo Tribunal do Santo Ofício, onde este é
obrigado a negar as suas convicções341. Simultaneamente, o Dialogo é colocado no Index a 25
de Julho de 1633 – de onde saiu apenas em 1824, embora o decreto contra o sistema
coperniciano tenha sido anulado em 1757, quando já nada permitia sustentar a posição
científica da Igreja342.
As observações telescópicas feitas por Galileu naquele inverno de 1609 marcam o
nascimento visual do moderno céu astronómico e, juntamente com a obra de Copérnico,
despoletam uma irreversível transformação na forma de conceber o universo e, de forma mais
ampla, o próprio espaço. Inicia-se uma nova época: destruídas progressivamente as velhas e
familiares certezas, afastada do centro do mundo, a Terra e, com ela a humanidade, vê-se
reduzida a um grão de poeira cósmica num universo intrincado e em contínua expansão.
Perante este céu imenso o observador dos séculos XVII e XVIII tanto pode ser invadido por
um novo furor como por uma angustiante perturbação. De certa forma, uma e outra, são
consequência da chamada revolução científica, no seio do qual nascerão o método, os
conceitos e as primeiras teorias da ciência moderna e através da qual se operará a passagem
340 Em 1623, quando Maffeo Barberini se torna Papa, Galileu, devido à boa relação entre ambos, pede-lhe
permissão para publicar um novo livro. Urbano VIII concede a sua autorização estabelecendo, porém, certas
condições quanto ao conteúdo da obra.
341 De acordo com a sentença de 22 de Junho de 1633, Galileu é explicitamente condenado pela heresia de,
contrariando as Sagradas Escrituras, defender a teoria heliocêntrica e as suas implicações celestiais (cf. Harries,
2001: 267).
342 Em 1737, o Papa Clemente XII procurou evitar a construção de um mausoléu de Galileu na Igreja de Santa
Croce, em Florença, e o Dialogo, apesar da proibição, seria publicado em 1744 (Haskell, 1980: 317).
Capitulo 2. O céu nas imagens 209
de uma visão orgânica para uma visão mecânica do universo, o qual, nas palavras de Galileu,
é esse grande livro onde toda a filosofia está escrita e que só pode ser compreendido se
primeiro aprendermos a «entender a sua linguagem»: «está escrito em linguagem matemática,
em que as letras são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem os quais é
humanamente impossível compreender uma única palavra dele; sem estes vagueamos
perdidos num labirinto escuro» (Galileu Galilei, 1623: 6)343. Esta ideia do universo como texto
remete tanto para Paracelso (1493-1541), para quem as estrelas do firmamento deviam ser
consideradas como uma mensagem escrita que nos fora enviada para interpretação (cf.
Bryson, 1981: 44), como para o pensamento teológico cristão e a sua associação do céu à
revelação dos textos sagrados. Porém, a nova ênfase no carácter matemático da sua
linguagem significa que, de ora em diante, caberá à ciência e não à religião o seu estudo e
interpretação. Por isso, a revolução científica significa também a passagem de uma visão
sobrenatural ou teológica do céu e do universo para uma outra natural e científica. As
consequências desta passagem anunciada por Galileu seriam, nas décadas seguintes,
reforçadas por Descartes e Isaac Newton (1642-1727).
Na sua natureza totalmente geométrica e matemática, o céu astronómico transforma-
se, assim, em espaço. Compreender as suas leis significa caracterizar as suas propriedades e
definir a sua extensão: a revolução celestial é, por isso mesmo, uma revolução espacial. E no
seio desta, a visão profética de Giordano Bruno (1548-1600), condenado à fogueira pela
Inquisição, de um universo que além de heliocêntrico é infinito (cf. Bruno, 1584), torna-se
gradualmente uma possibilidade; para muitos, uma evidência. À medida que, ao longo do
século XVII, o universo se alarga, ele surge a Galileu como interminado e a Descartes como
indefinido ou indeterminado. Só com Newton, se tornará verdadeiramente infinito. Porém, até à
completa aceitação da física newtoniana, na segunda metade do século XVIII, são os
princípios da filosofia científica de Descartes, definidos no seu Principiorum Philosophiae ou
Princípios Filosóficos, de 1644, que prevalecerão (Kuhn, 1957: 254). Segundo estes, o
universo é sobretudo extensão, logo matéria, e esta um plenum de substância no qual o vazio
ou vácuo não existem. Este espaço substancial, totalmente preenchido por matéria, não tem
limites:
343 «La filosofia è scritta in questo grandissimo libro che continuamente ci sta aperto innanzi a gli occhi (io dico
l’universo), ma non si può intendere se prima non s’impara a intender la lingua, e conoscer i caratteri, ne’ quali è
scritto. Egli è scritto in lingua matematica, e i caratteri son triangoli, cerchi, ed altre figure geometriche, senza i
quali mezi è impossibile a intenderne umanamente parola; senza questi è un aggirarsi vanamente per un oscuro
laberinto».
210 Capitulo 2. O céu nas imagens
a matéria extensa de que o universo é composto, não tem limites, porque por mais longe que levássemos a
nossa imaginação, mesmo assim poderíamos imaginar outros espaços indefinidamente extensos, e não só os
imaginamos como os concebemos tão reais quanto os imaginámos. (Descartes, 1644: II, §21, 68)
Ele é por isso ilimitado, embora não infinito, porque a infinitude é uma propriedade exclusiva
de Deus. Sendo assim, o universo é espacialmente indefinido, «pois tudo aquilo em que não
encontramos quaisquer limites é indefinido» (Descartes, 1644: II, §26, 70), ou indeterminado:
digo que o mundo é indeterminado, ou indefinido, porque não lhe conheço quaisquer termos, mas não ousarei
dizer que ele é infinito, porque concebo que Deus é maior que o mundo, não em razão da sua extensão, que não
concebo em Deus como já disse várias vezes, mas em razão da sua perfeição. (Descartes; cit. por Koyré, 1957:
123)
Como veremos, será esta concepção do espaço celestial como indefinido ou indeterminado
que terá, em nossa opinião, uma profunda repercussão nas representações pictóricas das
grandes máquinas celestiais dos séculos XVII e XVIII. Se até Newton a infinitude permanece
uma concepção puramente metafísica, depois dele continua a ser matéria de profunda
discussão: é esta tensão entre infinito e indeterminado que marca todo o período aqui
estudado.
Só com a publicação, em 1687, da primeira edição dos Philosophiae Naturalis
Principia Mathematica, habitualmente designado por Principia, de Isaac Newton, o espaço
será definido como absoluto, verdadeiro e matemático (cf. Koyré, 1957: 156-9; Jammer, 1993:
99-108). Depois da destruição por Galileu das fronteiras entre as diversas esferas do universo
aristotélico e ptolomaico, o universo surge, agora, como um todo unitário e consequente: o
macro e o microcosmos, os mundos do céu e da terra, são organizados pelas mesmas leis
matemáticas e encontram-se submetidos às mesmas forças. A gravitação universal determina
não só a estrutura dos sistemas planetários e o movimento dos corpos celestes mas regula
também as marés e explica o peso que nos prende à terra. Desse modo, o desejo humano de
elevação, de ascensão e rapto torna-se não apenas um desafio espiritual mas científico: um
problema da física mais do que da religião, como as primeiras máquinas aerostáticas
demonstrarão. Nasce assim o fascínio do século XVIII com a ciência, que gradualmente
invade todas as esferas da vida quotidiana (Stafford e Terpak, 2004: 196), como comprova a
leitura da, habitualmente circunspecta, Gazeta de Lisboa.
Apesar do seu profundo misticismo, Newton concebe este universo como infinito,
vazio e distinto de Deus. Nele não há centro, como não há cima ou baixo, e, numa negação do
conceito aristotélico de lugar, nele todos os pontos se equivalem (Kuhn, 1957: 106). Esta nova
visão de um espaço infinito que, na segunda metade do século XVIII, suplanta a de Descartes
Capitulo 2. O céu nas imagens 211
e atribui, finalmente, total coerência ao modelo de Copérnico tem profundas consequências
metafísicas: embora Newton reconheça a existência de Deus, tanto como a de figuras sobre-
humanas e de acontecimentos sobrenaturais, considera que estes não têm qualquer
relevância para a compreensão científica do universo, isto é, não são domínio da ciência
(Jammer, 1993: 98). Se nas últimas edições dos Principia o cientista inglês relaciona o espaço
absoluto com Deus, ainda assim, este não se confunde com o universo: Deus «não é a
eternidade nem a infinidade, mas é eterno & infinito; ele não é a duração nem o espaço, mas
dura & está presente; dura sempre & está presente em toda a parte; é existente sempre & em
todo o lugar, constitui o espaço & a duração» (Newton, 1687; cit. por Koyré, 1957: 218). Desta
forma, a sua existência é reafirmada mas no universo newtoniano deixa de haver espaço físico
para o paraíso. De alguma forma isto corresponde a uma “expulsão” de Deus do próprio
universo: cabe-lhe reinar mas já não residir nele. No céu já não há um lugar reservado à
morada divina.
Em Portugal, a primeira observação telescópica ocorre apenas a 1 de Novembro de
1724 e é realizada no recentemente criado observatório do Paço da Ribeira, sob o patrocínio
directo do rei D. João V (cf. Rómulo de Carvalho, 1985: 40-9). O histórico acontecimento é
notícia na Gazeta de Lisboa (1724: n.º 45, quinta-feira 9 de Novembro) que, daqui em diante,
passará a incluir no seu parco relato noticioso, regulares descrições da observação, científica
ou puramente acidental, de vários fenómenos celestes, lado a lado com as notícias dos autos
de fé que se realizam um pouco por todo o país. Este tardio ingresso de Portugal no seio da
nova era telescópica reflecte a generalizada decadência da investigação científica portuguesa
após o brilho do período dos Descobrimentos e da sua contribuição fundamental para a
construção de uma moderna consciência científica (cf. Goodman, 1992: 168). Mas reflecte
também o esforço empreendido por D. João V, cuja fama em vida de mecenas da ciência é
mais ou menos generalizada por toda a Europa, para, à semelhança da sua política artística,
empreender uma profunda alteração deste estado de coisas, sem no entanto colocar em
causa o primado dos dogmas do catolicismo344. Neste contexto, ao longo do século XVIII, a
relação com a nova ciência e, em particular, com a nova visão e concepção do espaço
celestial, é, em geral, ambígua e, acima de tudo, contraditória. Se, por um lado, ocorre uma
344 Aliás, o italiano Francesco Bianchini (1662-1729) dedica a D. João V a sua obra Hesperi et Phosphori nova
phaenomena, sive observations circa planetam Veneris (Roma, 1728), fruto das suas observações telescópicas
de Vénus, cujas manchas baptiza com os nomes, entre outros, do monarca português, do seu antecessor D.
Manuel I (1469-1521) e do Infante D. Henrique (1394-1460) (cf. Rómulo de Carvalho, 1985: 51; Delaforce, 2002:
87).
212 Capitulo 2. O céu nas imagens
gradual divulgação e assimilação daquela, por outro, constata-se que no início do século XIX
ainda não é sequer absoluta a aceitação da teoria heliocêntrica, apresentada pela primeira vez
por Copérnico em 1543345.
De facto, a abertura artística às correntes internacionais promovida por D. João V é
acompanhada de um processo idêntico ao nível científico. O padre jesuíta italiano Giovanni
Baptista Carbonne (1694-1750), chega a Lisboa em 1722, contratado pelo soberano como
matemático régio. Carbonne dará corpo ao ambicioso plano do rei de apoio às ciências,
encorajando a investigação, patrocinando o ensino da matemática, da física e da astronomia e
contratando diversos especialistas estrangeiros, sobretudo italianos (cf. Delaforce, 2002: 83-6).
Ao palácio real chegam também caixotes carregados com livros e instrumentos científicos
encomendados por toda a Europa, incluindo globos terrestres e celestiais e, pela primeira vez,
telescópios. É desta forma que é criado, no próprio palácio, o primeiro observatório
astronómico – a que se segue um outro no Colégio de Santo Antão, pertencente à Companhia
de Jesus. Ao mesmo tempo, este processo, inteiramente realizado e controlado por membros
das ordens religiosas, decorre num contexto de subordinação do conhecimento aos preceitos
e dogmas da Santa Sé e à vigilância da Inquisição346. Por exemplo, em Fevereiro de 1717,
cinco anos antes da chegada de Carbone, a Universidade de Coimbra reúne-se em magno
Claustro com todos os
… Lentes das faculdades, & Doutores, Deputados, & outros Conselheyros, que o constituem, todos os Doutores
Theologos, que ao presente se achaõ nesta Cidade, & perante huns, & outros, leo o Secretario da mesma
Universidade o assento que no precedente Claustro se tomou, & o juramento que fizeraõ em forma solemne, de
defender publica, & particularmente a Bulla Unigenitus, & todas as outras que os Summos Pontifices da Igreja
Romana expedirem em materias dogmaticas, nas quaes crem serem infalliveis, & absolutos, como a
Universidade de Coimbra sempre defendeo. … & todos uniformemente respondèraõ, estar promptos a defender o
que tinhaõ prometido, & jurado … Acabado o acto dos juramentos, propoz o Illustrissimo Reytor da Universidade,
Nuno da Sylva Telles, ao Claustro, se deviaõ dar graças a Deos Nosso Senhor em forma solemne, por ter
alumiado S. Santidade, para expedir Bulla taõ util, contra proposiçoens taõ perniciosas, que todas foraõ lidas
publicamente na primeyra Assemblea. (Gazeta de Lisboa, 1717: n.º 8, quinta-feira 25 de Fevereiro)
345 «Em 1788 publicaram os padres do Oratório, para uso das suas escolas, uns livrinhos de pequeno formato,
de entre os quais um Diálogo da Esfera Celeste e Terrestre para uso das Escolas da Congregação do Oratório na
Real Casa de Nossa Senhora das Necessidades, no qual se ensina que os planetas são sete: Saturno, Júpiter,
Marte, Sol, Vénus, Mercúrio, Lua. Aí está o Sol, do qual se acrescenta que “faz os seus movimentos à volta da
Terra”. Teve este livrinho não sabemos quantas edições, mas possuímos um exemplar de uma edição de 1807,
onde o texto não foi alterado! As crianças portuguesas que frequentavam as escolas dos oratorianos nos
primeiras anos do século XIX ainda aprendiam que o Sol se move em redor da Terra» (Rómulo de Carvalho,
1985: 32-3).
346 «Neste país tudo é olhado como mistério ou feitiçaria, isto é, sortilégio ou magia. Aqui nem um homem de
ciência se pode mostrar curioso e pretender instruir-se pois tem sempre receio de ser molestado pelo Santo
Ofício» (Merveilleux, 1738; cit. por Rómulo de Carvalho, 1987: 18).
Capitulo 2. O céu nas imagens 213
Fig. 43 (à esquerda) – Pedro Alexandrino de Carvalho (1729-1810). As Ciências e as Virtudes Presididas pela Religião, c.1771-1800. Óleo
sobre estuque, 34 x 13 m. Lisboa, Convento de Jesus da Ordem Terceira de São Francisco (detalhe do tecto da Biblioteca).
Fig. 44 (à direita) – Pedro Alexandrino de Carvalho (1729-1810). Estudo para as Ciências e as Virtudes Presididas pela Religião, c.1779-1800.
Desenho a pena tinta bistre, aguada, tinta da china e carvão, 468 x 246 mm. Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga (Inv. n.º 24 Des).
Efectivamente, ao longo de quase todo o século a ciência em Portugal é uma
actividade realizada, tanto em termos filosóficos como experimentais, quase exclusivamente
pelos membros das ordens religiosas, especialmente Jesuítas e Oratorianos – sendo estes, os
da Congregação do Oratório de São Filipe Néry, rivais dos primeiros e, em geral, os
responsáveis por quase todas as manifestações portuguesas de abertura às novas teses
científicas. Não admira por isso que a ciência e, em particular, a astronomia sejam
fundamentalmente concebidas no quadro da chamada física teológica, isto, é da tentativa de
conciliar o pensamento científico com a religião (cf. Calafate, 1994: 46). Exemplo
paradigmático é o do oratoriano Teodoro de Almeida (1722-1804), autor, entre outras obras,
da influente Recreação Filosofica Ou Dialogo Sobre a Filosofia Natural, para instrucção de
pessoas curiosas, que não frequentarão as aulas, publicada em dez volumes, entre 1786 e
1800, onde expõe o sistema copernicano considerando-o compatível com a obediência às
crenças da Igreja Católica (cf. Rómulo de Carvalho, 1985: 29-31; Rómulo de Carvalho, 1987:
34-5). Para ele, a natureza e os seus espectáculos, nomeadamente os do firmamento, servem
214 Capitulo 2. O céu nas imagens
não só para o deleite humano com a beleza divina347 mas, por via da ciência, para uma mais
completa compreensão de Deus, contribuindo assim para o progresso do homem (cf. Calafate,
1994: 54-6).
Esta defesa de uma aliança entre ciência e religião surge repetidamente ao longo de
todo o século, por via de muitos outros autores; o naturalista italiano, radicado em Portugal,
Domingos Vandelli proclama-o de forma clara: «nenhum que se aplicou a estudar e observar
as obras da Natureza foi conhecido ateu ou infiel porque a Ciência natural está unida à
Religião» (Vandelli; cit. por Rómulo de Carvalho, 1987: 57). Mas é sobretudo através da acção
dos membros da Congregação do Oratório que esta Harmonia da Razão e da Religião, título
de uma obra de Teodoro de Almeida publicada em 1793, se torna um objectivo perseguido de
forma sistemática (cf. Maxwell, 1993: 111). No Convento de Nossa Senhora das
Necessidades, em Lisboa, fundado por D. João V e sede da ordem, a biblioteca, o
observatório, o gabinete de história natural e a Sala dos Instrumentos, procuram espelhar esta
aliança de uma filosofia que une Aristóteles, Descartes e Newton, sob a égide da religião. Um
tal propósito surgia pictoricamente exposto na desaparecida pintura do tecto da Sala dos
Instrumentos, realizada em 1750 por Inácio de Oliveira Bernardes, com o tema da Sabedoria
Divina e as Artes Liberais (cf. Delaforce, 2002: 113) – como ressurgirá, décadas mais tarde, na
já referida pintura de Pedro Alexandrino, As Ciências e as Virtudes Presididas pela Religião,
no tecto da Biblioteca do Convento de Jesus da Ordem Terceira de São Francisco (figs. 12,
13), ao qual pertenciam tanto Manuel do Cenáculo como José Mayne (1723-1792), possíveis
autores do programa iconográfico. Este último integrará a Academia das Ciências348, criada
em 1779, à qual doará a sua colecção de instrumentos científicos. Curiosamente, a Academia
acabará por ser instalada neste edifício em 1833, mantendo-se a sala pintada por Pedro
Alexandrino como biblioteca e, simultaneamente, Sala de Sessões (figs. 43, 44).
347 «Oferecer este belíssimo espectáculo aos Anjos era como mostrar uma pintura de Rafael a uma parede
… com que não são os Anjos para quem Deus fez esta belíssima arquitectura luminosa dos espaços e corpos
celestes» [Teodoro de Almeida (1786-1800). Recreação Filosofica Ou Dialogo Sobre a Filosofia Natural, para
instrucção de pessoas curiosas, que não frequentarão as aulas. Lisboa: Regia Officina Typografica; vol. X, I, 25;
cit. por Calafate, 1994: 66].
348 «Quando a Academia se reuniu, pela primeira vez, em 16 de Janeiro de 1780, e procedeu, na respectiva
sessão, à escolha dos sócios para o seu grémio, foi proposto, entre outros, um padre franciscano da
Congregação da Terceira Ordem da Penitência, de nome José Mayne. Era pessoa destacada da vida nacional,
confessor de D. Pedro III que era o marido de D. Maria I, e deputado da Mesa que procedia ao exame e censura
dos livros. / José Mayne interessava-se muito pela História Natural, não como homem de ciência mas como
homem da Igreja que se preocupava em defendê-la dos perigos que poderiam resultar do estudo da Natureza por
quem não visse nela a manifestação clara de uma obra do Criador» (Rómulo de Carvalho, 1987: 75).
Capitulo 2. O céu nas imagens 215
A máquina celestial, realizada algures na segunda metade do século XVIII, constitui,
em Portugal, o mais eloquente manifesto visual desta ambiciosa, mas condenada ao fracasso,
tentativa de construir e sustentar uma ciência teológica. Não por acaso, a alegoria decorre no
céu e não em terra: no ponto mais alto da construção nebulosa piramidal, a religião,
segurando a cruz da Paixão de Cristo, símbolo do supremo mistério teológico do universo, e
rodeada de virtudes teológicas e cardinais, preside e orienta todas as ciências que, perante
ela, testemunham a sua lealdade e reconhecimento: «… os teólogos modernos têm escrito tão
belos tratados de religião natural, para mostrar aos ateus a existência de Deus, para delas tirar
os princípios da religião natural contra os deístas e para do conhecimento da religião natural
mostrar evidentemente a necessidade da revelação, ou da religião sobrenatural, que é a nossa
religião cristã» (Verney, 1748; cit. por Calafate, 1994: 149)349.
Porém, a dificuldade de alcançar esta harmonia entre o novo pensamento científico e
os quase inamovíveis preceitos da teologia espelha-se nas permanentes tensões e conflitos
entre ambas ao longo de todo este período – que leva muitos dos defensores do novo espírito
iluminista a abandonar Portugal, fugindo assim ao clima de censura, anti-semitismo e
fanatismo religioso350. Se a filosofia racionalista e empirista que se desenvolve ao longo do
século XVIII tende a considerar a religião um obstáculo ao desenvolvimento das novas ideias e
à concretização dos novos ideais iluministas, a segunda olha para aquela como uma ameaça
à sua influência, senão mesmo à sua existência. Em 1746, por exemplo, no Colégio das Artes,
em Coimbra, proíbe-se o ensino das ideias «inúteis» de Descartes, Newton e outros (França,
1987: 54), enquanto, nesta como noutras escolas jesuítas, se reafirma a defesa e o ensino do
sistema celestial ptolomaico. Isto no mesmo ano que o oratoriano Luís António Verney (1713-
1792) publica o seu Novo Método de Estudar, fortemente crítico da escolástica jesuíta, do
pensamento aristotélico e defendendo as ideias de Descartes e os argumentos de Newton
como única saída para a decadência científica em que o país se encontrava mergulhado (cf.
Saldanha, 1992: 356; Rómulo de Carvalho, 1985: 27; Maxwell, 1993: 110). Mas também numa
altura em que sob o pontificado de Bento XIV (1675-1758), eleito Papa em 1740, a Igreja
Católica ensaia uma abertura às ideias de Newton (cf. Cassini, 1993: 223-6). Como afirma
Maxwell (1993: 110), em Portugal «a mais imediata consequência deste debate filosófico foi a
349 Luis Antonio Verney (1748). Resposta ás Reflexões que o R. P. M. Fr. Arsenio da piedade Capucho fez ao
livro intitulado Verdadeiro Metodo de Estudar. Valensa: Officina de Antonio Balle; pp. 46-7.
350 É o caso, entre outros de Jacob de Castro Sarmento (1691-1762), defensor das ideias newtonianas que
abandona o país em 1721, de António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783), que sai em 1726 (cf. Maxwell, 1991:
109-10), ambos de origem judaica, ou de Correia da Serra (1750-1823), um dos fundadores da Academia das
Ciências, obrigado a fugir em 1795 (cf. Rómulo de Carvalho, 1987: 102).
216 Capitulo 2. O céu nas imagens
de questionar a influência da Companhia de Jesus», observando-se o crescimento de um
espírito particularmente crítico face ao seu quase monopólio do ensino em Portugal, à sua
retrógrada tradição escolástica e, sobretudo, à sua poderosa influência e acção no combate às
novas ideias. Este espírito anti-jesuítico culminará, em 1759, no encerramento de todos as
suas escolas, incluindo o Colégio de Santo Antão, logo seguida da sua expulsão de Portugal
por ordem do Marquês de Pombal, acontecimento que terá importantes repercussões em toda
a Europa, despoletando acções idênticas noutros países e, por fim, a sua extinção por bula
papal em 1773. Além disso, embora a Congregação do Oratório não tenha sido extinta, alguns
dos seus membros «foram desterrados em 1760 e proibidos de ensinar, por alegadas
divergências entre a sua doutrina religiosa e a doutrina oficial do Estado», entre eles Teodoro
de Almeida, enviado para o Porto com residência fixa (Rómulo de Carvalho, 1985: 75).
A extinção da Companhia de Jesus conduzirá à importante reforma pombalina do
ensino em Portugal, concretizada entre 1759 e 1772, data em que esta foi implementada ao
nível universitário351. Previsivelmente, a reforma foi efectuada de acordo com muitos dos
princípios defendidos pelos Oratorianos, rivais dos Jesuítas e responsáveis pela introdução em
Portugal das novas ideias filosóficas, seguindo particularmente as recomendações de Verney
e do franciscano Frei Manuel do Cenáculo, colaborador próximo de Pombal e defensor do
ensino experimental e das ideias de Descartes e Newton (cf. Maxwell, 1993: 120-4). A
ambiciosa reforma assentou na erradicação do aristotelismo, do pensamento escolástico e do
sistema ptolomaico e, em seu lugar, no estabelecimento de um ensino experimental aberto ao
novo espírito científico, com a construção na Universidade de Coimbra de laboratórios, de um
observatório e de um jardim botânico e a contratação de professores estrangeiros. Ao mesmo
tempo, era criada a cadeira teórico-prática de astronomia, «que não sómente interessa a
curiosidade, e admiração dos homens, presentando-lhes o espectaculo magnifico do Ceo, em
que resplandece o Poder, e sabedoria do Creador; mas também serve de grandes utilidades»,
baseada na doutrina de Copérnico, por estar «demonstrativamente provado, que o Sol he o
centro dos movimentos Planetarios» (Estatutos da Universidade de Coimbra, 1772; cit. por
Rómulo de Carvalho, 1985: 80). Porém, o observatório da Universidade de Coimbra só seria
construído entre 1789 e 1799, já no reinado de D. Maria I, ao mesmo tempo que, em Lisboa,
351 No seu âmbito seria criado, em 1761, o Colégio dos Nobres, em Lisboa: «este Colégio, que só começou a
funcionar em 1766, não correspondeu ao que Pombal esperava dele no que respeita ao ensino das disciplinas
científicas, forçando-o a mandá-lo encerrar em 1772, e limitando-o, a partir dessa data, ao ensino das
Humanidades» (Rómulo de Carvalho, 1987: 48). Seria na igreja deste Colégio que Luís Gonçalves de Sena
pintaria um tecto (provavelmente o da nave), destruído no incêndio de 27 de Abril de 1843 (Gonzaga Pereira,
1833-40: 166-8).
Capitulo 2. O céu nas imagens 217
eram criados os observatórios do Castelo de São Jorge, em 1787, por iniciativa da nova
Academia das Ciências, e do Arsenal da Marinha, em 1789. Um outro observatório seria
construído no Real Colégio de Mafra, anexo ao convento, pelos cónegos regrantes de Santo
Agostinho (cf. Rómulo de Carvalho, 1985: 91) – os mesmos que se mudariam em 1793 para
São Vicente de Fora, aí mandando restaurar e repintar, em 1796, a semi-destruída pintura de
Bacherelli no tecto da Portaria do convento.
Ainda assim, a nova Real Mesa Censória, criada pelo Marquês de Pombal em 1768
após a extinção da Inquisição352, exercia um apertado controlo sobre as obras que entravam
em Portugal – censura esta que era feita, paradoxalmente, tanto em nome do Iluminismo,
como da protecção do Estado e, sobretudo, dos principais dogmas do Catolicismo (cf.
Maxwell, 1993: 123). No edital de 24 de Setembro de 1770 por ela elaborado, é apresentada
uma longa lista de obras proibidas, que a «conservação do cristianismo, a pureza da fé, a
veneração devida aos Mistérios Santos, a defensa da Igreja, a integridade dos costumes e a
extirpação dos vícios» impõem; é também longamente argumentado os motivos pelos quais
apenas a religião cristã ilumina os espíritos, sujeitando-os «às superiores verdades da
revelação divina, comunicadas pela Escritura e pela tradição» e justifica-se a proibição das
obras pelos estragos provocados «neste século, mais que em todos os outros», pelo «espírito
da irreligião e da falsa filosofia» que se manifesta nas «abomináveis produções da
incredulidade e da libertinagem de homens que se denominam espíritos fortes, e se atribuem o
especioso título de filósofos», construindo uma «doutrina ímpia, falsa, temerária, blasfema,
herética, cismática, sediciosa, ofensiva da paz e sossego público», defensora do «ateísmo,
deísmo e do materialismo» (in Voltaire, 1756: 67-75). Na longa lista de livros proibidos,
encontram-se obras de Hobbes (1588-1651), Spinoza (1632-1677), Bayle (1647-1706),
Shaftesbury (1671-1713), Rousseau (1712-1778) e todas as de Voltaire; para seis das mais
perigosas decreta-se que sejam queimadas na Praça do Comércio, acto que foi realizado a 6
de Outubro.
Em Portugal, como na restante Europa, as múltiplas pinturas da Imaculada
Conceição realizadas nos tectos das igrejas após 1612 mostram uma Virgem imaculada
assente sobre uma Lua cristalina, aristotélica, e quase sempre estilizada – exactamente como
352 «From 1684 to 1747, 4,672 persons were sentenced by the Inquisition and 146 burned at the stake. From
1750 to 1759, there had been 1,107 sentences and 18 burnings. Pombal abolished the distinction between old
and new Christians in 1768. And in 1769 he moved against the Inquisition itself, destroying its power as an
independent tribunal and making it dependent on the government. Public autos da fé ceased, along with the death
penalty. Ironically, it was the Jesuit Malagrida who was the last victim, burned in 1761» (Maxwell, 1993: 121-2).
218 Capitulo 2. O céu nas imagens
no caso das doze estrelas que rodeiam a sua cabeça. Não há a mínima sombra ou mancha, o
mínimo vestígio de uma concepção astronómica, de uma visão telescópica. A Lua, tal como a
Virgem, é aqui um corpo exclusivamente teológico, diáfano, incorrupto e iluminado pela graça
divina – destituído de peso, de veracidade astronómica ou de qualquer ligação às leis
newtonianas da gravidade que agora regem o universo. A observação destas pinturas – desde
as de António de Oliveira Bernardes, na nave de Santa Clara de Évora ou em Serpa, até às de
Pedro Alexandrino, na capela-mor da Bemposta ou na igreja de São Pedro, em Lisboa,
passando pelas da nave da Igreja do Seminário em Santarém, da Sacristia da Igreja da
Misericórdia de Santa Comba Dão ou das capelas particulares de Trevões e de Alcáçovas –
permite-nos atravessar todo este período sem que, depois do desafio de Cigoli e das
profundas transformações na filosofia, na física e na astronomia, encontremos sinais pictóricos
evidentes da nova visão astronómica do firmamento. Com uma única e, por isso,
extraordinária excepção: a Visão da Imaculada Conceição no tecto da nave da Capela de
Nossa Senhora da Conceição do Palácio da Quinta do Cabeço, actual Casa Patriarcal, em
Moscavide (figs. 45, 46).
Fig. 45 e 46 – Autor desconhecido. Visão da Imaculada Conceição, (final do século XVIII). Óleo sobre estuque, d.n.d. Moscavide, Capela de
Nossa Senhora da Conceição do Palácio da Quinta do Cabeço, actual Casa Patriarcal (detalhes do tecto da nave).
Aqui, de forma quase imperceptível para o observador situado no chão da capela, a
Lua sobre a qual a Virgem se ergue é uma ambígua combinação do quarto lunar da
Capitulo 2. O céu nas imagens 219
iconografia religiosa e do corpo esférico completo da astronomia, subtilmente manchado mas
não ostensivamente irregular, como na topografia dos desenhos de Galileu ou na máquina de
Cigoli. Já foi referido que desconhecemos o autor desta obra e a sua data353. No entanto,
várias características suas, nomeadamente a exuberante quadratura, com uma profusão de
elementos decorativos e putti, as suas qualidades cromáticas e a própria representação da
visão da Virgem, das restantes figuras celestiais (como os querubins, anjos e arcanjos) e do
espaço atmosférico, que o sujeito observa através da abertura circular central, parecem
apontar para o final do século XVIII – à semelhança, aliás, da pintura do tecto da capela-mor,
realizada pelo(s) mesmo(s) autor(es). Apesar do seu quase total desconhecimento e da
absoluta ausência de qualquer estudo, trata-se, na nossa opinião, de uma das mais
importantes obras de decoração total das coberturas de um templo realizada neste período.
Porquê esta excepção? A que se deve, ou a quem se deve: ao encomendador, ao
pintor ou a ambos? Não sabemos, mas não deixa de constituir uma ironia o facto de, duzentos
anos depois, esta ser a capela da residência oficial da mais importante autoridade eclesiástica
portuguesa. O valor desta pintura reside, inquestionavelmente, nela própria, mas a sua
existência torna também ainda mais óbvia a atitude pictórica e teológica de todas as restantes
obras que representam a Imaculada – o seu silêncio pictural, ou melhor, a sua ceguez
relativamente a esta controversa questão. No entanto, todas foram feitas no conhecimento
tanto das transformações científicas, cujo impacto e discussão teológica era impossível
ignorar, como do excepcional exemplo visual da cúpula da Capela Paolina – que os pintores
portugueses que estiveram em Roma tiveram oportunidade de observar. Nesse sentido, uma e
outras, directa ou indirectamente, constituem afirmações de princípio acerca do conflito que
envolveu Galileu, Cigoli e a Igreja Católica e são inseparáveis das suas consequências.
Depois do desafio de Cigoli, tornou-se inquestionável que a representação do
espaço celestial sobrenatural não correspondia a uma paisagem do céu mas apenas a uma
ideia espiritual dele: portanto, o céu representado não era o resultado de uma visão óptica mas
antes a expressão óptica de uma visão inteiramente metafísica. Talvez os restantes pintores
353 Encontrámos duas únicas referências a esta obra: «a capela … faz parte do edifício do Seminário dos Olivais
… Quanto às pinturas da abóbada, são de reduzido interesse, embora contribuam para o esplendor de todo o
conjunto …» (Azevedo, Ferrão, Gusmão, 1963b: 58-9); «Segundo a tradição, este palácio seria obra de D. João
V … Situada na ala esquerda do palácio, a capela oferece o exemplo duma decoração faustosa onde o
tratamento exímio dos espaços compensa uma certa falta de imaginação. … Também não há surpresas nas
monumentais pinturas barrocas, em “trompe l’oeil”, que dão ao tecto uma amplidão ilusória e onde se exalta a
figura de Nossa Senhora da Conceição, à qual a igreja é dedicada» (Stoop, 1986: 49-50). Também segundo esta
autora, os painéis de azulejos que revestem completamente as paredes da nave, representando cenas da vida da
Virgem e outros episódios do Antigo Testamento, terão sido «realizados entre 1720 e 1740 e atribuíveis a
Policarpo de Oliveira Bernardes ou a Bartolomeu Antunes» (Stoop, 1986: 50).
220 Capitulo 2. O céu nas imagens
tivessem razão: se a atitude de Cigoli fosse levada às últimas consequências, como se poderia
registar opticamente o que, afinal, não era possível observar? Aquilo que nem eles próprios
viam, haviam visto ou, provavelmente, viriam a ver? A única solução era inventar “paisagens
metafísicas”, parapaisagens, que dessem a esse mundo sobrenatural uma aparência o mais
próxima possível daquilo que os olhos eram capazes de percepcionar e reconhecer e a mente
conceber. Porém, fazendo tudo para que o observador nunca esquecesse estar perante uma
imagem desse outro e diferente mundo para o qual desejava ser transportado, elevado,
raptado espiritualmente.
Ao longo do século XVIII a destruição do cosmos aristotélico, finito, organizado
segundo esferas concêntricas estanques e a sua substituição por um universo indeterminado,
ou mesmo infinito, sujeito a leis geométricas e matemáticas homogéneas completa-se (cf.
Koyré, 1957: 6). Para uns isto significa um mergulho no caos, para outros o triunfo de uma
nova ordem; para muitos, era a concretização da metáfora de Galileu: a sensação de se estar
perdido num labirinto escuro. Para Galileu como para Cigoli, unidos na defesa do que era
ainda indefensável, a conciliação da ciência com a arte e a religião resultaria, em grande
medida, num fracasso. Para Cigoli, esse fracasso significou também a impossibilidade de
conciliar a visão bíblica do céu com a sua visão telescópica, isto é, de operar por via da pintura
uma visão do invisível por meios simultaneamente científicos e teológicos. A ideia de
paisagem celestial, verdadeira e cientificamente exacta, ao serviço de uma representação do
mundo sobrenatural não foi mais do que uma quimera pintada, uma vez quase sem exemplo,
na cúpula da Capela Paolina. Não voltou a acontecer nos tectos de Itália: nenhum outro pintor
colocou a Virgem sobre uma Lua astronómica nem procurou integrar, de forma directa, nas
máquinas celestiais, pintadas nos tectos, abóbadas e cúpulas, as visões do céu obtidas pelas
máquinas ópticas. Quando se tornou possível já ninguém mostrou interesse: nem os pintores
em fazê-lo, nem os clientes em encomendá-lo. O céu sobrenatural estava, definitivamente,
dissociado do céu natural. Quanto a Portugal, resta este exemplo isolado, que, sendo
ambíguo, não deixa de ser notável – ou, até mais notável ainda – tanto no contexto português
como europeu.
De algum modo, os conturbados céus nebulosos da pintura tornavam impossível a
visão telescópica do mundo celestial. Como Galileu e todos os astrónomos rapidamente
perceberam, por mais potentes que fossem os telescópios ópticos estes, até à colocação em
órbita do Hubble no século XX, dependiam da limpidez atmosférica para operarem. As
cerradas nuvens do céu teológico funcionavam, assim, como um tecto opaco que garantia a
invisibilidade do novo firmamento.
Capitulo 2. O céu nas imagens 221
2.1.2. O céu sobrenatural: arte e religião
2.1.2.1. O céu teológico
[Jacob] teve um sonho: viu uma escada apoiada na terra,
cuja extremidade tocava o céu; e, ao longo desta escada,
subiam e desciam mensageiros de Deus. Por cima dela
estava o Senhor …
(Génesis: 28, 12-13)
Na colecção do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, encontra-se um curioso
desenho a aguada datado de 1775 e assinado por Frei Félix de Nossa Senhora dos Mártires
(fig. 47). Talvez destinado, pelas suas dimensões e grau de detalhe, a ser reproduzido em
gravura e, eventualmente, a ilustrar um texto, este desenho é particularmente significativo por
aquilo que representa: a estrutura do universo. Não o universo de Copérnico, de Galileu, de
Descartes ou de Newton mas o universo aristotélico e ptolomaico que a escolástica medieval
compatibilizou com a visão celestial da teologia cristã e que, em 1775, não tinha já qualquer
suporte científico. Em baixo e no centro do mundo vemos a Terra, local dos quatro elementos;
rodeando esta um conjunto de círculos ou esferas, colocadas cada vez mais altas e distantes.
Primeiro as sete esferas planetárias correspondentes, de forma sucessiva, à Lua, a Mercúrio,
a Vénus, ao Sol, a Marte, a Júpiter e a Saturno. Depois a esfera do firmamento, a abóbada
celeste, na qual se inscrevem, de forma equidistante da Terra, todas as estrelas e
constelações que formam o limite do céu visível. Acima desta as duas últimas esferas: o
primum mobile, a esfera cujo movimento de rotação em torno da Terra impulsionava o
movimento das restantes esferas abaixo de si e, logo depois, o céu cristalino, imaterial e
luminoso. Ambas operam a transição do finito céu astronómico para o ilimitado céu
paradisíaco: o céu empíreo, morada dos anjos, dos santos e mártires, das almas bem-
aventuradas e dos seres eleitos. No cume deste, presidindo a todo o universo, encontra-se a
Santíssima Trindade, ladeada pela Virgem Maria, colocada à direita de Cristo. Acentuando o
paradoxo entre esta visão do universo e o seu tempo, uma moldura rocaille rodeia o diagrama.
Dois outros pormenores são aqui fundamentais: por um lado, neste céu empíreo todos os
seres representados dispõem-se sobre nuvens e são por elas rodeados; por outro, neste
universo de esferas concêntricas e estanques que rodeia e encerra a Terra, uma escada
mística, ladeada pelas figuras da Fé e da Humildade, permite através dos seus doze degraus