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Apoiado em recentes definições das funções atribuídas aos hemisférios cerebrais, este livro propõe uma reordenação dos conceitos básicos que regem a interação matéria/espírito. A questão não consiste em ser ou não ser, já o somos. E seremos sempre, quer se acredite ou não na continuidade da vida após a morte do corpo físico. O autor aborda a questão de ser e de estar, que se substantiva na dicotomia transitoriedade / permanência e afirma que temos uma parte do ser mergulhada na matéria perecível e outra, bem mais ampla, na sutileza atemporal da realidade cósmica.

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Published by Evoluir, 2017-04-05 18:09:01

Alquimia da Mente - Herminio C. Miranda

Apoiado em recentes definições das funções atribuídas aos hemisférios cerebrais, este livro propõe uma reordenação dos conceitos básicos que regem a interação matéria/espírito. A questão não consiste em ser ou não ser, já o somos. E seremos sempre, quer se acredite ou não na continuidade da vida após a morte do corpo físico. O autor aborda a questão de ser e de estar, que se substantiva na dicotomia transitoriedade / permanência e afirma que temos uma parte do ser mergulhada na matéria perecível e outra, bem mais ampla, na sutileza atemporal da realidade cósmica.

Keywords: Alquimia,Mente,Hemisférios Cerebrais,Neurociência,Reencarnação,Espiritismo,Herminio Miranda,Consciente,Subconsciente

Por isso, o dr. Geley mostra-se convicto de que "a própria evolução,
como veremos, nada é senão sua própria passagem do inconsciente para o
consciente". O que, de certa forma, confere com o pensamento de Teilhard
de Chardin, segundo o qual a vida é "imensa ramificação do psiquismo que
se busca através da forma" (O Fenômeno Humano).

Depois de armado todo o cenário que acabamos de repassar, o dr. Geley
expõe seus "dois postulados primordiais da filosofia" e que assim estão redi-
gidos:

1. O que há de essencial no universo e no indivíduo é um dínamo-psi-
quismo único, primitivamente inconsciente, mas tendo em si todas as poten-
cialidades. As aparências diversas e as coisas inumeráveis não são mais que
representações suas.

2. O dínamo-psiquismo essencial e criador passa, pela evolução, do
inconsciente ao consciente.

O terço restante de seu livro - 140 páginas - é dedicado à explicitação
desses dois princípios fundamentais. É importante procurar entendê-los bem,
o que proponho fazer tentando transpor o texto do eminente autor para uma
linguagem menos formal.

A primeira observação a chamar a atenção do leitor está no fato de que,
no entender do doutor, tanto o indivíduo como o universo são constituídos
da mesma essência. Essência única, diz ele. Isto é mais verdadeiro e profundo
do que muita gente estaria preparada para admitir. Desse mesmo ponto de
vista, ainda que com palavras e motivações diferentes, nos falam místicos,
cientistas, pensadores, poetas e filósofos. Não todos, certamente, mas uma
quantidade expressiva e qualitativamente suficiente deles. O conceito de uma
participação, ou melhor, de uma integração do indivíduo no próprio "corpo"
do universo já constava de antiquíssimos textos ditos sagrados e das tradições
ocultistas do Oriente.

No contexto do cristianismo nascente avulta, nessas e noutras especula-
ções de semelhante porte, o pensamento de Paulo de Tarso, segundo o qual
todos nós "vivemos e nos movemos em Deus e nele temos o nosso ser" (Atos,
17:28).

Um salto acrobático por cima de dezenove séculos leva-nos, por exem-
plo, a Larry Dossey, in Space, Tirne & Medicine (p. 78), onde encontramos
esta observação:

Não existe corpo estritamente limitado. O conceito de um eu físico fixado

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no espaço e que perdura no tempo está em desacordo c o m nosso conhe-
cimento de que as estruturas vivas estão profusamente ligadas com o
mundo à sua volta. Nossas raízes mergulham fundo; estamos ancorados
nas estrelas.

Dentro desse contexto cósmico, vivemos todos numa troca incessante
de elementos, que o dr. Dossey caracteriza como biodança, ou seja, a dança
da vida.

Fritjof Capra lembra (aprovativamente) em Ponto de Mutação (p. 263),
que o conceito de livre-arbítrio relativo, que acaba de expor, parece compa-
tível com as "tradições místicas que exortam seus adeptos a transcender a
noção de um "eu" isolado e a tomar consciência de que somos partes insepa-
ráveis do cosmos".

Mais que isso, observa pouco adiante (p. 277), que James Lovelock,
químico, e Lynn Margulis, microbióloga, sugerem que o processo de renova-
ção da vida e nossa integração no sistema "só podem ser entendidos se o
planeta, como um todo, for considerado um único organismo vivo".

Em outras palavras (p. 278), "o planeta está não só palpitante de vida,
mas parece ser, ele próprio, um ser vivo e independente".

C o m o entendiam os gnósticos, o lado psíquico ou espiritual da vida
deixou-se aprisionar na matéria, mas não lhes consta que, com isso, tenha
perdido para sempre suas características essenciais. Annie Besant pensa da
mesma maneira, ao ensinar que a natureza era livre, na sutileza da matéria
existente no plano que lhe é próprio, mas "torna-se prisioneira da matéria
mais densa, e seus poderes conscientes não podem ainda funcionar através
desse véu que a cega" (p. 51).

A inibição, contudo, é sentida apenas do lado da matéria, onde a cons-
ciência permanece como "mero germe, embrião impotente, abandonado, ao
passo que a mônada, no plano que lhe é próprio, é forte, consciente, capaz,
no que diz respeito à sua vida interior". Há, pois, uma projeção ou manifes-
tação da consciência na eternidade e outra no contexto de espaço e tempo.

Concordando com Geley, ao qual voltaremos dentro em pouco, a dra.
Besant entende ser o princípio psíquico - ela prefere caracterizá-lo como
Segundo Logos ou Segunda Onda Vital - que "doa qualidades à matéria"
(p.53).

Para ser mais explícita, Besant ensina que a consciência é uma só, quais-
quer que sejam suas inúmeras manifestações. Dentro desse esquema, a cons-
ciência unitária de cada ser humano constitui "parte integrante" da consciên-

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cia global. Em outras palavras, "todas as consciências aparentemente separa-
das são, na verdade, uma só, como um mar que se escoasse através de nume-
rosos furos, numa barragem" (p. 105).

"Cada célula no corpo" - escreve, mais adiante (p. 119) - "é composta
de miríades de diminutas vidas, cada uma delas com a sua consciência germi-
nal."

O corpo físico do ser humano funciona, portanto, como veículo e
ambiente para que inúmeras partículas de vida também sigam o processo
evolutivo, enquanto, no dizer de Besant, o psiquisimo conhecedor de seus
objetivos segue "cinzelando constantemente a matéria, a fim de obter com
ela as formas adequadas" (p. 233).

O que confere com o dínamo-psiquismo do dr. Geley, com a busca
através da forma, proposta por Chardin, com a evolução criadora de Bergson
e com a técnica cósmica de "intelectualizar a matéria", como ensinaram os
instrutores espirituais ao prof. Rivail.

Em suma, o ser vivo, tanto quanto o universo, são da mesma essência
única.

A Grande Síntese não é estranha a esses conceitos; ao contrário, os
acolhe, ao definir o universo como "unidade orgânica em evolução" (p.l12).
Para acrescentar, adiante (p. 296), que "o universo é organismo monístico,
que funciona sob o império de um princípio único".

Aliás, no início da obra (p. 29), ficou dito que "como estrutura, o
universo é um organismo, isto é, um todo composto de partes reunidas, não
ao acaso, mas com ordem, com recíproca proporção".(Destaque meu.) Para
funcionar, como o fazem, "as partes componentes (desse organismo univer-
sal) têm que se coordenar para um fim único" (p. 30).

A expressão "dínamo-psiquismo" do dr. Geley deve ser entendida como
caracterizadora de um psiquismo dinâmico, ou seja, atuante, que não apenas
movimenta a matéria, como cria com ela as formas de que necessita para
desenvolver-se e atingir suas metas evolutivas.

Conceito idêntico vamos encontrar em Evolução em Dois Mundos, onde
se lê no capítulo IV, por exemplo, que, dicotomicamente assentadas em
naturezas física e espiritual, as células obedecem ao comando do "princípio
inteligente", ao plasmarem, no veículo de exteriorização, as conquistas evo-
lutivas. As próprias células são consideradas por esse autor espiritual como
" princípios inteligentes" rudimentares, a serviço do mesmo princípio inteli-
gente em estágios mais avançados nos animais superiores. Cabe-lhes, nesse

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sentido, obedecer "ao pensamento simples ou complexo que lhes comanda a
existência" (p. 42). Para essa tarefa, as partículas celulares de vida organizam-se
em "grupos coloniais", como "peças eletromagnéticas inteligentes, em má-
quina eletromagnética superinteligente" (p. 43).

Fora do governo mental ao qual estão subordinadas, as células já não
agem mais como suas companheiras que lá continuam.

"As células nervosas, por exemplo" - escreve André -, "com as suas
fibrilas especiais, não produzem células com fibrilas análogas, e as que aten-
dem nos músculos aos serviços de contração se desdiferenciam, regredindo
ao tipo conjuntivo."

E prossegue, para concluir:

"Todas as que se ausentam do conjunto estrutural do tecido inclinam-se
para a apresentação morfológica da ameba, segundo observações cientifica-
mente provadas" (p. 46).

Isto significa, portanto, que fora do campo magnético constituído pelo
princípio inteligente, caracterizado por Geley como "dínamo-psiquismo", as
células podem continuar como seres vivos e até inteligentes também, mas não
se acham mais "sob as ordens da Inteligência" (André Luiz, p. 46), que lhes
determinava como comportarem-se dentro da comunidade a que pertenciam.

É correta, portanto, a informação de Geley, segundo a qual "as diversas
e inúmeras aparências das coisas nada mais são que representações" do psi-
quismo. Em outras palavras, as formas sob as quais a vida se apresenta
constituem representações objetivas do pensamento, movido por uma von-
tade, como ensinava Arthur Schopenhauer, tão justamente admirado pelo dr.
Gustave Geley.

Reitero, porém, minha convicção de que o dínamo-psiquismo que o
médico francês supõe, acertadamente, dotado de "todas as potencialidades",
não seja "primitivamente inconsciente". A solução proposta pela dra. Besant
parece conciliar as coisas, com a dualidade da "mônada na eternidade" e outra
"no tempo e no espaço", ambas, porém, inteligentes e, de certa forma,
conscientes, ainda que limitadas às suas condições específicas. A impressão de
que o psiquismo cósmico situa-se numa faixa inconsciente provém do fato de
que essa dimensão escapa à percepção de nossa consciência de vigília..

Dentro da mesma ordem de idéias, colocaríamos Maurice Maeterlinck,
quando imagina que o ser humano não se encarna por inteiro, ou seja, não
mergulha totalmente na matéria densa, mantendo como que um pé na eter-
nidade e outro no tempo e no espaço.

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Estamos, aqui, novamente em sintonia com a teoria do dr. Geley, que
propõe uma progressiva conscientização do indivíduo, fórmula de que a
natureza se utiliza para tornar o ser humano consciente de si mesmo e do
universo em que vive. Neste caso, c o m o eu próprio escrevi em A Memória e
o Tempo, o consciente seria uma espécie de cabeça de gravação/reprodução
que se empenha em ler a memória de Deus, desdobrada por todo o universo.
No entender do autor de A Grande Síntese, o processo evolutivo consiste na
" realização progressiva do pensamento de Deus" (p. 194). Não sem razão teria,
portanto, Schopenhauer entendido o mundo como vontade e representação
- a vontade que cria as representações daquilo que pensa. C o m o a natureza
revela uma atividade inteligente e consciente, os comandos que a criaram e
que a sustentam têm de ser, necessariamente, inteligentes e conscientes. Por
muito tempo vimos dividindo as coisas criadas em vivas e inertes, ou seja,
dotadas ou não dotadas de um componente psíquico. Ao que tudo indica,
essa postura está sendo, senão questionada, pelo menos reformulada em razão
de especulações e pesquisas mais recentes, como a hipótese Gaia, segundo a
qual o próprio planeta seria um ser vivo a interagir com aqueles que o
povoam. Chardin nos fala da noosfera, uma camada de pensamento que
envolveria toda a terra.

Annie Besant (capitulo VI, p.105 e seg.), ao discorrer sobre a consciência
como uma só realidade cósmica, invoca o apoio científico do prof. Jagadish
Chandra Bose, de Calcutá, que "provou definitivamente, que a chamada
"matéria inorgânica" responde a estímulos de maneira idêntica aos metais,
vegetais, animais e - tanto quanto se pode experimentar - o ser humano"
(p.109).

Besant obteve tais informações em um trabalho de autoria do prof. Bose,
apresentado ao Royai Institute, em 10 de maio de 1901, sob o título "The
Response of Inorgank Matter to Stimidus" (Resposta da matéria inorgânica
ao estímulo).

É com apoios como esse que a dra. Besant se sente autorizada a declarar,
à página 115 do seu livro, que:

"O homem é o microcosmos do universo e seu corpo serve de campo
evolutivo para miríades de consciências menos desenvolvidas do que sua
própria."

Esse conceito, acho eu, poderá até ser considerado como uma possível
maneira de entender o que se passa numa comunidade de abelhas ou térmitas,
por exemplo, para as quais praticamente se impõe a idéia de um psiquismo

165

que coordena as inúmeras atividades da colônia constituída por minúsculos
seres de inteligência primitiva, mas, obviamente, dotados de "conhecimento
adquirido". Cada uma das pequenas criaturas desempenha sua tarefa especí-
fica em harmonia com os interesses maiores da coletividade.

Ao ensinar que "o altruísmo não é renúncia, mas expansão de domínior.
ou seja, criação de "egoísmos coletivos", A Grande Síntese (p. 302-303)
considera nesta categoria a abelha, que "não sobrevive isolada, mesmo que
provida de tudo, porque a virtude de sentir-se célula do organismo coletivo
nela se torna instinto e necessidade". (Destaque meu.) Trabalha, portanto,
com "instintos assimilados e não mais virtudes", integrando, por isso, "socie-
dades animais já constituídas". Não há como deixar de reconhecer, portanto,
que...

"No homem, o instinto coletivo está em formação; na abelha já se fixou,
maduro e completo."

Pela segunda vez, neste livro, encontramos motivação para olhar com
respeito para a diligente industrial do mel.

Seja como for, há sempre, no indivíduo, um psiquismo superior coor-
denador que impõe sua vontade às unidades inteligentes implantadas na
matéria e cria com elas as representações (leia-se formas) que deseja e de que
necessita para evoluir, ao mesmo tempo em que estimula o processo evolutivo
das diminutas partículas de psiquismo com as quais trabalha.

Dentro dessa ótica, encaixa-se com precisão indiscutível o conceito for-
mulado pelos instrutores espirituais, segundo os quais o processo evolutivo
do ser começa mesmo na matéria densa convertida em energia, prossegue nas
plantas, avança no animal e se expande no ser humano.

Todo o universo, portanto, seres vivos inclusive, resulta de uma criação
mental. Teremos oportunidade de explicitar melhor tais aspectos quando
recorrermos aos estudos que Paul Brunton elaborou sob o título The Wisdom
of the Overself (A Sabedoria do Eu Superior).

Ainda temos, contudo, algo a dizer sobre o notável documento do dr.
Gustave Geley.

Estabelecidas as bases experimentais da sua tese, o autor passa, no segun-
do livro, ao exame do processo evolutivo, avalia as possíveis objeções e,
finalmente, conclui o seu trabalho.

Para não alongar demais nosso próprio livro, recorro a uma breve
menção aos pontos essenciais levantados pelo doutor.

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* Pelas suas origens, suas metamorfoses embrionárias, sua funcionalida-
de, bem como, pela fenomenologia dita supranormal (desmaterializações e
rematerializações), o corpo físico demonstra estar sempre na dependência de
um campo magnético, que Geley identifica como dinamismo psíquico supe-
rior.

* O corpo não é, pois, o indivíduo, mas um produto ideoplástico do
psiquismo superior. (Ideoplastia é termo sugerido para caracterizar a criação
de alguma espécie de forma sob o comando do pensamento ou idéia.) Assim,
o organismo não é o indivíduo, mas uma simples representação dele.

* A rigor, portanto, não existe uma fisiologia normal e outra anormal,
dado que ambas são comandadas pela mesma vontade diretora, que determina
que tipo de representação ou forma deve assumir a matéria mais densa ao
acomodar-se dentro do campo magnético, no qual a consciência e a vontade
operam. O que, aliás, evidencia o fato de que "as manifestações da atividade
individual ultrapassam as limitações e o quadro do organismo" (I, p.223).
Estariam aí as mutações a que estou chamando de alquímicas.

* Atenção, porém. C o m o em seu livro anterior Geley deu considerável
destaque à expressão "ser subconsciente", que até serviu de título ao seu
estudo, ele retoma o assunto neste outro para enfatizar que a subordinação
do psiquismo inferior, instalado no cérebro, ao psiquismo superior, não
significa absolutamente que existam "dois seres distintos, diferentes em essên-
cia e destinação" (I, p.245).

* "O ser não é duplo" - escreve ele. "É único. Mas, durante a vida
terrestre, as contingências cerebrais não permitem senão a manifestação res-
trita e truncada do psiquismo total. Essa limitação dissimula o ser, não
somente sua essência metafísica, mas também a parte mais relevante de suas
realizações conscienciais."

* Vale dizer, portanto, como já proclamara anteriormente, que o "cons-
ciente não passa de pequena parte do inconsciente", aquela à qual temos acesso
imediato, ao passo que "larga parte do consciente permanece normalmente
latente".

Devo dizer que, embora de acordo, em princípio, com essa postura,
minha preferência vai para a hipótese formulada em A Memória e o Tempo,
onde sugiro que o termo subconsciente seja reservado para as lembranças que,
depois de passarem pelo consciente, são mais facilmente recuperáveis, ao

que ao "arquivo geral" do inconsciente o acesso é bem mais difícil, ainda
que não impossível.

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* Para Geley, como para mim também, se é que posso atrever-me a
oferecer-lhe minha modesta opinião, esse mecanismo de ininterrupta acumu-
lação de experiências enriquecedoras no psiquismo exige a presença ativa e
permanente da doutrina reencarnacionista, ou seja, das vidas sucessivas, que
conta hoje com apoios muito mais decisivos do que ao tempo em que Geley
estudou e escreveu suas dissertações.

* Pelas mesmas razões, e pela evidência de que "o fenômeno humano"
(Chardin) ultrapassa, no dizer de Geley, o quadro geral da fisiologia, há que
introduzir-se, no modelo, componentes outros da vida, como o da sobrevi-
vência do ser à morte corporal.

* O corpo físico, para Geley, é apenas uma "objetivação inferior" da
vontade, "uma representação ideoplástica do eu e não desempenha o papel
primordial e essencial que lhe atribui a psicofisiologia clássica" (I, p. 237).

* Seria, portanto, uma espécie de "materialização regular e normal, ao
passo que a materialização metapsíquica (mediúnico-espiritual) é apenas uma
formação ideoplástica irregular e anormal" (I, p. 239-240).

Eu não diria que as materializações do tipo mediúnico sejam "anormais
ou irregulares", e sim, que são regulares e normais no contexto em que se
situam. Em outras palavras, têm sua metodologia específica e suas leis regu-
ladoras próprias. Concordo, porém, com a colocação do autor quanto à
essência dos fenômenos que ele põe em comparação. A materialização, que
ele identifica como regular e normal, ou seja, a reencarnação do ser espiritual,
é de caráter semipermanente, ou melhor, duradouro, ao passo que as que se
realizam no ambiente da fenomenologia de efeitos físicos, são efêmeras.

* È clara a evidência de que o corpo físico impõe severas restrições ao
livre funcionamento do psiquismo superior. Geley chama-o mesmo de "blo-
co inferior" do ser. Daí o bloqueio que acaba por submeter as faculdades ditas
supranormais a uma condição de impotência relativa. A contradição aqui é
apenas aparente, mas de relevante significado, e precisa ser explorada.

Como é que sendo a potência diretora de todo o sistema, o psiquismo
superior acaba contido pelas limitações da matéria mais densa, a ponto de
criar dificuldades ao livre trânsito da inspiração, da intuição, da capacidade
criativa ou da genialidade?

A explicação da aparente contradição não oferece dificuldades de monta.
É que para cumprir adequadamente sua tarefa de aprendizado e correção de
rumos, a individualidade tem de ceder espaço à livre movimentação e inicia-
tiva da personalidade, para o que necessita da instrumentação do cérebro e

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sua atenta rede de comunicação, a fim de que possa entender-se adequadamen-
te com o mundo exterior, como lembra Geley (p. 242).

* "Ora, esse órgão (o cérebro) não é capaz senão de uma atividade restrita
e de reduzida capacidade de armazenamento de dados e de memorização. A
medida que as impressões passageiras que recebe se apagam, a memória de tais
impressões tende a desaparecer também da consciência normal".

A ultrapassagem das capacidades registradoras do cérebro físico têm
vultosas implicações com o esquecimento das existências anteriores, c o m o
ensina Geley, dado que a cada reencarnação entram em jogo importantes
fatores genéticos na produção ideoplástica de um novo sistema nervoso.
Geley considera necessário o esquecimento das experiências anteriores e, por
via de conseqüência, "a morte como fator que favorece à evolução" (p.242-
243). Em A Grande Síntese (I, p.168), a morte é considerada "sinônimo de
renovação".

* Lembra o dr. Geley que Myers acreditava num desenvolvimento
especial das faculdades supranormais - que ele considerava c o m o "essência
divina do inconsciente" - durante as fases de "desencarnação", ou seja, entre
uma vida na terra e a seguinte. Geley achava até possível que durante tais
intermissões, fora da existência terrestre, o ser aprendesse a "se servir de suas
faculdades supranormais, a compreendê-las suficientemente, a fim de subme-
tê-las, pouco a pouco, à sua vontade" (p.246).

Não me parece que as coisas ocorram dessa maneira. Pelo menos não é
essa a informação que se colhe em Paul Brunton ou em Annie Besant e em
Maurice Maeterlinck. Para estes, a "área" psíquica que corresponde ao incons-
ciente está mergulhada na consciência cósmica, o que lhe proporciona con-
dições suficientes para exercer, com larga flexibilidade, suas faculdades.

* Seja como for, uma vez liberado para sempre das "contingências
cerebrais", o ser continua a ampliar sua faixa de conhecimento subjetivo,
íntimo, pessoal, tanto quanto do universo que o cerca. "Seu passado" - escreve
Geley (I, p.246) - "lhe será acessível dentro das únicas limitações que seu
estado evolutivo atual lhe impõem, servindo inclusive para preparar cons-
cientemente o seu futuro". C o m o os arquivos psíquicos são indeléveis - e
nisso temos até o inesperado testemunho do dr. Freud -, a tendência é a de
contínuo crescimento do acervo individual.

No capítulo IV - "Interpretação da psicologia segundo as novas noções"
-, o dr. Geley faz uma releitura dos diversos fenômenos psíquicos, entre os
quais a neurastenia, a histeria, o hipnotismo, a loucura, a síndrome da perso-

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nalidade múltipla, o trabalho intelectual inconsciente, a genialidade, os fenô-
menos ditos supranormais e o mediunismo. Por mais que sejamos tentados i
repassar suas informações e argumentos, temos que renunciar a esse propósi-
to, a fim de poupar-nos tempo e espaço físico neste livro. Há, contudo, muita
coisa de nosso interesse aqui, até mesmo uma antecipação de quase meio
século para a realidade do que ele chamou acertadamente "faculdades extra-
sensoriais". (p. 272)

Nas páginas finais da sua obra, Geley examina o processo da passagem
progressiva do inconsciente para o consciente no âmbito infinitamente mais
amplo do próprio universo, informando que "a evolução consiste em aquisi-
ção da consciência".

Daí, algumas de suas conclusões finais:

* A essência do universo é indestrutível e eterna, bem como permanente,
através da aparência transitória das coisas em que se manifesta.

* A essência do universo passa, pela evolução, do inconsciente ao cons-
ciente.

* A consciência individual é parte integrante do que há de essencial no
universo e evolui, ela também, indestrutível e eterna, do inconsciente ao
consciente.

De minha parte, eu colocaria em diferentes palavras o segundo dos
conceitos formulados. Para mim, o universo já é consciência plena e, por isso,
não devemos entendê-lo como algo que evolui do inconsciente para o cons-
ciente. Prefiro supor que o indivíduo é que vai se apoderando lentamente da
realidade cósmica à sua disposição, na medida em que se torna consciente dela,
ou seja, à medida em que a conhece. Estamos, neste ponto, admitindo, em
princípio, a hipótese mais recente de que o planeta e, por extensão, todo o
universo sejam seres vivos ou, em outras palavras, representações ou mani-
festações de uma vontade consciente, como queria Schopenhauer.

A diferença entre Schopenhauer e o dr.Geley está em que o genial
filósofo alemão fez convergir seu pensamento, tão bem formulado, numa
conclusão pessimista de desencanto, ao passo que o médico e pesquisador
francês chega a um patamar otimista, antecipando uma humanidade sintoni-
zada com as harmonias e a sabedoria do cosmos, liberada, afinal, não apenas
de tempo e espaço, mas também do erro e, conseqüentemente, da dor.

Quanto ao mal, não teria mais que uma importância relativa, sendo
sempre reparável. Ele acha mesmo (I, p.332) que o mal acaba sendo "o
acompanhamento inevitável do despertar da consciência". A Grande Síntese

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prefere ver esse conceito sob a ótica da dor c o m o fator evolutivo, mas como
a dor resulta, invariavelmente, de nosso atrito com a lei cósmica - e isso é o
que se chama erro ou pecado - as posturas de Geley e as do autor espiritual
de A Grande Síntese são convergentes.

Nesse contexto, desapareceu a idéia do aniquilamento individual. Não
há como, nem por que temer a morte, da qual a natureza se vale para o
indispensável processo de renovação da vida. Ela rompe, precisamente, os
vínculos que, sem ela, continuariam indefinidamente a reter a criatura no
nível evolutivo que se encontra durante a vida na carne.

" Chegará o tempo" - escreve Geley à página 337 - "em que a consciência,
suficientemente vasta, será capaz, num esforço supremo, de romper todas as
limitações, atingir até o inacessível, de compreender mesmo o incompreensí-
vel, a coisa em si, o infinito, Deus".

Recorrendo mais uma vez a Schopenhauer, transcreve Geley um texto
em que o pensador alemão fala da "decifração do mundo" que, de alguma
forma, faz lembrar meu próprio entender, segundo o qual a consciência se
incumbe de "ler a memória de Deus", c o m o ficou dito em A Memória e o
Tempo.

Depois desta visão panorâmica, criativa, consoladora e otimista da vida,
só nos resta apreciar, no estudo do dr. Geley, sua maneira de entender as
possíveis origens da consciência.

Ao abordar o problema das origens do indivíduo, o dr. Gustave Geley
mostra-se cauteloso, sem, contudo, deixar de ousar na formulação de suas
hipóteses. De minha parte, entendo essa postura balanceada entre a cautela e
a ousadia, não como contraditória, mas da essência mesma da pesquisa.

"Este módulo" - escreve o autor - "não se reveste de pretensão científica.
As hipóteses que o constituem não têm outro propósito senão o de oferecer
matéria ao debate."

O ponto de partida de sua curta, mas compacta, dissertação firma-se
ainda uma vez no pensamento de Schopenhauer, seu filósofo predileto na
interpretação do fenômeno da vida. Chega mesmo a adotar, em princípio, a
proposta do pensador germânico, segundo a qual, nas suas manifestações
inferiores, a vontade "afigura-se impulso cego, como esforço misterioso e
surdo, distanciado de toda consciência imediata".

C o m esse apoio, Geley prossegue sugerindo que "a individualização
começa por toda parte, ou no inconsciente primitivo, com um rudimento de
consciência".

171

Por mínimo que seja e incipiente, "tal rudimento de consciência consti-
tui uma aquisição, permanece indelével e irá, daí em diante, crescendo sem
parar, ao infinito" (I, p. 247).

Reitero ponto de vista pessoal meu, já transmitido ao leitor, ao entender
com Annie Besant e André Luiz que, mesmo nas mais primitivas manifesta-
ções da vida - ou representações, como deseja Schopenhauer -, a consciência
já está presente, em estado germinal, traz em si um projeto, é uma energia
inteligente, e está ligada à consciência cósmica, da qual provém.

Creio que, mergulhada na matéria e nela se envolvendo, como propõem
Henri Bergson e Chardin, a consciência preserva suas faculdades e potencia-
lidades. Seu propósito é o de dominar a matéria, impor-lhe suas condições a
fim de poder expressar-se e "decifrar o mundo". Ela não é uma função ou
propriedade da matéria à qual esteja subordinada, mas a vontade inteligente,
de que falam Schopenhauer e André Luiz, entre outros.

Seja como for, encontramos, tanto em Geley como em André Luiz ou
em Annie Besant, o mesmo conceito fundamental de que a longa caminhada
do ser começa com as mônadas, que se caracterizam, no dizer de André, como
"princípios inteligentes ou mônadas fundamentais" (p. 32). Na gigantesca
massa de uma substância primordial que André identifica como "geléia cós-
mica", aninha-se o "princípio inteligente" microfragmentado e ali tem início
a aventura evolutiva. Reunidas em colônias, das quais a célula constitui o
aspecto visível, as mônadas se organizam em "algas nadadoras, quase invisí-
veis" embaladas pelo movimento das águas primevas. Esse autor espiritual
informa que, ainda hoje, as plantas constituem "filtros de evolução primária
dos princípios inteligentes". Ou seja, o processo evolutivo continua passando
pelo reino vegetal, a partir do qual a mônada "ingressou nos domínios do
artrópodos", onde seriam guindadas à condição de crisálida da consciência",
funcionando como "veículo da inteligência".

Assim, no correr de incontáveis milênios, o princípio inteligente vai
galgando novos patamares evolutivos até chegar ao ser humano.

Não é muito diferente desse o entendimento de A Grande Síntese, que
assim se expressa (p.139):

"No princípio, havia o movimento e o movimento se concentrou na
matéria; da matéria nasceu a energia, da energia emergirá o espírito."

O processo implica a passagem por " e l o s desconhecidos" que, sem deixar
traço representativo, têm-se mantido fora do alcance das observações dos
naturalistas, em vista de " representarem estágios da consciência fragmentária"

172

operados nas "regiões extrafísicas". Mais um ponto no qual identifico saltos
quânticos de natureza alquímica.

É, contudo, a inteligência, ou melhor, a consciência, que disciplina as
células, impondo-lhes sempre os comandos com os quais produz suas "re-
presentações" no âmbito da matéria densa.

Nesse longo trânsito da consciência pela matéria resulta inexequível, no
dizer de André, qualquer tipo de separação entre fisiologia e psicologia, dado
que o psiquismo passa da atração no mineral à sensação no vegetal, ao instinto
no animal (p. 39).

Assim, tanto no plano físico, como na dimensão extrafísica, o veículo
do espírito "é a soma das experiências infinitamente repetidas, avançando
vagarosamente da obscuridade para a luz". É nesse veículo, para o qual André
atribui também um "corpo" energético, dito corpo mental, no qual o autor
situa "a individualidade espiritual, que se vale das vidas menores para afirmar-
se - das vidas menores que lhe prestam serviço, dela recolhendo preciosa
cooperação para crescerem a seu turno, conforme os inelutáveis objetivos do
progresso" (p.40).

Lá estão, portanto, nas células, as partículas de vida, termo que Annie
Besant considera sinônimo de consciência, como vimos.

É desse trabalho longo, consciente e inteligente, que "resultam, no dizer
de Geley (I, p.248), grupamentos de mônadas que constituem toda a repre-
sentação organizada do universo".

Por isso, o que caracterizamos como formação de um ser não é mais do
que a formação complexa e orgânica de um grupamento. Da mesma forma,
o que conhecemos como morte de um ser, ainda segundo Geley, é, na
realidade, a dissociação do grupo. As mônadas, contudo, não são aniquiladas
quando o grupo se desfaz, elas vão, conforme suas afinidades e seu passado,
"constituir um novo ser no contexto de um novo grupamento". Há como
que uma solidariedade entre elas, "evidente em toda a coletividade dos seres
e em todo o universo", desde as colônias celulares mais primitivas até as mais
complexas estruturas orgânicas.

Depreendo da hipótese formulada por Geley que as mônadas, como
partículas psíquicas, ficam no contexto da matéria e que esta, ao decompor-se,
as libera para futuras combinações em novos grupamentos. Não é essa,
contudo, a impressão que colhemos em André Luiz, no módulo intitulado
"Além da Histogênese" (pp. 88-89). Pelo que ali se lê, as partículas de inteli-
gência não são deixadas na matéria que se desintegra, mas seguem com o

173

campo magnético que compõe o complexo corpo espiritual/corpo mental.

A alma que desencarna - escreve ele -, findo o processo histolítico das
células que lhe construíam o carro biológico (corpo físico) e fortificado o
campo mental em que se lhe enovelaram os novos anseios e as novas
disposições, logra desvencilhar-se mecanicamente, dos órgãos físicos, agora
imprestáveis, realizando, por avançado automatismo, o trabalho histogê-
nico pelo qual desliga as células sutis do seu veículo espiritual dos rema-
nescentes celulares do veículo físico, arrojado à queda irreversível...(O
destaque é meu.)

O que estaria compatível com a informação de Annie Besant, segundo
a qual existem mônadas mergulhadas na dimensão tempo/espaço, como
também existem aquelas que continuariam operando na dimensão cósmica,
tendendo a primeira (eterna) a tornar-se uma "extensão" da segunda (p. 51).
Este m o d o de colocar as coisas, por outro lado, concordaria ainda com a
concepção de Maeterlinck, segundo a qual o ser nunca se encarna por inteiro,
conservando a maior parte de seu psiquismo conectado c o m os dispositivos
cósmicos. Para melhor entendimento deste aspecto de tão vital relevância,
contudo, precisamos dedicar algum espaço para a dissertação da dra. Annie
Besant.

A n t e s disso, v a m o s cotejar estas propostas c o m as de A Grande Síntese,
na qual se lê o seguinte (p.169):

São abertas essas cadeias dinâmicas. Os átomos tomados do turbilhão vital
são transmudados no seu movimento íntimo e arrastados por um movi-
mento diverso. Nessa viagem, eles são elaborados, modificando-se-lhes a
constituição química. Concluído seu trajeto, são abandonados, não mais
vivos, porém inertes. (Destaques meus)

Pouco adiante (p.173), discorrendo sobre o turbilhão, diz aquele mesmo
livro:

" A o m o r r e r (o turbilhão), ele restitui ao ambiente não só o material
físico constitutivo, mas também a sua energia interior, o m o t o r do sistema,
sua alma mínima, rudimentar."

É preciso notar, contudo, que o turbilhão (ou vórtice) ainda não é um
ser v i v o , e sim, uma individualidade efêmera inconsciente, que, pelo m o v i -
mento específico, cria para si mesmo certa identidade que o distingue do
cosmo, ainda que dele não se destaque. É importante assinalar, neste ponto,
que "o princípio cinético da substância" muda, mas conserva-se "sempre

174

idêntico a si mesmo".
Sobre as origens da consciência, contudo, estou reservando tempo e

espaço, neste mesmo módulo, para as arrojadas teses do dr. Julián Jaynes.

Aguarde o leitor.

3. Outro eu dentro do eu?

Tenho ainda algo a dizer acerca da sensação de muitos de nós no sentido
de que haja outro eu dentro do eu. Se o leitor também experimenta essa
estranha impressão, não se assuste, pois estará em excelente companhia. Jung,
por exemplo, Frederick W. Myers, Gustave Geley, Maurice Maeterlinck,
Annie Besant, Paul Brunton ou pensadores de mais recente extração como
Peter Russell ou a escritora e atriz americana Shirley MacLaine.

De alguma forma que parece a resultante de um consenso, este "segundo
eu" vai ficando cada vez mais identificável com o que vimos chamando de
inconsciente. Não propriamente o inconsciente de Freud, que o entendia
como uma espécie de caldeirão ebuliente de paixões e desejos em busca
desesperada de expressão, mas o inconsciente como repositório de inconce-
bível volume de informações vitais ao processo de viver. Acontece, porém,
que o eu oculto é enigmático, silencioso e nada obstrutivo ou impositivo.
Parece preferir a meia luz dos bastidores, deixando o palco para a livre
movimentação do eu consciente. Talvez por isso tenha passado tanto tempo
despercebido, principalmente aqui, do lado ocidental da civilização, já que no
Oriente há muitos séculos sua presença vem sendo assinalada e discutida nas
tradições místicas. Na verdade, c o m o sempre sustentaram essas tradições, o
misterioso ser que convive conosco em outro nível de percepção nada tem
de secundário ou inferior, muito pelo contrário, é ele que se incumbe do
gerenciamento das mais nobres tarefas da vida, em vista de sua vasta experiên-
cia, de seu acesso a fontes de conhecimento situadas fora de nosso alcance
habitual e, por isso tudo, de sua sabedoria intemporal.

Referências ao lado oculto do eu começam a aparecer também nos
estudos acerca do psiquismo humano e de suas numerosas funções e disfun-
ções, como nos relatos acerca do fenômeno da personalidade múltipla. Na
terminologia inglesa, encontramo-lo identificado c o m o inner self helper
(abreviado para ISH), e que se pode traduzir como "guia interior", ou como
higher self, eu superior. Há até quem garanta visualizar objetivamente a
elusiva entidade como uma "pessoa" de características andróginas ou como
um símbolo impessoal, ou, ainda, como uma figura compatível com as cren-

175

















































Carl G. Jung, quarenta anos após.
Ao que tudo indica, estava mesmo "no ar" a doutrina do inconsciente.

O livro de Hartmann transcendeu os círculos especializados, para alcançar
uma classe muito mais ampla de leitores interessados. A Filosofia do Incons-
ciente teve êxito fulminante. Em 1882 já estava c o m nove edições em alemão
e uma tradução francesa. Dois anos depois foi vertida para o inglês. O
inconsciente, no dizer de Lancelot Law Whyte (apud Clark, pág.115), deixara
de ser tema para discussão entre os profissionais, para se tornar um debate
social, embutido na moda, competindo entre os que desejavam exibir cultura,
com a grande conversação em torno de Richard Wagner e sua música revo-
lucionária.

A essa altura, portanto, alguns dos conceitos fundamentais da psicanálise
já se esboçavam com certa nitidez. Faltava apenas quem os coordenasse e os
pusesse a trabalhar no âmbito de um modelo clínico desenhado para o
consultório. Freud seria o arauto da nova era que prenunciava um profundo
mergulho nos porões e bastidores da mente. Nem por isso, contudo, seria
fácil a tarefa do jovem médico austríaco. Pelo contrário. Debater emocionan-
tes temas científicos em sociedade é diferente de introduzir ideias tão renova-
doras no contexto sempre conservador da ciência, por mais que ela se abra à
pesquisa do que ainda permanece ignorado. Não é sem razão que Freud se
queixa de ser tido como um monomaniaco. Era apenas o começo. Obstinada
resistência, mesmo entre alguns de seus discípulos, encontraria a sua teoria
predileta do pansexualismo, mas também a observação de que a histeria não
era privilégio das mulheres provocou apaixonadas reações, c o m o temos visto.

Seja como for, os elementos formadores da psicanálise pareciam ocupar
o circuito de muitas mentes bem dotadas da época. Clark cita mais um,
Theodor Lipps, cujos textos Freud conheceu e que escreveu isto, em 1883:

"Afirmamos não apenas a existência dos processos inconscientes além
dos conscientes; postulamos mais, que os processos inconscientes constituem
a base dos conscientes e os acompanham."

Frederick W. Myers, que saudou com entusiasmo os primeiros escritos
de Freud acerca da histeria, criaria a expressão ser subliminal c o m o espécie
de sinônimo para o termo inconsciente. Começava a desenhar-se a idéia de
que inconsciente seria mais que outro nome para o lado oculto do ser, com
as características de outro eu dentro do eu. Idéia, aliás, nada estranha às
formulações teóricas e experimentais de Jung, do médico francês, dr. Gustave
Geley, e de outros, c o m o ainda teremos oportunidade de ver.

200

Por essa época, o conceito de inconsciente começava também a ser
adotado pela literatura, fenômeno que se ampliaria mais tarde quando a
terminologia freudiana passou a ser sinal de status para escritores e poetas,
que a introduziam nos seus contos, romances, ensaios e poemas.

Clark lembra o escritor inglês Samuel Butler que considerava memória
e hábito como transmissíveis inconscientemente de geração em geração.
Posteriormente, em Unconscivus Memory, sustentou a tese de que a memória
seria apenas mais uma das propriedades da matéria e que "cada átomo con-
servava a memória de certos antecedentes" (p. 116).

Embora a proposta de Butler possa acolher duas leituras diferentes e até
opostas, vejo nela aspectos que merecem consideração especial. Se, com uma
daquelas leituras, o escritor britânico parece alinhar-se com os materialistas
convictos que entendem o pensamento como uma segregação do cérebro e,
portanto, explicável em termos de fisiologia nervosa, com a outra ele estaria
antecipando, num impulso de intuição, um conteúdo psíquico nas células,
ou, no mínimo, "terminais" de um psiquismo cósmico generalizado. De
minha parte, devo confessar minhas simpatias pela idéia, já que o psiquismo
humano, como um todo, comanda a vastíssima comunidade celular, como
regente de uma afinada orquestra. Parece-me difícil, senão impraticável, rea-
lizar essa proeza sem que alguma forma de psiquismo esteja presente em cada
uma das células que vivem intensamente suas trocas e funções dentro do
edifício biológico, recebendo ordens e expedindo sinais, em estreito e perma-
nente intercâmbio com o "comando central". Covém lembrar que estamos
falando da hipótese de existir uma faculdade mnemónica na célula, não de
uma função consciente, o que faz enorme diferença. Os animais, por exemplo,
dispõem de evidente função psíquica, embora inconsciente.

Lê-se, aliás, em A Evolução Anímica, do pensador francês Gabriel De-
lanne, a proposta de uma "memória orgânica", que ele caracteriza como
"inconsciente fisiológico", em contraste com a "memória psíquica" (p. 136 e
seg.). Trabalhando articuladamente, ambas inconscientes, teriam "um terri-
tório comum da alma e do corpo". Juntas, seriam responsáveis pelo gerencia-
mento dos instintos.

Sem recorrer a casos extraordinários - escreve Delanne, à página 140 -,
encontramos em nossos atos diuturnos séries complexas e bem determi-
nadas, isto é, cujos começos e fins são fixos, e cujos meios, diferentes uns
dos outros, se sucedem em ordem constante, como seja no subir ou descer
uma escada, depois de um longo hábito. A memória psicológica ignora o

201

número de degraus e a memória fisiológica conhece-o, à sua maneira, tanto
quanto a divisão dos andares, a distribuição dos patamares e pormenores
outros, de sorte a jamais se enganar.

Esse automatismo, aliás, tem sido reconhecido como fator de libertação,
uma vez que libera os complexos mecanismos psíquicos para funções mais
nobres. Por isso, Annie Besant condena enfaticamente, em seu estudo sobre
o consciente, certos praticantes da ioga que, após longo e penoso treinamento,
conseguem interferir no sistema, revertendo o automatismo de certas funções
biológicas para trazê-las de volta ao controle consciente da vontade. É o caso,
por exemplo, daqueles que modificam os batimentos cardíacos, o ritmo
respiratório, o movimento peristáltico e outros procedimentos biológicos,
automatizados a duras penas, no correr de um tempo cuja extensão mal
podemos estimar.

C o m o vimos, Besant alinha-se entre os que identificam um claro com-
ponente psíquico na célula, c o m o se pode ler mais de uma vez em A Study
in Consciouness. Isto, por exemplo:

"É preciso lembrar que assim como o sistema solar constitui campo
evolutivo para todas as consciências que o integram, há, dentro dele, áreas
menores servindo como campos menores."

E acrescenta: "O homem é o microcosmos do universo e seu corpo serve
de campo evolutivo para miríades de consciências menos evolvidas do que a
sua própria" (p. 115).

E mais adiante, à página 119:
"Cada célula no corpo é composta de miríades de minúsculas vidas, cada
uma delas com a sua consciência germinal."
Trata-se, no entender da autora, de uma consciência que começa, no seu
poético dizer, a "madrugar", ou seja, a emitir seus primeiros tímidos clarões
de um sol que ainda não surgiu na linha do horizonte. Essas diminutas
partículas de consciência, que Besant caracteriza como "mónadas", provêm
do "oceano de consciência" em que se contém o universo. É o que também
entende Teilhard de Chardin, para o qual a vida constitui "imensa ramificação
do psiquismo que se busca através das formas". Ou Bergson, que considera a
vida manifestação do "élan vital", incumbido de "pensar a matéria".

A decifração dos persistentes enigmas que ainda bloqueiam o acesso ao
melhor entendimento do ser humano tem de passar, necessariamente, pelo
território do inconsciente. E lá que se ocultam muitas de nossas ignorâncias,

202

dado que assim se chama aquilo que ainda não conhecemos.

6. O plano é imbatível

São freqüentes, neste livro, as referências à misteriosa região do nosso
próprio ser que temos identificado com diferentes expressões como eu supe-
rior, overself I S H , hóspede desconhecido, inconsciente e outras. Não menos
freqüentes têm sido as referências à interface personalidade/individualidade,
bem como à sutil diferença entre espírito e alma, na maneira de entender dos
instrutores do prof. Denizard Rivail (Allan Kardec). É chegado o momento
de aprofundarmos mais um pouco esses conceitos. Recorreremos, para isso,
ao liyro The Wisdorn of lhe Overself de Paul Brunton, mais um P h D que
trago ao nosso debate. Há boas razões para essa escolha. A primeira delas é a
de que Brunton revela-se erudito especialista no assunto de trasladar para a
cultura ocidental os conceitos da sabedoria oriental. É possível que o leitor
até já o conheça de dois de seus livros mais populares, A Search in Secret índia
e A Search in Secret Egypt, ambos traduzidos para a língua portuguesa desde
algumas décadas, respectivamente como A índia Secreta e O Egito Secreto,
inteligentes dissertações sobre os mistérios e enigmas que ainda persistiam na
cultura daqueles povos. The Wisdom of the Overself mais recentemente
traduzido para o português, como outros desse mesmo gabarito escritos por
Brunton, é obra muito mais ampla e ambiciosa, porque mergulha fundo no
enigma do próprio ser humano, sem deixar, contudo, de ser didático, quase
jornalístico, na sua linguagem objetiva e de fácil poder de comunicação.

Paul Brunton nasceu em Londres, em 1898, e doutorou-se em filosofia
pelo McKinley-Roosevelt College, de Chicago, Estados Unidos. Como jor-
nalista, colaborou em várias publicações, com diferentes pseudônimos, diri-
giu World Trade, uma publicação especializada em psicologia e a Occult
Review. Acabou abandonando essa atividade a fim de dedicar-se mais ao
estudo do misticismo oriental, do que dá conta em seus primeiros livros há
pouco mencionados, sobre a índia e o Egito, bem como China, Japão, Tibete
e Sião. Em breve, seria considerado o maior conhecedor ocidental da ioga e
de outros aspectos da filosofia religiosa oriental, condição reconhecida e
proclamada pelas próprias autoridades orientais no assunto, como o sumo
sacerdote siamês, que o distinguiu publicamente pela sua respeitável cultura
especializada.

The Wisdom of the Overself"foi publicado nos Estados Unidos, pela E.
P. Dutton, em junho de 1943. Em dezembro desse mesmo ano tornou-se

203

necessária nova edição. A que tenho comigo é a de julho de 1945. Para não
alongar demais este capítulo, comentaremos apenas algumas referências sele-
cionadas segundo meu critério pessoal, inevitavelmente arbitrário, motivo
pelo qual sugiro ao leitor que vá diretamente ao livro de Brunton, se ainda
não o fez.

Já de início, Brunton adverte para a habitual confusão entre o conceito
de mente e o de cérebro, sendo este apenas um instrumento, eu diria, um
circuito, por onde transita o pensamento com suas mensagens. Daí porque o
autor se estende um pouco mais em estudar o que entende por mentalismo,
em oposição ao materialismo predominante na cultura do seu tempo e ainda
mais hoje, meio século após a publicação de seu livro. Por isso, adverte-nos
sobre uma realidade sempre ignorada ou desatendida, ao informar que sabe-
mos das coisas que nos cercam "apenas o que os sentidos nos dizem". Nossa
experiência é uma construção sensorial, opina, e "nunca chegamos à verdade
absoluta sobre as coisas, mas apenas naquilo em que elas afetam a observação
direta" (p. 18). É verdade. O dr. J. B. Rhine batalhou a vida inteira para
demonstrar que há uma realidade que escapa e transcende aos nossos sentidos.
Brunton não é daqueles que se recolhem a uma torre de marfim para mergu-
lhar na meditação, embora a pratique com freqüência; ele acha que a concep-
ção habitual do mundo "é essencial para a vida prática". Ou seja, é aqui que
estamos vivendo e precisamos estar preparados para isso. Não há como
ignorar, no entanto, que, "em última análise, nada existe senão a mente"
(p.26). Mais para o fim do livro (p. 352), ele voltará ao tema específico dos
sentidos para dizer que cada um deles nos mostra apenas um corte de certos
detalhes do espetáculo da vida, mas não tem condições de nos oferecer uma
experiência global em qualquer momento dado de tempo e espaço. Nas
instruções finais acerca de sua metodologia da meditação, ele ensina que é
indispensável ao aprendiz "fechar a porta dos sentidos ao mundo exterior" e
evitar que o pensamento fique a vagar, sem rumo, levado pelas fantasias do
momento. É necessário, insiste, "desfazer o trabalho dos cinco sentidos", ou
seja, impedir que eles funcionem por algum tempo ou, então, você não
conseguirá mergulhar na sua própria intimidade, que, afinal de contas, é parte
integrante da mente universal. A propósito, vai logo ensinando (p.37) que a
expressão mente universal será empregada no seu livro c o m o sinônimo de
inteligência universal ou cósmica. Se o leitor preferir uma terminologia mais
poética, ele sugere alma da natureza, pois é nesse contexto que vivemos todos,
c o m o já dizia o apóstolo Paulo. Brunton expressa esse mesmo conceito em
diferentes oportunidades e com palavras diversas, mas o conteúdo delas é 0

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