The words you are searching are inside this book. To get more targeted content, please make full-text search by clicking here.
Discover the best professional documents and content resources in AnyFlip Document Base.
Search
Published by , 2017-04-21 10:47:52

monografia completa final

monografia completa final

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL

Centros Populares de Cultura:

uma experiência na contramão da mercantilização da vida

Larissa Costa Murad

Rio de Janeiro
Junho de 2008

Larissa Costa Murad

Centros Populares de Cultura:

uma experiência na contramão da mercantilização da vida

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola
de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do grau de bacharel em Serviço Social.

Orientador: Professor Doutor Marildo Menegat
Rio de Janeiro
2008

Agradecimentos

Agradeço primeiramente à Helena Murad, minha mãe linda e muito querida, por
todo o apoio incondicional (tanto psicológico quanto financeiro) e carinho expressos
durante todos esses anos. Também pela liberdade que sempre me ofertou, a qual me
permitiu desenvolver um gosto pela autonomia.

À Rosana Turlão, minha madrinha, pela preocupação, pelo cuidado e pela
insistência em que eu prestasse vestibular novamente.

Aos meus amigos de todas as horas, os quais mesmo na distância sempre
estiveram presentes: Rodrigo, Daniele, Patrícia, Juliana, Naiara e Luciana; obrigada por
entenderem meus momentos de crise e por compartilharem as alegrias.

Aos colegas e amigos que ganhei durante a graduação: Marina, Júlia (pela
leitura cuidadosa desse trabalho e pelas valiosas observações), Daiana, Louise, Juliana
(Juju), Bruno Alves (pelo suporte técnico-gráfico e pela paciência), Janaína, Luana,
Emanuela, Paula, Thais, Sabrina, Silvana, Talita...vocês tornaram esses quatro anos
mais fáceis e mais interessantes, com certeza aprendi muito com cada um de vocês,
inclusive a crescer na diferença; agradeço também por compartilharem, além de seus
saberes, suas casas, livros, textos, músicas, etc..

Ao meu querido companheiro Bruno Franco, por esses momentos maravilhosos
que temos passado juntos; pela troca de experiências políticas, pessoais e profissionais
(que nos permitem aprender e crescer juntos); e pela compreensão, carinho, paciência
e ternura (traços que têm pautado nossa convivência). Obrigada por me ajudar a
“transformar o tédio em melodia”...

Ao Marildo Menegat, meu querido amigo e orientador. Faltam-me palavras para
agradecer tudo o que você me ensinou ao compartilhar comigo seus conhecimentos e
suas vivências. Sua inteligência e coerência me inspiram a buscar a melhor forma de ler
e entender a realidade. Com a esperança eterna de derrubar essa lógica dominante
perversa e invertida, para que as próximas gerações possam se aventurar na
construção do novo. Admiro-lhe muito e fico feliz por você ter topado me orientar.
Agradeço também por ser sempre tão atencioso (muitas vezes nossas conversas me
ajudaram a elaborar minhas angústias).

Às minhas ex-supervisoras e amigas: Celeste Anunciata, Kelly Murat e Nívia
Barros, que muito me ensinaram, seja sobre a prática profissional, o trabalho em
equipe, a dinâmica institucional ou mesmo sobre a vida como um todo. Os períodos que
passamos juntas foram enriquecedores e sei que serei uma profissional melhor também
devido a estes.

À Maria de Fátima Cabral M. Gomes, minha cara professora, a quem muito
admiro. Obrigada por me aceitar no núcleo de pesquisa, espaço verdadeiramente
plural, onde pude conhecer novos autores e debater idéias, livre de perseguições
políticas. Agradeço também a outros professores que me ajudaram a construir (e
destruir) conhecimento durante a graduação, em particular ao Eduardo Vasconcelos e
ao Erimaldo Nicácio.

Aos integrantes do núcleo de pesquisa Favela e Cidadania (FACI), pelos
momentos de discussão, auxílio mútuo e cooperação: professora Lenise Fernandes,
Nina, Eliane, Carol, Lucas, Débora, Bárbara, e todos os que estão entrando agora.

Aos companheiros Pedro, Luisa, Pedrinho, Ligia, Glauber, Zé, Larissa, Gláucia,
Djavan...espero que um dia vocês possam compreender meu carinho por todos vocês e
meu afastamento (relativo e temporário).

Aos camaradas do PNFJ, por essa experiência instigante e enriquecedora,
principalmente Cigano, e aos queridos colegas com os quais compartilhei dois períodos
de estágio em Campos – em especial Carla, Raquel, Andréia, Carlos, Tamara, Morena
e Peter. Penso que apesar de todos os percalços nos divertimos e aprendemos
bastante. Tivemos a oportunidade de nos irmanar e trocar experiências com pessoas
que muito têm a nos ensinar.

Aos colegas de chapa e gestão do CASS; mostramos por um curto período o
quanto é necessário ocupar o Centro Acadêmico e unificar na luta.

Aos funcionários da ESS, que amenizam os trâmites burocráticos da instituição,
tornando mais suportável o cotidiano institucional, principalmente seu Tião, Carmem,
Tania e Luis Fernando.

E aos companheiros do MST, que me inspiram a lutar pela transformação social.
Ao Jesus Oliveira e ao Gilmar Mauro em particular, pelas conversas, troca de idéias e
pelos textos.

Sem essas pessoas – e tantas outras que a necessidade de ser sucinta não me
permite citar aqui –, envolvidas direta e indiretamente na minha vida e, em particular,
nesses quatro anos de graduação, o presente trabalho não existiria. Fica registrado
meu singelo reconhecimento.

Os amores na mente, as flores no chão
A certeza na frente, a história na mão (...)
Pelos campos há fome em grandes plantações
Pelas ruas marchando indecisos cordões
Ainda fazem da flor seu mais forte refrão
E acreditam nas flores vencendo o canhão (...)
Vem, vamos embora, que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.
(Pra não dizer que não falei das flores – Geraldo Vandré)

No novo tempo, apesar dos perigos
Da força mais bruta, da noite que assusta, estamos na luta (...)

No novo tempo, apesar dos castigos
Estamos em cena, estamos nas ruas, quebrando as algemas (...)

No novo tempo, apesar dos perigos
A gente se encontra cantando na praça, fazendo pirraça (...)

Pra que nossa esperança seja mais que vingança
Seja sempre um caminho que se deixa de herança (...)

(Novo Tempo – Ivan Lins)

Resumo

As mudanças contemporâneas na estrutura da sociedade capitalista intensificam
a regressão humano-social e impõem aos movimentos sociais o imperativo de entender
a realidade para atuar de maneira transformadora sobre a mesma. Sendo assim,
entendemos a construção de outra cultura e a utilização de manifestações artísticas
como parte constitutiva da agenda de qualquer movimento que se proponha
revolucionário. No presente trabalho estudaremos, por meio de pesquisa bibliográfica,
os Centros Populares de Cultura, experiência pioneira no Brasil dos anos 1960, na qual
a junção entre cultura popular e alta cultura foi realizada com o objetivo de envolver as
massas oprimidas no processo então em curso de busca por uma revolução
democrática. Este cenário se transforma radicalmente com a interrupção da
efervescência político-cultural característica do período pela ditadura militar, a qual
colocou as bases para a modernização conservadora e para a consolidação da
indústria cultural no país, submetendo assim a perspectiva de arte-cultura
transformadora à lógica mercantil. É esta racionalidade dominante que traz novos
desafios à esquerda como um todo e aos movimentos sociais.

Sumário

I Introdução.................................................................................................................p.8
Capítulo 1 Notas sobre cultura popular e resistência.................................................p.14

1.1 Culturas e dinâmica social................................................................... p.15
1.2 Algumas características e potencialidades da cultura popular............ p.20

Capítulo 2 Os Centros Populares de Cultura (CPC’s) e a cultura política dos anos
1960.............................................................................................................................p.28

2.1 Que desenvolvimento? (ou) O problema da forma..............................p.29
2.2 O teatro político como origem dos CPC’s: a contradição expressa no
público.........................................................................................................p.33
2.3 CPC’s: a expressão artístico-cultural de um projeto popular...............p.35
2.4 O Golpe contra-revolucionário e a interrupção dos CPC’s: “aqui tudo
parece que é ainda construção e já é ruína”...............................................p.47
2.5 A indústria cultural no Brasil: inversão reacionária no âmbito político-
cultural.........................................................................................................p.54

Capítulo 3 Considerações sobre a mercantilização da vida e a Indústria Cultural....p.61
3.1 A técnica como forma de dominação: morte da arte?..........................p.68
3.2 O desenvolvimento da Indústria Cultural como produto histórico........p.74
3.3 Meios de “Comunicação” e a indústria cultural: rádio e tv....................p.79
3.4 O que fazer?.........................................................................................p.85

II Considerações Finais............................................................................................p.87
III Referências Bibliográficas...................................................................................p.93

I Introdução

O capitalismo contemporâneo tem passado por mudanças radicais,
principalmente a partir do período pós-II guerra mundial. Revoluções tecnológicas e
científicas têm dado o tom das bases materiais de nossa época, provocando, entre
outras conseqüências, um quadro de desemprego estrutural, trabalho extremamente
precarizado, regressão de direitos, encolhimento do Estado social, inchamento do
Estado penal-punitivo, queda drástica dos padrões de vida e aumento da violência.

Este cenário desesperador se agrava em países de capitalismo periférico, como
o Brasil, conforme tais mudanças se tornam globais. Afinal, em países como o nosso o
desenvolvimento das condições típicas do sistema capitalista se junta a particularidades
histórico-culturais, ocasionando uma situação social de acelerada e aberta regressão. A
qual se expressa em todos os âmbitos da vida: econômico, político, social e cultural, já
que as manifestações artísticas e a própria organização da cultura no geral se baseiam
crescentemente na transformação da vida em espetáculo vendável.

Ribeiro (2005) colabora para descrever algumas características que compõem
esse quadro:

a decomposição fragmentadora do indivíduo, pela infinita multiplicação de
necessidades; a colagem de desejos e sonhos a bens e serviços; o predomínio
da estética sobre a ética; o excesso de imagens, que reduz as margens de
liberdade do imaginário e da imaginação; a onipresença do capital financeiro,
que cola o lucro a cada produto ou serviço (p.103)

As condições descritas por Ribeiro (2005) indicam alguns rebatimentos da
referida regressão social na vida cotidiana dos indivíduos; o impacto ocasionado por
tais rebatimentos provoca mudanças na própria maneira de agir (e reagir) dos sujeitos
perante o real – o que pode dificultar uma intervenção transformadora dos mesmos e o
aprofundamento conseqüente desse cenário.

Os resultados desse caldo de barbárie em longo prazo são até meio previsíveis,
se considerarmos que já os estamos vivendo em grande escala. Porém, apesar de
imagináveis, ou dedutíveis, o que devemos nos perguntar é se (já) são irreversíveis. E
qualquer que seja a resposta para tal indagação, a única certeza que podemos esboçar
no presente trabalho é que a transformação radical dessa atual condição social requer

a constituição de sujeitos coletivos organizados para que os ganhos sejam
verdadeiramente em termos de humanidade.

Ao longo de séculos os seres humanos vêm se organizando para lutar contra
determinada conjuntura de opressão, exploração e indignidade, impostas por uma
classe (ou um grupo social) às outras. Porém, desde a conformação da sociedade
capitalista (com a ascensão da burguesia ao poder político-econômico), as formas de
impedimento da organização política por parte das classes e grupos subalternizados
vêm sendo aprimoradas. A mais antiga e reconhecida socialmente é a repressão pura e
simples, executada através de armas, letais ou não. No entanto, conforme o
desenvolvimento da técnica, a repressão assume novas faces, as quais, mascaradas
de consensos, facilitam o exercício de poder das classes dominantes.

No momento em que a repressão é internalizada (MARCUSE, 1968), há uma
mudança qualitativa e, ao mesmo tempo, uma reafirmação da frase segundo a qual as
idéias dominantes de uma época são as idéias da classe dominante. Ou seja, a
burguesia tem criado maneiras diferenciadas e mais eficientes de reforçar seu domínio
econômico, político e ideológico-cultural em uma estrutura social que desmorona e se
mantém (MENEGAT, 2003). Nesse sentido, um poderoso instrumento tem sido a
indústria cultural, sistema de organização pelo alto de produtos/mercadorias que, além
de cumprir o papel de aumentar os lucros capitalistas, cria falsa consciência e massifica
os indivíduos e seus gostos por tabela.

Se antes a homogeneização ocorria basicamente por meio da organização
capitalista do trabalho (das relações de produção como um todo), a indústria cultural
recoloca tal massificação – necessária ao sistema – no plano do tempo livre do
trabalhador, através de mecanismos como o apagamento da memória de grupos
oprimidos e da criação de representações sociais pseudo-universais, por exemplo. A
lógica mercantil se espraia para o campo cultural, diluindo pouco a pouco a resistência
esquerdista (RIDENTI, 2000) que, em determinado momento, teve atuação política
privilegiada artística e culturalmente.

Nesse cenário, as subjetividades encontram obstáculos objetivos no processo de
assumir seu lugar enquanto sujeito de sua história, capaz de transformar as estruturas e
se transformar, principalmente através de organizações coletivas. Paradoxalmente, as

mesmas vão sendo moldadas a ponto de não mais enxergar o novo e a mudança (para
melhor) como possibilidades. Essa racionalidade dominante eleva a luta pela mera
sobrevivência a regra geral e oferece satisfações ilusórias ao sujeito que a aceita
passivamente. Situação que marca a vivência cotidiana e é exposta claramente na
música de Gonzaguinha, por exemplo:

Você deve notar que não tem mais tutu
e dizer que não está preocupado
Você deve lutar pela xepa da feira
e dizer que está recompensado
Você deve estampar sempre um ar de alegria
e dizer: tudo tem melhorado
Você deve rezar pelo bem do patrão
e esquecer que está desempregado
(...)
Você deve aprender a baixar a cabeça
E dizer sempre: "Muito obrigado"
São palavras que ainda te deixam dizer
Por ser homem bem disciplinado
Deve pois só fazer pelo bem da Nação
Tudo aquilo que for ordenado
Pra ganhar um Fuscão no juízo final
E diploma de bem comportado
(...)
Você merece, você merece
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé
Se acabarem com teu Carnaval? (Comportamento Geral – Gonzaguinha)

Perante essa realidade angustiante de condições objetivas as piores combinadas
com a apatia e o conformismo como traços comuns reproduzidos pelos sujeitos no
geral, os movimentos sociais que ainda esboçam uma preocupação com a radical
transformação social (urgente e necessária) se encontram diante do desafio de criar
outra cultura, absorvendo o que a cultura clássica tem de melhor e revendo suas
lacunas conforme os dilemas colocados pela realidade atual.

Sendo assim, com o objetivo de contribuir para impulsionar o debate sobre
movimentos sociais e cultura, no presente trabalho esboçaremos uma interpretação
histórica sobre os Centros Populares de Cultura (CPC’s), experiência pioneira que
roubou a cena no Brasil, no início da década de 1960 e contribuiu para uma mudança
significativa da cultura política do período.

Tendo em vista que essa empreitada ousada teve um peso significativo no que
tange à tentativa de criar arte e cultura populares através da democratização de
manifestações consideradas típicas da alta cultura, além de dar margem aos desejos
de politização pela arte, iniciaremos o presente estudo com um capítulo básico sobre
culturas e cultura popular. O mesmo tem como intuito explicitar a concepção de cultura
popular da qual estamos nos apropriando durante o desenvolvimento do pensar,
através das obras de Bosi, Chauí, Coutinho e Holanda.

Reconhecemos, porém, as limitações deste capítulo em particular. A discussão
sobre cultura popular no Brasil requer uma leitura mais detida no que diz respeito às
mudanças históricas pelas quais passa a cultura e as inflexões presentes no próprio
pensamento brasileiro a respeito da mesma. Para não inviabilizar o caminho proposto
para a realização do presente estudo, optamos por deixar o primeiro capítulo básico e
até mesmo destoante dos outros dois, já que os limites colocados pela estrutura de um
Trabalho de Conclusão de Curso e pela falta de tempo e de acúmulo da autora do
mesmo acerca desta discussão específica, impossibilitaram (temporariamente) uma
elaboração mais completa sobre cultura popular brasileira.

O segundo capítulo traz o objeto central do trabalho, os Centros Populares de
Cultura. Porém, por questões metodológicas, o mesmo é composto por elementos que
talvez nos permitam compreender um pouco melhor o contexto no qual os CPC’s
surgem, bem como suas limitações e avanços. Integra este capítulo ainda uma
recuperação histórica sobre a ditadura militar, a qual imprime um triste fim a essa
experiência de esquerda; e uma breve exposição sobre a indústria cultural que se
afirma no Brasil nessa conjuntura e submete a lógica político-cultural que se afirmava,
agravando o quadro de inversão reacionária. Os autores utilizados para pautar essa
discussão são basicamente Garcia, Ridenti e Schwarz.

Por sua vez, o terceiro capítulo traz uma digressão mais geral, baseada em uma
possível leitura sobre a indústria cultural e a mercantilização da vida enquanto
fenômenos globais. Incluindo uma interpretação referente a algumas de suas
conseqüências objetivas e subjetivas, através das obras de Adorno, Benjamin,
Marcuse, Marx, Menegat e Netto. Com o objetivo de compreender melhor a

organização contemporânea da vida na sociedade capitalista, este último capítulo
expõe mais indagações do que respostas.

Em forma de considerações finais deixamos breves apontamentos e questões
sobre movimentos sociais e cultura na atualidade, algumas inquietações e alguns
traços de esperança, além de indicações para futuras pesquisas possíveis.

Capítulo 1
Notas sobre cultura popular e resistência

1.1 Culturas e dinâmica social

Toda pessoa com algum tino materialista sabe que a economia está no
comando e que o âmbito cultural sobretudo acompanha. Entretanto, é preciso
reconhecer que nossa unidade cultural mais ou menos realizada é um elemento
de antibarbárie, na medida em que diz que aqui se formou um todo, e que esse
todo existe e faz parte interior de todos nós que nos ocupamos do assunto, e
também de muitos outros que não se ocupam dele1.

O conceito de cultura tem assumido diferentes significados ao longo dos anos. A
partir de uma perspectiva mais genérica, a cultura pode ser entendida como aquilo que
caracteriza um determinado povo ou grupo social, que o unifica apesar de suas
diferenças, ou seja, seus valores, costumes, etc.. Parte constitutiva do processo de
produção da vida material e fruto do mesmo, a cultura pode ser lida como uma “via de
mão dupla”; visto que está condicionada pelo âmbito político-econômico da vida em
sociedade e, ao mesmo tempo, implica em mudanças, interferindo no mesmo. Ou seja,
a dinâmica cultural de uma sociedade está em ligação direta com a forma de produzir e
reproduzir a vida.

Nesse sentido, a formação cultural de um povo tem lugar central no
reconhecimento de si dos sujeitos enquanto parte de um todo social, capazes inclusive
de transformá-lo. Segundo Schwarz (1999), a unidade cultural pode ser um elemento
de antibarbárie, porém a indicação de que, no Brasil, essa unidade seria “mais ou
menos realizada”, aponta para algumas particularidades legadas pela colonização e
pelo desenvolvimento do capitalismo tardio e periférico. O acesso à “alta cultura”, à
cultura clássica, por exemplo, sempre foi privilégio de poucos, sendo seu
aproveitamento efetivo poucas vezes demonstrado, resultado da condição econômica
desigual e excludente e de uma educação precária pautada na razão instrumental – em
algumas épocas o termo precário pode até ser substituído pelo inexistente.

De acordo com Holanda (1956), uma peculiaridade da colonização portuguesa
foi certa ausência no que tange à construção de uma vida intelectual (tanto em
qualidade quanto em quantidade) na colônia. O autor aponta para o boicote português à

1 SCHWARZ, R. “Os sete fôlegos de um livro”. In: Seqüências brasileiras: ensaios. SP: Companhia das
letras, 1999 (p.57).

vida intelectual brasileira, o qual se expressa no baixo número de diplomados no Brasil
e na demora para se estabelecer imprensa no país – fatores que se mantém até o
século XVIII, início do século XIX. Derivados dos objetivos portugueses de exploração
comercial, que se traduziam no entendimento do Brasil como mero local de passagem,
tais elementos tiveram significativa influência na cultura desenvolvida em nosso país. A
partir de Holanda podemos entender melhor a relação de interdependência entre
política, economia e cultura, pois segundo o autor,

os entraves que ao desenvolvimento da cultura intelectual no Brasil opunha a
administração lusitana, faziam parte do firme propósito de impedir a circulação
de idéias novas que pudessem pôr em risco a estabilidade de seu domínio. E é
significativo que apesar de sua maior liberalidade na admissão de estrangeiros
capazes de contribuir com seu trabalho para a valorização da colônia,
tolerassem muito menos aqueles cujo convívio pudesse excitar entre os
moradores do Brasil pensamentos de insubordinação e rebeldia. (1956:172)

O “boicote” ao desenvolvimento de uma cultura intelectual que pudesse
realmente se apropriar do patrimônio histórico-cultural da humanidade e colocar em
foco os dilemas da realidade brasileira, além de contribuir para a manutenção do
domínio português, deu margem a práticas de mera imitação, à importação das idéias
estrangeiras2 feita de forma acrítica, pautada em pouca ou nenhuma reflexão – o que
pode ser entendido como uma tentativa de se integrar ao mundo europeu. De acordo
com Menegat3, o desenvolvimento do Brasil (em um primeiro momento) como “enxerto
de Portugal”, reflete no âmbito cultural devido à imposição de costumes, de um mundo
simbólico distinto através da violência. Se num primeiro momento há uma situação de
incomunicabilidade entre o colonizador e o colonizado, logo, num segundo momento,
esta se transforma com a imposição da cultura do colonizador, desaguando em um
terceiro momento de genocídio e eliminação da cultura do colonizado.

2 Cabe destacar que mesmo com a importação de idéias, estas não se mantinham imutáveis. As
condições materiais atípicas, como a permanência da produção embasada no trabalho escravo, p.ex.,
imprimiam ao liberalismo e ao positivismo importados certas nuances. Cf.: SCHWARZ, R. “As idéias fora
do lugar”. In: Cultura e política. SP: Paz e terra, 2005.
3 Aula ministrada no primeiro semestre de 2006 na Escola de Serviço Social da UFRJ, intitulada “Tópicos
Especiais em Serviço Social II”. O conceito de enxerto foi trabalhado a partir das obras de Antônio
Candido.

Então, juntando a violência universal típica dos processos de colonização –
motivados pela acumulação primitiva caracterizada pela barbárie – e as particularidades
da colonização portuguesa, especificamente o descaso pela formação intelectual
brasileira, constitui-se no Brasil um quadro de “cultura enxertada”, a qual contribui para
manter a dominação e a exclusão ao invés de ser capaz de promover a possibilidade
de emancipação através da leitura crítica da realidade e de suas contradições.

Outro elemento constitutivo do legado colonial seria a predominância do
autoritarismo entre as elites brasileiras. Chauí (1993) afirma que esse traço autoritário
característico da vida política nacional se expressa na cultura a partir de um paradoxo;
a menorização da cultura do povo, considerada pelas elites como atrasada, convive
com a negação aos membros desse povo do direito de ter acesso à cultura que seria,
segundo essa visão das classes dominantes, a melhor. Ou seja, a cultura popular é
tida, por vezes, como expressão da ignorância de um povo o qual nunca teve acesso
pleno àquilo que o permitiria ser considerado culto pelas elites – essencialmente
autoritárias.

A durabilidade desse cenário no tempo e no espaço (incluindo a imposição
cultural e o autoritarismo que pereniza a dominação político-econômica), não significa,
porém, que inexista no país uma cultura própria das classes subalternizadas, que as
caracterize e possa produzir um efeito antibarbárie. Antes, indica que não há uma
cultura 100% original, ou seja, a cultura popular, assim como a alta cultura brasileira,
também sofre os rebatimentos do processo de desenvolvimento do capital4. Um
exemplo seria a religiosidade que comumente perpassa expressões da cultura popular
brasileira e que pode ter raízes na forma pela qual o povo nativo teve acesso à
educação básica durante a colonização, assim como na mistura de diferentes povos. O
já mencionado desprezo (proposital?) dos portugueses pela construção em suas
colônias de escolas e universidades e sua aliança com a igreja católica, deu aos
jesuítas importante papel no processo de imposição das crenças e da cultura em geral
do colonizador ao colonizado, através da educação. Segundo Bosi (2006), esse papel

4 A afirmação da inexistência de uma cultura 100% original pode ser generalizada em termos mundiais,
visto que as culturas no geral se constroem em contato. Porém pretendemos destacar no presente
estudo algumas particularidades e características do processo de colonização e de desenvolvimento do
capitalismo no Brasil, as quais nos permitem esboçar uma leitura acerca do processo do qual os Centros
Populares de Cultura fizeram parte (estudado a seguir).

(de re-colonização) é exercido hoje pelas escolas, universidades, pelo Estado e por
outras instituições.

O sentido mais genérico da cultura enquanto conjunto de características de um
determinado povo ou grupo social é expresso em diversas manifestações culturais, as
quais vão das mais simples, como o modo de comer, vestir, falar, etc., às mais
complexas, como a pintura, a música, o teatro, enfim, o fazer arte. E á através da
utilização da arte e da proposição/defesa de outra cultura – que não a dominante – que
em determinados momentos da história grupos oprimidos puderam ensaiar a
constituição de um elemento antibarbárie. Mesmo que durante um curto período de
tempo, como é o caso dos Centros Populares de Cultura, foco de estudo do presente
trabalho.

Os CPC’s, como veremos adiante, se configuram em uma tentativa de unir
cultura popular com elementos da “alta cultura” (seja na forma ou no conteúdo),
buscando expor a realidade desigual no sentido de politizar e – possivelmente –
transformá-la. Essa experiência coloca em cena na realidade brasileira a junção entre
movimentos sociais e arte-cultura em prol de uma transformação social, no caso, de
uma revolução democrático-popular. Cabe ressaltar que nem todas as formas de
manifestação da cultura popular são expressões de resistência, visto que a ausência de
uma cultura pura e a imposição cultural através da violência (implícita ou explícita) é
conseqüência do próprio desenvolvimento capitalista. O caráter de resistência é
impresso quando as expressões culturais populares indicam contestação radical à
ordem estabelecida. E a resistência ganha contornos revolucionários quando há a
incorporação e/ou criação de formas potencialmente revolucionárias de arte-cultura por
um movimento político organizado (ou como um meio para criá-lo), o qual tenha como
um de seus objetivos, mudanças radicais que beneficiem a massa oprimida da
população – visto que tais mudanças, dependendo do contexto no qual são feitas,
podem significar um freio para a desumanização/mercantilização imposta pelo capital
ao se colocarem na contramão do desenvolvimento ou da continuidade do sistema5.

Retomando a colocação de Schwarz exposta acima, segundo a qual a unidade
cultural de um povo pode representar um elemento antibarbárie, o que observamos na

5 É o caso das reformas em jogo no Brasil na década de 60.

organização da cultura burguesa é o inverso. Partindo do pressuposto segundo o qual a
cultura dominante de uma época é a cultura das classes dominantes, podemos supor
que no capitalismo maduro essa situação se complexifica a ponto da cultura de
massas6 contribuir para obscurecer a barbárie imposta pelo sistema de produção e
venda de mercadorias, permitindo assim sua naturalização e continuidade7. Nesse
sentido, a própria cultura do povo pode, por vezes, reproduzir traços da cultura
dominante, mesmo que com objetivos e por razões diferentes. É o caso do
autoritarismo discutido nas linhas acima, o qual é observado também em diversas
manifestações populares. Este é possibilitado (e potencializado) pela imposição externa
das representações e normas sociais, ou seja, dos símbolos que permitem aos sujeitos
lerem a realidade e interpretá-la8 (CHAUÍ, 1993).

Porém conforme afirmamos anteriormente, o processo de imposição da cultura
das classes dominantes não implica diretamente em supressão total de expressões
culturais das classes subalternizadas. Segundo Bosi (2006), apesar do processo de
aculturação imposto pelo europeu ocidental branco, não é correto aferir que se criou
uma unidade ou homogeneização cultural. Isso seria inexistente em sociedades
divididas em classes, ou seja, essencialmente desiguais. Logo, se coloca em questão o
pluralismo que é característico das culturas (no plural) de uma nação. Coutinho (1990)
afirma, no entanto, que o real pluralismo cultural, livre de perseguições políticas, só
encontra condições para se consolidar em uma democracia de massas. A qual se
colocava no horizonte brasileiro na década de 1960.

6 Cultura de massas é um termo utilizado aqui no sentido de cultura dominante, feita para as massas e
não necessariamente pelas massas – como será visto adiante.
7 Cabe lembrar que a própria cultura dominante se constitui e se afirma enquanto tal devido à divisão
social e técnica do trabalho. Cf.: CHAUÍ, M. “Cultura e democracia”. 6ª ed.. SP: Cortez, 1993.
8 Chauí, op.cit., indica que o autoritarismo não é exercido aqui somente pela força, violência e repressão,
sendo também exercido de maneira mais sutil através de uma racionalidade, que se opõe ao suposto
irracionalismo do povo, expressa nas ciências e em sua divulgação mais atual através da indústria
cultural que vende a figura dos “especialistas”. A detenção, o monopólio de um saber formal permitiria
então a legitimação do autoritarismo e, conseqüentemente, da universalização de uma visão particular,
de classe, a qual inferioriza o pobre. “Aqui, é a idéia de racionalidade que comanda a legitimação da
autoridade...autoritária” (p.49). Logo, a suposta neutralidade da ciência contribui para embaçar a
opressão, assim como “a “ignorância” do povo serve para justificar a necessidade de dirigi-lo do alto”
(p.51).

Chauí (1993) propõe a extensão do plural para pensar a cultura popular em si, ou
como prefere a autora, a cultura do povo9. Pois além da noção de cultura ser “avessa à
unificação” (p.45), é o reconhecimento e a manutenção da pluralidade que permitiriam a
abertura “a uma criação que é sempre múltipla, solo de qualquer proposta política que
se pretenda democrática” (idem). E é a proposta de uma democracia de massas que as
elites brasileiras sempre buscaram inviabilizar, num movimento que envolve dizimar
movimentos populares, menorizar e/ou se apropriar da cultura popular, modificando sua
forma e seu conteúdo; legando aos movimentos sociais revolucionários a necessidade
de analisar criticamente esse processo, visando revertê-lo e minar suas bases político-
econômicas.

1.2 Algumas características e potencialidades da cultura popular

(...) um sem-número de fenômenos simbólicos pelos quais se exprime a vida
brasileira tem a sua gênese no coração dessa vida, que é o imaginário do povo
formalizado de tantos modos diversos, que vão do rito indígena ao candomblé,
do samba-de-roda à festa do Divino, das Assembléias pentecostais à tenda de
umbanda, sem esquecer as manifestações de piedade do catolicismo que
compreende estilos rústicos e estilos cultos de expressão10.

Conforme o exposto acima, a diversidade de manifestações religiosas é uma das
características da cultura popular brasileira, parte do imaginário social que se
consolidou principalmente entre as classes populares. Essa variedade enorme de cultos
e ritos, porém, nem sempre foi aceita pelas elites como parte da vida cultural do país.
Desde a colonização tenta-se impor o catolicismo como única religião oficial,
reconhecida internacionalmente. Manifestações culturais religiosas como o candomblé,
por exemplo, eram vistas e divulgadas pelas classes dominantes como perigosas,

9 Segundo Chauí o termo cultura do povo permite que nos livremos de alguns embustes ideológicos que
poderiam derivar do termo cultura popular e da noção de nacional estimulada pelo mesmo. Esta
discussão, porém foge aos limites do presente trabalho. Cf.: Chauí, op.cit., em particular págs. 39 a 60.
Compartilhamos com a proposta da autora, “que o “popular” não seja glorificado nem seja reduzido à
alienação, mas compreendido como dominado e, portanto, como internamente dividido” (p.39).
10 BOSI, A. “Dialética da colonização”. 4ª ed.. SP: Companhia das letras, 2006 (p.323).

devido ao preconceito cultivado por esses ritos serem parte do que se convencionou
chamar de “cultura negra”. Na época da escravidão começa a ser difundido o medo em
torno de tudo o que simbolizava a cultura negra e representava possibilidade de
resistência à cultura dominante, como as religiões “alternativas”, a capoeira e até
mesmo o samba, num período posterior.

Ao constatar a diversidade de religiões e a perseguição política a determinados
grupos religiosos, porém, é necessário reafirmar que há uma ideologia pautando boa
parte das manifestações e instituições religiosas, a qual reitera a dominação político-
econômica das classes no poder. Segundo Chauí (1993), não há uma diferenciação
muito clara entre religião dos dominados e religião dos dominantes:

definida como espetáculo por não ser especulativa, como lógica da ilusão por
não alcançar a raiz da história efetiva ou como alienação por não reconhecer
sua humanidade, a religião aparece como uma atitude genérica perante o real,
tornando-se impossível estabelecer uma diferença qualitativa entre religião dos
dominantes e religião popular: ambas parecem ser, apenas, variantes do
mesmo, distinguindo-se em grau e não em natureza (p.72).

As práticas religiosas podem ser entendidas a partir do recorte de classe e raça, porém,
quando enfatizamos

a dimensão propriamente cultural da religião popular como preservação de
valores éticos, estéticos, étnicos e cosmológicos de grupos minoritários e
oprimidos, de sorte a funcionar como canal de expressão da identidade grupal e
de práticas consideradas desviantes (e por isso repudiadas) pela sociedade
inclusiva (CHAUÍ, 1993:73).

Ou seja, subentende-se nessa diferenciação que há uma possível radicalidade
contestatória em algumas manifestações religiosas populares. Não é mera coincidência
a perseguição e a criminalização serem destinadas a grupos étnicos que, segundo as
elites, representavam alguma ameaça – mesmo que remota – à ordem11.

11 As religiões “afro” recuperam a relação entre o homem e a natureza; relação esta invertida pela lógica
dominante, através da alienação e da dominação do homem quanto à natureza, tanto a externa quanto a
interna.

Essa política de difundir o medo se mantém até os dias atuais12, dando margem
a criminalização e ao genocídio dos negros e pobres, porém a mesma é
qualitativamente diferente no que tange à cultura geral desses grupos. Essa, em
determinado momento, passa a ser vendida como algo exótico, objeto de atração do
turismo externo e inter-regional. É o mesmo caso da cultura indígena, a qual num
primeiro momento da colonização sofre o mesmo processo de menorização – com fins
econômicos e políticos –, sendo taxada de primitiva e bárbara e, posteriormente, entra
no esquema de venda e exportação13 do “verdeamarelismo”.

Considerando o corte de classe e de raça que influencia as diversas “tribos” que
se afirmam no cenário cultural brasileiro é possível fazer outro recorte, o qual diz
respeito ao acesso às letras e possibilita unir em um grupo cultural (obviamente plural)
as diferentes etnias historicamente menorizadas. Segundo Bosi (2006),

se pelo termo cultura entendemos uma herança de valores e objetos
compartilhada por um grupo humano relativamente coeso, poderíamos falar em
uma cultura erudita brasileira, centralizada no sistema educacional (e
principalmente nas universidades), e uma cultura popular, basicamente iletrada,
que corresponde aos mores materiais e simbólicos do homem rústico, sertanejo
ou interiorano, e do homem pobre suburbano ainda não de todo assimilado
pelas estruturas simbólicas da cidade moderna (p. 309, grifos do autor).

Há nessa diferenciação feita pelo autor entre cultura erudita e cultura popular um corte
de classe que aponta principalmente para o já mencionado baixíssimo acesso à
educação e à cultura clássica. Em países de capitalismo periférico como o Brasil, não
só o analfabetismo e a péssima qualidade do ensino destinado às massas se
constituem em um problema de grandes proporções, mas também provocam
conseqüências lógicas: o pouco ou nenhum interesse pela leitura e o lugar de
inacessível destinado às grandes obras clássicas produzidas historicamente pela
humanidade (fatores generalizáveis).

12 Cf. BATISTA, V.M. “O medo na cidade do Rio de Janeiro – dois tempos de uma história”. RJ: Editora
Revan, 2003.
13 Cabe lembrar que esse processo não é retilíneo, tendo a cultura indígena passado também por
momentos de romantização/idealização, principalmente após a independência, com o intuito de se formar
“uma ideologia nacional-conservadora” (Bosi, op.cit., p.331), a qual tem em comum com as outras leituras
a imposição da ideologia do colonizador, fundamental para manter a realidade encoberta.

Reside aqui outra característica básica que perpassa a cultura popular brasileira;
pois ao mesmo tempo em que esta não pode ser designada como pura, não deixa de
ser um modo particular de expressão dos pobres, em sua maioria, iletrados. Isso não
significa afirmar qualquer tipo de inferiorização, mas antes é uma constatação histórica
que remete ao baixíssimo acesso às letras e à já mencionada divisão sócio-técnica do
trabalho, a qual divide os homens entre trabalhadores intelectuais e manuais. Em
alguns momentos a cultura popular é renegada, em outros é idealizada pelas elites e
pela classe média. Porém, como lembra Coutinho (1990), a tendência que se afirmou
historicamente foi o elitismo antipopular brasileiro, o qual não é comum somente aos
conservadores e aos autoritários de direita. Esse elitismo cultural é um dos elementos
que embasa a tentativa constante de exclusão das classes populares dos processos
decisórios e, conseqüentemente, do usufruto dos bens econômicos e culturais.

Cabe destacar que as classes altas, porém, absorvem a cultura clássica à qual
têm acesso de maneira peculiar – o que em longo prazo colabora para a manutenção
de uma realidade “distorcida”. Bosi (2006) indica o exemplo do positivismo, que há
muito orienta as práticas de parte da elite brasileira de maneira diferenciada do seu
funcionamento na realidade européia e só começa a ser questionado – porém não
abandonado por completo – na década de 70 do século XX, quando o início da
movimentação pela abertura política impôs questionamentos quanto à suposta
neutralidade técnica e a opressão ideológica provocada pela mesma14.

Tendo em vista que cultura abrange muito mais que a escrita (como o próprio
autor citado indica), a cultura popular envolve mores materiais e simbólicos dos
homens. Ou seja, costumes, modos de viver, de se expressar, de se relacionar com
seus semelhantes e com a natureza, de interpretar essas relações etc.. Então, se é
parte da história brasileira ter a cultura letrada como algo restrito a uma minoria
“privilegiada” que tem acesso aos centros universitários, é igualmente constitutiva da

14 De acordo com Bosi, op.cit., as mudanças na dinâmica social provocam, por vezes, uma tensão entre
tecnocratas e críticos: “depois de largos anos de política desenvolvimentista, anos em que as ciências
foram estimuladas pelo Estado e pela empresa privada a trabalharem no planejamento racional da
sociedade, os seus cultores mais lúcidos se viram diante de um sistema gerido por forças que, por si, não
visam àquela democratização dos bens culturais: as empresas multinacionais da Engenharia, Urbanismo,
Administração ou Farmácia não visam senão ao lucro: o Estado forte, por sua vez, não visa senão a mais
poder e a mais segurança. Pouco importa que todos estilizem as suas expressões ideológicas por meio
de uma retórica, já batida, do desenvolvimentismo” (p.316). Isso evidencia ainda as relações entre
cultura, política e economia.

vida cultural brasileira a cultura popular produzida em outros espaços, fora dos muros
da universidade. E se na universidade “cultura se formaliza e se profissionaliza
precocemente”, “chega logo à cunhagem de fórmulas e se nutre dessas fórmulas até
que sobrevenham outras que as substituam”, “é falar “sobre alguma coisa” de modo
programado” (BOSI, 2006:320), na cultura popular mantém-se, em alguma medida,
certa dose de espontaneidade e de criatividade. Esse caráter espontâneo-criativo
presente no nascedouro da manifestação popular, ao ser trabalhado politicamente, ao
ser refletido coletivamente e transposto às práticas sociais em geral, pode abrir portas
para a politização da vida cotidiana (para além do cotidiano) e para a resistência à
ordem burguesa.

Afinal, conforme anteriormente sinalizado, sem elaboração crítica e coletiva, a
cultura popular por si só não representa resistência. Mesmo sendo criação do povo
para o povo, este também absorve a ideologia que reproduz a lógica dominante, a qual
pode eliminar a espontaneidade e a criatividade de tais manifestações, reduzindo-as a
meros reprodutores do “lugar-comum” presente no pensamento burguês médio.
Partindo da frase de Benjamin, segundo a qual todo documento de cultura é um
documento de barbárie, Chauí (1993) analisa a reprodução de idéias dos dominantes
pelos dominados. Segundo a autora, as idéias dominantes em determinada época, não
o são por se referirem a toda a sociedade, mas sim porque são idéias dos que
dominam, dos que exercem o poder. Logo, a afirmação de Benjamin poderia ser
entendida a partir de três constatações: “a cultura dominante se realiza a expensas da
violência exercida sobre aqueles que a tornam possível”, assim como “a cultura
dominada fica exposta à barbárie do dominante” e “a cultura dos dominados exprime a
barbárie a que estão submetidos” (CHAUÍ, 1993:44).

Outro elemento que reduz brutalmente as manifestações populares, além da
reprodução das idéias dos possuidores dos meios de produção, é a transformação de
tais manifestações em objeto de compra e venda – mercadoria em sua essência –, o
que representa a perda de suas potencialidades. Principalmente com a consolidação da
indústria cultural no Brasil, na década de 60. A partir desse período, com o início da
generalização dos aparelhos eletrônicos,

a cultura de massa entra na casa do caboclo e do trabalhador da periferia,
ocupando-lhe as horas de lazer em que poderia desenvolver alguma forma
criativa de auto-expressão: eis o seu primeiro tento. Em outro plano, a cultura
de massa aproveita-se dos aspectos diferenciados da vida popular e os explora
sob a categoria de reportagem popularesca e de turismo. O vampirismo é assim
duplo e crescente: destrói-se por dentro o tempo próprio da cultura popular e
exibe-se, para consumo do telespectador, o que restou desse tempo, no
artesanato, nas festas, nos ritos (BOSI, 2006:329).

Bosi lembra ainda que os artifícios desenvolvidos pela indústria cultural não são
suficientes para eliminar ou modificar por completo o rico dinamismo da cultura popular.
Ao utilizar uma linguagem simbólica “popularesca” para conquistar cada vez mais um
número maior de espectadores-consumidores, a mídia de massas contraditoriamente
re-alimenta a dinâmica da cultura produzida pelo povo, o qual incorpora significados de
acordo com seu imaginário; reafirmando assim seus valores, costumes e tradições.
Podemos supor, então, que é na própria dinâmica da cultura popular que reside suas
potencialidades quanto à resistência e, posteriormente, no que tange à luta
revolucionária. E nas próprias contradições do sistema, visto que “a propaganda não
consegue vender a quem não tem dinheiro” (BOSI:2006, 329), ou seja, nem sempre os
objetivos das classes dominantes são atingidos, às vezes pelas próprias condições por
estas criadas.

O paradoxo reside então nos momentos de contato entre as diferentes culturas
que se afirmam no cenário brasileiro. Da mesma forma através da qual o encontro da
cultura de massas com a cultura popular pode render frutos para esta última, conforme
afirma Bosi, os mesmos tendem a se tornar amargos se considerarmos que o
imaginário social moderno como um todo tem a ideologia como sua forma específica.
Segundo Chauí (1993), a ideologia permite ocultar e dissimular o real, obscurecendo
suas contradições, ou seja, colabora com a manutenção da dominação e opressão de
classe ao impor a visão particular das classes dominantes como universal. Nesse
sentido, ao serem absorvidos de maneira acrítica, os significados e símbolos
transmitidos pela mídia de massas podem incrementar os traços de conservadorismo
presentes na cultura popular. Tais contradições são representativas dos momentos de
entrelace das culturas (erudita, popular, de massa), que se re-alimentam umas das
outras e se constroem nesse processo, podendo esse contato ativar potencialidades,

como é o caso do encontro entre a “alta cultura” e a cultura popular, ou anulá-las. São
esses “encontros casuais” que permitem ainda o aproveitamento necessário, feito pelos
dominados, da cultura produzida nos centros universitários, visto que não se trata de
renegá-la, mas sim de reconhecer seu uso hegemônico para a manutenção da ordem e
tentar reverter esse processo.

Afinal, de qualquer maneira, o que presenciamos atualmente – infelizmente – é a
hegemônica “vitória”15 da indústria cultural (da qual a universidade é parte constitutiva),
a qual expropria16 o conjunto de simbolismos populares, tornando-os elementos
ideológicos vendáveis, sendo produto “de uma investida técnico-econômica violenta do
sistema capitalista” (BOSI, 2006:330). Nesse sentido, a junção entre cultura popular e
movimentos sociais que defendam outro projeto de sociedade, assim como a
apropriação pelos mesmos da “alta cultura” feita de forma crítica, entendida inclusive
como importante acúmulo da humanidade no processo de luta, se tornou um passo
fundamental na construção do novo. Assim como um desafio imenso para a esquerda.

Longe de ser uma fórmula pronta, essa junção expressa um experimento já
tentado antes em diferentes momentos históricos; curtos períodos de tempo que
representaram páginas significativas da história da humanidade no que diz respeito à
elaboração, politização e colocação em prática da esperança que reside (e resiste) no
imaginário popular. Devido aos limites do presente trabalho e a uma escolha
metodológica, será dado enfoque aos CPC’s, que expressam essa perspectiva de
tentar juntar culturas diferentes e trabalhá-las em um movimento social organizado,
criando-se assim uma cultura política de resistência, a qual dá margem à reflexão e
politização do cotidiano.

Na década de 1960, período no qual surgem e desaparecem os CPC’s
(conforme veremos a seguir), a idéia de povo brasileiro sobressaía entre os intelectuais
e artistas, principalmente os envolvidos com algum movimento de esquerda, com algum
tipo de militância. Tentava-se valorizar a cultura brasileira e criar uma cultura ligada à

15 Vitória aqui vem entre aspas por significar, na realidade, a derrota de tudo o que a humanidade poderia
ser, devido à manutenção de um projeto de sociedade falido.
16 “O uso que a indústria de bens simbólicos faz do folclore se parece com a expropriação. Assim como a
indústria tira a força de trabalho do despossuído, pagando-lhe um salário mínimo, a cultura para massas
surrupia quanto pode da sensibilidade e da imaginação popular para compensá-la com um lazer mínimo,
entrecortado de imagens e slogans de propaganda” (BOSI, op.cit., p.330).

arte popular, ou seja, as propostas e o entendimento da esquerda acerca da cultura
tinham um forte caráter nacional-popular (RIDENTI, 2000). Buscava-se então a
identidade do homem brasileiro, a qual só se completaria com a revolução. Apesar da
derrota sofrida pelas vertentes nacionais-populares em 1964 e das críticas ao idealismo
que pautava esta concepção de cultura, a mesma teve grande significância ao destacar
diversas questões pertinentes à realidade nacional.

Segundo Coutinho (1990), “há cosmopolitismo abstrato todas as vezes que a
“importação” cultural não tem como objetivo responder a questões colocadas pela
própria realidade brasileira” (p.51). Os CPC’s podem ser entendidos como uma
experiência que se moveu na contramão dessa tendência à mera imitação, tornando
mais concretas as manifestações artístico-culturais eruditas e enriquecendo-as, ao
propor uma leitura crítica da realidade brasileira através das mesmas.

Capítulo 2

Os Centros Populares de Cultura (CPC’s) e a cultura política
dos anos 1960

- 2.1 Que desenvolvimento? (ou) O problema da forma

Entrava em movimento a radicalização do populismo desenvolvimentista, que
iria desembocar em anos de pré-revolução – ou seja, de questionamento
cotidiano da intolerável estrutura de classes do país – e no desfecho militar de
6417.

No início dos anos 1960 o Brasil atravessava uma fase de intensa movimentação
política em direção a modificações profundas nas formas de produzir e
importar/exportar do país, as quais tinham como carro-chefe a proposta de Reformas de
Base. Estas incluíam a nunca efetivada reforma agrária, a reforma urbana, a reforma
tributária, além da reforma educacional, entre outras, o que ameaçava diretamente os
interesses da burguesia – tanto nacional quanto internacional (principalmente a reforma
agrária, que envolvia a transformação das relações de produção em todo o campo).
Isso porque em um país cujo desenvolvimento do capitalismo ocorreu de maneira
desigual e combinada18, a prosperidade de um pólo dependia do atraso do outro e a
supressão desse atraso – conforme o proposto pelas forças progressistas – implicaria
em mudanças estruturais. Schwarz (2005) sintetiza o ideário da esquerda no período:

O aliado principal do imperialismo, e portanto o inimigo principal da esquerda,
eram os aspectos arcaicos da sociedade brasileira, basicamente o latifúndio,
contra o qual deveria erguer-se o povo, composto de todos aqueles
interessados no progresso do país. (p.14, grifo do autor)

Desde a década de 1950 o país vivenciava uma mobilização no sentido de
promoção do desenvolvimento. Tal perspectiva esteve muito presente no governo de
Juscelino Kubitschek19, também considerado progressista na época, e encontrou sua
máxima no governo de João Goulart (Jango), expressa nas Reformas de Base.

17 SCHWARZ, R. “Altos e baixos da atualidade de Brecht”. In: Seqüências brasileiras: ensaios. SP:
Companhia das letras, 1999 (p.118).
18 Cf. RIDENTI, M. “Em busca do povo brasileiro”. RJ: Record, 2000, que utiliza tal conceito e atribui à
ditadura militar a continuidade desse tipo de desenvolvimento. Cf. também Schwarz, 2005, op.cit., p.34,
na qual o autor expõe com clareza que a reprodução do atraso é funcional ao desenvolvimento do novo.
19 O desenvolvimentismo se expressou principalmente no Plano de Metas, que propunha crescer 50 anos
em 5.

Schwarz (1999) retoma uma observação de Celso Furtado – que nos permite traçar
uma visão panorâmica da época – e, a partir desta, resume um pouco daquela
realidade:

naqueles anos pareceu possível uma arrancada recuperadora, que tirasse a
diferença que nos separava dos países adiantados. As indústrias novas em
folha, propagandeadas nos semanários ilustrados e noticiários de cinema, os
automóveis nacionais rodando na rua, o imenso canteiro de obras em Brasília,
inspecionado pelo presidente (Juscelino) sempre risonho, que para a ocasião
botava na cabeça um capacete operário, o povo pobre e esperançado
chegando de toda parte, uma arquitetura que passava por ser a mais moderna
do mundo, pitadas de antiimperialismo combinadas a negociatas do arco-da-
velha, isso tudo eram mudanças portentosas, animadas por uma
irresponsabilidade também ela sem limites. O país sacudia o atraso, ao menos
na sua forma tradicional, mas é claro que nem remotamente se guiava por uma
noção exigente de progresso. (SCHWARZ, 1999:88)

É possível percebermos que havia uma atmosfera de esperança quanto à
supressão do “atraso”. Porém a forma através da qual tentava-se lidar com o atraso
estruturante do capitalismo no país, não contemplava os reais interesses da massa da
população. A irresponsabilidade indicada pelo autor citado inclui a
desresponsabilização pelo “destino” de todo o povo, a qual é explicitada na
refuncionalização (a partir da atualização) do atraso. Segundo Netto (2005a), “no Brasil,
o desenvolvimento capitalista não se operou contra o “atraso”, mas mediante a sua
contínua reposição em patamares mais complexos, funcionais e integrados” (p.18,
grifos do autor). Ou seja, a consolidação do capitalismo no país, sob a direção das
classes dominantes e com a total exclusão do povo dos processos decisórios, requereu
a manutenção de traços que podem ser considerados arcaicos, principalmente nas
áreas rurais.

No entanto, conforme o desenvolvimento capitalista e o avanço da mundialização
combinada à dependência, a continuidade da acumulação de capital em escalas cada
vez maiores passou a envolver a necessária dissolução de tais traços arcaicos, a qual a
partir da década de 60 do século XX não era exatamente um problema para as elites;

afinal, o Brasil precisava se modernizar20 por completo para se integrar globalmente.
Tal dissolução seria então, conseqüência do desenvolvimento tecnológico bruto, o qual
atinge um patamar nunca alcançado historicamente com a terceira revolução técnico-
científica. O que se coloca como problema nesse momento é a forma pela qual o atraso
– que se expressa nesses traços – seria supostamente questionado e suprimido e o
desenvolvimento nacional “completado” com a modernização.

A proposta progressista, dos grupos de esquerda21 que ganhavam força, era a
de implantar o desenvolvimento nacional com participação daqueles que podem ser
considerados como os maiores interessados22 na mudança da lógica dominante; entre
eles os trabalhadores rurais, os pobres ou mais especificamente o povo, como se
convencionou chamar essa camada da população excluída de uma existência digna,
assim como aqueles que defendiam um projeto popular para a nação. Observa-se uma
proposta de desenvolvimento nacional-popular, o que vai ao encontro da proposta dos
movimentos de massa que ascenderam na década de 50, como as Ligas camponesas
e o MASTER23, por exemplo.

Tal forma de desenvolvimento proposta, feita com participação popular,
implicando na supressão do atraso (não na sua refuncionalização) e considerada como
“progresso revolucionário”, era o problema...para as elites dirigentes. A Ditadura Militar
(1964-1985) veio confirmar essa hipótese, o que será discutido mais adiante. A questão
central era que a modernização precisava se completar no Brasil, até pelo próprio
andamento da acumulação internacional de capital e, dependendo da forma através da
qual esta fosse feita, poderia ou não trazer benefícios para a massa da população ao
promover o desenvolvimento nacional – o ovacionado progresso.

Porém no contexto em que os grupos nacionais minoritários que detinham o
poder deveriam escolher entre aliançar-se com o povo ou com a elite burguesa

20 Essa perspectiva já era observada anteriormente no urbano; em estados como o Rio de Janeiro, por
exemplo, foi implementada a Reforma Pereira Passos com o intuito de modernizar e adequar a cidade
aos padrões internacionais.
21 Cabe ressaltar que a esquerda na época não era um grupo homogêneo. Para um aprofundamento com
relação às diversas correntes que se afirmavam, cf. Ridenti, op.cit., em particular capítulos II e III.
22 Note-se que com essa afirmação não negamos que os interesses das massas são heterogêneos. É
antes uma constatação conjuntural, que marca um interesse em comum, presente principalmente nos
movimentos organizados da época.
23 O Movimento dos Agricultores Sem Terra, diferente das Ligas Camponesas, que começam em 1954,
só vai se constituir efetivamente na década de 60.

internacional – o grande capital – para manter e completar o acelerado
desenvolvimento industrial iniciado na década de (19)50, o que prevaleceu foi a
segunda opção. Configurou-se ao longo do período 1964-1985 uma forma de
modernização que, segundo Netto (2005a), podemos adjetivar de conservadora24, a
qual foi escolhida como possibilidade de ordenar a economia brasileira, permitindo que
esta se enquadrasse nos padrões requeridos mundialmente.

Decorridos mais de 40 anos, é possível apontar alguns equívocos que “pairavam
no ar” na década de 60. Percebemos que a perspectiva da esquerda nesse período era
falha, por exemplo, no sentido de acreditar em uma aliança do povo com a burguesia
nacional, contra as elites internacionais25. Notamos ainda que a ilusão de progresso
associado ao desenvolvimento e ao bem-estar social é equivocada, podendo inclusive
se realizar o inverso – o aumento do mal-estar social – que, diga-se de passagem, foi o
que ocorreu durante e depois da Ditadura Militar, de maneiras e em medidas diferentes.
No entanto, apesar de alguns equívocos, que podem ser apontados e percebidos mais
claramente no contexto atual, boa parte da esquerda no período provocou uma
significativa inflexão cultural e política, a qual teve repercussões em diferentes
expressões artístico-culturais, tendo se expressado inclusive no cinema, no teatro e na
música.

Toda a movimentação política intensa, característica da época, se tornou mais
rica com a movimentação cultural que a animava. A política cultural nacional passava
então por uma modificação em sua dinâmica, visto que a cultura nesse período se
vincula diretamente a movimentos sociais e populares que retomam em outra medida a
vertente artística da Semana da Arte Moderna de 192226, buscando responder aos
dilemas de sua época. Grupos diversos trouxeram à tona a importância das
manifestações artístico-culturais na construção de outro projeto de nação27 que não o
das classes dominantes. Dentre eles, os Centros Populares de Cultura tiveram

24 Autores como Ridenti, op.cit., compartilham o uso do conceito de modernização conservadora.
25 Cf. Terra em Transe, filme de Glauber Rocha que retrata o período posterior ao Golpe, a reação de
Jango perante o mesmo e como a esquerda que acreditava em uma aliança com a burguesia nacional
sofreu tal período.
26 Para aprofundamento referente a essa influência no cinema da época, cf.: XAVIER, Ismail. “Cinema
brasileiro moderno”. 3ªed.. SP: Paz e terra, 2001.
27 Projeto que envolvia principalmente a completa socialização da política e da cultura.

destaque. Estes têm início a partir da junção de ex-membros do Teatro de Arena e de
estudantes que compunham a União Nacional dos Estudantes (UNE).

- 2.2 O teatro político como origem dos CPC’s: a contradição expressa no
público

No contexto de defesa da arte nacional-popular houve um movimento de
companhias teatrais no sentido de politizar e popularizar o teatro brasileiro. Dentre
essas companhias podemos citar o Teatro Paulista do Estudante (TPE) e o Teatro de
Arena de São Paulo – que em 1956 se fundem – como representantes da defesa da
arte engajada. Segundo Garcia (2004), o Teatro de Arena tomava a dianteira no que
tange a essa perspectiva e buscava sobreviver financeiramente, devido à concorrência
com as grandes empresas teatrais. Tinha a proposta de “criar uma identidade própria
para o primeiro teatro em formato de arena da América do Sul, ou seja, uma identidade
fundada na dramaturgia e na arte cênica brasileiras”. (GARCIA, 2004:3).

A crítica que o Teatro de Arena fazia a companhias de teatro como o Teatro
Brasileiro de Comédia (TBC), por exemplo, remetia exatamente à necessidade de
repensar as referências utilizadas no teatro brasileiro, às mensagens das quais este é
portador, o público ao qual este é dirigido e o objetivo último do mesmo – que no caso
do TBC se resumia ao sucesso de bilheteria, ou seja, à busca pelo lucro,
permanecendo como horizonte a lógica mercantil. Nesse sentido, a proposta de
ocasionar mudanças temáticas e estéticas no teatro brasileiro acompanhou todo o
processo de afirmação de um teatro com caráter político28.

Dentre os integrantes dessa vertente teatral, têm destaque Oduvaldo Vianna
Filho, Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal. Cabe ressaltar, porém que, apesar do
consenso em torno da proposta do teatro como expressão da realidade nacional, havia
alguns desacordos políticos e estéticos entre estes atores, o que ocasionou o

28 Para uma análise aprofundada sobre o teatro político nesse período brasileiro, cf.: KROPF, Paula.
“Teatro Político: o papel da arte na luta pela transformação social”. 2006. Trabalho de Conclusão de
Curso em Serviço Social – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.

surgimento de divergências internas no Teatro de Arena. E foi a insatisfação com
relação ao público atingido pelo teatro que trouxe à tona tais divergências, as quais
podem ser resumidas na discussão em torno da qualidade artística dos espetáculos;
estes nem sempre eram atraentes à massa da população, colocando o seguinte dilema:
deve-se ou não mudar a qualidade estética das apresentações para que estas atinjam
seu “público-alvo”? Segundo Garcia (2004), o público burguês ter sido o interlocutor
principal do Teatro de Arena – como parte de uma limitação estrutural do mesmo – foi o
que ocasionou o afastamento de Vianinha, descontente com a ruptura de suas
expectativas acerca da “politização e nacionalização do teatro brasileiro”.

Tal afastamento, porém, estava também ligado à constituição posterior dos
Centros Populares de Cultura, pois no Teatro de Arena já havia a perspectiva de
aproximação com outras entidades e instituições, trazida por Vianinha. Em 1959, por
exemplo, durante a turnê do T. Arena no Rio de Janeiro, o grupo organizou seminários
de dramaturgia e ciclos de estudos teatrais, indo para além da apresentação de peças,
o que remete à difusão de toda a técnica e política29 por trás desse grupo – interferindo
conseqüentemente na produção da arte. E em 1960 Vianinha sugere a aproximação da
companhia a entidades estudantis, partidos e sindicatos, com vistas a resolver
divergências sem “dar cabo” do T.A.. É com a peça “A mais-valia vai acabar, Seu
Edgar”, (feita já fora do T. Arena) que Vianinha expressa a aproximação do teatro
brasileiro tanto da linguagem marxista quanto de entidades de base.

Antes que terminassem a temporada da peça e o grupo se dispersasse,
Oduvaldo Vianna Filho, Carlos Estevam Martins e Leon Hirszman propuseram à
recém- eleita direção da União Nacional dos Estudantes – UNE a realização de
um curso de filosofia ministrado pelo professor José Américo Mota Pessanha.
Assim, A mais-valia vai acabar, Seu Edgar, dirigida por Francisco de Assis e
apresentada no Teatro da Faculdade nacional de Arquitetura do Rio de janeiro,
contribuiu para a organização de artistas, estudantes e intelectuais e
conseqüentemente para a criação do CPC (GARCIA, 2004:5).

29 Os estudos teatrais eram sobre as obras de Brecht e Piscator, o que indica a direção política e estética
adotada pelo grupo.

Devido ao público ser composto basicamente por estudantes, se propôs que o
curso fosse feito na UNE. Ou seja, a partir do exposto acima, podemos concluir que os
CPC’s já vinham sendo gestados no bojo do processo que tem início na década de
1950 e se afirma na década de 1960 de politizar as massas através da arte e valorizar a
cultura popular – processo que se inicia em manifestações cinematográficas30 e
teatrais, indo para além do teatro quando o mesmo se torna insuficiente para atender às
aspirações da vanguarda artístico-intelectual. Os CPC’s seriam assim fruto de uma
tentativa de expandir o movimento político-teatral expresso no Teatro de Arena, assim
como de resolver a questão que se fez central (e ainda o é): como atingir as massas?

Afinal, a contradição expressa no público do T. Arena e o próprio sucesso
relativo conquistado em suas apresentações, colocou a necessidade de repensar (e dar
continuidade) a forma através da qual se busca fazer e divulgar arte para o povo, já que
se repetia então a ausência das massas nos espetáculos que, a princípio, eram feitos
para elas. O CPC representava assim “o projeto de fazer uma arte popular em diversas
áreas, teatro, cinema, literatura, música e artes plásticas” (RIDENTI, 2000:108), bem
como de difundir o teatro e outras manifestações artístico-culturais às diversas camadas
do povo, provocando a democratização real e o acesso à cultura. Enquanto o T. Arena
se colocava na esfera da produção cultural, o CPC poderia ir para além, divulgando
melhor essa produção.

2.3 CPC’s: a expressão artístico-cultural de um projeto popular

(...) os CPC’s (Centro Popular de Cultura) improvisavam teatro político em
portas de fábrica, sindicatos, grêmios estudantis e, na favela, começavam a
fazer cinema e lançar discos. O vento pré-revolucionário descompartimentava a
consciência nacional e enchia os jornais de reforma agrária, agitação
camponesa, movimento operário, nacionalização de empresas americanas etc.
O país estava irreconhecivelmente inteligente31.
A representatividade peculiar de compositores-cantores como Caetano Veloso
e Chico Buarque, ou, noutra esfera, o cineasta Glauber Rocha, deve algo à

30 Para uma análise detalhada do movimento cinematográfico dessa época, que em muito influenciou o
CPC, principalmente o Cinema Novo iniciado em 1955, cf.: Xavier, op.cit..
31 SCHWARZ, R. “Cultura e política, 1964-1969”. In: Cultura e política. SP: Paz e terra, 2005 (p.21).

irradiação daquele momento, quando se ligaram como força histórica os
processos da arte popular, o experimentalismo estético e a encenação
política32.

Os Centros Populares de Cultura tiveram início em 1961, no Rio de janeiro, a
partir de estudantes que, junto de alguns artistas e intelectuais engajados, formavam
então uma espécie de vanguarda político-cultural, “mordida” por toda a efervescência
política da época e por ideais de justiça, igualdade e libertação nacional; o projeto
consolida-se em março de 1962, quando foi lançado seu regimento interno, aprovado
em Assembléia Geral. Com o objetivo maior de politizar as massas difundindo a arte e
valorizando a cultura popular, os Centros trabalhavam manifestações artístico-culturais
como cinema, teatro, literatura, poesia, entre outras, visando colocar em questão
principalmente temas nacionais como a reforma agrária e o analfabetismo. O projeto de
transformar a realidade brasileira estava presente e se expressava tanto nos objetivos
dos CPC’s quanto em suas apresentações e produções, as quais traziam à tona uma
crítica contundente ao atraso e à condição do país como um todo, incluindo o
baixíssimo acesso ao ensino superior33 e à cultura erudita.

A União Nacional dos Estudantes (UNE) já vinha desempenhando então um
papel fundamental no que tange à crítica ao latifúndio, ao analfabetismo, à ausência de
saúde pública para a população pobre (principalmente nas áreas rurais) e às
reivindicações de mudanças em geral. Acreditava-se que tais modificações na estrutura
do país viriam com o suporte do governo Jango – algumas, aliás, já estavam em curso.
Segundo Poerner (2004),

os estudantes tomavam consciência da realidade nacional e se aproximavam
do povo, ao participar, por exemplo, com destaque, da campanha nacional de
alfabetização de adultos, conforme o método do professor pernambucano Paulo
Freire. E a UNE canalizava energia para a participação, em massa, nas
campanhas sanitárias de erradicação de doenças no campo, levadas a efeito
pelo Departamento Nacional de Endemias Rurais do Ministério da Saúde
(p.182).

32 SCHWARZ, R. “Altos e baixos da atualidade de Brecht”. In: Seqüências brasileiras: ensaios. SP:
Companhia das letras, 1999 (p.123).
33 Questão discutida, por exemplo, no “Auto dos 99%”, peça produzida pelo grupo.

Segundo o autor, foi a participação em campanhas como estas que permitiu a
aproximação real do estudante com o cotidiano do camponês, enquanto no âmbito
urbano, os CPC’s começaram a dar conta do recado, nos subúrbios, praças e favelas.
Ou seja, os CPC’s receberam total apoio da entidade estudantil, representando uma
tentativa de concretizar o projeto político da mesma através da cultura.

Apesar de serem constituídos em sua maioria por uma vanguarda artístico-
intelectual, os CPC’s buscavam a aproximação com a massa da população brasileira,
os assim considerados excluídos, e ressaltavam o caráter popular da cultura nacional.
O que indica uma inflexão política, se considerarmos o elitismo como uma constante na
história brasileira, ou seja, o histórico caráter antipopular que pauta as práticas das
elites brasileiras. Sendo assim, os Centros possuíam uma perspectiva verdadeiramente
popular e democrática, ao produzir arte para o povo, buscando o pleno envolvimento
deste (considerado fundamental para a luta política). Segundo Ridenti (2000), nas
atividades culturais populares desse período, a idéia de “progresso revolucionário”
ligava-se à busca das raízes do povo brasileiro, portanto, há em diversas manifestações
artístico-culturais a predominância de um anseio em definir quem é o povo brasileiro e
quais as particularidades que o singularizam34.

Esse anseio da vanguarda artístico-cultural, que a impeliu a sair “em busca do
povo” , como o autor citado define se expressa nos CPC’s, caracterizando-os assim não
apenas como “popular”, mas também como uma experiência com propósitos
revolucionários, visto que ancorada na tese – presente também no Partido Comunista
Brasileiro – segundo a qual caberia ao povo brasileiro realizar a revolução brasileira.
Nesse sentido, a arte utilizada nos CPC’s seria um importante instrumento para suscitar
no povo a reflexão e o debate sobre a realidade a ser transformada, indo, portanto,
muito além dela mesma35, no que seria posteriormente definido por alguns autores

34 Anseio que possivelmente foi um dos responsáveis por uma concepção equivocada (romantizada) de
povo, presente em algumas correntes do período. Porém o aprofundamento desta discussão foge aos
limites do presente trabalho.
35 Configura-se o que alguns autores denominam de arte engajada. Sobre tal conceito, cf.: MITTELMAN,
Tânia. “A arte no coletivo de cultura do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (1996-2006)”. 2006.
Dissertação de Mestrado em História Contemporânea, Universidade Federal Fluminense. Principalmente
capítulo 1.

como uma experiência brasileira de agit-prop36. Cabe destacar que foram os Festivais
de Cultura Popular e a música no geral as expressões que mais renderam aos CPC’s
maior aproximação com o público que a princípio seria seu objetivo último envolver no
processo de politização – as massas. Ou seja, foram essas atividades importantes na
tentativa de reunir os intelectuais e as “classes populares”37. Os festivais cumpriram
ainda o papel de provocar um sopro de renovação na música popular brasileira.

Segundo Coutinho (1990), a dinamização dos movimentos de massa foi
importante fator na radicalização política de parte dos intelectuais brasileiros – o que já
estava em curso desde a década de (19)50. E de acordo com o autor, é essa ligação
entre intelectuais e massa, ou melhor, entre aqueles e a realidade nacional-popular, um
elemento importante no processo de rompimento com a hegemonia do elitismo cultural.
Tal processo tem os CPC’s e o Iseb como núcleos privilegiados no que se refere à
tentativa de concretizar outra perspectiva cultural, mais ligada ao popular-democrático.

O debate sobre quem é o povo brasileiro se expressava também nos Centros
Populares de Cultura a partir de uma opção feita por seus integrantes. Estes se
consideravam como parte do povo, mesmo que isso significasse, para muitos, ter que
abrir mão de uma “herança de classe” imposta por suas origens, visto que a maioria dos
componentes do CPC – assim como a esmagadora maioria dos intelectuais – era parte
da classe média brasileira; a qual neste período realizou uma significativa aproximação
a movimentos de trabalhadores, como as Ligas Camponesas (RIDENTI, 2000). Partindo
desse pressuposto, Garcia (2004) nota que uma contribuição fundamental dos CPC’s –
que reconheciam os estudantes como seus interlocutores privilegiados efetivamente –
foi no sentido de formar uma “nova classe média no âmbito da sociedade brasileira”
(p.20). O que não necessariamente neutralizou a proposta de “opção” pelo povo, por
um projeto popular, pois era este o horizonte para o qual caminhavam os CPC’s. No
entanto, é preciso considerar que a intencionalidade nem sempre equivale aos
resultados efetivos.

36 Sobre o conceito de agitação e propaganda, cf.: Kropf, op.cit.. Cf. também SCWHARZ, R. “Pelo prisma
do teatro”. In: Seqüências brasileiras: ensaios. SP: Companhia das letras, 1999.
37 Segundo Ridenti, op.cit., a utópica ligação entre intelectuais e povo foi parte da cultura política da
época que impulsionou os CPC’s. Utópica pode ser entendida aqui como algo que ainda não se efetivou,
mas é passível de realização futura.

Nesse sentido, independente das intenções e anseios, o que se efetivou foi uma
grande aproximação com estudantes e destes com uma perspectiva de arte e cultura
politizadas. A mudança cultural e a arte que os CPC’s se propuseram a levar para as
massas – com a intencionalidade de envolvê-las diretamente em um segundo momento
– eram entendidas como pontes para a libertação. Isso indiretamente delega uma
responsabilidade social para a vanguarda artístico-intelectual a qual compunha ou tinha
proximidade com os Centros e que havia feito essa opção. Tal escolha por um projeto
de desenvolvimento democrático-popular, possivelmente deriva da já mencionada
movimentação político-cultural que marcou as décadas de 1950 e 60 (em âmbito
nacional e internacional, em diferentes medidas). Segundo Schwarz,

o guarda-chuva do nacionalismo populista propiciava o contato entre setores
progressistas da elite, os trabalhadores organizados e a franja esquerdizada da
classe média, em especial os estudantes e a intelectualidade jovem: para
efeitos ideológicos, essa liga meio demagógica e meio explosiva agora era o
povo. (1999:119)

E ainda:

Sob o signo da renovação cultural, aliavam-se a disponibilidade dos estudantes
e as formas mais dramáticas da luta de classes, que no Brasil, devido à
herança escravista, costumavam e costumam se travar fora do alcance da
opinião pública. (SCHWARZ, 2006:72)

Para o autor há o reconhecimento da significativa riqueza político-cultural
proporcionada pelos Centros Populares de Cultura e de toda a esperança que os
mesmos canalizaram, a qual se expressou nas práticas de parte da militância de
esquerda do país, influenciada inclusive por experiências internacionais, principalmente
a revolução cubana. Porém o mesmo afirma serem claras, no momento atual, as
limitações de um projeto de revolução estimulado “de cima para baixo”; mas tais
limitações não significam que a experiência tenha sido irrelevante38. Até porque, de

38 Ridenti, op.cit., analisa outra crítica feita aos CPC’s, relacionada a um suposto “culto ao povo”, o que
poderia também gerar um tipo de opressão vanguardista, a qual ocorreria a partir da idealização do povo;
para além disso, podemos apontar uma possível lacuna no pensamento esquerdista se aceitarmos a

acordo com a ótica de Coutinho (1990), a integração dos intelectuais com a luta das
massas, se orgânica, poderia ainda romper com a forma revolucionária que se afirmou
em vários episódios da história brasileira: a via prussiana39, na qual está implícito o
elitismo cultural.

Portanto, entendemos que havia no período de 50-60 do século XX, uma
atmosfera de identificação com a parcela pauperizada da população por parte dos
estudantes, de segmentos da elite e da classe média, o que os levou a uma tentativa de
(em um primeiro momento) unificarem forças em torno de um projeto de nação
diferenciado. Esse movimento se expressa com clareza na cultura política, a qual se
modificou consideravelmente nesse período e nas artes criadas/potencializadas em tal
momento, unificadas, produzidas e difundidas de forma privilegiada através dos Centros
Populares de Cultura. Privilegiada, porém, insuficiente, devido às limitações colocadas
pela própria experiência histórica, visto que o pioneirismo e o experimentalismo também
pautaram essa criação. Segundo Poerner (2004), o “maior defeito” do CPC foi a
tentativa de se constituir em uma empresa da cultura popular nacional, quando havia
efetivamente um total despreparo de seus membros para executar tal empreitada.

Reinava o espírito da improvisação, o que explica, por exemplo, ter o CPC
jogado todos os seus recursos financeiros no filme Cinco vezes favela, de que
foi co-autor um dos seus fundadores, Leon Hirszman, também um dos criadores
do Cinema Novo. A precipitação era agravada pela dispersão de esforços: o
CPC ainda não se havia consolidado e já se ocupava em criar a Universidade
Popular, que utilizaria o Correio e as bancas de jornais para melhor levar o
ensino ao povo (p.183, grifos do autor).

análise apontada pelo autor referente aos CPC’s serem herdeiros da razão iluminista (alvo de críticas
coerentes por parte de autores como Theodor Adorno, p.ex.), mas esta discussão foge aos limites deste
trabalho. Cf. também Chauí, op.cit.. Segundo a autora, o manifesto do CPC expressa um “iluminismo
vanguardista e inconscientemente autoritário”, o qual “carrega em seu bojo uma concepção instrumental
da cultura e do povo” (p.61).
39 A via prussiana é um meio de operar transformação, mudança social, porém a partir da ausência de
autênticos movimentos de baixo para cima, que mobilizem o conjunto da população. São as conhecidas
“revoluções pelo alto”, como a independência brasileira, entre outros momentos de nossa história. A via
prussiana traz implícitas a marginalização e repressão das classes populares subalternizadas; e utilizada
como meio de transição ao capitalismo, tem como possível conseqüência a manutenção de traços
arcaicos, pré-capitalistas. Cf. COUTINHO, Carlos Nelson. “Cultura e sociedade no Brasil”. In: Cultura e
sociedade no Brasil: ensaios sobre idéias e formas. BH: Oficina de livros, 1990.

No entanto, o autor prossegue sua análise explicitando que os Centros
Populares de Cultura foram, no conjunto, uma experiência positiva naquele período de
crise nacional eminente. Além disso, podemos entender o experimentalismo e a
improvisação dos quais tratam Schwarz e Poerner como frutos da época, do contexto
no qual essa experiência se desenvolveu, visto que, além de pautada em uma certa
urgência política, tal movimentação cultural foi uma inovação em termos de arte no
país, representando uma outra maneira de fazer política (a partir da valorização da arte
e da cultura do povo) e buscar a transformação social.

Sendo assim, o relativo sucesso dos CPC’s pode ser enxergado em inflexões,
tais como a promoção do debate causado por essa experiência, que envolve mais do
que a discussão em torno dos temas nacionais propostos, abarcando também o debate
teórico em torno das concepções diferenciadas de arte e cultura, o qual se intensifica
paradoxalmente após o fim dessa experiência, no período posterior ao Golpe de 64. É a
partir da segunda metade da década de 1960 que autores como Lukács, Sartre,
Benjamin, os quais já tinham algum eco entre a intelectualidade esquerdista brasileira,
ganham vulto nacionalmente. É nesse período que são lançados livros de autores como
Ferreira Gullar, por exemplo, tratando de temáticas levantadas pelas contradições
internas aos CPC’s.

Os CPC’s tiveram curta duração (1961-1964), e uma brusca interrupção, o que
em parte explica o insucesso em atingir 100% as massas. Em sua existência os CPC’s
concretizaram uma primeira etapa no que tange à politização de boa parte da classe
média e à formação de agentes qualificados artisticamente para provocar o debate
sobre as questões postas na realidade40. E nesse intervalo de três anos muito se fez
para alcançar os outros objetivos propostos.

Os Centros tiveram três diretores – Carlos Estevam Martins, Carlos Diegues e
Ferreira Gullar – e mantiveram relativa independência com relação a UNE, que

40 GARCIA, Milandre. “A questão da cultura popular: as políticas culturais do centro popular de cultura
(CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE)”. In: Revista Brasileira de História, vol.24, nº47. SP,
2004 (disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=50102-0188200400100006&script=sci_arttext ,
acesso em 28/09/2007), aponta algo que pode ser considerado parte da dialética dos CPC’s: “a prática
das ações político-culturais os levaria à constituição de uma teoria e não o inverso” (p.18). Ou seja, as
questões colocadas pela própria realidade brasileira impulsionavam a produção e difusão da arte e
cultura, assim como a produção teórica, o que indica que não havia qualquer projeto previamente
elaborado que não pudesse ser modificado...a realidade dava o tom.

emprestava seu prédio. Isso porque a organização tinha autonomia financeira e
administrativa, o que conferia à mesma a possibilidade de aceitar ou não as decisões
políticas tomadas na entidade estudantil (o financiamento, a princípio, vinha da venda
de ingressos para os espetáculos). Esta teve sua importância junto aos CPC’s, pois foi
através da mesma que se proporcionou a difusão maior das manifestações artístico-
culturais nestes produzidas, a partir do projeto UNE-Volante, que consistia em uma
comitiva composta por dirigentes da UNE e integrantes do CPC.

A 1ª UNE-Volante percorreu os centros universitários do país em 1962,

levando adiante suas propostas de intervenção dos estudantes na política
universitária e na política nacional, em busca das reformas de base, no
processo da revolução brasileira, envolvendo a ruptura com o
subdesenvolvimento e a afirmação da identidade nacional do povo. (RIDENTI,
2000:108)

Apesar do sucesso dessa 1ª caravana, que correu o país difundindo também suas
concepções de arte e cultura através dos espetáculos teatrais, da música, etc., as
divergências entre a direção da UNE e os integrantes do CPC começam a aparecer em
1963, quando toma forma a proposta da 2ª UNE-Volante. Dessa vez, o CPC se recusou
a ir junto da comitiva, o que fez com que a UNE contratasse artistas profissionais;
conseqüentemente, a 2ª UNE-Volante não teve a mesma repercussão41 da 1ª. A partir
desse episódio, a independência do CPC em relação a UNE começou a ser um
problema explícito, o qual foi ocasionado principalmente pela disputa da hegemonia no
movimento estudantil, que “favoreceu o surgimento de organizações político-partidárias
divergentes que contribuíram para o aparecimento de dissidências na UNE. Esse
quadro afetou o CPC quando a direção da UNE quis submetê-lo às suas decisões
políticas” (GARCIA, 2004:9).

É possível notarmos que a união da esquerda (incluindo os setores
progressistas) em torno da proposta de reformas de base, que traduziam um pouco dos
anseios progressistas, não foi suficiente para eliminar as diferentes perspectivas
presentes nos movimentos da época – que não eram poucas. E em determinado

41 Para aprofundamento dos frutos da 1ª UNE-Volante, como a criação da AP (Ação Popular) e a
instalação de 12 CPC’s em outros Estados, cf.: Ridenti, op.cit., capítulo II e Mittelman, op.cit., p.44.

momento as divergências vinham à tona, provocando rupturas que interferiam
diretamente na ação dos grupos de esquerda e na repercussão da mesma. Dentro do
próprio CPC, ao longo de seus três anos de existência, conviveram pelo menos duas
correntes, lideradas por Vianinha e Carlos Estevam Martins – este último expressou
seus posicionamentos, embasado no conceito de arte popular revolucionária, no
Manifesto do CPC, que a literatura “revisionista” utilizou posteriormente para criticar os
CPC’s, sem considerar as contradições presentes nos mesmos42.

As diferenças estéticas e políticas que atravessavam essas correntes giravam
em torno do mesmo dilema vivenciado anteriormente no Teatro de Arena, ou seja,
como tornar a linguagem utilizada nas manifestações artísticas atraente para o povo
historicamente excluído do acesso à cultura clássica – entendendo que a linguagem
não era a mesma nas diferentes manifestações. Carlos Estevam era da opinião de que
havia necessidade de baixar a sofisticação das obras, enquanto Vianinha diferenciava
sofisticação de qualidade; segundo ele não se deve baixar a qualidade artística das
obras para angariar participação. Nesse caso, porém, as divergências puderam ser
conciliadas, principalmente quando Ferreira Gullar assumiu a direção do CPC – o que
não significa que deixaram de existir, tendo essas, pelo contrário, se afirmado no
debate sobre a função social da arte, que ainda não se esgotou43. Permanece o desafio
colocado aos CPC’s, qual seja o de promover a junção da qualidade estética à eficácia
política, sem que esta eficácia signifique apenas uso instrumental da arte-cultura. Essa
tarefa se intensifica, ou melhor, se complexifica, com o avanço da indústria cultural,
tratado mais adiante.

Mesmo com todas as divergências interiores e exteriores aos CPC’s (algumas
presentes na própria origem dos Centros), a parte da esquerda que investiu nesse
projeto teve um saldo muito interessante, que ultrapassou de diversas formas a
vanguarda artístico-intelectual que se ocupava deles, se considerarmos o processo
como um todo. Além de “alargar” o eixo Rio- São Paulo no que tange à produção e
difusão de arte e cultura, com a construção do CPC em estados como a Bahia, por

42 Sobre esse debate cf.: Garcia, op.cit..
43 A arte proposta pelos CPC’s foi considerada por alguns de seus próprios membros como empobrecida de
qualidade estética por se configurar em instrumento político, por estar submetida à política. Cf. Ridenti, op.cit.,
cap.II.

exemplo, propiciada pela UNE-Volante, os Centros Populares de Cultura tiveram uma
vasta produção artístico-cultural baseada na pretensão de produzir arte e cultura
revolucionárias para politizar e transformar, a qual envolveu:

- teatro, com encenações como o Auto dos 99% - recentemente reproduzido no
documentário “Memórias do movimento Estudantil”, de 2007 - , o Auto do
cassetete e o Auto do não, que retratavam e criticavam a realidade brasileira de
baixíssimo acesso ao ensino superior, violência policial e atraso político,
respectivamente, além das peças “Brasil, versão brasileira” e “Os Azeredos mais
os Benevides”, sendo que esta última não chegou a ser encenada devido ao
Golpe Militar;

- produções cinematográficas, como o filme “Cinco vezes favela” – 1º filme
integrante do movimento do Cinema Novo patrocinado pelo CPC – e “Cabra
marcado para morrer”, de Eduardo Coutinho, o qual tem início com uma idéia
surgida durante a 1ª UNE-Volante, começa a ser filmado pelo CPC, é
interrompido com o Golpe Militar e finalizado de maneira independente por seu
cineasta na década de 80. Ambas produções eram pautadas pelos princípios de
independência e baixo custo, assim como pela necessidade de ir ao encontro do
povo;

- músicas, compiladas no disco “O povo canta”, na I Noite de Música Popular
(1962) e nos três Festivais de Cultura Popular (o 1º em 1962 e os outros em
1963);

- literatura de cordel;
- poesias editadas nas publicações Violão de rua I e II, as quais foram feitas em

parceria com a Civilização Brasileira.

Segundo Mittelman, as obras produzidas não eram vendidas de acordo com as
perspectivas comerciais dominantes, o que as diferenciava, visto que seu objetivo
último não era a busca pelo lucro, mas antes a promoção através da arte do debate
sobre temas concernentes à realidade nacional.

Violão de rua I e II constituía um volume extra da série de grande sucesso
editorial, entre 1963 e 1964, Cadernos do Povo Brasileiro, também publicada
em parceria com a Civilização Brasileira. A série compunha-se de obras
dedicadas a tratar de forma didática temas como o imperialismo, o
nacionalismo, a Igreja popular, a reforma agrária, o socialismo e a revolução.
Os livros e discos produzidos pelo CPC, que não eram vendidos em lojas,
passaram a ser distribuídos pela PRODAC, uma empresa com representantes
em várias partes do país, geralmente estudantes, que adotaram um sistema
alternativo de venda barata, sem o pagamento dos lucros na intermediação
comercial. (MITTELMAN, 2006:50, grifo do autor).

A PRODAC foi a editora dos CPC’s, criada a partir da 1ª UNE-Volante, com a finalidade
de distribuir os livros e discos produzidos pelos Centros, no que pode ser considerado
uma empreitada autônoma e independente que reforça o caráter predominante nos
CPC’s.

A partir do exposto podemos entender os Centros Populares de Cultura como
uma experiência privilegiada (e pioneira no Brasil) no que se refere à relação entre
movimentos sociais e cultura, visto que tanto a produção quanto a distribuição artístico-
cultural estavam, neste momento, intrinsecamente ligadas à ação de um grupo e às
transformações propostas pelo mesmo, no bojo do processo de enfrentamento político-
cultural da realidade que se colocava. A interferência dos CPC’s na cultura brasileira
não se limitou, porém, à influência em movimentos teatrais e cinematográficos (como o
teatro político e o Cinema Novo), tendo seus membros ativa participação também nas
experiências em andamento na época de alfabetização através do método Paulo
Freire44. Tal método propunha uma orientação pedagógica diferenciada, popular e
voltada para a transformação, se diferenciando da onda de “ensino bancário” que
atende às necessidades capitalistas de “progresso”, o que inclui o analfabetismo
funcional. Haddad (2006) esclarece um pouco a pedagogia de Paulo Freire:

44 Além dos CPC’s destacam-se nessa empreitada o Movimento de Cultura Popular do Recife (MCP, 1961), o
Movimento de Educação de Base da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB, 1961) e a Campanha de Pé
no Chão Também se Aprende, feita pela Secretaria Municipal de Educação de Natal, entre outros. Cf.: HADDAD,
Sérgio. Excerto do relatório preliminar de pesquisa “A situação da educação de jovens e adultos no Brasil”, de junho
de 2006, (correspondente ao item “Antecedentes históricos recentes”, disponível em:
http://tariacuri.crefal.edu.mx/campus/proyectos/proyecto1/file.php/1/documentos_rivas/Excerto_Rel_Prel_Brasil1.do
c , acesso em 28/09/2007).

Em linhas gerais, tais orientações pedagógicas se expressavam na idéia de que
os grupos populares detinham um saber particular, que era produzido a partir
das suas condições de vida, e que os processos educativos ocorriam a partir do
encontro entre esses saberes e os saberes dos educadores. Isto se dava
através do diálogo entre o educador e o educando tomando como base o
estudo da realidade local, voltados para a transformação das condições de vida
desta população empobrecida. A missão educativa destes educadores não se
realizava descolada de uma intencionalidade política. (HADDAD, 2006:1)

A partir de Bosi (2006), podemos compreender que a intencionalidade política
que pautava esse projeto de educação libertária está diretamente ligada à negação de
valores dominantes, como a alienação do homem com relação a si mesmo, aos outros
e à natureza: “a principal ação do projeto educador, tal como se revela admiravelmente
na teoria e na prática de Paulo Freire, é levar o homem iletrado não à letra em si (letra
morta ou letal), mas à consciência de si, do outro, da natureza” (p.341).

Schwarz (2005) afirma ainda que, no interior do método Paulo Freire há a
consciência, ou melhor, o entendimento de que analfabetismo e miséria são parte
constitutiva da dominação capitalista. Ambos podem ser entendidos como produtos e
reprodutores do capitalismo. Tendo essa filosofia como base, os CPC’s tiveram então
influência considerável na EJA (educação de jovens e adultos), sendo estes atualmente
reconhecidos como iniciativa de destaque em relatórios de pesquisa oficiais e em
pesquisas sobre educação de jovens e adultos45.

Logo, entendemos que essa curta experiência inovadora de organização político-
cultural foi influenciada e influenciou, direta e indiretamente, diversas correntes e
segmentos da esquerda brasileira, que se consolidavam e ganhavam força na década
de 1960. Podendo assim intervir na cena político-cultural nacional, tendo em vista uma
transformação – no limite uma revolução democrático-popular – do Brasil e
principalmente das condições de vida dos segmentos pauperizados da população.
Segundo Ferreira Gullar, nessa experiência

estavam os germes do novo cinema político brasileiro, do novo teatro político
brasileiro, da nova música popular de protesto, enfim, de todo esse movimento

45 Cf.: Haddad, op.cit. e GADOTTI, Moacir. “Estado e educação popular: educação de adultos em São Paulo
(Brasil)” (disponível em:
http://www.paulofreire.org/Moacir_Gadotti/Artigos/Potugues/Educação_Popular_e_EJA/Estado_educ_pop_1992.pd
f , acesso em 28/09/2007).

cultural que depois dominaria a atualidade artística do país (...). O movimento
de cultura popular foi, sem dúvida, um fenômeno inesperado no processo
cultural brasileiro: jovens intelectuais e artistas voltam as costas para os círculos
reconhecidos da vida cultural e artística, unem-se aos universitários numa
entidade de massa, vão para os sindicatos e as praças públicas buscar o
diálogo com o povo e nesse esforço recolocam para si e para os demais os
problemas da arte.46

A partir desse breve panorama, é possível compreendermos um pouco melhor o
“baque” ocasionado pelo Golpe Militar de 1964 na esquerda em movimento, assim
como nas manifestações artístico-culturais desenvolvidas por esta. É com a ditadura
militar (1964-1985) e toda a repressão e perplexidade vindas no bojo dessa “página
infeliz da nossa história” que findam os CPC’s, sendo nesse mesmo período que se
consolidam no Brasil fenômenos como a indústria cultural, que traz mudanças
consideráveis à cena política, econômica e cultural do país.

2.4 O Golpe contra-revolucionário e a interrupção dos CPC’s: “aqui tudo parece
que é ainda construção e já é ruína”47

Em 1964 instalou-se no Brasil a ditadura militar, a fim de garantir o capital e o
continente contra o socialismo. O governo populista de Goulart, apesar da vasta
mobilização esquerdizante a que procedera, temia a luta de classes e recuou
diante da possível guerra civil (...). O povo, na ocasião, mobilizado mas sem
armas e organização própria, assistiu passivamente à troca de governos. 48
(...) dormia / a nossa pátria mãe tão distraída / sem perceber que era subtraída /
em temerosas transações / seus filhos / erravam cegos pelo continente /
levavam pedras feito delinqüentes / erguendo estranhas catedrais (...)49

Segundo Castelo Branco, em seu discurso de posse proferido em 1964, a
tomada do poder pelos militares era um “remédio para os malefícios da extrema

46 Ferreira Gullar, artigo intitulado “Vanguarda e atualidade”, publicado no Correio da manhã. Apud POERNER,
Arthur. “O poder jovem”. 5ª ed.. RJ: Booklink, 2004 (p.184).
47 Verso da música “Fora da ordem”, de Caetano Veloso.
48 Schwarz, R. “Cultura e política, 1964-1969”. In: Cultura e política. SP: Paz e terra, 2005 (p.7).
49 Verso da música “Vai passar” de Chico Buarque.

esquerda”50. No entanto, essa esquerda “temida” pelas forças dominantes não reagiu
de imediato, de uma maneira efetiva ao Golpe Militar51; o que pode indicar tanto uma
perplexidade diante da reação do então presidente João Goulart (o qual se recusou a
resistir), quanto ausência de planejamento, compreensível no caso de uma virada a
qual, naquele contexto, surpreendeu a todos os que não acreditavam ser a mesma
possível. É a partir daí que a mudança político-cultural iniciada pelas vanguardas
esquerdistas é impedida de se completar; para a consolidação do capitalismo
monopolista no país, o estado ditatorial promove o espraiamento “da censura como
prática de relacionamento entre o poder e a cultura” (COUTINHO, 1999:58). Por água
abaixo vai o projeto revolucionário democrático- popular e se concretiza um violento
estado de exceção, o qual “acelerou a massificação, o consumismo, a generalização da
indústria cultural, o aumento da urbanização e das diferenças sociais, aprofundando o
desenvolvimento desigual e combinado da economia brasileira, sob o autoritarismo
político” (RIDENTI, 2000:244).

As vanguardas artístico-culturais assistem a então definitiva separação entre as
aspirações que guiavam suas práticas políticas e a massa da população, visto que,
dessa vanguarda, aqueles que possuíam alguma aproximação real dos movimentos
populares se tornaram alvo preferencial das prisões, torturas, etc.; além, é claro, dos
pobres que tinham alguma aproximação de organizações políticas e dos militantes
orgânicos dos movimentos sociais, duramente perseguidos e torturados52. Segundo
Schwarz (2005), os militantes de classe média que sofreram diretamente com as
arbitrariedades do regime militar foram aqueles que haviam criado vínculos efetivos
com os movimentos operários e camponeses e, até mesmo, com os movimentos de
oposição que se criavam dentro da área militar, de marinheiros e soldados. Ou seja, se
antes do Golpe Militar os movimentos de esquerda identificavam a necessidade de
união entre diferentes setores da classe média brasileira com os movimentos de
trabalhadores mais pauperizados, no período pós-64 foram “poupados” os intelectuais e
estudantes que não possuíam ainda tal ligação. A possibilidade de junção com as

50 Cf. o documentário “Jango”.
51 Cabe destacar que os estudantes partiram para as ruas no 1º de abril, dia posterior à madrugada do
Golpe, porém não tinham ainda a noção concreta do processo que estava em curso no país, nem armas
para enfrentá-lo. Cf.: Poerner, op.cit., p.187.
52 Situação exposta, p. ex., no filme “Cabra marcado para morrer”, de Eduardo Coutinho.

massas foi interrompida, conseqüência da violência na qual se pautava a autocracia
burguesa que se instalou no Brasil e essa derrota, combinada a dinâmica capitalista
imposta por esse processo – com toda a miséria humana e alienações conseqüentes –
, tornou fracassado o projeto popular e cultural em gestação53, o qual tinha um forte
caráter antimercantil.

No decorrer da ditadura que se instaurou no país, a esquerda aos poucos tenta
voltar à ativa de diversas formas. Uma destas foi a intenção de provocar a luta armada
no país. Figuras como Leonel Brizola, por exemplo, comandaram a constituição de
grupos guerrilheiros de resistência ao regime, através de apoio pessoal e financeiro. O
que, segundo Schwarz (2005), indica a superioridade prática do nacionalismo radical
sobre o marxismo-leninista estabelecido no país. Mas o exílio posterior e o acirramento
do autoritarismo violento, bem como a ausência de um planejamento cuidadoso por
parte dos grupos armados, permitiam que tais experiências fossem dizimadas com uma
facilidade indigerível54. Outro tipo de resistência consolidada em movimentação política
se configura no campo artístico-cultural, a partir de alguns ex-integrantes dos Centros
Populares de Cultura, que se reúnem no grupo Opinião e na Revista Civilização
Brasileira.

Os CPC’s têm fim em 64 com o ascenso dos militares e o incêndio provocado no
prédio onde se localizava a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE). Como
afirmamos acima, a UNE fortalecia então – apesar de uma ou outra divergência – o
projeto democrático-popular que era desenhado oficialmente através de Jango e extra-
oficialmente com os Centros Populares de Cultura. E tendo em vista que tal projeto de
nação confrontava os interesses da burguesia nacional e internacional ao ir de encontro
ao latifúndio e às grandes companhias de petróleo, por exemplo, se torna mais claro o
porquê do Golpe e do rechaçamento da entidade estudantil. Já estava em curso o
projeto conservador das classes dominantes, o qual passa a se fortalecer com o
incremento da propaganda anticomunista, baseada em ameaças e na “exploração
política da fé religiosa das massas humildes” (POERNER, 2004:186). Com o desfecho

53 Cf.: SCHWARZ, R. “Marco histórico”. In: Que horas são?: ensaios. SP: Companhia das letras, 2006.
54 Cf. PORFÍRIO, Pedro. “Confissões de um inconformista”. Memórias, volume 1. RJ: Fábrica do
Conhecimento, 2004. A partir da narrativa de suas experiências pessoais como preso político, o autor
contextualiza de maneira intrigante as tentativas de resistência pós-64.


Click to View FlipBook Version