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O azul dos olhos dela, de Carmélia Cândida, reúne contos e crônicas em tons diversos. Abordando temas como amor, morte, sexo, encontros e desencontros, o livro mistura textos picantes, divertidos, poéticos, leves, impactantes e pesados que, sutilmente, levam a reflexões sobre nosso tempo e sobre o viver. O leitor se verá diante de personagens “reais”, os quais ele pode facilmente relacionar a si mesmo ou a alguém conhecido, e apreciar um estilo de narrativa elegante e audacioso, que mostra a força da presença feminina na literatura.

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Published by carmeliacsd, 2020-06-23 14:05:25

O azul dos olhos dela

O azul dos olhos dela, de Carmélia Cândida, reúne contos e crônicas em tons diversos. Abordando temas como amor, morte, sexo, encontros e desencontros, o livro mistura textos picantes, divertidos, poéticos, leves, impactantes e pesados que, sutilmente, levam a reflexões sobre nosso tempo e sobre o viver. O leitor se verá diante de personagens “reais”, os quais ele pode facilmente relacionar a si mesmo ou a alguém conhecido, e apreciar um estilo de narrativa elegante e audacioso, que mostra a força da presença feminina na literatura.

Keywords: contos picantes,literatura brasileira,escritos por mulheres,literatura feminina,relações humanas

Carmélia Cândida

O AZUL DOS
OLHOS DELA



Carmélia Cândida

O AZUL DOS
OLHOS DELA

2ª edição

Edição Independente
Pará de Minas| 2019

© Copyright 2019, Carmélia Cândida.

Capa: Gabriel Rischbieter
Revisão: Alaércio Delfino
Diagramação: Jéssica Macedo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
C217

Cândida, Carmélia

O azul dos olhos dela / Carmélia Cândida. - Pará de

Minas: Edição Independente, 2019

ISBN: 978-65-900952-0-6

1. Literatura brasileira. 2.Contos. 3. Crônicas. Brasil.

Título. CDD B869.35

CDU 821.134.3(81)-3

Todos os direitos reservados, protegidos pela Lei 9.610/98.
Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida – em
qualquer meio ou forma – nem apropriada e estocada sem a expressa
autorização de Carmélia Cândida.

Esta é uma obra de ficção. Nomes de pessoas, acontecimentos e locais
que existam ou que tenham verdadeiramente existido em algum período
da história foram usados para ambientar o enredo. Qualquer semelhança
com a realidade terá sido mera coincidência.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

Sumário 7
11
Valmir da Margarida 17
Redenção 20
As anáguas de dona Glória 27
Se tu me amas... 30
Moonlight Sonata 35
Viver não dói 38
Ciclo 43
Cristine 48
Um olhar para Antônia 51
Aniversário 57
Flores no túmulo 61
Viveu a vida que quis
No enterro

5

O azul dos olhos dela 64
Necrochorume 67
Upa, upa, cavalinho alazão! 69
Atendimento por reconhecimento de fala 75
A primeira noite 79
Um presente para Gabriel 82

6

Valmir da Margarida

Foram duas vezes Margarida na vida de Valmir.
A primeira, na juventude. Ele 22; ela 15. Valmir
acabara de se mudar com a família para o povoado
quando a viu pela primeira vez. Tinha saído para comprar
lâmpadas. Quando passava pela praça, parou para perguntar
onde ficava o armazém e se deparou com Margarida. Nunca
tinha visto uma moça tão formosa como aquela! Quando os
olhos deles se cruzaram, Valmir até esqueceu onde estava, o
que estava fazendo. Após alguns segundos, disse “boa tarde”
e perguntou a ela onde ficava o armazém.
Margarida, quando ouviu a voz de Valmir, sentiu um so-
bressalto dentro de si. Na hora, não entendeu o porquê. Ficou
desconcertada, indicou-lhe onde ficava o armazém, despediu-
-se e seguiu para casa, sem conseguir parar de pensar em quem
seria o forasteiro. Num lugar pequenininho como aquele, não
seria difícil descobrir. Ficou contente quando soube que tinha
chegado para ficar.
Naquela época, era costume as pessoas fazerem visita de
cortesia para acolher novos vizinhos. Foi assim que conver-
saram pela segunda vez. Foi uma alegria quando se reviram.
Margarida foi com os pais dela à casa dos pais de Valmir fa-
zer a tal visita. Assim, passaram a se conhecer oficialmente.
Era um tempo de respeito entre rapazes e moças. Não iam
chegando e “ficando”, como os jovens de hoje fazem. Para

7

Carmélia Cândida

pegar na mão da moça, era um custo! Namorar, só depois do
consentimento do pai da jovem.

Ficaram na troca de olhares e de sorrisos por um tempo.
Até que um dia, na praça, depois da missa, Valmir perguntou a
Margarida se ela aceitaria namorá-lo. Ela ficou alegre, pois era
tudo o que queria, mas também ficou triste, pois temia que o
pai não iria deixá-la namorar. Mas tanto insistiu, tanto falou na
cabeça do pai e, com a ajuda da mãe e de Nossa Senhora das
Graças, o namoro acabou sendo consentido. Só dentro de casa.

Foi um namoro breve, de seis meses, mas muito apaixona-
do. Faziam planos de se casar. Deixasse Margarida completar
18 anos! Ela tinha certeza de que queria Valmir como seu
amor para o resto da vida. Imaginava os dois envelhecendo
juntos. Ele sabia que tinha encontrado a mulher da sua vida.
Viveriam juntos para sempre!

Tudo poderia ter dado certo, se o pai dela não tivesse re-
solvido se mudar para o longínquo estado de Tocantins. Era
aventureiro, tinha ficado deslumbrado com as notícias de um
amigo que se mudara para lá e que estava muito bem de vida.
O amigo prometera-lhe ajeitar as coisas quando ele lá chegas-
se. Seria bom mudar de ares.

Margarida chorou, esperneou. Disse que não queria ir.
Pediu ajuda para a mãe. Agarrou-se com Nossa Senhora das
Graças, com São Benedito, com São Judas Tadeu, mas não
teve jeito. Valmir disse que se casaria com ela se o pai consen-
tisse, que tinha certeza de que a queria como esposa. Pediu
que o casamento fosse feito, pois assim ela poderia ficar. O
pai disse que não. Margarida era muito nova para se casar, de-
pois de um tempo poderia se arrepender, e ele não a deixaria
fazer isso. Estava mesmo decidido e não a deixaria para trás.

O dia em que Margarida foi embora foi um dia de muita
tristeza, tanto para ela quanto para Valmir. 1200 km! Para os
dois, a distância era um abismo. Não dava para um ficar indo

8

O AZUL DOS OLHOS DELA

até o outro. Na época, quase ninguém tinha telefone. O jeito
foi trocar cartas. Por muitos anos.

Quando Margarida foi ficando mais velha, o pai começou
a pressioná-la, dizendo que tinha que se casar. Distante de
Valmir e sem esperanças de reencontrá-lo, foi o que acabou
acontecendo. Casou-se em Tocantins.

Com o tempo, Valmir, também sem esperanças, acabou se
casando também. Ele já estava com 42 anos; a noiva tinha 32.
O nome dela era Célia, moça boa, que morava num povoado
vizinho e há muito tempo estava enamorada de Valmir. Fizera
de tudo para conquistá-lo, e ele, cansado de viver solitário,
acabou se deixando conquistar. Não sentia por ela o amor que
sentira por Margarida, mas a admirava e a respeitava. Foram
33 anos juntos. Foi uma ótima esposa, doce, companheira e
cheia de cuidados para com Valmir. Célia não podia ter filhos,
mas Valmir não se importou, pois os filhos que ele sonhou ter
seriam com Margarida.

Margarida também sempre teve muito respeito e conside-
ração pelo marido, João, mas, sentir amor de verdade por ele,
nunca sentiu. Foi boa esposa, boa mãe dos quatro filhos que
tiveram, mas Valmir nunca saiu de seu coração. Anos e anos
depois de ter ido embora, chorava por ele no escuro do seu
quarto. Mesmo assim, viveu bem com João, e ele nunca teve
nada a reclamar dela.

A segunda vez Margarida foi na terceira idade. Ele 75; ela
68. Havia quinze anos que Margarida ficara viúva e, durante
esse tempo, pensava muito em Valmir. Nunca mais tinha vol-
tado ao povoado, mas, vez ou outra, recebia notícias do que
se passava por lá. Não tencionava voltar se não tivesse um
motivo pelo qual valesse a pena. Assim que soube da morte
de Célia, decidiu que voltaria. Deixaria passar um tempo, mas
sentia que chegara a hora de viverem o que haviam sonhado,
mas não tinham vivido. Num telefonema breve, avisou para

9

Carmélia Cândida

Valmir o dia em que chegaria.
Numa tarde de sábado, Margarida desce do ônibus na pra-

ça. Tinha feito uma longa viagem, também de ônibus, até a
capital e, de lá, seguira para o povoado. Valmir ficara espe-
rando-a desde a manhã, pois não sabia a hora certa em que
chegaria. Ao se verem, emoções de 53 anos atrás se reacen-
deram nos dois. A lembrança da primeira vez que se viram,
do pedido de namoro depois da missa, dos planos, da partida
de Margarida; tudo passou brevemente pela mente dos dois
durante o longo aperto de mão. Não foi preciso dizer nada.
Os olhos ficaram marejados, e então se abraçaram.

Valmir pegou a mala de Margarida, e seguiram para a casa
dele, silenciosos. Havia muito que conversar. Mas teriam o
resto da vida para isso. Não se preocupavam se o resto da
vida seria muito ou pouco tempo. Só queriam estar juntos em
cada instante. E intensamente.

10

Redenção

As gengivas começavam a sangrar. A roupa estava
encharcada de suor. O corpo queimava sobre a es-
teira que lhe servia de colchão. As dores pelo cor-
po aumentavam e diminuíam, conforme a oscilação dos seus
estados de consciência. Molhava a boca quando conseguia,
tentando diminuir a secura. Não. Não quis buscar socorro en-
quanto podia. Também não sabia se conseguiria. Estava ali
sem carro ou outra condução. A cidade mais próxima ficava a
sessenta quilômetros. Ficaria ali até sucumbir. Merecia aquilo
e sofreria até o fim. Sozinho.
Esforçou-se para abrir os olhos e, pelo buraco que servia
de janela, viu o breu do lado de fora. Deviam ser umas vinte e
uma horas. Fora picado por volta das dezesseis, quando pega-
va lenha em um monte debaixo da mangueira. Uma cascavel,
ele tinha certeza. Viu o guizo.
Queria perder a consciência. Queria que tudo terminasse
rápido. Mas não podia ser assim. Resistiria o quanto pudes-
se. Tinha mesmo que ser lenta sua morte, pois assim sofreria
mais. Ele precisava sofrer. Sofrendo, quem sabe, diminuiria
sua pena. Aquela picada foi providencial. Não teria sido Deus
falando com ele?
Ao menos Angelina poderia deixar de invadir seus pensa-
mentos. Já a vinha esquecendo. Por que a imagem dela voltar
agora, com tanta força? Ela, a razão de sua desgraça. Ela, que

11

Carmélia Cândida

o fazia querer a morte. Ela, não. Ele. Ele que fora um fraco,
um pobre pecador.

Ah, Angelina... Como você é linda! Ah, Angelina, como você é de-
moníaca! Deve estar agora no conforto da sua casa, ao lado do seu
marido, enquanto eu estou aqui, agonizando... e vou agonizar até o fim.
Talvez assim...

Assim que chegou para assumir a paróquia, encantou-se
com Angelina. Ela era casada com Fernando, quinze anos
mais velho que ela. A relação entre eles era estranha. O que
se sabe é que Angelina adorava seduzir, e Fernando ou não
percebia ou não se importava com isso. Talvez tivesse uma ne-
cessidade enorme de se sentir desejada e linda o tempo todo.
Talvez não fosse desejada pelo marido, apesar de linda. Talvez
tivessem algum combinado. Talvez o marido só quisesse uma
mulher bonita ao seu lado, de “enfeite”, e ela ficasse com ele
por causa da vida confortável que ele lhe dava. Talvez...

Sim, era muito bonita. Cabelos longos, seios fartos e fir-
mes, corpo curvilíneo. Exalava sensualidade. E sabia disso. E
usava isso para seduzir. Seduzia colegas de curso, seduzia o
atendente da padaria, seduzia o frentista do posto de gasolina,
seduzia o garçom, seduzia o mecânico, seduzia até amigas.
Mas só seduzia. Por diversão ou por hábito. Nos casos em
que a sedução durou mais, fez o tipo quero, mas estou com medo
de doer ou jamais trairei meu marido. Quando as coisas apertavam,
esquivava-se, fazia-se de mal-entendida. Você entendeu errado, eu
sou apenas educada, não consigo maltratar ninguém, jamais tive interesse
em você além de amizade.

Uma vez, um colega da academia, casado, ficou alucinado
por ela. Ela foi “dando corda”. Passaram a trocar mensagens
pelo celular. A mulher, desconfiada de que havia algo errado,
foi espionar o telefone e encontrou várias mensagens. Colo-
cou-o pra fora de casa, procurou o marido de Angelina e con-
tou pra ele. Angelina negou tudo, se fez de vítima, e o marido

12

O AZUL DOS OLHOS DELA

acreditou nela. O colega ficou com o casamento desfeito e foi
desprezado por Angelina. Acabou se mudando de cidade, e
nunca mais se falaram.

Depois desse episódio, Angelina ficou com medo e se
aquietou por um tempo. Até que o padre Abdon chegou para
assumir a paróquia... Um padre jovem, bonito, gentil, inteli-
gente e educado. Angelina, de família muito católica, era fre-
quentadora assídua da igreja, fazia parte de pastorais. A ami-
zade com o padre veio rápido. Era prestativa, tinha tempo
disponível e ofereceu para ajudá-lo nas questões administra-
tivas da paróquia até que passasse o período de adaptação.
Passaram a ficar muito tempo sozinhos. Ela levava-o à capital
quando ele tinha algo a resolver lá. Ele foi se encantando. Ela
não tinha a menor intenção de ter um relacionamento com
um padre, mas ele era tão gentil! Tinham tantas ideias afins...
E era muito atraente, ainda mais quando não estava de batina.
Não. Não podiam. Seria um grande pecado.

Padre Abdon lutou como pôde contra seus pensamentos
em relação à Angelina, sem conseguir disfarçá-los. Ela conti-
nuou fazendo o que sempre fazia: seduzindo, “inocentemen-
te”, pronta para recuar a qualquer momento. Foi uma paixão
avassaladora, da parte dele. Logo, as pessoas que frequenta-
vam a igreja começaram a perceber, e um zum-zum-zum típi-
co de cidadezinha do interior surgiu. O padre e Angelina estavam
tendo um caso! Ele vai deixar a batina para se casar. Não estavam
tendo caso, nem havia decisão de deixar a batina (embora essa
ideia fosse ficando cada vez mais forte na mente do padre
Abdon), mas o zum-zum-zum continuava.

A paixão de padre Abdon foi aumentando na mesma pro-
porção da desconfiança das pessoas. Sem conseguir se conter,
foi se declarando para Angelina, aos poucos, até se declarar
com voracidade. Ela recuava, dizia que ele estava confundin-
do as coisas, que era uma mulher séria, bem casada...

13

Carmélia Cândida

Foi apenas um beijo que trocaram. Ninguém viu. Na sa-
cristia, após uma reunião da pastoral. Um beijo que despertou
em padre Abdon seus instintos mais primitivos. Enquanto
isso, um movimento silencioso na cidade foi iniciado por al-
gumas beatas, que queriam que o sacerdote fosse expulso de
lá. Dirigiram-se à casa paroquial, em grupo, e fizeram amea-
ças. Procurariam o bispo, a imprensa. Convocariam todos os
moradores da cidade para uma reunião e exporiam tudo que
estava acontecendo. A igreja ficaria vazia. Aquela pouca ver-
gonha tinha que acabar.

Dias depois, padre Abdon recebeu um telefonema da dioce-
se. Talvez fosse melhor se ele fosse transferido. Mas não con-
seguia pensar na transferência, nas ameaças das beatas. Tudo
que ocupava sua mente, naquele momento, era a imagem do
corpo nu (que nunca tinha visto) de Angelina. Imaginava esta-
rem juntos, o gosto dos seios dela, da saliva, do sexo... Imagi-
nava-a cavalgando-o, gemendo de prazer. Imaginava-a debaixo
dele, pedindo mais... Imaginava-se dizendo-lhe obscenidades
que jamais dissera a alguém. Estava disposto a abandonar tudo
por ela. Já nem se lembrava mais que era um padre. Não lhe
importava mais o sacerdócio, a igreja. Queria-a. Era tudo o que
queria, e estava disposto ao que fosse necessário.

Uma noite, ele vai à casa de Angelina. Tinha bebido, coisa
que não tinha costume de fazer, mas que estava fazendo nos úl-
timos tempos. Uma reunião de amigos e familiares estava acon-
tecendo. Ele não sabia. Vendo-a ao lado do marido, sorridente
e com o braço envolto no pescoço dele como se morresse de
amor por ele, num ímpeto de insanidade, descarregou toda sua
paixão. Falou aos brados para a plateia estupefata. Foi inter-
rompido por Angelina, que o humilhou, desprezou, ridicula-
rizou, no que foi seguida pelos outros. O padre Abdon está louco!

Em trapos, voltou para casa. Que vexame! Ficou uma semana
sem sair do quarto. O sacristão inventou que ele estava doente

14

O AZUL DOS OLHOS DELA

e que não tinha condições de fazer as celebrações. Chorou
muito. Pensou muito. Angelina não merecia seu amor. Não merecia
nada. Nem coração devia ter! Quando conseguiu se recompor e
sair do quarto, recebeu a comunicação formal do bispo sobre
sua transferência. Não quero. Não acredito mais na minha vocação.
E passou a se torturar com a ideia de ser um pecador que não
merecia mais nada de Deus.

Sairia dali, mas não para outra paróquia. Não queria mais
ser padre. Precisava se punir. Enviou uma correspondência à
diocese e, sem esperar resposta e sem se despedir de ninguém,
partiu. Foi viver recluso naquela tapera no meio do mato, bem
longe dali. O terreno onde ficava a tapera era de Josias, um
primo. Só ele ficara sabendo e, vendo que não conseguiria
dissuadir Abdon, jurou guardar segredo. Seis meses haviam
se passado. Dormia sobre a esteira, bebia água de uma mina
próxima à habitação, comia o mínimo necessário. Apenas ar-
roz ou macarrão branco preparados no fogão improvisado de
tijolos, às vezes ovos e frutas. Foram esses os mantimentos
que ele aceitou que Josias levasse-lhe uma vez por mês. Estava
magro, abatido e com uma barba enorme. Quase nada restara
do alegre padre Abdon.

Quando foi picado pela cascavel, sentiu uma esperança.
Quem sabe o sofrimento da morte pudesse redimir-lhe os pe-
cados? E sorriu. Sentindo uma dor intensa, buscou água na
mina, que colocou ao lado da esteira, e acendeu o lampião.
Ainda escreveu algumas cartas curtas. Uma para a mãe e outra
para os familiares. Para Angelina... não... melhor que ela nem
ficasse sabendo do seu fim. Ou, talvez se ela ficasse, pensaria
em suas atitudes. Mas não saberia por ele. Depois rezou, rezou
e rezou, pediu perdão a Deus pelas suas faltas e deitou-se so-
bre a esteira. Sabia que as horas seguintes passariam devagar.

Nos últimos momentos antes de perder de vez a consciên-
cia, viu um vulto se aproximando da entrada da tapera. Com

15

Carmélia Cândida

dificuldade, piscou os olhos várias vezes, forçando a visão,
que estava turva. Conseguiu distinguir os contornos de Ange-
lina, que foi se aproximando. Ela sorria. Estava radiante. De
repente, o quarto clareou, como se a noite virasse dia. Ange-
lina chegou até ele, se abaixou e falou com a voz suave: Me
perdoa? Ele sorriu. Tentou dizer alguma coisa, mas as palavras
não saíram. Estava cansado por demais. Fechou os olhos, e
tudo virou breu.

Por volta das quatro da manhã, parou de respirar. Em
uma das mãos, trazia uma imagem de Jesus crucificado. Es-
tava em paz.

16

As anáguas de dona Glória*

Estremecia ao ver a barra rendada da anágua dela bam-
boleando por baixo da saia. Como queria arrancar
aquela saia e vê-la na anágua bege, sutiã certamente
da mesma cor. A visão do corpo carnudo e da pele branca de
dona Glória despertava-lhe tremores todas as manhãs, quan-
do ela passava com a sacola de compras da padaria, trazendo
pão fresco para o café da manhã da família.
Era quase um ritual. Ela passava, diariamente, à mesma
hora. Instantes antes, seu Genivaldo plantava-se à porta da
floricultura, fingindo fazer qualquer arrumação nas plantas ou
nas placas com preços, para vê-la passar, balançando as an-
cas... para um lado e para o outro. E para dar-lhe “bom dia”.
Era a melhor hora de sua rotina. Foi assim ao longo de anos.
Durante as noites, chegava até a ter febre, imaginando-se
por cima de dona Glória. Imaginando aquela mulher uivando
de desejo. Não! Dona Glória era pura, honesta, mãe de famí-
lia, respeitada dona de casa. Não devia ter esses pensamentos
com ela. Que infâmia! Mas aquele requebrar! Aquelas carnes!
Em vão eram seus esforços para afastar os pensamentos lu-
xuriosos. Como era difícil! Ainda mais nas madrugadas, na
solidão de sua casa fria.
Altiva e com um sorriso gentil, a matrona o cumprimen-
tava, religiosamente. Era uma senhora muito educada. Certa-
mente era delicada com todos. Seu Genivaldo, disfarçando

17

Carmélia Cândida

a alegria que sentia, respondia ao cumprimento com amabi-
lidade, cheio de timidez. Às vezes, fazia também um comen-
tário breve sobre o tempo. E lá ia dona Glória, com a anágua
balançando por baixo da saia. Com aquele requebrar que seu
Genivaldo conhecia de cor.

Se ao menos pudesse oferecer-lhe uma flor! Não! Imagina!
Ele conhecia o marido de dona Glória. Não eram amigos, mas
moravam no mesmo bairro. E o sujeito era caboclo muito
sério. Com a cara sempre ruim. E macho. O floricultor não
era tão ousado assim. Era um homem pacato, tímido, e cheio
de complexos. Não via nada interessante em si. Teve alguns
relacionamentos na vida, mas nunca se casara e não era um
conhecedor da complexa alma feminina. Mas algo lhe dizia
que dona Glória era uma loucura na cama. Tinha certeza dis-
so, mesmo com a imagem de uma dama discreta e recatada.

Às vezes, seu Genivaldo sentia-se cansado daquele querer
idiota. Do desejo que o atormentava. Sentia raiva. Desejar,
desejar. Para quê? E por que ela, que era casada? Dona Gló-
ria bem que podia ajudar. A casa dela ficava duas ruas abaixo
da praça, e do lado de baixo. A floricultura ficava do lado de
cima da praça, onde também estava a padaria. Ela podia pegar
outro caminho, talvez até mais curto, para chegar à casa dela.
Mas, não. A diaba tinha que passar justamente em frente ao
seu estabelecimento. E todos os dias.

Por alguns momentos, desejava que ela sumisse, com seus
quadris, com seu requebrar, com aquele monte de carnes, com
as anáguas malditas. Mas, pensando bem, coitada! Ela não podia
ser responsabilizada pelo que se passava na mente de seu Ge-
nivaldo. Ninguém deve ser responsabilizado pelo que o outro
sente. No mesmo instante, ansiava por vê-la passar novamente.

Foi num dia como outro qualquer. Sem saber como e por que,
criou coragem. E sentiu-se bem. Talvez porque não suportasse
mais desejar tanto, viver atormentado por tanta luxúria. Talvez

18

O AZUL DOS OLHOS DELA

porque estivesse perdendo o juízo. Não importava o motivo, ele
iria se arriscar, sim.

Dona Glória ia passando. Ainda surpreso consigo mesmo,
estufou o peito e ofereceu-lhe uma flor. Ela, com discrição,
abriu um meio sorriso, perguntou se podia entrar para esco-
lher a mais bonita. O quê? Ele não acreditava naquela reação.
Estaria sonhando? Sentiu um baque no coração, que passou a
bater mais depressa. Meio confiante, meio desconcertado, foi
andando atrás da nobre madama, estupefato.

De súbito, dona Glória se volta, fica em sua frente e em-
purra-o em direção ao pequeno escritório. Fecha a porta de
vidro. À chave. Tudo muito rápido. Ele treme. Ela vai impe-
lindo-o até a mesa. Ele fica com os peitos dela bem diante de
seus olhos. Que visão! Ele para, estatelado. Não consegue res-
pirar direito e se deixa entorpecer pelo hálito de dona Glória.
Está encharcado de suor.

— Seu Genivaldo...
O quê? O que era aquilo? O escritório vai ficando escuro.
O ar falta para o pobre homem. E falta. E falta. A imagem de
dona Glória vai ficando distorcida. O hálito dela fica quen-
te demais em seu rosto. Seu Genivaldo leva a mão ao peito.
É tudo forte demais. Num gesto súbito, cai, amparado por
Dona Glória.
— Seu Genivaldo!
Antes de parar de respirar por completo, vê que dona Gló-
ria balbucia alguma coisa. Esforça-se para entender.
— Na sua porta... todos os dias... O senhor...
Tudo fica escuro e silencioso para seu Genivaldo. O re-
lógio da igreja começa a bater. Sete horas. O dia está muito
quente. O floricultor tem os olhos paralisados, arregalados. E
o primeiro cliente do dia entra na loja.

*Inserido nesta reimpressão. Publicado no livro Hipérboles
(ITAÚNA: Ramos Editora, 2017)

19

Se tu me amas...

Ela entrou apressadamente na sala do grande prédio
histórico. A viagem havia sido mais demorada que o
previsto, e ela estava atrasada. Sentou-se à primeira
carteira que viu, foi tirando blocos de anotações, caneta, or-
ganizando seu material. Quando terminou, respirou fundo,
e então percebeu que o professor ainda não havia chegado.
Olhou em volta. Os participantes da oficina de jogos poéticos
conversavam entre si, se familiarizando.
— Oi. Bom dia!
A voz, com sotaque nordestino, vinha de um homem sen-
tado ao seu lado e estava acompanhada de um sorriso largo,
que fez com que a sala parecesse mais clara.
— Oi. Nossa! Cheguei tão apavorada por estar atrasada
que nem cumprimentei ninguém. Desculpe.
— Eu sou Luan. Prazer — disse-lhe, estendendo-lhe a mão.
— Eu sou Andreza.
O professor, renomado poeta, entrou na sala.
— Bom dia. Sejam bem-vindos ao Encontro Nacional de
Literatura, que este ano tem sua edição em Ouro Preto. Espe-
ro que todos estejam aqui para os três dias do encontro.
Seguiram-se apresentações breves. Luan era de Pernam-
buco, professor universitário de História, apaixonado por li-
teratura. Andreza era do Espírito Santo, também professora
(de Literatura) e estava iniciando o mestrado. Ambos estavam

20

O AZUL DOS OLHOS DELA

ali especialmente para o encontro e ficariam os três dias em
Ouro Preto.

O professor, após propor um diálogo sobre poesia, exibiu
vídeos sobre o tema e depois pediu que se formassem duplas.
Andreza e Luan, como estavam lado a lado e já haviam se fa-
lado, apenas viraram as carteiras uma para a outra.

— Esses primeiros jogos são muito simples. Apenas para
“quebrar o gelo” e para introduzir a oficina. Depois trabalha-
remos com conteúdos mais densos. No primeiro jogo, vocês
vão compartilhar a experiência que têm com poemas, vão falar
sobre o que a poesia representa para vocês. No segundo, vo-
cês vão buscar poemas que trazem na memória e vão falar os
poemas um para o outro. Não precisam ficar aqui nesta sala fe-
chada. Podem usar o espaço da varanda, do jardim ou do pátio.

Os participantes espalharam-se. Andreza e Luan sentaram-
-se em um banco do jardim, sob uma árvore.

Foi Luan quem começou. Disse que aprendeu a gostar de
poesia apenas na faculdade, quando ganhou um livro da Hilda
Hilst. Ficou maravilhado. A poesia emblemática de Hilst levou-
-o a buscar outros autores. Passou a participar de reuniões lite-
rárias, saraus, ficando cada vez mais fascinado com o universo
poético. Arriscou-se até a escrever poemas, mas reconhecia que
não tinha talento. Luan falava com um olhar brilhante, e seus
olhos sorriam. Depois foi a vez de Andreza. Disse que, desde
pequena, adorava poesias, que quis ser professora de literatura
por causa do gosto poético. Citou seus autores preferidos. Cos-
tumava escrever, vez ou outra, mas não mostrava seus versos
para ninguém. Conversavam, riam, sentiam-se bem.

No segundo jogo, Luan disse: “Agora, comece você.” An-
dreza pensava nos poemas que sabia de cor, quando o profes-
sor se aproximou.

— Vamos para o segundo jogo? Já pensaram nos poemas?
Os poemas devem ser ditos com sentimento. Falem olhando
um para o outro — e se afastou.

21

Carmélia Cândida

Andreza começou olhando nos olhos brilhantes e pene-
trantes de Luan:

— João amava Teresa...
— que amava Raimundo... — Luan continuou, falando
junto com ela — que não amava ninguém...
— Não! É um de cada vez. Não é para falar junto.
— Você foi escolher um que eu sei! Escolha outro, então,
senão vou falar junto com você.
— Se se morre de amor!...
Luan continuou:
— Não, não se morre, /Quando é fascinação que nos sur-
preende /De ruidoso sarau entre os festejos...
— Ah...
— Tente mais um.
— Se tu me amas...
— Ama-me baixinho / Não o grites de cima dos telhados...
— Ok, Luan. Vamos mudar nosso jogo! Vamos falar jun-
tos, então.
E os dois, olhos nos olhos:
— Se tu me amas, ama-me baixinho / Não o grites de cima
dos telhados / Deixa em paz os passarinhos / Deixa em paz
a mim!/ Se me queres, enfim,/ tem de ser bem devagarinho,
Amada,/ que a vida é breve, e o amor mais breve ainda... 11
— Se se morre de amor! / — Não, não se morre, / Quan-
do é fascinação que nos surpreende / De ruidoso sarau entre
os festejos; / Quando luzes, calor, orquestra e flores / Asso-
mos de prazer nos raiam n’alma, / Que embelezada e solta em
tal ambiente / No que ouve e no que vê prazer alcança!/ (…)
Amá-la, sem ousar dizer que amamos, / E, temendo roçar os
seus vestidos, / Arder por afogá-la em mil abraços: / Isso é
amor, e desse amor se morre!22
— João amava Teresa que amava Raimundo / que amava

1 1 Bilhete - Mário Quintana
2 2 Se se morre de amor – Gonçalves Dias

22

O AZUL DOS OLHOS DELA

Maria que amava Joaquim que amava Lili / que não amava
ninguém. / João foi para os Estados Unidos, Teresa para o
convento, / Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra
tia, / Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
/ que não tinha entrado na história.33

Foram despertados pelo professor, que teve que tocar-lhes
os ombros para anunciar que já era hora do almoço e que de-
veriam encerrar a atividade.

Na parte da tarde, Luan chegou atrasado e se sentou lon-
ge de Andreza. Foram feitos outros jogos e formados outros
grupos, mas os dois não ficaram juntos em nenhum deles.
Seus olhos, porém, vez ou outra se encontravam.

O tempo voou. Na saída do prédio, Luan e Andreza se
encontraram.

— Que oficina você vai fazer amanhã?
— Práticas narrativas. E você, Luan?
— Me inscrevi na oficina de poesia visual... Então não ire-
mos nos ver na oficina.
— Mas a gente se vê por aí. Tenho que passar numa livra-
ria antes de ir para o hotel. Até.
Teriam um tempinho para irem ao hotel, tomar um banho,
descansar um pouco e voltar para a palestra da noite. No sa-
lão de eventos, Andreza lia a cartilha do encontro enquanto
aguardava a palestra, quando Luan chegou e sentou-se ao lado
dela. Cumprimentaram-se, mas logo o palestrante entrou e
não tiveram muito tempo para conversar. Na saída, ele a con-
vidou para comerem alguma coisa juntos.
Foram para um restaurante de massas, numa das ruas que
confronta com a praça Tiradentes. Por incrível que pareça, o res-
taurante estava vazio. Havia um saxofonista tocando As time goes
by quando entraram. Tomaram vinho, comeram, conversaram
sobre diversos assuntos, mas falaram pouco de suas vidas. Como
Luan era divertido e inteligente! Como Andreza era interessante!

3 3 Quadrilha – Carlos Drummond de Andrade

23

Carmélia Cândida

Não viram o tempo passar. Quando saíram do restaurante,
as ruas estavam vazias. Pouco movimento na praça.

— Minha pousada é logo ali, Luan — disse Andreza, apon-
tando a direção do hotel.

— A minha também. Será que estamos hospedados na mesma?
Estavam. Santa coincidência!
Luan acompanha Andreza até a porta do quarto que ela
ocupava, no primeiro andar. O dele era no segundo.
— Boa noite. Boa oficina amanhã.
— Pra você também, Luan. Boa noite.
Andreza abre a porta. Luan continua imóvel. Parece não
conseguir se mover. Andreza também não se mexe. Num só
movimento, sem dizer nada, os dois avançam para dentro do
quarto e empurram a porta. Se abraçam. Um abraço longo, de
corpo inteiro. Quando dão por si, estão se beijando. Quando
dão por si, estão na cama. Se entregam. Como se se conhe-
cessem há anos. Como se fossem íntimos.
O que estou fazendo, meu Deus? Estou louca? Não conheço este
homem. Não devo fazer isso. Não posso.
Andreza não consegue se afastar, apesar do pensamento.
Só se entrega mais e mais. E mais. E outra vez. E mais uma.
Já estava amanhecendo quando cochilaram um pouco. Co-
locaram o celular para despertar às 8h30min. Às 9, cada um
teria que estar em sua oficina.
Nada disseram ao acordar. Andreza tomou banho primei-
ro e saiu. Foi Luan quem deixou as chaves na recepção.
Andreza estava surpresa consigo mesma. Não sabia qual
era a sensação que sentia. Também não queria saber. Apenas
não queria pensar em nada. Durante o dia, esforçou-se para
se concentrar nas atividades da oficina. Por diversas vezes, o
pensamento divagava, mas depois ela o trazia de volta.
Luan também passou o dia tentando se concentrar em suas
atividades, mas estava difícil.

24

O AZUL DOS OLHOS DELA

À noite, encontraram-se na recepção do hotel, quando sa-
íam para um sarau literário. Parecia combinado, mas não foi.
Foram andando lado a lado, falando pouco. Depois do sarau,
foram direto para o hotel. Não estavam com fome. De comida.

À medida que o hotel se aproximava, os passos foram se tor-
nando mais rápidos. Chegaram ofegantes à porta do quarto. Não
disseram nada. Luan apenas entrou, e se atiraram um sobre o ou-
tro. Como se se conhecessem há anos. Como se fossem íntimos.

No dia seguinte, haveria oficina somente pela manhã. A
tarde seria livre. À noite, o encerramento do encontro. E, tan-
to Luan quanto Andreza dormiriam em Ouro Preto mais uma
noite para partirem no outro dia pela manhã.

Não colocaram o relógio para despertar. Que se danasse a
oficina! Sairiam só para almoçar e não iriam ao encerramento.
Aproveitariam cada instante.

A terceira noite foi a mais intensa de todas. Pena que pas-
sou tão rápido...

Foram juntos até o aeroporto. Falaram pouco. Iam de
mãos dadas, apenas sentindo a presença um do outro. Um
abraço de despedida. Luan entregou um papel com número
de telefone e endereço de e-mail para Andreza.

— Ficará lá o que aconteceu, Luan. A gente não vai mais
se falar, não vai mais se ver.

— Fica. Para o caso de você mudar de ideia. Quanto a
mim, prometo que nunca irei te procurar.

No avião, Andreza pegou o papel com os contatos e o
rasgou em pedacinhos. Não. Não veria mais Luan. Estava
voltando para sua vida.

Sentiu uma saudade enorme dos filhos, do marido e de
casa. Em pouco tempo, estaria com eles. Tudo a estaria espe-
rando, como antes. Sentiu os olhos lacrimejarem de felicidade!

No saguão do aeroporto, marido e filhos a abraçaram. O
marido deu-lhe um beijo longo e apaixonado.

25

Carmélia Cândida

— Estávamos com tanta saudade, mamãe!
— Eu também. Amo muito vocês!
— Temos uma surpresa para a senhora!
— Uma surpresa? Oba! Então vamos já pra casa!
Foram caminhando até o carro. Todos de mãos dadas.

26

Moonlight Sonata

Encontraram-se na rua. Gabriela andava apressada como
sempre, quando viu Alberto, com sua bengala e seus
movimentos lentos, caminhando com dificuldade pela
calçada. Lembrou que tinha visto na sessão de aniversariantes
do jornal local que aquele era o dia do aniversário daquele se-
nhor, antigo assinante do jornal, e foi cumprimentá-lo:
— Oi, Alberto. Tudo bem?
— Oi, Gabriela — respondeu, com a costumeira dificulda-
de de pronunciar as palavras.
— Parabéns pelo aniversário! É hoje, né?
Alberto ficou surpreso. Era seu aniversário? Em que dia e
em que mês estavam?
— É meu aniversário hoje?...
— Ué... no jornal estava marcando... Não é?
— Ah... “Peraí...” Que dia é hoje, Gabriela?
— 12 de dezembro!
Depois de pensar um pouco, disse:
— Chi... é meu aniversário mesmo! Acredita que eu não
estava lembrando?
Gabriela ficou sem graça. Já eram quase seis da tarde. Al-
berto tinha três ex-mulheres, quatro filhos. Ninguém lhe dera
ao menos um telefonema cumprimentando-o pelo aniversário?
— A gente vive numa correria tão grande que perde a no-
ção do tempo, Alberto — foi o que encontrou para dizer —

27

Carmélia Cândida

isso acontece mesmo.
Gabriela sabia que os filhos de Alberto não iriam visitá-lo.

Sentia o coração cortar ao pensar isso.
— Ah, Alberto, você deveria ter preparado uma comemora-

ção, chamado alguns amigos. Poderia ter me chamado que eu ia.
— Gabriela, não tenho dinheiro. Você sabe, eu fui desen-

ganado pelos médicos. Ia morrer. O que eu fiz? Passei todos
os meus bens para os meus filhos. Sei que nunca fui bom
pai para eles, que não estive perto quando eles precisaram de
mim, mas pelo menos os deixei bem financeiramente. Só que
eu não morri, e agora estou sem nada. Eles que pagam minhas
despesas, e não gosto de ficar pedindo dinheiro.

Gabriela conhecera Alberto no hospital. Trabalhava como
auxiliar de enfermagem e acompanhara-o nos mais de trinta
dias em que ele ficara internado após sair do CTI. Quando
teve alta, Gabriela, que estava deixando seu cargo no hospital
para trabalhar por conta própria prestando cuidados a pacien-
tes em casa, foi contratada para cuidar de Alberto. Os filhos,
que já tinham recebido os valiosos bens do pai antes de ele ir
para o CTI, pagaram todas as despesas. Foram seis meses tra-
balhando na casa dele. Acompanhou sua recuperação. Sensi-
bilizava-a ver aquele homem idoso, debilitado, que quase não
recebia visitas e que fazia tudo para ter um pouco de compa-
nhia. Tinha paciência com Alberto e conversava muito com
ele, mesmo no início, quando ele estava mal falando. Quando
ele ficou melhor e ela saiu de lá, um ano e meio atrás, visitou-o
algumas vezes, o que o deixou muito feliz. Alberto passou a
contar com os cuidados apenas de Vera, também contratada
pelos filhos, para cuidar da casa, de suas roupas e para prepa-
rar suas refeições. Naquela tarde, Alberto saíra para dar uma
volta. Gostava de andar pela rua, de respirar o ar de fora de
casa e de ver gente. Já estava saindo sozinho, fazendo passeios
lentos e breves perto de casa.

28

O AZUL DOS OLHOS DELA

— Oh, Alberto, nem sei o que dizer. Olha, hoje eu tenho
trabalho na faculdade. Não vou poder ir a sua casa, mas vou
passar lá qualquer hora dessas, tá?

— Vá, sim, Gabriela, pode ir quando você quiser. Eu saio
de casa muito pouco.

— Pode deixar. Bem, tenho que ir. Desejo-lhe um feliz
aniversário, saúde, paz e felicidade, tá?

Gabriela foi para casa. Antes de ir para a faculdade, tinha
que pôr comida para seus cachorros e estender a roupa que
ficara na lavadora. Correria. Banho. Lanche. Saída apressada.

Na sala de aula, não conseguia tirar da cabeça o aniversário
de Alberto. Ele vai passar o aniversário sozinho. Mas eu não tenho nada
com isso... Solitário... Que se danasse o trabalho da aula seguinte!

Passou numa padaria, comprou um bolo simples, diet, e
uma caixinha de suco, também diet. Encontrou Alberto no
sofá da sala, sozinho, ouvindo Moonlight Sonata, de Beethoven.
Foi recebida com um sorriso caloroso. Sentou-se ao lado dele.
Ficaram em silêncio até que a música terminasse. Depois ela
lhe deu um abraço. Um abraço de filha. Então conversaram
bastante. Como amigos. Como pai e filha. Não falaram de
tristezas nem de problemas. Só de coisas boas. Também não
falaram em aniversário. Contaram casos alegres. Riram.

Quando estava ficando tarde, Gabriela foi embora, dan-
do-lhe um beijo na testa. Como tinha se apegado a Alberto!
Poderia ser ele o pai que nunca tinha conhecido? Ou quem
sabe um avô?

Seguiu para a casa com o coração leve. Enquanto caminha-
va vagarosamente pela calçada, sentia uma brisa quente em
seu rosto. Os acordes de Moonlight Sonata ressoavam em sua
mente. Não imaginava que aquele havia sido o último aniver-
sário que ela passaria com alguém.

29

Viver não dói

V" iver não dói. O que dói é a vida que não se vive.”
Era o que ele dizia. Para todas. E, sempre que che-
gava a dizer isso, dava certo. Mulheres casadas, de
preferência. Dizia que com as casadas era melhor porque es-
tas, quando “procuravam fora”, estavam dispostas a transar
de verdade, com muita vontade, sem frescuras e sem nenhum
pudor. Eram experientes, “quentes”. E não era preciso (nem
permitido) telefonar para elas no dia seguinte. Não ficavam
“em cima”, fazendo cobranças. Queriam sexo e pronto.

Sexo era do que ele gostava. Muito sexo. Se tivesse que
escolher uma única coisa para fazer na vida, escolheria sexo.
E não importava muito com que mulher fosse. Todas se tor-
navam lindas quando estavam com as pernas abertas diante
dele. Não podia ver um par de pernas, seios, bunda, boca ou
pés femininos que já sentia comichão pelo corpo...

Não chegava a ser lindo, mas era atraente. Vaidoso, se cui-
dava. Estava sempre perfumado. Malhava cinco vezes por se-
mana. Tinha o corpo definido, bem ao gosto de mulheres que
dormiam há anos com homens desleixados e com alta pro-
tuberância abdominal. Adorava se exibir, usando camisetas
que lhe favoreciam os músculos. Era alegre e bem-humorado.
Quando estava num processo de conquista, sabia o que dizer,
e ousava, e dizia qualquer coisa que a mulher quisesse ouvir.
Insuflava-lhe o ego. Tinha um repertório de frases de filmes

30

O AZUL DOS OLHOS DELA

e de letras de músicas que costumava usar e que faziam mui-
to efeito. Poderia parecer o maior romântico e amoroso do
mundo ou o mais safado do planeta. Adequava-se ao gosto da
“freguesa”. Assim era Miguel.

Os encontros poderiam acontecer uma, cinco ou dez ve-
zes. Para ele, quanto mais, melhor. Desde que a mulher não
quisesse deixar o marido para ficar com ele. Nas vezes em
que isso aconteceu, precisou de muita habilidade para sair
fora. Teve um problema sério com edite que, com dezesseis
anos de casada e vivendo uma vida tediosa, surpreendeu-o ao
anunciar que havia acabado de deixar o marido para ser exclu-
sivamente dele. Exclusivamente dele?!? Não! Fez o que pôde para
tentar convencê-la a voltar para o marido, usando palavras o
mais carinhosas possível, mas, quando viu que não teria suces-
so, disse-lhe que nunca quis nada dela além de sexo, que tinha
horror a compromisso e que seu negócio era “foder”, apenas
“foder”, terminando tudo. Foi uma decepção para edite, que
foi desprezada pelos filhos e pela família e caiu em depressão
profunda.

Mulheres mais espertas não eram de cair em sua lábia. As
com baixa autoestima e carentes se deixavam envolver por
ele, compareciam a alguns encontros, mas era comum perce-
berem que era promíscuo demais, mentiroso, desanimarem e
caírem fora, frustradas. Outras, que não estavam “nem aí” e
só queriam curtir, aproveitavam ao máximo as aventuras com
ele. Com algumas, manteve relações esporádicas, secretas e
deliciosas por anos.

Conheceu Marise em um velório. Adorava estar num veló-
rio, era um lugar certeiro para encontrar novas candidatas. De
traços delicados, corpo bem feito, Marise era bonita e logo lhe
chamou a atenção. Aparentava ter não mais que trinta anos. Era
elegante. Um tanto diferente das mulheres com as quais vinha
dormindo. Não conseguia parar de olhar para ela. Em instantes,

31

Carmélia Cândida

sentiu o pênis ereto. Eu quero essa mulher! Estava acompanha-
da do marido, um homem sério, aparentando ser pelo menos
quinze anos mais velho que ela. Tinha aparência carrancuda, o
que deixava a empreitada ainda mais interessante.

Conversando aqui e ali, conseguiu a informação de que Ma-
rise era bibliotecária e o endereço da biblioteca, que ficava num
imponente prédio no centro da cidade. Soube também que o
marido, Diógenes, era da Polícia Civil, perito criminal (a situ-
ação de perigo o fascinava). Passou a frequentar a biblioteca
assiduamente, como um leitor compulsivo. Logo fez amizade
com Marise. Tendo descoberto que ela adorava Virginia Woolf
e que estava lendo todos os livros dela, correu para a Internet,
pesquisou sobre a autora, leu com atenção algumas resenhas
de obras dela. Não costumava fazer aquele tipo de sacrifício,
mas Marise era bonita demais e tinha um quê de especial. Valia
a pena. Inventou que pretendia fazer um estudo sobre a obra
da escritora. Conseguiu o telefone de Marise e rapidamente co-
meçou a “jogar sua rede”. Primeiro, sutilmente; depois, com
uma intensidade tão grande – de um homem romântico e quase
apaixonado – que deixou Marise desconcertada.

Marise nunca tinha traído o marido nem pensava em fa-
zê-lo. Por outro lado, achava Miguel atraente e interessante
demais, vivia uma vida pacata e tediosa ao lado do marido.
Sentia falta de emoção. Mas repeliu Miguel. O quanto pôde.
Até quando pôde. Ele era bom demais na conquista quando
a mulher não conhecia a fama que ele tinha. “Buzinou, bu-
zinou” no ouvido de Marise que – surpresa consigo mesma,
mas sem conseguir resistir – acabou cedendo.

Foram três encontros. Na primeira vez, Marise estava nervo-
sa e hesitante, principalmente porque tinha deixado a filha com
a sogra. Quis desistir, mas ele foi muito habilidoso – um amor!
– e seguiram em frente. Nos dois encontros seguintes, estava
mais relaxada. Aquela mulher era demais! Mais do que ele havia

32

O AZUL DOS OLHOS DELA

pensado. Delicada e, ao mesmo, tempo, uma fera na cama. Es-
tava exultante por ter conseguido. Era mesmo “o cara”!

Marise deixou-se abalar-se por demais. Nunca tinha vivido
nada daquele jeito, tão intenso, tão louco, tão incrível, tão bom.
Eram muitos sentimentos e emoções diferentes que experi-
mentava ao mesmo tempo, incluindo culpa. Embora não tives-
se contado para ninguém, desde que tudo começou, não con-
seguiu disfarçar em casa. Não tinha costume de mentir nem
de fingir nada. Era transparente e verdadeira, e Diógenes per-
cebeu que algo diferente estava acontecendo. Não disse nada.

Aconteceu numa madrugada, quando Miguel estava che-
gando em casa. Morava sozinho. Diógenes seguira-o desde as
18 horas. Disse para Marise que teria trabalho naquela noite.
Miguel estava bebendo em um bar, com alguns companhei-
ros. Não havia mulher na mesa. Pelo jeito, dali ele iria para
casa. Diógenes resolveu esperá-lo lá. Luvas nas mãos. Rou-
pas pretas. Boné. Uma arma potente com silenciador. Ficou
abaixado, protegido pela parede baixa da varanda. Com um
pedaço de madeira que achou no gramado, quebrou a lâm-
pada. A rua, deserta. A moto ficara num beco próximo dali.

Esperou Miguel destrancar a porta e entrar. Foi quando
saiu da escuridão e, antes que Miguel pudesse perceber o que
estava acontecendo, estava dentro da casa. Foram três tiros.
Todos no rosto. No último, mirou bem o meio da testa. “Pra
você aprender a nunca mais mexer com a mulher dos outros”.
Foi só o que ele disse, antes de atirar, quando Miguel encarou-
-o, assustado. Não esperou resposta.

Na noite seguinte, Diógenes estava com Marise diante da
tevê quando o assassinato foi noticiado rapidamente no jornal
local. Uma foto de Miguel. Três tiros no rosto. Aparentemente, a
vítima não teve tempo de se defender. O assassino não deixou pista algu-
ma. Marise não estava acreditando no que estava vendo. Ficou
pálida e visivelmente abalada.

33

Carmélia Cândida

— O que foi, Marise?
Demorou a responder:
— Nada, estou com um pouco de dor de cabeça... e fico
chocada com atos de violência assim...
— Ah! Se morreu desse jeito, não foi à toa. Vai ver mexeu
com o que é dos outros.
Marise ficou gelada. Achou que ia desmaiar, mas respirou
fundo e conseguiu se recompor. Diógenes agiu como se nada
percebesse. Nunca mais falaram no assunto. Nunca soube
como ele poderia ter descoberto tudo.
Quando Marise ouviu Diógenes roncando, pôde chorar,
em silêncio, no quarto escuro. Lembrou da alegria de Miguel,
das coisas carinhosas que ele tinha dito e que ela, no fundo,
sabia que eram tudo lorotas, mesmo assim eram gostosas de
ouvir. Lembrou do que ele tanto dizia “Viver não dói. O que
dói é a vida que não se vive.” Será?, disse para si mesma. As
frases não lhe saíam da cabeça.
Viver não dói... O que dói é a vida que não se vive...
E morrer? Será que morrer dói?

34

Ciclo

Menos de um mês depois da morte de Lídia, seus per-
tences estavam todos espalhados na grande varanda
da casa onde vivera 22 dos seus 44 anos. Eram em
grande quantidade. Roupas, calçados, cintos, bijuterias, porta-
-joias, ursos de pelúcia, enfeites. Muitas peças nunca haviam
sido usadas; estavam com etiqueta. O movimento de pessoas
foi grande e durou o dia inteiro. As faixas colocadas no bairro
anunciando o bazar e o “boca a boca” foram eficientes. Joyce, a
filha única de Lídia, não queria ficar com nada daquilo em casa.
Era coisa demais. E para quê? Se não teriam serventia?
Lídia sempre foi vaidosa, com o incentivo da mãe. Filha
única, paparicada, era vestida como boneca quando criança, e
foi criada para ser dondoca, apesar de a família ter condições
modestas. Nunca soube o que é dividir algo com alguém. Era
bonita. Começou a namorar Júlio aos 19 anos, rapaz dez anos
mais velho, dono de oficina mecânica. Partido bom. Daria
uma vida razoável para Lídia, considerando os padrões a que
estava acostumada. Ele disse que ela não precisaria trabalhar
fora. Casou-se com Júlio aos vinte e dois anos. Gostava dele,
mas sem paixão ou encantamento. Teve Joyce aos vinte e três.
O início do casamento foi feliz, mas depois foi vindo um
vazio que ela nunca soube explicar, mesmo com o nascimento
de Joyce. O parto foi um trauma. Para nunca mais. Embora
gostasse da filha e cumprisse as obrigações de mãe, não con-

35

Carmélia Cândida

seguia sentir aquele amor materno, intenso, que diziam exis-
tir naturalmente. Sentia-se frustrada por isso. O corpo nunca
voltou ao que era antes da gravidez, o que a deprimia. Com
o tempo, o casamento foi se tornando enfadonho, e ela foi
ficando distante do marido. Não eram de brigar, apenas fo-
ram ficando indiferentes um com o outro. Com o tempo, ele
passou a ter amantes. Embora Lídia desconfiasse, nunca quis
saber. E não se importava.

O grande prazer de Lídia era comprar. Adorava roupas,
sapatos, acessórios. Gostava também de cremes e produtos
de beleza. Gostava de ver o armário se encher mais e mais
deles. Comprava produtos por impulso, mesmo que a compra
fosse sacrificar o orçamento familiar. Depois não usava, mas
gostava de vê-los lá. Gostava de tê-los. Foi entulhando coisas.
Não conseguia se desfazer de nada. Não doava, não empres-
tava, nem mesmo para a mãe ou para a filha, quando crescida.
Tinha um ciúme tremendo de suas coisas. Guardava itens que
jamais usaria. Mas eram dela. Só dela.

Agora estava morta. Não era dona de mais nada. Não po-
dia impedir ninguém de vasculhar suas coisas, de pegar em
seus pertences como quisesse.

— Já pensou se a Lídia está vendo tudo isso aqui? — co-
menta uma mulher, que está ali só para observar, com a amiga.

— É... Ela tem um “troço” dentro do caixão — responde
a outra.

— Pois é... As coisas delas todas espalhadas, muitas no
chão, sendo levadas por um e por outro. Parece que estão
saqueando. Até enfeites e bijuterias estão aqui. Só não colo-
caram roupas íntimas. Pelo menos.

Enquanto a mulher dizia isso, uma moça disputava um par
de sapatos com outra. Cada uma segurando um pé.

— Eu peguei primeiro! Eu que vou levar!
— Nós pegamos juntas! Nós temos o mesmo direito.

36

O AZUL DOS OLHOS DELA

— Par ou ímpar?
— Ímpar... É meu!
O pé do sapato é arrancado da mão da perdedora, que
faz uma careta e depois corre para pegar uma bota novinha
em folha. Uma das mulheres que observava a cena prepara-se
para ir embora. Quando está saindo, esbarra em uma grande
caixa de papelão que não tinha notado. Olha dentro da caixa.
Arregala os olhos. A caixa está cheia de camisolas, baby dools e
sutiãs. Sente um mal-estar. Apressa-se para sair.
Enquanto isso, Joyce dá uma olhada no “caixa”, uma bolsa
enorme que trazia consigo. Não sabia que o bazar ia faturar
tanto. Foi uma boa ideia, diz para si mesma. Depois vai para a
arara de vestidos. Como foram bagunçados! E começa a orga-
nizá-los. No fim do dia, juntaria o que não tivesse sido vendido
e levaria para doação. Pelo jeito, não sobraria muita coisa. Es-
tava cansada. Queria que aquele dia terminasse rápido. E que
chegasse o dia seguinte, pois ela iria se esbaldar no shopping.

37

Cristine

Sentiu o pênis se avolumar dentro da calça quando pen-
sou que em menos de duas horas estaria com Cristine.
Pensou no corpo delgado dela, nos seios perfeitos, no
traseiro que parecia um pêssego gigante e maduro. Melhor
seria se controlar. Aquela noite seria especial, teria tudo que
desejasse. Iria dizer para Cristine que havia pedido o divórcio
para Laura. Estavam livres para viver o que quisessem.
Jantariam em um dos melhores restaurantes da cidade.
Uma suíte estava reservada em um motel de luxo. Só conta-
ria quando estivessem lá. Primeiro, entregaria para ela uma
aliança de noivado, de brilhantes e, só depois, daria a notícia.
E então se beijariam apaixonadamente. E depois trepariam
louca e incansavelmente como dois cães no cio e, quando ter-
minassem, começariam de novo. E de novo. E de novo.
Assim que a papelada do divórcio ficasse pronta, marca-
riam o casamento. Uma celebração para poucos convidados,
cheia de glamour. Uma nova vida. Ah... Cristine só tinha vinte
e três anos! Vinte e três! Menos da metade da idade dele (e da
idade de Laura). Com ela, sentia-se jovem novamente. Por
ela, desfez um casamento de vinte e cinco anos e era um novo
“Paulo”. Estava vivendo uma grande e alucinante paixão.

38

O AZUL DOS OLHOS DELA

Quatro horas da manhã. Paulo andava de um lado para
o outro no apartamento. Onde estaria Cristine? Tinha ido a
alguns lugares que ela costumava frequentar e não encontrara
sinal dela. Ligar no celular era inútil, ela não atendia.

Os dois primeiros anos de casamento haviam sido intensos e
felizes. Viagens, diversão e sexo da melhor qualidade. Cristine pa-
recia mais linda e mais jovem a cada dia. Paulo, cada vez mais des-
lumbrado, dava para ela uma vida de rainha. Tudo estava perfeito.

A gravidez de Cristine no início do terceiro ano de casa-
mento não foi planejada. Ela não ficou feliz, esperava engra-
vidar só lá pelos trinta e cinco anos de idade, mas acabou
aceitando bem a situação. Paulo, que já tinha três filhos, ficou
desapontadíssimo, mas, se estava feito, amaria o filho e seria
um ótimo pai.

A segunda gravidez aconteceu no resguardo do primeiro
filho de Cristine. Outro susto. Os planos de Paulo não esta-
vam dando certo. Cristine teve uma forte depressão pós-par-
to, que parecia que não ia acabar nunca.

Depois que completaram sete anos de casados, os negócios
na fábrica de tecidos da qual Paulo era sócio passaram a fazer
com que ele tivesse que viajar muito, ficando, às vezes, até uma
semana fora de casa. Nas ausências do marido, Cristine, depri-
mida e se sentindo solitária, procurou por velhos amigos. Foi
então que reencontrou Tomás, um antigo namorado, e que vol-
tou a frequentar lugares que jurara que nunca mais frequentaria.

Nos últimos meses, Cristine quase não ficava em casa. Não
tinha ideia do que se passava com as crianças, que ficavam sob
os cuidados das empregadas. Mostrava-se indiferente ante os
argumentos de Paulo. Em três anos, tinha se transformado
em outra pessoa.

Somente às seis horas da manhã, Cristine chega em casa.
Descalça, descabelada e drogada. Não tem condições de con-
versar. Ignora Paulo e vai direto para o quarto. Desaba na

39

Carmélia Cândida

cama. Às sete, o marido tem que sair para o trabalho. Não
sabe se encontrará Cristine em casa quando voltar.

Deitado na cama, no quarto escuro, Paulo olha os pon-
teiros digitais do relógio. A insônia se tornara companheira
constante nos últimos anos, e ele sabia que o sono demoraria
a chegar. Fazia dois anos que Cristine se fora completamente.
Não sabia onde ela estava. Podia estar em um muquifo qual-
quer bebendo e se drogando com os amigos. Com Tomás. Ou
em um hospital. Não. Se estivesse em um hospital, é provável
que chamariam por ele. Não estava.

As crianças, agora com oito e nove anos, só contavam com
Paulo e com uma empregada que continuara na casa. Enrolara-se
nos negócios na fábrica, e sua parte na sociedade passou a ser
mínima. Perdera os imóveis de aluguel. Despesas precisaram
ser cortadas. Por sorte, continuava com o apartamento. Grande
demais apenas para eles. Para vender no caso de ser preciso.

Dos poucos amigos que tinha, restara-lhe apenas Roberto.
Ah! Se não fosse Roberto para escutá-lo e compartilhar com
ele suas amarguras! Roberto, que tinha vivido como um bon
vivant a maior parte de sua vida, vivia solitário em um casarão
no centro da cidade. Velho, doente e sem dinheiro, quase não
saía de casa, e a casa dele era o único lugar aonde Paulo ia.

Se Cristine quisesse voltar, se se dispusesse a entrar numa
clínica de reabilitação, ele a aceitaria de volta. Os filhos sentiam
muita falta da mãe. Ele sentia muita falta dela, não da Cristine que
saíra de sua casa, da que entrara. Mas sabia que ela dificilmente
voltaria. Sentia pena dela. Sentia raiva. De Cristine e da vida.

O truque de fitar os ponteiros do relógio abrindo e fechando
os olhos funcionou, depois de horas. Paulo enfim adormece.

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O AZUL DOS OLHOS DELA

Saindo do consultório do psiquiatra, Paulo teve a impres-
são de ver Cristine do outro lado da rua. A mulher estava
de costas, corpo escultural, cabelos loiros, quase na cintura.
Atravessou a rua apressadamente. Foi andando atrás dela e
tocou-lhe o ombro.

— Ei. Você...
A moça se virou. Não era Cristine. De rosto, não se parecia
em nada com ela.
— Desculpe. Achei que era outra pessoa.
Nunca mais tivera notícias de Cristine. Não é possível que não
sentisse falta dos filhos! Que mãe é essa? Um dia ela voltaria, pelo menos
para ver as crianças. Como estavam crescidas!
Passou na farmácia e comprou os remédios prescritos pelo
psiquiatra. Depressão. Em alto grau. Só começou a se tratar após
muita insistência de Roberto. Também porque não suportava
mais viver morrendo de pena de si. Tinha chegado ao seu limite.
Estava afastado da fábrica, recebendo o que lhe era devido
e que não lhe permitia luxos. Melhorando, voltaria ao trabalho.
Ao chegar em casa, Felícia e Otávio, os filhos, estavam no
sofá folheando um álbum antigo de fotos. Do tempo em que
ainda era casado com Laura.
— Olha, papai, você com a Laura e seus outros filhos!
— São seus irmãos, Felícia.
— É. Mas a gente nem vê eles direito.
— Verdade. É que já são adultos e estão cada um cuidando
da sua vida.
Pegou a foto e lembrou com saudade daquele dia com
Laura e os meninos. Tudo estava tão distante! Quem sabe te-
lefonaria e convidaria Laura e todos eles para uma visita?
Laura foi educada e atenciosa ao telefone, como sempre
era. Agradeceu o convite, perguntou como Paulo estava e

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Carmélia Cândida

disse que não poderia ir porque embarcaria na manhã se-
guinte para a Índia. Não se casara depois da separação. Sua
escola de idiomas estava indo muito bem. Aquela devia ser
sua décima viagem internacional.

— Você vai sozinha de novo, Laura?
— Vou, Paulo. Quero ir mesmo sozinha. Desta vez, vou
ficar um mês.
— Um mês? Mas Laura...
— Paulo, gosto de viajar assim. Já me acostumei. Estarei
bem. E fique bem você também, viu? E, quando eu voltar,
pode deixar que combinaremos a visita. Chamarei os meni-
nos. Ligarei para você.
Conversaram mais um pouco. Que ótimo que Laura estava
bem! Paulo ficou contente em ouvi-la. Desejou que a viagem dela
fosse a melhor possível. Era uma grande e admirável mulher!
Começaria com os remédios no mesmo dia. Tinha que se
cuidar. Iria. Não queria viver como estava vivendo. Aprovei-
taria a licença da fábrica para colocar a casa em ordem, para
estar mais perto das crianças, que não tinham culpa de nada.
Depois poderia anunciar sua volta. Era o que esperava.
Lembrou da mulher que vira ao sair do consultório médico.
Melhor que não fosse Cristine. Melhor assim. Que ela não vol-
tasse mesmo. Ainda tinha muita vida pra viver, e se esforçaria.
Conseguiria. E, um dia, lembraria de tudo sem dor alguma.
Que Deus olhasse por Cristine!

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Um olhar para Antônia*

Era Antônia Luzia. Lavava, passava, cozinhava, limpa-
va. Acordava antes de todos para preparar o café. Pão
de queijo quentinho ou biscoito frito, misto quente,
suco de laranja feito na hora, café. O bolo ou outras quitan-
das poderiam ter sido preparados no dia anterior. O marido
gostava de comer bem, e o café da manhã era uma refeição
importantíssima. Quando o resto da casa acordava, a mesa
estava posta. Uma maravilha!
Moça de família simples, conheceu Cristiano quando tinha
apenas quinze anos. Trocaram alguns beijos, e foi o suficiente
para ela não tirar mais o rapaz da cabeça. Mas ele, dez anos mais
velho, se casou com outra e viveu uns bons anos casado. Após
ficar viúvo, sem ter tido filhos, reapareceu e avisou que iriam se
casar. Feito. Antônia contava, então, com trinta e quatro anos.
O primeiro filho, um menino, veio menos de um ano de-
pois. E, estando ainda no “resguardo”, engravidou novamen-
te. Gêmeos, um menino e uma menina. Foi bem difícil lidar
com três bebês e o serviço da casa, pediu demissão do traba-
lho, teve depressão e “passou uma vida”. O marido contratou
ajudante, ainda assim era difícil. Achou que ia ficar louca. Mas
as crianças foram crescendo, ela foi superando as dificuldades
até que se acostumou.
O dia todo, Antônia Luzia corria de um lado para o outro.
Agora, os filhos estavam crescidos. Todos no ensino médio.

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Carmélia Cândida

Uma bênção! Mas ainda davam muito trabalho para a mãe.
Era levar e buscar no colégio, na aula de inglês, na academia,
em casas de amigos. Era a motorista dos filhos. A menina era
uma princesinha, vaidosa que só, e era preciso, ainda, levá-
-la à manicure, depilação, salão de beleza. Preparar refeições,
correr ao supermercado, à padaria. Fora o serviço da casa,
que ficava todo para ela. E as visitas que o marido sempre
convidava. Os filhos tinham que estudar, não podiam “aju-
dar”. Para o marido, “serviço de casa, coisa de mulher”. Mas
a rainha do lar aceitava as coisas como eram. Tudo para ver a
família em harmonia.

Depois das refeições, todos iam para seus quartos descansar.
O marido, aposentado, precisava fazer a sesta. Antônia Luzia,
porém, se acabava na cozinha. Se acaso precisasse se ausentar,
antes preparava tudo que poderiam precisar. Era muita coisa
para ela. Mas ela conseguia cumprir com suas tarefas. E até or-
gulhava-se de si. Os filhos e o marido em primeiro lugar.

Antônia Luzia não se dava conta, mas já tinha esquecido
quem tinha sido um dia. Era como se não tivesse existência
própria. Sua vida era a vida da família. Há muito não luzia.
Foi ficando só Antônia, a cada dia mais cansada, mais estres-
sada, mais apagada. E assim iria até o fim. Era boa mãe, boa
esposa. A vida continuava. Antônia, em vida, jazia. Mas a fa-
mília com nada disso se preocupava. Sempre fora uma mulher
forte e feliz! Tudo estava bem.

Numa tarde de agosto, chegou a sua casa Manoel José, pe-
dreiro contratado por Cristiano para uma pequena obra na área
externa da casa. Foi ele ver Antônia para alguma coisa dentro
dele se iluminar. Mas o homem foi discreto. Ela não percebeu
nada. O marido passou a ficar mais tempo no sítio, não supor-
tava bagunça em casa. Antônia se esforçava para manter tudo
em ordem e, todos os dias, gentilmente, servia o café da tarde
para Manoel José e seu ajudante, ocasião em que conversavam

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O AZUL DOS OLHOS DELA

um pouco sobre assuntos banais. Foi no fim da quarta semana
de trabalho, estando só ela em casa e tendo o ajudante faltado,
que, durante o café, o pedreiro a olhou nos olhos e deixou esca-
par “Dona Antônia, me desculpe, mas a senhora é uma mulher
muito bonita, porém me parece tão triste”.

Antônia levou um susto, enrubesceu e sentiu o coração
querer sair do peito. Muda, se retirou e correu para seu quarto,
saindo só para preparar o lanche dos filhos quando os ouviu
chegando. “A senhora é uma mulher muito bonita”. Mulher,
ela? Desde quando? As palavras não lhe saíam da cabeça, as-
sim como o olhar de Manoel José. Bonita? Era possível ela ser
visível para alguém?

Nos dias seguintes, apenas colocava a bandeja do café e
saía, sem conseguir olhar para aquele que conhecera há pou-
co tempo e que tanto a desestruturava. Mas ele a olhava, ela
sentia, e o olhar dele a queimava. “A senhora é uma mulher
muito bonita”... “tão triste”... “mulher”... Antônia começou a
se olhar no espelho. Não. Não estava tão bonita. A pele não
tinha viço, os olhos pareciam sempre cansados, os cabelos
estavam opacos e sem corte. Como estou malcuidada! Olhou
para as unhas, não se lembrava da última vez que as tinha pin-
tado. Gastos com coisas desse tipo eram apenas com a filha.

Alguma coisa também começou a se acender dentro da
quieta dona de casa. Sentiu que precisava cuidar um pouco
de si. Mas não deveria se perturbar tanto com as palavras e
o olhar de Manoel José. Por outro lado, não conseguia evitar.
Mas pensar em qualquer possibilidade com aquele homem
ou com qualquer outro era inconcebível. Ainda mais para ela,
mãe de família. Estava outra vez perto de ficar doida?

Antônia marcou salão de beleza. Cortou e hidratou os
cabelos, fez as unhas. Sentiu-se bem. Esperou, contente, o
comentário do marido e dos filhos. Se notaram, não falaram.
Mas o pedreiro notou, ela pôde ver, mesmo de relance, a ex-

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Carmélia Cândida

pressão de surpresa e encantamento em seu rosto. Bastou-lhe.
No dia seguinte, saiu e comprou roupas novas, cremes de be-
leza e perfume.

As conversas com Manoel José resumiram-se a “bom dia”,
“boa tarde”. Antônia ficava sem graça perto dele. “A senhora é
uma mulher muito bonita”. A voz daquele homem, tão firme,
tão incômoda... o olhar. Passou a ficar trêmula constantemente.
Não sabia bem o que se passava com ela. Teve perda de apetite
e emagreceu em poucos dias. Chegou a achar que estava doen-
te. “A senhora é uma mulher muito bonita”. “Mulher”.

No último dia de trabalho, o educado senhor deu um jeito
de chegar até Antônia, na cozinha. Entregou-lhe um papel,
dobrado. “Aí está meu endereço. Moro sozinho. Se quiser
conversar”.

Atônita, pegou o papel e guardou no bolso, às pressas.
O resto do dia, ficou nervosa. Procurou, com esforço, fazer
suas atividades normalmente. Por vezes, sentiu calafrios. Dizia
para si que aquilo tudo estava errado, que não podia ser. Mas
não queria pensar em nada. Não pensou.

No dia seguinte, levantou-se cedo, como de costume. Pre-
parou a mesa de café. Depois que os filhos e o marido saíram,
caminhou pelo quarto, escolheu um vestido novo. Tomou um
banho demorado e se preparou para sair de casa. O que ela
estava fazendo, meu Deus?

No táxi, pediu ao motorista para parar duas quadras an-
tes do endereço. Foi andando, com passos firmes, admiran-
do tudo a sua volta. Não estava se reconhecendo. As casas
do bairro simples, o vento, o céu, o sol; tudo lhe chamava a
atenção. Uma voz lhe dizia “você não deve fazer isso”, mas
as pernas simplesmente seguiam, surdas, felizes, sem cogitar
obedecer. O que era aquilo? Uma força nova, diferente, a
compelia. Ouvia o coração descompassado, e viu-se admirada
porque a sensação não era ruim.

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O AZUL DOS OLHOS DELA

Abriu novamente o papel que trazia apertado na mão,
confirmou o número. Ao passar pelo portão, parou por uns
instantes para contemplar o pequeno jardim bem cuidado. A
visão das buganvílias rentes ao muro fez seus olhos enche-
rem-se de lágrimas. Chegou, enfim, à porta. Antes de tocar a
campainha, respirou profundamente. Um cheiro forte de café
fresco veio lá de dentro.

Antônia Luzia não sabia o que fora fazer ali. Em poucos
segundos, a porta se abriria. “Uma mulher muito bonita”. Era
uma mulher. E podia ser bonita, sim. Por que não? Podia até
existir. Não tinha ideia do caminho que tomaria. Não sabia
nada do que aconteceria. Mas uma certeza ela tinha: qualquer
caminho que tomasse, deveria levá-la à descoberta de si. E ela,
a partir daquele dia, existiria. E plenamente.

*Inserido nesta reimpressão. Publicado no livro Águas pas-
sadas (Maria de Fátima Moreira Peres e Terezinha Pereira -
Penalux, 2017)

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Aniversário

Antes de sair de casa para o trabalho, às seis e meia
da manhã, Joana deixou a mesa de café arrumada,
como fazia todos os dias. Mas, naquele dia, o café
era especial e farto: biscoitos assados e um bolo de cenoura
que ela preparara na noite anterior, pão com presunto, requei-
jão, queijo e biscoito recheado (para os netos). Era aniversário
de Joana, e ela adorava aniversários! Mesmo que não fosse to-
mar café com a família, fez questão de gastar mais um pouco,
pois o dia era especial. Só chegaria em casa após as 17 horas,
cansada do serviço de limpeza no prédio de escritórios onde
trabalhava. Mas, no dia seguinte, sábado, não trabalharia e re-
ceberia todos os filhos e netos para comemorar o aniversário.
Setenta anos! Osvaldo, o filho mais velho, que morava em
outra cidade, iria comparecer, trazendo a esposa e as filhas.
Estava muito contente!
Joana era alegre. Passava o dia cantarolando e nunca recla-
mava da vida. Mesmo quando o marido, Arnaldo, sofreu um
acidente e ficou paraplégico, não reclamou. Mesmo quando
Imaculada, filha mais nova e solteira, engravidou pela segunda
vez, não reclamou. Conversou muito com Imaculada, como
na primeira vez, disse que ela não podia ser tão sem juízo,
que seria difícil, mas não reclamou de ter mais uma boca para
sustentar, de ter que ajudar a criar mais um neto, de cuidar de
duas crianças quando Imaculada precisasse sair.

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O AZUL DOS OLHOS DELA

Gerara sete filhos. Todos cresceram saudáveis. Graças a
Deus. Em casa, havia apenas duas: Imaculada e Beatriz. Os
outros haviam se casado. Quando as crianças eram pequenas,
trabalhava em casa, como costureira. Depois que já estavam
crescidas, cansada da costura, arrumou serviço “fichado”
como faxineira. Havia se aposentado havia uns anos, mas
continuou trabalhando. A aposentadoria de Arnaldo era de
apenas um salário mínimo, como a dela. Imaculada não tra-
balhava fora porque tinha que cuidar das crianças. Não que-
ria que fossem criadas em creches. Beatriz sempre fez o tipo
“corpo mole” e não se acertava em emprego nenhum. Tam-
bém era preciso ter alguém em casa para ficar com Arnaldo.
Dos filhos casados, alguns eram descontrolados com dinhei-
ro, e vez ou outra precisavam de ajuda. Era Joana quem
sempre os estava salvando. Ainda havia os remédios que não
eram oferecidos gratuitamente pela farmacinha da prefeitura.
Com as duas aposentadorias mais os rendimentos de Joana,
ficavam menos apertados financeiramente. E ela gostava de
trabalhar. Sentia-se útil. Era o que dizia.

Nos escritórios, recebeu muitos “parabéns”. Recebeu flo-
res. E presentinhos também. Trabalhava ali há anos, era co-
nhecida de todos e muito querida. Não conseguia mais fazer
o trabalho bem feito como antes. As juntas estavam duras; os
movimentos, mais lentos. Mas ela fazia o que podia, devagar
e, pela consideração que tinham com ela, todos compreen-
diam. Vez ou outra, vinha algum funcionário falar para ela,
por puro carinho e cuidado: Dona Joana, a senhora devia estar
em casa. Já trabalhou muito nesta vida. É hora de descansar. Era
triste ver aquela senhora, idosa, que já tinha trabalhado tanto
na vida, ali, trabalhando como faxineira aos setenta anos de
idade e ainda tendo que cuidar de serviços em casa e ajudar
nos cuidados com os netos. As filhas ajudavam um pouco,
mas nunca foram de “pegar no pesado”. Isso era com Joana,

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