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Published by leonanfernandesc, 2024-05-14 01:25:50

O Passaro Azul - Maurice Maeterlinck

O Passaro Azul - Maurice Maeterlinck

BIBLIOTECA DOS PRÊMIOS NOBEL DE LITERATURA patrocinada pela A C A D E M IA SU EC A e pela FU N D A Ç Ã O N O B E L


BIBLIOTECA DOS PRftMIOS NOBEL DE LITERATURA PATROCINADA PELA ACADEMIA SUECA E PELA FUNDAÇÃO NOBEL Prêmio de 1911 MAURICE MAETERLINCK (BÉLGICA) EDITORA OPERA MUNDI Rio de Janeiro 1971


MAURICE MAETERLINCK PÁSSARO AZUL Tradução de CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Estudo introdutivo de FRANÇOIS ALBERT BUISSON Ilustrações de TOUCHAGUES EDITÔRA OPERA MUND1 Rio de Janeiro 1971 O


Titulo do original francis: k/o iiea u bleu Todos os direitos desta edição (introdução, prefácios, notas, tradução, ilustrações e demais características) pertencem à EDITÔRA OPERA MUNDI


"PEQUENA HISTORIA" DA ATRIBUIÇÃO DO PRÊMIO NOBEL A MAURICE MAETERLINCK Pelo DR. GUNNAR AHLSTRÕM Membro do SVENSKA IN STITU TET


-J^^l os bons tempos, antes do impetuoso aparecimento da dinamite, as recompensas literárias consistiam apenas em beleza, glória e poesia: distinções honoríficas, coroas de louro, violetas de ouro ou ainda solenes medalhas acadêmicas. Se alguma remuneração mais substancial as acompanhava, era colocada com discrição numa bolsinha, ou figurava anonimamente na lista civil do rei. Em dinheiro só se falava com desdém, mesmo quando o beneficiário estava dolorosamente cônscio de que ele existe. Desse ponto de vista, como de tantos outros, o Prêmio Nobel, tãjo explosivo e espetacular quanto a invenção que permitiu criá-lo, trouxe algo de nôvo. O dinheiro — coroas suecas ou pilhas de francos-ouro — começou a tilintar, sem respeito humano, à vista e ao ouvido de todo mundo, misturando um som metálico aos ritmos feiticeiros e às meditações do mundo espiritual. Época nova, em que o capitalismo do século X IX remete com toda a franqueza um cheque, lembrando assim a onipotência triunfal de suas contas bancárias. Eis que poetas e sábios se vêem metamorfoseados em colegiais de olhos bri9 i i


Ihonlfíi de csperanca c apreensão, nn tensa expectativa da dlstribuIçAo nnunl dc prêmios. Ano após ano, o espetáculo mi* rrprtc, fts vêzes com variações um tanto sensacionais. É natural que nflo receba sòmente aplausos, c que também suscite comentários irônicos. "A rstnçfio dos prêmios”, tal é o titulo do artigo publicado no Gmitoin, em l 9 de dezembro de 1910, com a assinatura de René Doumic, cujo espírito cáustico ainda não se tornara insósíío pelo exercício das funções de secretário perpétuo da Academia Francesa, que êle iria assumir mais tarde. O autor não esconde que êste sistema de prêmios, de que a publicidade se apossou no decorrer dos últimos anos, ameaça a integridade da literatura. Vigiar com o rabo do ôlho, para que não escape a oportunidade de uma láurea, é coisa que só pode ter efeito funesto, para quem escolha a profissão de homem de letras: "Quando aspiramos aos sufrágios de um júri, passamos a ficar em guarda contra uns tantos excessos. O desejo do prêmio é o comêço da prudência.” Sob os auspícios do Prêmio Nobel, a literatura mundial se engaja num rumo propício aos talentos ajuizados, bem pensantes e inofensivos. Passou a época dos gênios independentes. No mundo escolar, há muito tempo se discute a prática da atribuição de prêmio. O verão é tradicionalmente a estação dêles. Habituamo-nos agora, no mundo literário, a tudo esperar da estação das fôlhas mortas e da neve. Os rostos dos laureados estão sulcados de rugas, suas cabeleiras são prateadas. As crianças dão lugar a alunòs-modêlo, de cabeça encanecida. "O s prêmios foram declarados impróprios para crianças. Mas são excelentes para pessoas grandes. Não há limite de idade. O último em data dos laureados, o Sr. Paul Heyse, é, ao que me dizem, um bonito velho. Entramos na estação em que se concedem prêmios a pessoas sérias: é o comêço do inverno. Estação que começa quando acaba a dos crisântemos. "D o céu chovem cruzes que não escolhem os ombros”, diz alguém, num dos mais belos dramas do Sr. François de Curei. Nas próximas semanas, choverão coroas, mas para cabeças escolhidas.” 10


Em princípio, o comentador irônico certamente tinha razão. Seu único êrro era ser demasiado amável com relação ao Prêmio Nobel, e exagerar-lhe a importância, vendo nêle um fator determinante da evolução literária mundial. Na realidade, profissionais da pena e autores inspirados prosseguiram nas rotas que êles mesmos haviam escolhido, soberanamente desinteressados da probabilidade de obter a gloriosa e sonante distinção. A grandeza se estabelecia independentemente da recompensa de nôvo gênero, a pêso de ouro. Em suma, não se tratava absolutamente de candidatos a ostentarem seus próprios méritos. Bem pelo contrário, era o Prêmio Nobel que saía à cata de candidatos indiscutíveis. O loureiro e seus cheques procuravam uma fronte a ornar, e algibeiras a encher. A estação dos crisântemos, que precedeu a distribuição dos prêmios de 1911, transbordou de reflexões gerais em tôrno de candidatos possíveis e impossíveis. O debate foi particularmente vivo na França; em meios mais ou menos periféricos, insistiu-se curiosamente na discussão de um candidato que se tornara bastante conhecido: Henri Fabre, o “Homero dos insetos”. Publicaram-se artigos comoventes sôbre a precária situação econômica do digno ancião e sôbre o dever de assisti-lo com o Prêmio Nobel; um pronunciamento mais caloroso trazia a assinatura de Edouard Herriot, prefeito de Lyon. Os ecos dêsse movimento chegaram à Suécia, e reputado professor de literatura nêle encontrou matéria para um artigo. Ao mesmo tempo em que rendia homenagem ao dom de observar a natureza e à ciência entomológica, permitia-se formular certas dúvidas sôbre os méritos literários e artísticos do candidato, cujos Souvenirs Entomologiques acabavam de ser publicados em sueco. O fato ê que o nome de Henri Fabre fôra lançado em 1909. Não entrará ainda, porém, nos registros do Nobel. Nenhum pedido de inscrição em seu proveito fôra enviado, nem no ano de Paul Heyse nem no ano que seria de Maurice M aeterlinck. Ao expirar em 30 de janeiro de 1911 o prazo de inscrição previsto, vinte e cinco candidatos, entre os quais êle 11


n lo figurava, tinham sido propostos à Academia Sueca e à ttua comissão Nobcl. Dc modo geral, a safra era boa. Escritores de grande clasfc viam renovadas suas candidaturas: Jaroslav Vrchlicky, de Pragd; Georges Souris, de Atenas e Constantinopla; Salvador Rueda, dc Madrid e Havana; o italiano Antonio Fogazzaro, que muitas vêzes se colocara em ótima posição, fôra de nôvo indicado por aquêle mesmo professor sueco de línguas românicas que, antes, trabalhara tão eficazmente em favor de Mistral. O autor de Daniele Cortis e de 11 Santo, porém, morreu pouco tempo depois da indicação, sendo assim eliminado do escrutínio em que, dadas as preferências manifestadas por ocasião de outras votações, provàvelmente teria sido objeto de consideração. Desta vez, a frente britânica estava dividida: o formulário da Sociedade de Autores, de Londres, serviu para recomendar diferentes candidatos. A começar pelo presidente da Sociedade, Thomas Hardy, que propôs John Morley, secundado nisto por vinte e quatro membros, entre os quais Lord Avebury, Mackenzie Wallace, Arthur Pinero, Hall Caine e Augustin Birrell. Note-se: o nome do próprio Thomas Hardy, bem como, aliás, o de Henry James figuravam igualmente na lista, mas seus partidários oficiais não eram muitos nem poderosos. Havia também um novato, George Bernard Shaw, que iria tornar-se na sua hora, em 1925, um dos maiores ornamentos dos anais nobelianos. Fôra recomendado por uma das sumidades literárias e científicas da época: Gilbert Murray, ilustre professor de grego em Oxford, já célebre pela sua edição e tradução de Eurípides. Como de costume, são interessantes as propostas francesas. Anatole France é de nôvo recomendado por Paul Hervieu. “Tenho a honra de reiterar-vos a segurança de que o Sr. Anatole France, hoje com 66 anos, ocupa desde longo tempo situação magistral nas letras francesas. A pureza de seu estilo, a dignidade de sua obra, sua erudição incomparável e sua sabe12


doria infinitamente penetrante o situam na familia dos maiores escritores que, através dos tempos, constituem o panteão do pensamento. Em horas de grave dissensão política e intelectual em minha pátria, vi como polêmicas e paixões adversas, que nada respeitam, dispensavam consideração à bela e nobre mestria de Anatole France, e — embora êle participasse da ação — o colocavam acima dos debates. No ano passado, fui testemunha das ovações entusiásticas com que o saudaram os estudantes, exprimindo assim a homenagem e a fé da juventude pensante no velho mestre, cuja popularidade não tem rival entre êles. O coração das jovens multidões só raramente tem dêsses impulsos; procuro em vão entre os chefes da literatura francesa, desde a morte de Victor Hugo, desde a morte de Renan, quem mais conquistou a alma preciosa dos estudantes, senão Anatole France.” France é, porém, livre-pensador, e isso o torna suspeito aos olhos de uma assembléia tão conservadora como a Academia Sueca de então. Não é menos verdade que, mesmo nesse meio, impressiona a coragem com que êle lutou pela justiça e pela honestidade em sua pátria. A falta de disposição favorável a seu respeito não impede que se lhe estenda a coroa de louro, modesta embora, em nome do ideal. Lê-se em um dos comunicados da Comissão, que “êle mostrou grande coragem no caso Dreyfus, dando prova, assim, de um idealismo ético, tantas vêzes ausente dos trabalhos puramente literários”. Naquele ano, porém, a França oficial, a França da Academia Francesa, tinha um candidato privilegiado, que empurrava os demais para segundo plano: Pierre LotjH Mobilizaramse realmente tôdas as fôrças em seu favor, e reuniu-se, mesmo, importante documentação. Dão que pensar os algarismos: em quarenta imortais, dezenove assinaram o documento de inscrição de sua candidatura, notando-se entre êstes Jules Lemaitre, Émile Faguet, Raymond e Henri Poincaré, René Doumic, Paul Eourget, Henri Lavedan e Maurice Barrès. Segue-se a relação das obras do candidato, realçada com especificação de cifras atingidas pelas edições, tôdas imponen13


tcs; cm certos casos, no do Pôchcurs d'Isl.nndc por exemplo, ficase impressionado com a menção complementar: "mais de duzentos mil exemplares ilustrados", Era como se as grandes tiragens caminhassem diretamente para o mais volumoso dos prêmios. Juntaram-se ao dossier estudos elogiosos de Jules Lemaitre, Paul Bourget, René Doumic e Henri Lavedan, e — cálculo cheio de sagacidade — o conjunto finaliza com declarações do próprio Pierre Loti. Cita-se notadamente o elogio de Octave Feuillet, proferido por Loti ao ingressar na Academia Francesa em 1892; nêle, o escritor repele o naturalismo e confessa enfàticamente sua fé no ideal. Êste dossier é notàvelmente bem provido, abrangendo mais de 60 páginas in~folio, no volume dos documentos de instrjução. É o caso de perguntar por que motivo a irmã mais velha da Academia Sueca terá manifestado tamanho excesso de zêlo e coligido tão volumosa documentação. Pierre Loti, por si mesmo, já seria candidato bem forte. Haveria razão especial para êsses esforços exagerados? Pretendia-se a todo custo lançar um candidato invencível? Nesse caso, tal política seria ditada por uma espécie de descontentamento com relação às premiações de anos anteriores? A França não recebera prêmio desde a meia-recompensa outorgada a Mistral, em 1904. Era época de nacionalismo, e não se brincava com o prestígio da pátria. Tôdas as hipóteses são válidas. Outra carta, vinda da França, fornece talvez uma indicação sôbre o estado de espírito dos círculos acadêmicos. Frédéric Masson, historiador de Bonaparte e antigo bibliotecário do Ministério da Guerra, indica Ernest Lavisse com arrebatamento digno dêsses títulos, “O abaixo-assinado, Frédéric Masson, da Academia Francesa, tendo antes, por duas vêzes, exposto à Comissão Nobel da Academia Sueca os títulos que habilitam o Sr. Ernest Lavisse, da Academia Francesa, ao grande Prêmio Nobel de Literatura, não poderia senão reportar-se a sua proposta fundamentada e acompanhada de obras e de outros documentos nos quais ela se apoiava.” Não lhe seria possível expedir de nôvo 14


cs 50 volumes que constituíam a obra do sr. Lavisse e que, afinal de contas, tornavam sua candidatura pelo menos discutível. Além disso, a hostilidade da Comissão Nobel da Academia Sueca, que, para três alemães, se comprouve em só distinguir um francês, afastando deliberadamente tôdas as candidaturas patrocinadas por membros da Academia Francesa — como as de Albert Sorel, Ernest Lavisse e Anatole France — parece demasiado franca para que nos esquivemos a denunciá-la; o abaixo-assinado, ao mesmo tempo em que se comprazerá em apreciar a competência dos juizes e o alcance de seus julgamentos, terá o cuidado de dizer por que razões declina da humilhação de apresentar candidatos franceses, quando de antemão todo francês é afastado, “a menos, entretanto, que se chame d’Estournelles de Constant ou Arnaud, tabelião em Luzarches ( Seine-et-Oise). Risum teneatis Nessa atmosfera carregada de cólera e de espírito polêmico, a candidatura de Maurice Maeterlinck surge à guisa de manifestação extremamente pacífica. É lançada em cinco linhas, pelo Barão de Bildt, Ministro da Suécia em Roma e promotor da concessão do Prêmio a Carducci. Maeterlinck, entretanto, não podia ser considerado novato nos debates nobelianos. A candidatura do autor de Le Trésor des Humbles e de Monna Vanna já fôra, de maneira relativamente solene, lançada vêzes bastantes para tornar-se familiar e para adquirir essa pátina de ancianidade que se mostrara tão preciosa ao longo das discussões. Já em 1903, seu nome fôra citado por Anatole France, em terceiro lugar, seguindo-se aos de Tolstoi e Georg Brandes. Por ocasião do Prêmio de 1904, F. Cumont e H. Pirenne, professôres de História da Faculdade de Filosofia e Letras, da Universidade de Gand, enviaram uma carta em que se lia a seguinte altiva afirmação: “Os abaixo-assinados estão convictos de se não terem deixado cegar por um patriotismo pouco esclarecido.” Só em 1908, entretanto, se desencadeou a grande ofensiva. Teve curioso prelúdio político, refletido em um artigo característico, publicado em junho pelo Gil Blas: 15


"A Câmara dos Deputados da Bélgica deu agora ao nosso Palais-Bourbon uma bonita lição de mentalidade, embora pareça que deva ficar no terreno da teoria. O deputado Paul Janson sugeriu que o Parlamento belga propusesse oficialmente a candidatura, ao Prêmio Nobel dêste ano, dos grandes escritores Maeterlinck e Verhaeren. A intervenção parlamentar, aparentemente estranha, foi muito bem justificada pelo autor da iniciativa: observou êle que não se tratava apenas da parte do Prêmio Nobel destinada sòmente à literatura, mas também do Prêmio da Paz. A êsse título, afigura-se que as próprias nações têm o direito e o dever de intesrvir solenemente. ) Ao que se afirma, o presidente da Assembléia prometera estudar a insólita questão, mas teria logo chegado à conclusão de que ela se situava fora do campo da competência parlamentar. Coube, pois, à Academia Livre da Bélgica, no decurso do verão, tomar a iniciativa, redigindo magnífica mensagem impressa de quatro páginas, repleta de nomes mais ou menos célebres. Esta petição, datada de 20 de agôsto de 1908, e assinada por dois secretários da entidade, J. des Cressonières e L. Hennobicq, foi remetida a Estocolmo. Sua argumentação esclarece de maneira interessante a situação histórica e a escala dos valores literários da época. "Usando da faculdade que o regulamento do Prêmio Nobel concede às sociedades literárias e às academias de organização análoga à de Estocolmo, a Academia Livre da Bélgica tem a honra de propor a vossos sufrágios, para o Prêmio de Literatura, a candidatura de dois belgas, os Srs. Émile Verhaeren e Maurice Maeterlinck. “Agrupando em seu seio algumas das individualidades que melhor representam o movimento intelectual independente na Bélgica, acreditou ela que lhe cabia assinalar à vossa atenção os dois artistas que, pelo juízo unânime de seus membros — escritores, poetas, pintores, escultores, dramaturgos, homens 16


públicos, sociólogos, jurisconsultos, oradores — sintetizam a atividade intelectual de que a Bélgica é teatro, e o esforço que ela desenvolve para reassumir sua posição na cultura européia. “Funestas conseqüências históricas e longo domínio do estrangeiro haviam por assim dizer destruído, no decorrer dos três séculos anteriores a 1830, a civilização original de um povo que desempenhou antigamente papel capital na evolução do mundo, em especial no tocante às artes. “78 anos de paz e prosperidade despertaram essa civilização, e, num país que havia quase esquecido seus escritores originais, viu-se aparecer uma plêiade de poetas, romancistas, ensaístas, dramaturgos e historiadores, que contribuíram poderosamente para restituir-lhe a consciência de seu papel e de seus destinos. “Cumprido êste primeiro dever, alguns dentre êles, compreendendo que uma cultura, por mais profundamente nacional que seja, não pode viver e desenvolver-se se não se articular com o movimento universal dos espíritos, puseram seu empenho em ligar a literatura nova do país, e a sensibilidade que ela exprime, à grande civilização internacional dos povçs ocidentais. Tiveram o legítimo orgulho de crer que poderiam trazer uma contribuição ao espírito europeu em perpétua formação. “Situada nos confins da França e da Alemanha, velho país-fronteira em que as culturas germânica e latina se encontram e se penetram, a Bélgica parece estar em condições particularmente felizes para operar a síntese dos dois elementos principais da civilização ocidental. “Alguns de seus escritores mais conspícuos exprimem instintivamente, sob forma francesa, as reações da sensibilidade germânica, e, reciprocamente, em língua flamenga, as da intelectualidade latina. É a contribuição aa Bélgica nova à cultura da Europa, contribuição considerável, e que parece fadada a tornar-se mais considerável ainda. 17


“Ora, são os Srs. Êmile Verhaeren e Maurice Maeterlinck que melhor representam na literatura belga esta tendência para o universal. “O primeiro, ao renovar de certo modo as fontes da poesia francesa, não se satisfez com celebrar em imagens imprevistas e magníficas o encanto presente e a glória passada da terra pátria, ou com exprimir, sob a forma do lirismo pessoal mais sincero e mais ardente, as inquietações e esperanças de uma geração que se deixou embriagar, com o mesmo ardor, pelo mais sombrio pessimismo e pela mais ingênua confiança no futuro; com tôdas as fôrças de sua alma, quis participar das grandes correntes generosas que ijmpelem o mundo para seus destinos, e dos tormentos eternos do espírito humano. A êsses pensamentos, a essas sensações, soube aplicar ritmos novos, e sua obra, traduzida para muitas línguas, é considerada, na própria França, uma das expressões capitais da poesia contemporânea. Disso dá testemunho a homenagem unânime da jovem geração poética. “A obra de Maurice Maeterlinck não alcançou menor repercussão. Tem igualmente origem na expressão de uma sensibilidade que o escritor deve a seu povo e a sua raça. Ninguém exprimiu melhor o que há de místico na alma belga, mas êsse misticismo, bem cedo e melhor do que por um simples desejo ou por uma prece, êle o coordena com o resto do mundo. “De Novalis a Emerson, de Swedenborg a Carlyle, de Marco Aurélio a Guyau, Maeterlinck procurou os iniciadores do seu pensamento entre os espíritos mais profundos e mais raros, que acrescentaram algo ao patrimônio moral da humanidade. “É lícito dizer, já agora, que podemos incorporá-lo a essa falange. Seu espírito, a princípio inquieto e sombrio, elevou-se pouco a pouco a uma serenidade goethiana. Formulando de certo modo a mística do racionalismo, é daqueles que tentaram, com o maior êxito, ligar a moral científica e naturalista da nossa época ao sentimento religioso. 18


“De resto, a influência de Maeterlinck foi maior ainda lôbre o público cosmopolita do que sôbre o público do seu pais. Sr f xiste hoje um escritor europeu, êste é certamente o autor •Ir lx Trésor des Humbles, La Vie des Abeilles e Pelléas et Méllsande, “Obras como as dêstes dois famosos escritores contribuem poderosamente para o progresso das idéias e o avanço da civilização moral. “Eis porque nos pareceu que poderiam ser alinhadas entre Dl gue Nobel procurou estimular; eis porque as submetemos confiantemente à vossa apreciação.” Êste pronunciamento maciço conferiu densidade à candidatura de Maeterlinck nos anos seguintes. Na Suécia, seu nome era conhecido havia muito. Lugné Poe, no decurso de uma excursão pela Escandinávia, em 1894, representara em Estocolmo La Princesse Maleine; depois, outras peças de Maeterlinck alcançaram sucesso na capital sueca. Além disso, conquistara fie um grande admirador na pessoa de August Strindberg, que lhe prestara atenção aos dramas desde sua permanência em Paris, e depois se entusiasmara pelo volume de ensaios Le Trésor des Humbles.' Igualmente nos círculos literários de jovens, sua obra era acompanhada com admiração. Na Academia, as opiniões permaneceram por muito tempo divididas, mas pouco a pouco a simpatia triunfou. O Secretário perpétuo mudou de opinião, e a decisão final foi acolhida com aclamações pelo grande público. Maeterlinck achava-se na Itália, quando soube que fôra distinguido; respondeu com uma semana de atraso à comunicação da Academia: “É a mais alta glória que pode caber a um escritor. Não preciso dizer-vos até que ponto me sensibiliza, nem até onde vai meu reconhecimento. As palavras, no caso, servem mal o pensamento.” A princípio, manifestara intenção de assistir à solenidade de 10 de dezembro, porém mais tarde, por telegrama, informou que adoecera. Circulou a versão de 19


que o escritor atlético, mas de uma timidez feroz, à medida que se aproximava o grande dia, foi sendo tomado de pânico ante a perspectiva de ficar exposto aos olhares de um público numeroso, e seria essa a verdadeira razão de sua ausência. O Prêmio foi entregue ao Ministro da Bélgica em Estocolmo, Sr. Wanters, que, no banquete subseqüente, se esforçou por transmitir uma impressão pessoal do seu compatriota e da terra flamenga que o vira nascer. Haviam dito, realmente, que Maeterlinck de modo algum se sentia lisonjeado pelo fato de o considerarem belga; certo jornal parisiense adiantara, mesmo, que êle recusaria o Prêmio, se lhe fôsse oferecido nessa qualidade nacionkl. Talvez seja lícito admitir razões sentimentais para a eloqüência calorosa do diplomata e para a sua pintura evocativa da região de planuras, largos céus e velhas cidades, à margem do Escalda. Descrição que termina com esta nota pessoal: “Foi nesse meio que Maeterlinck nasceu, foi lá que êle se desenvolveu, e de lá que extraiu as fôrças de seu talento e de seu gênio. Foi lá também que o conheci, e que vi, alinhadas no fundo de um jardim coberto de ílôres, as colméias junto às quais êle ia estudar e descrever a vida das abelhas. Se a literatura francesa se orgulha, a justo título, dos sucessos de Maeterlinck, grande parte dêles cabe à sua Pátria. Ao conferir-lhe o Prêmio Nobel de literatura, a Academia Sueca não fêz senão recompensar a forma francesa de um pensamento flamengo.” 20


DISCURSO DE RECEPÇÃO PRONUNCIADO POR C. D. AF WIRSÉN POR OCASIÃO DA ENTREGA DO PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA A MAURICE MAETERLINCK NO DIA 10 DE DEZEMBRO DE 1911


Slre, Excelências, Minhas senhoras, Meus senhores, Muitos escritores foram recomendados êste ano, por vozes da mais alta competência, como candidatos ao Prêmio Nobel. E muitos dêles apresentavam qualidades de tal modo excepcionais, que se tornou extremamente difícil pesar-lhes os méritos respectivos. Conferindo hoje esta distinção a Maurice Maeterlinck, indicado já várias vêzes, e altamente considerado, a Academia Sueca levou em conta, antes de tudo, a profunda originalidade, a marca singular do seu talento de escritor, tão diferente das formas usuais aa literatura; o caráter idealista dêsse talento se eleva a uma rara espiritualidade, e faz vibrar em nós, misteriosamente, cordas delicadas e secretas. Não é por certo natureza banal, a dêste homem singular, que ainda não fêz cinqüenta anos, e que, como escritor, segue o seu próprio caminho, inteiramente pessoal, possuindo a maravilhosa faculdade de ser ao mesmo tempo místico, profundo e popular pelo encanto da expressão. Lendo-o, acode-nos às vêzes a palavra de Sófocles: "O homem é apenas uma sombra ligeira", ou a de Calderon, ao afirmar que a vida é sonho; entretanto, Maeterlinck sabe reproduzir, com afôrça de um visionário, as sutis nuanças de nossa vida moral. Faz ressaltar, a um toque 23


de vara de condão, aquilo que, nas circunstâncias ordinárias, guardamos em estado latente, e integra profundezas secretas de nosso ser; reconhecemos que evocou aspectos do nosso ser mais intimo, aquilo que de ordinário permanece oculto em misteriosa penumbra; e o [az em geral, sem cair na afetação e na frivolidade, com segurança e finura clássicas jamais desmentidas, por mais vagos que sejam às vêzes — como um brinquedo de sombras chinesas — a ação e os cenários, conforme a natureza tão sutil de sua poesia. Mesmo quando fabulosa e fantástica a narração, a réplica não deixa de ter sua agudeza. Como que ao som da música em surdijia, o poeta nos introduz em regiões insuspeitadas pelo nosso inconsciente; sentimos, com Goethe, que Alies Vergángliche Ist nur ein Gleichniss.1 Pressentimos que nossa verdadeira morada fica muito longe, bem para lá do limite de nossas experiências terrestres. Entretanto, mal chegamos a transpor êsse pressentimento em Maeterlinck, embora sua poesia nos desvende perspectivas de longínquo inacessível. Maurice Maeterlinck nasceu em 1862, na cidade de Gand no seio de uma família bastante próspera, ao que parece. Estudou no colégio de jesuítas de Santa Bárbara, que êle não apreciava muito, mas nem por isso a escola conventual deixou de influir fortemente em sua evolução intelectual, orientando-o para o misticismo. Concluído o bacharelado, em obediência ao desejo dos pais estudou Direito e estabeleceu-se em Gand como advogado. Só teve êxito, porém — escreve o seu biógrafo Gérard Harry — em demonstrar inaptidão para a carreira judicial, graças aos "abençoados defeitos" que tornam um homem absolutamente desajeitado para as chicanas forenses e as defesas públicas no Tribunal. As letras atraíam-no, e a atração aumentou em conseqüência de uma estada em Paris, período em que travou relações com certo número de escritores, entre os 1 "Todo transitório / Ê apenas símbolo.” (Final da 2* parte de Fausto de Goethe.) 24


quais Villiers de l’Isle-Adam, que, segundo paírece, exerceu 1/ntnde influência sôbre seu espírito. Tamanha foi a sedução </<• Paris sôbre Maeterlinck, que ê/e passou a residir lá em 1896. Entretanto, como residência fixa, a grande metrópole convinha pouco a êsse espirito solitário e contemplativo. E certo que ia lii de tempos em tempos, para conversar com os seus editores; no verão, contudo, preferia ficar em Saint-Wandrille, antiga tibadia normanda, adquirida pelo poeta, que a salvou das ameaços do vandalismo; no inverno, refugiava-se de bom grado na vila florida de Grasse, sob clima suave. A primeira obra publicada por Maeterlinck foi um magro volume de versos, intitulado Serres Chaudes. Èstes poemas eram mais atormentados do que se podia esperar de um homem naturalmente calmo e meditativo. No mesmo ano (1889), publica um drama fantasista, La Princesse Maleine. É um texto sombrio c terrifico, voluntariamente monótono graças a numerosas repetições destinadas a sugerir uma emoção duradoura; não é menos verdade que reina um encanto feérico nesse pequeno drama, escrito com um vigor que não teríamos suspeitado no autor de Serres Chaudes; de qualquer modo, trata-se de importante obra de arte. La Princesse Maleine foi louvada em têrmos entusiásticos por Octave Mirbeau, no Figaro; a partir de então, seu autor deixou de ser um desconhecido. Daí por diante, Maeterlinck escreveu tõda uma série de composições dramáticas. A maior parte se desenrola em épocas que não saberíamos determinar, e em lugares que não figuram em qualquer carta geográfica. Os cenários são habitualmente um castelo feérico, com passagens subterrâneas, um parque cheio de belas sombras, um farol, e, ao longe, o horizonte marinho. Nessas regiões melancólicas, movem-se quase sempre figuras tão veladas como a própria concepção. Porque, em muitas de sua§ obras cênicas mais perfeitas, Maeterlinck é simbolista e agnóstico. Entretanto, não se deve concluir daí que seja materialista. Pressente, pelo instinto e pela imaginação poética, que o homem não pertence unicamente ao mundo sensível, e diz expressamente que a poesia não satisfaz se não nos leva a perceber um reflexo da realidade mais profunda e secreta, que é a fonte 25


dos fenômenos. As vêzes essa profundeza lhe aparece de maneira obscura e nublada, como conjunto de potências ocultas de que os homens fàcilmente se tornam vítimas, e atribui então à fôrça oculta uma onipotência fatal, que aniquila nossa liberdade. Em muitas criações dramáticas, porém, suavizou essa concepção, deu maior relêvo à esperança e misturou menos as influências místicas à realidade. A idéia predominante em suas melhores obras é que devemos procurar para lá da reflexão, para além do raciocínio discursivo, a vida espiritual verdadeira, íntima e profunda do homem, que se manifesta precisamente em seus atos mais espontâneos; são êsses que Maeterlinck excele em representar com a fôrça de imaginação e o espírito sonhador, quase sonâmbulo, de um iluminado, mas com a precisão de um perfeito artista; entretanto, a expressão é estilizada: a simplificação da técnica é levada tão longe quanto possível, sem prejudicar a inteligência do drama. Um deísmo mais acentuado teria tido influência feliz em sua obra dramática, que assim lembraria menos as sombras chinesas; nem por isso, entretanto, devemos diminuir ou subestimar suas produções geniais. Â semelhança de Espinosa e de Hegel, que eram grandes pensadores, embora não deístas, M aeterlinck é grandíssimo poeta, se bem que sua concepção das coisas e da vida não seja a de um deísta. N o fundo, ê/e não nega coisa alguma: apenas indaga o princípio da existência oculto nas trevas. Aliás, não será o agnosticismo desculpável até certo ponto, se nenhuma razão humana saberia formular uma noção exata da origem da existência, noção que, sob muitos aspectos, resulta apenas de pressentimentos e da fé? E se as personagens de Maeterlinck são às vêzes sêres de sonho, isso continua sendo algo de muito humano, pois, como escreveu Shakespeare com tôda a razão: . . . W e are such stuff As dreams are made of, and our little life Is rounded with a sleep.1 l“ . . . Somos feitos da mesma gaze / que nossos sonhos; nossa curta vida / rodeia-se de sono." (The T empe st, IV ato, I cena.) 26


De resto, Maeterlinck não é de modo algum 'polemista; em quase tôdas as suas obras, sente-se a exalação de uma alma terna, às vêzes melancólica, e por êsse motivo êle suplanta, em beleza poética, muitos escritores cuja concepção do mundo talvez se apóie demais na noção de personalidade. Maeterlinck 6, sem nenhuma dúvida, um homem que sentiu e pensou profundamente. Devemos reverenciar-lhe a sêde sincera de verdade, e ter em mente que existem para êle uma lei e um direito interiores, os quais, invariàvelmente. comandam e orientam os homens, num mundo em que tantos fatores parecem estimular a injustiça. Se, depois de vencer tantas etapas de desenvolvimento interior, êle fala às vêzes em ”gravitação” como fôrça que domina o munao, e parece querer substituir a religião por ela, não será grande nossa margem de êrro se interpretarmos, na linguagem simbolista, a palavra ”gravitação” como expressão simbólica dessa lei de gravidade, ético-religiosa, por assim dizer, a que tudo obedece. Falta-me tempo para enumerar tôdas as obras de Maeterlinck; contudo, parece conveniente lembrar muito de passagem, nesta ocasião solene, as mais características. O poder implacável e misterioso da morte raramente foi traduzido de maneira mais pungente do que em sua pequena peça L’Intruse (1890). Entre todos os que cercam a mãe enfêrma e esperam o seu restabelecimento, o velho avô cego é o único a escutar passos furtivos e resváladiços no jardim, onde os ciprestes começam a agitar-se e o rouxinol emudece; sente passar um sôpro glacial, e afiar-se uma foice; percebe que entrou alguém invisível às outras pessoas, e veio sentar-se entre elas. Ao bater a meia-noite, ouve-se um ruído, como se alguém se levantasse ràpidamente e saísse. N o mesmo instante, morre a doente. O hóspede inevitável tinha passado por ali. Com que fôrça o autor nos faz assistir a êsse presságio, e de que meios reduzidos lança mãol Ainda mais profundamente melancólico é talvez o pequeno drama Les Aveugles (1890). em que paira o mesmo pressentimento de desgraça. Os cegos acompanharam seu guia, um velho padre doente, e eis que em plena floresta julgam tê-lo per27


dido. Nã realidade, é/e continua no grupo, mas está morto. Pouco a pouco adquirem a noção dessa morte. Como voltarão agora para o asilo?, Em Pelléas et Mélisande e Alladine et Palomides, é o poder funesto do amor, em diferentes variações, que Maeterlinck descreve com imaginação cheia de fantasia — êsse amor que, travado por outros laços ou por circunstâncias exteriores, não pode nem deve alcançar desfecho feliz, e se deixa esmagar por uma fatalidade perante a qual esmorece a energia humana. O mais genial de seu dramas é, sem cohtestação, Aglavaine et Sélysette, uma das mais puras jóias da literatura mundial. Drama profundamente melancólico, encerra, porém, tesouros de poesia. Méléandre, que se casou com a doce e tímida Sélysette, começa a amar a nobre Aglavaine, e é correspondido por ela. Êsse amor puro os leva acima da materialidade. Sélysette, entretanto, sofre por não ser a única a possuir o coração de Méléandre. A meiga criatura, feita de abnegação, resolve sacrificar-se pela felicidade de seu marido e de Aglavaine, e acaba por executar o seu propósito: debruça-se tão fortemente para fora das ameias do velho torreão, que se desmorona uma parte estragada da parede, e Sélysette cai, não sôbre as ondas, como tinha calculado, mas sôbre a areia da praia. Ferida e transportada para casa, já nos braços da morte, esforça-se por persuadir a Méléandre e a Aglavaine que a queda fôra involuntária, tentando assim evitar-lhes o remorso. Neste drama, fértil cm estados de alma finamente nuançados, tôdas as personagens são nobres e generosas. Tanto quanto Méléandre, Aglavaine sente que a felicidade é vã e fugitiva, quando conquistada ao preço do sofrimento alheio, e se êles não se sentem menos irresistivelmente impelidos um para o outro, obedecem, não a desejos vulgares, mas a uma atração poderosa e muito espiritualizada. Lutam contra a fatalidade, e a peleja é tanto mais dura quanto pressentem que o amor fraternal, com o fluir do tempo, se tornará impossível, e tudo os levará â união completa, de que êles fogem como de um pecado. Belíssimas são as palavras 28


de Aglavaine: "Se o sofrimento é imperativo, nós é que devemos sofrer. Existem mil deveres, mas creio que raramente nos enganamos quando, antes de tudo, procuramos tirar o sofrimento ao mais fraco, para fazê-lo recair sôbre nós mesmos. Em verdade, êste drama opera uma encantação que permite classificá-lo entre as mais belas criações poéticas do século. Aglavaine et Sélysette, obra-prima de Maurice Maeterlinck, apareceu em 1896. Em 1902, o autor publicou Monna Vanna, drama conhecido e representado aqui mesmo na Suécia. A ação se desenrola sóbre a trama histórica do Renascimento na Itália; sua composição, muito nítida, é inteiramente desprendida dessa espécie de crepúsculo que geralmente caracteriza a arte de Maeterlinck. Muito se discutiu, e com opiniões bem diversas, a idéia dramática do dever, que impele a ação; esta peça é sem dúvida muito audaciosa e oferece grande interesse psicológico; contudo, talvez Maeterlinck seja mais ê/e mesmo nos pequenos dramas delicadamente simbolistas, onde não impera a luz plena e crua do sol, mas que abrem perspectivas maravilhosas aos mais íntimos pressentimentos do coração humano. Dono de um talento muito diversificado, Maeterlinck escreveu obras concernentes à filosofia, senão à filosofia abstrata. Tal é, por exemplo, Le Trésor des Humbles (1896) que, entre outras passagens notáveis, contém páginas inspiradas sôbre o místico Ruysbroeck e sôbre a Vida Profunda; o idealismo do autor encontra aí expressão feliz, em suas considerações sôbre a poesia mais alta que, diz ê/e; tem por fim manter abertas as grandes vias que conduzem do mundo visível ao mundo invisível. Em numerosos pontos surge nesse livro o pensamento, já assinalado no curso dêste resumo, de que existe, por trás do nosso eu visível, outro que é o nosso eu verdadeiro. A idéia pode parecer abstrata aos empiristas; no fundo, será tão plausível quanto a doutrina de Kant sôbre o caráter inteligível que, aliás, é fonte do caráter empírico. Em Le Temple Enseveli (1902), encontramos a idéia de uma personalidade invisível, base da personalidade visível e terrestre. De resto, se Maeter29


linck é acusado de fatalismo, convém lembrar que em seu livro La Sagesse et la Destinée (1893), impregnado de tão doce otimismo, a sorte do homem é colocada nêle mesmo, e depende da maneira como irá utilizar sua vontade. O infortúnio e a queda das grandes personalidades da história aí se nos apresentam como provocados por culpa delas próprias, ou como conseqüência do fato de haverem perdido, à custa de erros, e até de más ações, a antiga confiança em si mesmas, e, com isso, a fôrça de lutar vitoriosamente contra os perigos. Em 1901, aparece La Vie des Abeilles, livro que alcança vasta repercussão. Maeterlinck é, pessoalmente, hábil apicultor, mas ao escrevê-lo, por muito familiarizado que estivesse com as abelhas, não se propôs de modo algum a fazer obra científica propriamente dita. Não se trata de um epítome de história natural, mas de um livro de exuberante poesia, com uma chusma de reflexões que, aliás, de certo modo conduzem a uma declaração de incompetência. O autor parece dizer que é inútil nos perguntarmos se a curiosa cooperação das abelhas, a divisão de seus trabalhos e sua vida social são fruto de uma inteligência raciocinante. Quer empreguemos o têrmo instinto ou o têrmo inteligência, isso é tão somente um modo de assinalar nossa ignorância. Aquilo a que chamamos instinto das abelhas é talvez de natureza cósmica, emanação da alma universal. Impossível esquecer Virgílio, em sua imortal descrição das abelhas, quando conta que um pensador lhes atribuiu uma parte de divina mens, divino pensar, espírito divino. L’Intelligence des Fleurs, outra obra de Maeterlinck, distingue-se por apresentar ousadamente as plantas como providas de sabedoria e de raciocínio. Há nesse livro a mesma riqueza de imaginação poética, ornada, aqui e ali, de reflexões profundas. Com uma fôrça criadora que nunca se exaure, Maeterlinck compôs em 1903 Joyzelle, drama impressionante pelo caráter fantástico, pois mostra o triunfo, através duras provações e sombrias peripécias, do amor fiel à sua própria natureza. 30


M arie Madeleine (1909), que figura a transformação da alma da pecadora arrependida e sua vitória sôbre uma tentação tanto mais forte quanto visa justamente ao lado mais nobre de sua natureza, impelindo-a a salvar o Messias a expensas de si mesma e da vida espiritual nova que êle próprio lhe infundira, isto é, à custa mesmo da obra vital do Messias; finalmente, L’Oiseau Bleau, mágica profunda, que cintila com a poesia da infância, mesmo quando parece conter demasiada reflexão, com risco de perder um pouco de ingênua espontaneidade. Ai de nós: o pássaro azul da felicidade só existe para lá dos limites dêste mundo perecível, mas aqueles que têm coração puro jamais hão de procurá-lo inutilmente, pois nêles a vida sentimental e a imaginativa se enriquecerão e se purificarão na viagem através das províncias do país dos sonhos. Eis-nos de volta a nosso ponto de partida, o pais dos sonhos. Talvez não erremos ao afirmar que, para Maurice M aeterlinck, tôda realidade no tempo e no espaço, mesmo quando não é produto da imaginação, usa sempre um véu tecido de sonhos. Sob êsse véu se oculta a verdade fundamental da existência, e. quando êle um dia se levantar, será descoberta a essência das coisas. Guiado pelas criações do poeta, procurei interpretar-lhe a concepção de vida. Que esta concepção é bela e nobre, não pode haver dúvida a respeito; em Maeterlinck, ela se apresenta com um ornato, até então insuspeitado, de estranha poesia, às vêzes bizarra, e sempre embebida de alma. Maurice Maeterlinck é um dos eleitos da poesia. Os gostos podem mudar, mas o encanto de Aglavaine e de Sélysette permanecerá. A o poeta que nos fêz perceber vibrações tão finas dessa melodia secreta que os homens trazem no coração, a Suécia, país das sagas e das canções populares, oferece hoje o Prêmio mundial. 31


VIDA E OBRA DE MAURICE MAETERLINCK PO R FRANÇOIS ALBERT-BUISSON da Academia Francesa


o coração da terra flamenga, numa daquelas cidades do norte, envoltas em bruma, como que a meio caminho entre céu e terra, e onde o vasto e úmido silêncio só é perturbado, à noite, pelo vozear dos sinos, que se respondem de campanário a campanário, nasceu Maurice Maeterlinck — em Gand, a 29 de agôsto de 1862. Sua infância transcorreu em Oostacker, à margem do amplo canal que liga essa cidade a Terneuzen, e em cujas águas vagarosamente passam os navios. A Bélgica de 1862, porém, não era mais a Flandres dos pintores e dos místicos, dos Van Eyck e dos Ruysbroeck: era uma jovem nação orgulhosa de sua independência e de sua prosperidade custosamente adquiridas, sem tempo nem gôsto para deter-se ante devaneios de poetas. Originário dessa burguesia realista e austera que instituiu o poderio da nação belga, e cujo elogio não é mais necessário fazer, mas que não devia estimular em nada os vôos do futuro escritor, Maeterlinck, pertencente a antiquíssima família com raízes no século X IV , destinava-se à advocacia. Enviaram-no a um colégio de jesuítas à margem do Lys, para formá-lo na lição das humanidades clássicas. Já 35


seus gostos e aspirações, entretanto, fugiam ao quadro em que se pretendia encerrá-los: à noite com dois camaradas, a que o prendiam as mesmas inquietações e a mesma curiosidade, devorava às ocultas alguma revista de vanguarda ou se distraía com os primeiros ensaios poéticos. Os estudos jurídicos esperavam-no ao sair do colégio. Na Faculdade de sua terra natal, conheceu Émile Verhaeren, cujo nome deveria também ilustrar a literatura belga, e cuja vocação jurídica era tão vaga quanto a sua. No Direito, o jovem Maeterlinck veria apenas, como contaria mais tarde com humor, “um cemitério romano e um moderno canteiro de construção”; nada encontrou nêle que pudesse satisfazer sua sêde de absoluto. Formando-se em Direito, apesar disso, em 1885, para ser fiel ao desejo paterno, inscreveu-se no tribunal de Gand. Nada o predispunha a colhêr os louros de Demóstenes ou de Cícero: em seu corpo robusto e planturoso de flamengo à Jordaens, a natureza, por uma dessas ironias em que é vezeira, instalara uma voz fraca, abafada, que teve logo de renunciar à luta no pretório. Perdeu as primeiras causas que lhe confiaram, e que foram também as últimas. Maeterlinck se lembrará talvez de seus fracassos oratórios ao celebrar, mais tarde, as virtudes do silêncio. E se é verdade, como dirá uma de suas personagens, que não há acontecimentos inúteis, nunca um malogro teve conseqüências mais felizes: no dia em que, para tristeza dos seus, Maeterlinck deixou o fôro, a cidade de Gand perdeu talvez um advogado, porém ganhou a Bélgica, sem contestação, um de seus maiores escritores. Octave Mirbeau compara-o a Shakespeare A terra flamenga afigurava-se a Maeterlinck pouco propícia ao desenvolvimento do seu espírito: Paris atraía-o, aquêle Paris não conformista em que uma pessoa podia inovar 36


M*m escândalo e entregar-se à gratuidade deliciosa dos devnneios. De fato, ao chegar lá, em 1886, encontrou atmosfera favor&vel a seus projetos: era o período em que a jovem escola simbolista se achava em plena florescência, com Villiers de L’Isle-Adam, Catulle Mendès e Stéphane Mallarmé, e começava a reagir contra o naturalismo frio e sem alma, procurando reconquistar para a literatura as fontes esquecidas do mistério e do infinito. De volta à Bélgica em 1887, inscrito no fôro de Gand, mas sobretudo impregnado da nova estética simbolista, põe-se Maeterlinck a trabalhar, e em 1889 publica seu primeiro e único volume de poemas, Serres Chaudes, que traduz a opressão da alma, como que confinada numa atmosfera irrespirável. Consagra, porém, seu maior desvêlo a um drama em cinco atos, que êle mesmo imprime, debaixo do maior segredo, em modesta oficina de sua cidade natal, ccrm a cumplicidade — realmente heróica, em face da autoridade paterna —' de sua mãe e de sua irmã. Envia exemplares dessa obra, La Princesse Maleine, a seus amigos parisienses, e fica à espera, com um pouco de ansiedade. Não correria o risco de desapontar o público com êsse drama estranho e misterioso? Personagens um tanto desvairadas, quase sonambúlicas, natureza inquietante e hostil onde se diria flutuar um pressentimento de desgraça; e, em meio a essa atmosfera de fim-de-mundo, a figura comovente de uma princezinha medrosa e friorenta, a debater-se desesperadamente contra a morte. Acostumado a um teatro mais humano, em que a psicologia das personagens tem primazia sôbre os jogos imprevistos do destino, mostrar-se-ia o espectador francês sensível a essa harmonia assustada e umbrosa, que envolve o drama de Maeterlinck? Todos êsses receios eram lícitos; a obra, de uma estética tão nova, primeira tentativa talvez de teatro simbolista, arriscava-se a mergulhar na indiferença e no esquecimento. Uma bela manhã, porém, em 24 de agôsto de 1890, o nome até então desconhecido de Maurice Maeterlinck resplandeceu em duas colunas na primeira página do Figaro; Octave Mirbeau, 37


cuja atenção fôra atraída para La Princesse Maleine por Stéphane Mallarmé, nesse dia não reprimiu o entusiasmo, e sua pena» de ordinário acerba, antes inclinada ao sarcasmo do que ao louvor, subscreveu o mais espantoso elogio jamais feito a um autor jovem: “Nada sei a respeito do Sr. Maurice Maeterlinck. Não sei de onde êle é nem como é. Sei apenas que ninguém é mais desconhecido do que êle, e sei também que fêz uma obra-prima: não uma obra-prima etiquetada prèviamente de obra-prima, como as publicam todos os dias nossos jovens mestres. . . , mas uma admirável, pura e eterna obra-prima, uma obra-prima que basta para imortalizar um nome e fazer êsse nome abençoado por todos os famintos do Belo e do Grande. . . O Sr. Maurice Maeterlinck deu-nos a obra mais genial desta época, a mais extraordinária e mais ingênua também, e — ousarei dizê-lo? — superior em beleza ao que há de mais belo em Shakespeare. Essa obra se chama La Princesse M aleine’’ Qualquer outro que não Maeterlinck correria o risco de ser esmagado por ditirambo dêsse calibre. Octave Mirbeau vira certo, e La Princesse Maleine era apenas a primeira de uma longa série de obras-primas. Abre-se-lhe então o teatro, e sucessivamente são levadas à Cena, no mesmo ano, Ulntruse, Les Aveugles e Les Sept Princesses, três dramas-que focalizam a inquietação humana. Depois, é (Pelléas et ^ JvTeTTsande^ representação mística do amor predestinado^ seqüencia dê" pequenos quadros de graça harmoniosa e delicada, para os quais Debussy compôs música tão perfeitamente acorde, com sua misteriosa encantação. Quem não se lembra daqueles castelos assombrados, daquelas florestas profundas e nascentes insondáveis, sobre os quais se diria pairar um poder invisível e fatal? Pela primeira vez, quem sabé, na dramátnrgía fráncesa, o próprio cenário iria participar da ação: tudo era signo, pressentimento, presença oculta do destino. Através do nevoeiro e da 38


noite, porém, entremostravam-se frágeis criaturas, mulheres ou crianças, a descobrirem com espanto êsse mundo absurdo e malévolo, e a anunciarem por seus olhares e silêncios o ndvento de outro mundo onde as almas, libertadas, viveriam eternamente. Quem não se lembra daquela cena admirável, cuja delicada harmonia Debussy tornou mais sensível ainda, cm que, do alto de sua tôrre, a doce Mélisande se inclina como para um impossível abraço, na direção do seu querido Pelléas, e em que sua cabeleira bruscamente desnastrada inunda o rosto e o coração do amante? Desta vez ainda, o destino será mais forte do que o amor, e o ar mefítico dos pântanos, mais do que a cólera inocente de Golaud, destruirá a frágil Mélisande. . . Maeterlinck escreve em seguida três pequenos dramas para marionetes: Alladine et Palomides, Intérieur e La Mort de Tintagiles (o segundo, reapresentado pela Comédie-Française em 1919), "obras de inquietação e de angústia, nas quais a presença tenebrosa e dissimuladamente ativa da morte enche todos os interstícios do poema, em que o problema da existência só é solucionado pelo enigma do seu aniqiiilamento”. Depois, Aglavaine et Sélysette, obra que indica uma virada ideológica no autor, e a respeito da qual se escreveu que testemunhava "imensa e luminosa mudança em sua vida”; Ariane et Barbe-Bleue, tão hàbilmente musicada por Paul Dukas, e apresentada na Ópera Comique em 1907; Monna Vana, drama em que Maeterlinck, abandonando o reino do mistério e do desconhecido, propõe sêres mais concretamente humanos, e que alcançou em cena êxito estrondoso. Finalmente, L ’Oiseau Bleu, deliciosa mágica filosófica que se desenvolve numa atmosfera encantada, e oferece original mistura de sabedoria nimbada de poesia. Alguns consideram essa obra o apogeu da carreira dramática de Maeterlinck, "coroa de sua plena e rica maturidade, momento mais brilhante e feliz de sua inspiração”. Montada em 1911, LOiseau Bleu teve em Paris acolhimento triunfal. 39


Houve quem pronunciasse, a propósito de Maeterlinck, o nome de ohakespeare; também se evocou a tragédia de Ésquilo ou de Sófocles: comparações esmagadoras e lisonjeiras ao mesmo tempo. De qualquer modo, Maeterlinck rompia deliberadamente com a tradição do teatro clássico francês. Neste, vinham à tona as paixões e os deveres dos homens; atentados, assassínios e traições eram apenas ocasiões excepcionais, em que essas paixões e êsses deveres se revelavam em sua verdade mais alta. Para Maeterlinck, porém, “há um eu mais profundo que o eu das paixões e da razão pura ', e êsse eu mais profundo, que já é um pouco nossa alma, não carece de circunstâncias excepcionais nem de ações heróicas para desvendar-se: é essa luz interior e imóvek a transparecer us vêzes, como relâmpago, na mais simples dè nossas ações: n pupila que se abre, a fronte que se inclina, a mão que se fecha, dizem mais sôbre o infinito que há em nós, do que as imprecações do herói ou os ciúmes da rainha. O patético de Maeterlinck não é, pois, senão o eterno patético da vida cotidiana: suas princesas se exprimem como pastôras, seus reis têm o falar franco e ingênuo dos camponeses da Flandres e da Valônia. No fundo, quase nada acontece em suas peças: não há peripécias nem reconhecimentos, só a lenta maturação de um acontecimento que pressentimos por mil sinais, e do qual nenhuma vontade humana poderá impedir a inexorável aproximação. O que importa a Maeterlinck é menos a psicologia de suas personagens que o jôgo de fôrças cósmicas — vida, amor e morte — que se defrontam por meio delas; Pelléas et Mélisande não é o drama do ciúme, é o drama de um amor impossível, em luta com o destino. Desde então, ao contrário da tragédia clássica, a mola essencial do drama de Maeterlinck já não reside no terror e na piedade, mas num sentimento mais profundo e mais ingênuo ainda, isto é, no espanto: êle queria fazer sentir a suas personagens e, através delas, ao espectador, "o que há de espantoso no simples fato de viver ". Meditemos nesta 40


palavra: não contém em germe uma das intuições mais penetrantes do existencialismo contemporâneo? Acrescenta Maeterlinck, no capítulo citado há pouco: “Trata-se de fazer ouvir, acima dos diálogos ordinários da razão e dos sentimentos, o diálogo mais solene e ininterrupto do ser e de seu destino”. Objetivo ambicioso, certamente, que a obra teatral de Maeterlinck em nenhum momento deslustrou. Somos predestinados, mas o sábio pode deter a fatalidade Nesta análise sumaríssima de seu teatro, ter-se-á reconhecido que a estética de Maeterlinck não deixava de ter prolongamentos metafísicos e morais: sua intenção não era distrair o espectador, nem comovê-lo ou instruí-lo, mas eleválo àquelas alturas vertiginosas onde a alma pode expandir-se livremente. Em seu próprio teatro — e a evolução da obra haveria sempre de confirmá-lo — Maeterlinck era antes de tudo um moralista, e, com tôda a solenidade antiga desta palavra, um Sábio: Se do filósofo tinha os grandes desígnios e as percepções profundas, não tevé nunca a linguagem abstrata e a dialética rebarbativa para os profanos. Suas inúmeras meditações sôbre a condição humana, intituladas Le Trésor des Humbles, La Sagesse et la Destinée, Le Double Jardin, Le Temple Enseveli, La Mort, UHôte Inconnu, Le Grand Secret, Avant le Grand Silence, Le Sablier e L Ombre des Ailes, foram escritas em linguagem límpida e harmoniosa, discretamente imagística, e essa linguagem parece fundir-se com o pensamento que exprime. Só poderei recordar aqui os principais temas dessa obra numerosa. Maeterlinck partiu de um pessimismo absoluto: os homens, dizia êle, não passam de “precários e fortuitos clarões”, perdidos num oceano de mistério. A ciência nada nos ensinou, pelo menos até agora, sôbre a origem e o fim da vida, e, no fundo, é apenas "uma expressão tranqüilizadora e conciliante de nossa ignorância”. O incognoscível, entretanto, nem por isso é inativo: cerca-nos de sua presença inquietante, e, se estamos encolhidos em nosso cantinho. 41


subitamente êle se nos manifesta por meio de pressentimentos, sonhos, aparições: é "aquêle visitante inesperado que vem sorrateiramente perturbar a quietação satisfeita em que adormecêramos, embalados pela mão firme e vigilante da ciência clássica’*. Como os recém-nascidos de U O iseau Bleu, pensava êle, somos sêres predestinados desde o nascimento, e a curva de nossa vida, que acreditamos a todo momento infletida pelo nosso querer, já estava desenhada, de fato, nos registros imutáveis da eternidade. Entretanto, às vêzes Maeterlinck se revolta contra êsse pessimismo deprimente: “Seria monstruoso e inexplicável, exclama êle, que fôssemos somente aquilo que parecemos ser". Somos cativos, sem dúvida, cativos de nosso corpo, cativos dêste mundo, que nos cerca, e no qual não reconhecemos o nosso bem. Do próprio seio dêsse cativeiro, porém, sobe a esperança de libertação; sôbre a terra exausta e desenganada, Maeterlinck julga ouvir como que o frêmito surdo de um enxame de asas a se abrirem e, por certos sinais, reconhece que vivemos hoje uma ocasião excepcional de libertação espiritual. Para o sábio, a fatalidade, a desgraça que fere os homens pode ser vencida. O acontecimento, em si, é secundário. Em sua alma, êle sabe como fransTormá-lo, pata que não destrua nada de vital; dêste modo ò sábio se converte éin senhòr do destino, e paralisa a desgraça. Voltando-se então para a História, Maeterlinck se lembra de que a humanidade conheceu épocas de alta espiritualidade. Não se trata “daqueles séculos perfeitos em que a inteligência e a beleza reinam com tôda a pureza, mas em que a alma não se revela <— a Antiguidade clássica, os séculos X V II e X V III franceses — mas dessas épocas místicas, em que as barreiras entre os homens parecem ceder, e em que as almas libertadas se comunicam em abraços fraternos, como 42


n índia dos Brâmanes ou de Buda, ou a Alexandria de Plotino e de Filon, ou ainda aquela florescência efêmera, mas radiante, que foi o Romantismo alemão. Será fácil reconhecer, nesta enumeração, os verdadeiros antepassados espirituais de Maeterlinck. Como Novalis, de quem traduziu para o francês Os Discípulos d e Sais, e cujo ‘ idealismo mágico” o seduzia, pensava Maeterlinck que viria uma hora em que os homens não precisassem mais de sinais e de palavras para se exprimirem ou se compreenderem, nem de olhos para se verem, e em que as almas regressassem juntas à sua mansão comum. A morte não seria mais que a volta a essa pátria espiritual, de que só guardamos aqui embaixo longínqua reminiscência ou obscuro pressentimento: para uma vida que é cativeiro, a morte só poderia ser libertação; por isso Maeterlinck a esperava com serenidade. “Deixarei sem pesar êste mundo absurdo, do qual não compreendi nada", escrevia êle a Louis Piérard, alguns dias antes de morrer. Os insetos e as flôres consolam-no do com ércio dos homens Entretanto, ninguém se debruçou com maior amor do que êsse filósofo, sôbre os mais humildes mistérios da vida; ninguém falou dêles com tanta elegância e fervor. Maeterlinck preferia cada vez mais o convívio com a natureza à companhia dos homens, de quem evitava continuamente a curiosidade importuna. Paris, que dera o primeiro impulso ao seu gênio, não conseguiu jamais conquistá-lo, e menos ainda retê-lo. Deixando a ruidosa Rua de Seine, refugiou-se numa casa meio provincial da Rua Raynouard — a rua em que Balzac viveu, antes; —- em seguida, após breve permanência na Rua Pergolese, instalou-se em ponto retirado de Neuilly. Um dia, finalmente, seus amigos, espantados, souberam que êle tinha ido viver em plena natureza ou entre ruínas; daí por diante, no inverno, em QuatreChemins, perto de Grasse, em meio a um paraíso floral; 43


durante o verão, na velha abadia normanda de Saint-W andrille, por apreciar-lhe a atmosfera shakespeariana. Seria errôneo supor, entretanto, que nessas diferentes mansões êle se entregasse à meditação solitária e desesperada: se nada tinha a recear da morte, não precisava recusar tampouco os benefícios efêmeros que a vida lhe prodigalizava. Êsse grande contemptor da técnica era — quem o diria? — fã do automóvel, e não desdenhava igualmente as alegrias mais pobres da bicicleta. Êsse homem que desprezava o copo era também um desportista completo, e mais tarde, já sexagenário, não lhe desagradaria iniciar-se no boxe. De passagem por Nice em janeiro de 1924, Maurice Martin du Gard quis rever Maeterlinck, então com 62 anos, e dirigiu-se à sua vila "Les Abeilles”. É assim que, em La Revue dcs Deux Mondes, de l 9 de fevereiro de 1960, retrata o dono da casa:. "Cabeça descoberta, alto, desempenado e sólido, usava paletó-esporte, de bonita lã escocesa, cinza com flocos brancos e prêtos. Quando a gente se lembra do rosto de Maurice Barrês, que não era mais velho do que êle, ao ir-se embora em dezembro! Maeterlinck, porém, não está marcado pela idade, pelo sucesso ou pelas provações; aprendeu a resignarse sem qualquer ostentação, qualquer melancolia. Aprender a resignar-se e a desesperar, sem desesperar, é muito de Goethe. Êle é menos olímpico. Não envelheceu, salvo naqueles sedosos cabelos brancos, de penteado liso, sem risca ... e bastaria a cabeleira para dar-lhe um ar de bondade. E êle é bom. É um espírito fraternal. Rosto glabro e rosado, faces sem rugas, olhos azuis de criança. O sorriso quase não abandona êsse homem que harmonizou pensamento e vida, e que nunca precisou mentir. Nada de ar mundano, nada, absolutamente nada, de ar literário; reserva natural, modéstia fác il.. . Antigamente, nervosidade intensa, angústia, irritação pelas menores coisas; hoje, calma, quase nenhuma desconfiança, e nenhuma tristeza — seria tolice. A poesia, o tra44


balho e o amor modelam êsses bonitos velhos, silenciosos e lentos; não temem a Deus, e às vêzes o amam; Maeterlinck o ama, sem saber qual, ao certo. Chegado a êsse cume da beleza moral, não renuncia a nada. Em suma, viveu sempre perto da morte sem separá-la da vida, sempre pensou e agiu como se tivesse de ir embora no dia seguinte. Parece olhar tudo com indiferença, e nada lhe escapa dos sêres nem das coisas, mesmo invisíveis. Espécie de mistério, mas que continua sendo sortilégio.” Acima de tudo, êste intelectual, êste contemplativo gostava de inclinar-se, como antigamente São Francisco de Assis, diante de nossos irmãos inferiores: pássaros e insetos. A prática minuciosa da apicultura o consolava das desoladoras abstrações, e a vizinhança das flôres, do comércio decepcionante dos homens. Êste amor à vida, em sua formas mais humildes e perfeitas ao mesmo tempo, valeu-nos uma série de obras que figuram talvez entre as mais apuradas e mais belas de Maeterlinck: La Vie des Abeilles, La Vie des Fourmis, La Vie des Termites, sem falar em L'Intelligence des Fleurs. Lendo essas monografias cativantes como meditações, seriamos tentados a crer que se trata de obras de imaginação, mas que de ciência. Não nos deixemos iludir, entretanto, pela graça diáfana do estilo. Antes de escrever tais livros, Maeterlinck acumulou inúmeras observações pessoais, pelo menos quanto às abelhas e às flôres, que êle pôde estudar de perto em seus jardins de Gand e de Grasse; leu atentamente todos os tratados de entomologia e de botânica que poderiam trazer qualquer contribuição útil ao assunto. Vulgarizador, dir-se-á: como desejaríamos que todos os vulgarizadores atingissem essa precisão na análise, essa leveza de estilo, essa profundidade na reflexão! A grande lição social das abelhas e das térmites constituirá, talvez, a carta do mundo de amanhã Em La Vie des Abeilles, Maeterlinck descreve com amor as mil e uma atividades da colméia zunzunante, e mostra que essas atividades tão diversas não são caprichosas ou 45


anárquicas, mas ordenadas por um poder oculto e soberanamente sábio, a que chama de "espirito da colméia”, e de que a rainha se constitui, por assim dizer, órgão representativo. É nesse espírito coletivo, nessa "idéia fraternal”, como diz algures, que se fundamenta a coesão da colméia. Como, então, não nos sentirmos tentados a assimilar êsse modo de associação a nossas repúblicas humanas? A sociedade dos homens, pelo menos como a entende nossa tradição democrática, se baseia em um contrato tácito pelo qual o indivíduo aliena somente parte de sua vontade própria em troca dos benefícios que a associação lhe proporciona; assim, a adesão do indivíduo à sociedade é condicional, sempre parcial, e, pelo menos em direito, revogável. Nada de semelhante entre as abelhas: trata-se menos de uma sociedade contratual que de uma comunidade viva, mais instintiva do que consciente, antes mística do que racional, em que o indivíduo é absorvido pelo todo e imola corpo e alma ao interêsse soberano da espécie. Em página admirável, Maeterlinck desenvolve, por assim dizer, a filosofia das abelhas e seus prolongamentos humanos: "A abelha é antes de tudo, e mais ainda que a formiga, um ser de multidão... Na colméia o indivíduo não conta.. . é apenas um momento indiferente, órgão alado da espécie. Tôda a sua vida é um sacrifício total ao ser inumerável e perpétuo de que faz parte.. Mais adiante, alude a essa "sociedade quase perfeita, mas impiedosa, de nossas colméias, em que o indivíduo é inteiramente absorvido pela república, e em que a república, por sua vez, é sacrificada à cidade abstrata e imortal do futuro”. Não se percebe que, através das abelhas, é do homem que se trata, afinal de contas? Não conhecemos, infelizmente, essas sociedades que instituem o reino da perfeição por meio de massacres, e sacrificam os homens reais de hoje à humanidade abstrata de amanhã? Voltemos às abelhas, e tentemos discernir através delas as intenções que a natureza manifesta:. "A natureza”, escreve 46


■ com profundidade Maeterlinck, "tende visivelmente à melhoria da espécie, porém mostra ao mesmo tempo que não a deseja ou não pode obtê-la senão em detrimento da liberdade, dos direitos e da felicidade próprios do indivíduo. À medida que a sociedade se organiza e sie eleva, diminui o Ambito da vida particular de cada um de seus membros Desde que há progresso em alguma parte, o resultado é o sacrifício cada vez mais completo do interêsse pessoal ao geral.” Lei de bronze, em verdade, a que opõe o indivíduo à espécie, e a liberdade ao progresso! Temos de reconhecer que, com lucidez profética (se considerarmos que essas linhas foram escritas em 1913), Maeterlinck definiu aí o dramático debate que se propõe às consciências de hoje. Quem não se interrogou um dia, com severidade ou angústia, sôbre as contradições e os paradoxos de que é pródigo o mundo moderno? Havíamos acreditado, e queríamos acreditar ainda, que, afinal, o mundo é simples, e que, através de dilaceramentos e lutas, apesar de fracassos e recuos, as fôrças do Bem haveriam de suplantar progressivamente as do Mal. Mas se o bem e o mal estivessem de tal modo ligados que não se soubesse mais distingui-los perfeitamente um do outro? E se o bem, para atingir seus fins, necessitasse da cumplicidade monstruosa do mal? Quem nos diz, afinal de contas, que certos valores não são contraditórios, que aquêle que quer a liberdade não estará engendrando a injustiça, e o que quer a justiça não estará sacrificando a liberdade? Quem nos diz que o progresso da humanidade não deve ser gravado inicialmente em letras de fogo e de sangue, na própria carne dos homens? De qualquer modo, Maeterlinck tinha consciência dolorosa dêsse dilema. Admirava sem reservas a obra maravilhosa das abelhas: “Se uma inteligência estranha a nosso globo viesse pedir à terra o objeto mais perfeito da lógica da vida, deveríamos apresentar-lhe o humilde favo de mel.” Verificava êle, entretanto, logo depois, que a lógica da vida zomba do 47


sofrimento dos sêres vivos, e que, para a humilde operária morta em serviço, a grandeza da obra futura não passa de abstração irônica. Achava que, diferentemente das formigas e das abelhas, o homem não é obrigado a obedecer às leis da natureza, mesmo correndo o risco de perecer; quanto a êle, recusava-se a optar. Persuadido de que só há progresso à custa de lágrimas e de sangue, e que não existe perfeição na terra sem sacrifícios cotidianos, relutava em escolher lágrimas, sangue e sacrifícios, preferindo deixar às sociedades de abelhas e de formigas sua grandeza cruel. Sabia que a humanidade, entregue a si mesma, resvala para a decadência irremediável, e não tinha a menor confiança nas soluções pacíficas do liberalismo tradicional. Por um paradoxo de que há outros exemplos, êsse amigo dos humildes, para quem havia mais verdade no apêrto de mão do camponês do que na dissertação do filósofo ou no discurso do chefe de estado, êsse amigo dos humildes, dizia eu, estava longe de ser democrata, e, em momentos de desilusão, exprimia-se duramente sôbre a “estupidez de Demos’’. Além do mais, êsse grande solitário, que desconfiava das palavras e dos discursos não acreditava no reino das Assembléias soberanas, e desprezava os políticos profissionais. No fundo, Maeterlinck não acreditava na política, e tôda política lhe parecia inumana. Se com as abelhas ainda é lícito hesitar, se a beleza da obra justifica e por assim dizer santifica os sacrifícios por ela exigidos, já não ocorre o mesmo com essa realização monstruosa que são as sociedades de térmites. As térmites devem ter vivido antigamente ao ar livre, em nossas regiões temperadas, até o dia em que um rebaixamento de temperatura as obrigou a procurar refúgio na terra e na madeira: muitas pereceram na tormenta, entretanto algumas se adaptaram e sobreviveram. Tal é o ponto de partida dessa aventura, admirável e sinistra ao mesmo tempo, que fêz das térmites êsses sêres noturnos, roedores obscuros e terríveis, que solapam as casas do homem no pesado silêncio das noites tropicais. Milagre de adaptação: êsses animais chegaram a digerir a única substância que 48


lhes permaneceu ao alcance: a celulose da madeira. Salvou-se dêsse modo a espécie, mas ao preço de quanto sacrifício! Operários das trevas, perderam pouco a pouco o uso dos olhos e até a lembrança da luz, condenados a cavar eternamente e sem esperança, e nem mesmo percebem a grandeza da obra que realizam. Como poderia deixar de ser amarga a meditação do filósofo sôbre êste exemplo alucinante? "As sociedades de himenópteros, conclui Maeterlinck, não sem triste ironia, chegaram a uma altura terrível, a uma perfeição que, do ponto de vista prático e estritamente utilitário. . . , do ponto de vista da exploração das fôrças, da divisão do trabalho e do rendimento material, não atingimos ainda.” Aqui ainda êle aflorou, com acento profético, um dos dramas de nossa época: não conhecemos, também, êsse culto da eficácia, êsse frenesi da produção? E estaremos seguros de que as sociedades humanas não evoluem para a termiteira? Maeterlinck foi mais longe ainda. Numa antecipação do Apocalipse, perguntava a si mesmo o que aconteceria se, resfriando-se progressivamente a temperatura da crosta terrestre, a espécie humana fôsse condenada a um dia buscar abrigo cada vèz mais longe nas profundezas da terra. Diante dessa medonha perspectiva, nossa imaginação se perturba, e nossas orgulhosas metafísicas permanecem mudas, sentindo plenamente que estão à mercê de alguma catástrofe cósmica. "Um meridiano”, dizia Pascal, "decide quanto à verdade; uns graus a mais ou a menos, na superfície do globo, decidem finalmente quanto a nossa existência.” Para lá de nossa vida terrestre, porém, sabia êle que existe a vida misteriosa do Universo: e excogitava se a salvação de nossa espécie não viria acaso de alguma intervenção exterior, da comunicação miraculosa com um planêta cujos habitantes fôssem mais sábios e mais felizes que nós. São antecipações dêste gênero que Maeterlinck nos oferece em algumas obras mais recentes, como La Vie de l’Espace, 49


que lhe foram sugeridas pelos maravilhosos desenvolvimentos da física de Einstein. Entretanto, Maeterlinck continuava persuadido de que o milagre, se milagre houver, só poderá vir do homem. Acreditaria realmente na possibilidade de comunicação com êsses mundos estranhos? Sem dúvida, êles eram apenas a transposição um tanto mítica do futuro espiritual que Maeterlinck desejava para nosso planêta. O objeto de seus votos seria um estremecimento de nossas almas, uma dessas ondas de misticismo que sacudiram a humanidade em dois ou três momentos privilegiados de sua história. Dêsse modo, a meditação sôbre a ciência harmonizava-se com as conclusões' da sabedoria: para os problemas da humanidade, que são problemas biológicos, só há remédios espirituais; desde que o mais íntimo do homem se alienou e se perdeu na técnica, só a pureza recuperada de nossa alma é que pode salvar-nos das bruxarias do espírito. Filósofo, Maeterlinck nunca deixou de ser poeta. Não poderíamos encerrar esta brevíssima homenagem sem insistir na incomparável beleza de seu estilo, diante do qual se inclinaram até mesmo aquêles que às vêzes criticavam o sentido de sua obra, reconhecendo que alguns de seus livros (L ’Oiseau Bleu, La Sagesse et la Destinée) são de um “mágico estilista”. Prosa tão fluida e harmoniosa constitui verdadeiro feitiço para qualquer leitor sensível aos prestígios da forma. Mesmo quando cogita de assuntos áridos, sabe envolver o pensamento nos múltiplos encantos de uma língua poética e musical. Seu poder de sugestão não tem rival: comparando-o a Victor Hugo, pôde alguém dizer que, se êste “produz a impressão da plena luz diurna, Maeterlinck espalha a magia delicada, mais divina, das noites consteladas”. 50


Em seus ombros, o manto de Tolstói? A vida de Maeterlinck confunde-se com a própria maturação de sua obra. Êle viveu uma dessas existências perfeitas e completas, que parecem reproduzir a harmonia de uma curva invisível. Nada faltou à sua plenitude: glória, honrarias, fortuna, saúde, todos êsses bens que o sábio não procura por si mesmos, mas que faria mal em recusar quando o destino, por um dêsses dectetos de que só êle sabe as razões, lhe permite fruí-los cândidamente. Ficamos a pensar na vida dc rontenelle ou na de Goethe, das quais Maeterlinck se aproxima através de tantas afinidades profundas: vidas sem nuvens, sem abalos e contudo sem monotonia, vidas totais, sem mutilações inúteis, sem asceses supérfluas, e que terminam certa manhã, como a flor de que voam as pétalas sedosas. Seus primeiros tempos foram difíceis. A glória, divindade caprichosa, entretanto não se fêz esperar muito: o pronunciamento de Octave Mirbeau não esmagou no alvorecer a reputação do povem escritor; a fama o consagrou e fêz dêle uma celebridade, realçada talvez pelos prestígios do afastamento e por êsse halo romântico que, depois de Ossian, envolve a nossos olhos as brumas do Norte. A glória de Maeterlinck cresceu com Pelléas. As capitais européias, de Berlim a Roma, de Madrid a São Petersburgo, sem esquecer Bruxelas, disputavam-se a primazia de suas peças mágicas e de seus dramas, que, logo depois de escritos, eram traduzidos para tôdas as línguas da terra. Foi em Moscou, no Grande Teatro, que ocorreu em 1909 a estréia de UOiseau Bleu — quando na velha cidade moscovita ainda era permitido acreditar em fadas. Finalmente, o renome dos ensaios morais de Maeterlinck alcançou as Américas: a velha Europa oferecia ao Nôvo Mundo o Sábio que sua inquietação talvez esperava. Não lhe faltaram honras oficiais. Em 1911, sua obra, entretanto ainda longe do acabamento, foi julgada merecedora de uma das mais insignes consagrações literárias: o 51


Prêmio Nobel de Literatura. Com isso, pretendeu o júri de Estocolmo, ao que se disse, “colocar o manto do ilustre Tolstoi nos ombros do escritor mais indicado para servir-lhe de continuador”. A glória de Maeterlinck não deixou de expandir-se, na Bélgica, até tornar-se glória nacional, e sua irradiação universal, levando aos antípodas o renome de sua pátria, constituiu a mais brilhante das ilustrações a uma frase pronunciada em 1856 pelo Duque de Brabante, futuro Leopoldo II: “A glória literária é o coroamento de todo edifício nannnal’’. roí talvez por lembrar-se dessa frase que seu sobrinho, o grande rei Alberto I, concedeu a Maurice Maeterlinck as honrarias de conde, manifestando assim, com ênfase, que a aristocracia do espírito é o primeiro dos títulos ao reconhecimento das nações. Maeterlinck deixou a Flandres em 1886, para instalar-se na França, mas demonstrou sempre\tocante fidelidade à terra que o vira nascer, e à qual sua obra devia tanto. Permitam-me lembrar um episódio que, melhor que qualquer análise, ilustra a delicadeza dêsse sentimento. Pouco depois de ser-lhe conferido o Prêmio Nobel, quis a Academia Francesa, na expressão de um de seus membros, “satisfazer a ambição de contar entre os seus imortais com um escritor tão brilhante como Maeterlinck”. Deu-lhe a entender que bastaria apresentar sua candidatura, prèviamente apoiada pela quase unanimidade dos sufrágios. Uma só condição — imposta, infelizmente, pelo regulamento de sua fundação: a renúncia à nacionalidade belga pela nacionalidade francesa. Maeterlinck recusou. Amistosas instâncias do próprio Raymond Poincaré não lograram obter-lhe a aceitação, apesar da honra que se queria fazer-lhe. Recusou-a por fidelidade à pátria de suas raízes, demonstrando com isso um sentimento tão arraigado na alma dos franceses que, no fundo, êstes ficaram encantados por encontrá-lo na dêle. Competia desde então à Academia de Ciências Morais e Políticas prestar ao escritor a homenagem da França: fê-lo 52


em 13 de março de 1937, com base no relatório'do meu eminente confrade desaparecido, o Barão Seillière, elegendo Maurice Maeterlinck para membro associado, na vaga do Sr. Venizelos. Na impossibilidade de acolhê-lo em seu seio, a Academia Francesa lhe significou o seu reconhecimento concedendo-lhe cm 1948, por indicação do Secretário-Geral Sr. Georges Lecomte, a Medalha da Língua Francesa. Seu último livro, Bulles Bleues, contendo recordações de infância e juventude, revelou-nos um Maeterlinck pacificado, voltando-se com humor pleno de ternura para a Flandres de sua meninice, a amável anarquia de seus estudos e seus primeiros balbucios de escritor. Estas reminiscências foram sua última mensagem: Maurice Maeterlinck apagou-se cm 7 de maio de 1949, aos 87 anos de idade, em seu castelo de Orlamonde, acolhendo, com o sorriso infinito do sábio, a morte que êle esperava "como irmã”. Defendeu os direitos do invisível e do mistério Que resta da obra de Maeterlinck? O Sr. Jean-Marie Andrieu, encarregado de assuntos culturais na Embaixada da Bélgica, em recente conferência no Museu Guimet, sôbre "A atualidade de Maeterlinck”, responde a essa pergunta: "O afastamento de um artista não se mede em função do tempo: avalia-se pela ressonância e intensidade de seu talento, de seu gênio. . . Existe um problema Maeterlinck: suas obras completas não foram publicadas, seu acervo abrange numerosas páginas inéditas.” A celebração do centenário de seu nascimento, em 1962, dilatará ainda o círculo de seu fiéis. A significação de sua obra é universal. Disseram dêle que era um contemplativo da Idade Média perdido no mundo moderno. Na hora em que a ciência, embriagada pelos êxitos, 53


pretendia desvendar-nos o segredo das coisas, êle veio defender os direitos do invisível e do mistério. À técnica triunfante no mal como no bem, opôs a reserva sorridente do sábio. E não terá sido porque êle remou contra o seu tempo, e porque é necessário, às vêzes, remar contra o nosso tempo, que a mensagem de Maeterlinck foi e continua sendo atual? 54


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