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O azul dos olhos dela, de Carmélia Cândida, reúne contos e crônicas em tons diversos. Abordando temas como amor, morte, sexo, encontros e desencontros, o livro mistura textos picantes, divertidos, poéticos, leves, impactantes e pesados que, sutilmente, levam a reflexões sobre nosso tempo e sobre o viver. O leitor se verá diante de personagens “reais”, os quais ele pode facilmente relacionar a si mesmo ou a alguém conhecido, e apreciar um estilo de narrativa elegante e audacioso, que mostra a força da presença feminina na literatura.

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Published by carmeliacsd, 2020-06-23 14:05:25

O azul dos olhos dela

O azul dos olhos dela, de Carmélia Cândida, reúne contos e crônicas em tons diversos. Abordando temas como amor, morte, sexo, encontros e desencontros, o livro mistura textos picantes, divertidos, poéticos, leves, impactantes e pesados que, sutilmente, levam a reflexões sobre nosso tempo e sobre o viver. O leitor se verá diante de personagens “reais”, os quais ele pode facilmente relacionar a si mesmo ou a alguém conhecido, e apreciar um estilo de narrativa elegante e audacioso, que mostra a força da presença feminina na literatura.

Keywords: contos picantes,literatura brasileira,escritos por mulheres,literatura feminina,relações humanas

Carmélia Cândida

que era forte. Isso ela era! Ela dizia Eu gosto, meu filho. Se ficar
sem trabalhar, eu morro.

Ao sair do trabalho carregando as flores e uma sacola com
seus presentes, Joana passou no supermercado e fez as com-
pras para a janta do outro dia. Queria estar livre no sábado
para fazer uma faxina boa na casa pela manhã. Na parte da
tarde, iria para o fogão adiantar o jantar. Iria fazer muita comi-
da, gostava de fartura. Os refrigerantes e a cerveja já estavam
comprados. Foi comprando mês a mês e guardando, como
era seu costume fazer em ocasiões como aquela. O frango e
as carnes estavam encomendados no açougue próximo a sua
casa. No dia seguinte, era só ir buscar. Ao passar pela pada-
ria do supermercado, viu um bolo de aniversário pequeno.
Olhou o carrinho de compras, fez as contas do dinheiro que
levava na carteira. Vou levar. Esse vai ser pra hoje!

Em casa, fez a janta, pôs a mesa e jantou feliz ao lado do
marido, dos netos e de Beatriz. Pena que Imaculada teve que sair.
Oh, menina andeja, viu! Cantaram “parabéns pra você” e partiram o
bolo. Foi uma alegria para as crianças. Comeram até se fartar. Fi-
caram lambuzadas de chantilly. Depois Joana foi se deitar com eles
e contar-lhes histórias. Quando os dois meninos, por fim, dormi-
ram, foi lavar a louça, pois não gostava de deixar bagunça para
o dia seguinte, ainda mais para aquele sábado cheio de afazeres.

No quarto, encontrou o marido já dormindo. Ficou olhan-
do-o por uns instantes. Depois chegou bem perto dele e, aca-
riciando-lhe o rosto, falou, cheia de ternura: Oh, meu velho, nós
já passemo muitos perreio nesta vida, né. Mas Deus é muito bom pra
nós, e nós tá aqui, firme. Nós não fraqueja, não. Queira Ele que nós
tenha muita saúde e muita vida junto. Deu-lhe um beijo terno na
testa e, antes que terminasse suas orações, já havia dormido.
Dormiu um sono tranquilo. Sonhou que estava no céu, um
lugar lindo e florido, com anjos ao seu redor. No sonho, tinha
uma música linda, com harpas, violino e piano.

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Flores no túmulo

T— em gente que parece que veio ao mundo para so-
frer! — Foi o que Emily disse para a tia Josélia en-
quanto o caixão da avó era colocado na sepultura.
Depois de pensar um pouco, continua: — A vó parecia tão
serena no caixão, né, tia?
Não foi uma vida fácil. Primeira dos quatorze filhos de
Margarida e Sinval, Rosália gastou grande parte da infância
e a adolescência cuidando dos irmãos menores e ajudando
a mãe não lida da casa. O pai não era de responsabilidades.
Não ficava muito tempo num trabalho. Dizia que não gos-
tava de serviço de roça. Gostava é de sair pra beber e pra
jogar nos povoados e na vila vizinha. Às vezes, ficava três
dias sem aparecer em casa. Dona Margarida é que tinha
que dar os “pulos” dela. Fazia sabão, plantava mandioca
e fazia polvilho, criava galinhas. Tudo com o propósito de
vender e conseguir algum dinheiro para os mantimentos.
Tirava o mínimo para os filhos, mesmo com o coração
apertado (galinha e ovos, raramente, pois precisavam do
dinheiro desses produtos para comprar coisas mais neces-
sárias). Tempo difícil.
Rosália tornou-se uma moça muito bonita. Uma das mais
belas do povoado. Aos quatorze anos, já estava enamorada de
Tião, um rapaz dali mesmo do povoado que nunca chamara
a atenção de Rosália até o dia em que os olhos dos dois se

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Carmélia Cândida

encontraram durante uma reza na capelinha. Um amor que
surgiu de repente e que tomou Rosália por inteiro.

Ficaram apenas no namorico. Tião não queria namoro sé-
rio. Queria aproveitar a mocidade. Farrear. Fazia o tipo “ma-
landro”. Tinha ideias malucas. Era até chamado de “Tião
Doidão”. Tinha planos de ir morar longe, na capital. E foi,
deixando Rosália chorosa e sem esperanças.

De vez em quando, Tião aparecia no povoado, e o coração
de Rosália se inchava novamente de amor e de ilusões. Mas
depois ele ia embora, e ficavam a dor e a tristeza.

Muitos rapazes quiseram namorá-la. Rosália relutou. De-
pois a família começou a pressioná-la. Já estava com dezenove
anos. Deveria esquecer Tião! O rapaz não era moço sério. Ela
estava ficando velha, e moça velha não arruma casamento!

Começou o namoro com Arlindo, primo segundo de Tião.
Arlindo era moço bom, tinha feito de tudo para namorá-la e
estava louco de amores por ela. Marcaram o noivado. Tião, na
capital, ficou sabendo.

No dia marcado, um domingo, Tião vai ao povoado com
a firme ideia de acabar com o noivado. Chega à casa dos pais
de Rosália, onde as famílias estão reunidas na hora do almoço
para o pedido e, parado debaixo da jabuticabeira na frente da
casa, pede a um primo que chame a moça. Os dois conversam.
Rosália volta para dentro. Tremendo, olha para os pais e para
Arlindo. Ela não consegue dizer muito, apenas o suficiente.

Apesar da bronca da mãe, de Arlindo ter quase morrido
de paixão, Rosália, dois meses depois, se torna a mulher mais
feliz do mundo: se casa com Tião. Vai morar na capital, onde
não conhece nada. Tião já tinha emprego lá. Ajudante de
mecânico numa oficina de automóveis. Um barracão apertado
e com um cheiro terrível de mofo. Não tinha problema. Ela
estava ao lado do amor de sua vida, dele e inteiramente pra
ele, na hora em que ele quisesse. Era o que ela queria!

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O AZUL DOS OLHOS DELA

Filhos. Um atrás do outro. Aluguel. Muitas despesas. Pou-
co dinheiro. Ninguém perto para ajudar. Às vezes, achava que
não ia dar conta de tanta dureza, mas, quando Tião voltava pra
casa à noite, esquecia as dificuldades, e quando ele a “juntava”
na cama depois que os meninos dormiam e seu corpo flame-
java, o mundo podia desabar que para ela não faria diferença.

Foi num sábado à tarde, quando Rosália estava nos últimos
dias de sua sétima gravidez, que policiais lhe chegam com a
notícia mais triste que até então recebera. Houve um acidente.
Ele estava debaixo do carro. O macaco que segurava o veículo cedeu.
Depois disso, teve dificuldade em entender o que estavam di-
zendo. Não conseguiram levantar... Prensou... Médicos... Não resistiu.

Permaneceu ao lado do caixão durante todo o velório e
acompanhou o enterro até o fim, mesmo estando debilitada
e no final de uma gravidez. Quando tudo terminou, teve uma
crise de pânico, teve que ser controlada à força por parentes e
foi levada ao hospital.

Quando saiu, parecia não saber quem era ou onde estava.
Perdia os sentidos de tempos em tempos. Falava coisas sem
nexo. Depois voltava ao normal temporariamente e, sempre
que isso acontecia, chorava, ora calma, ora nervosamente.

O nascimento do bebê, três dias depois, piorou a situação. Ro-
sália passou a revezar estados extremos de letargia e de nervosismo
(quando tentava arrancar os cabelos, se mordia ou rasgava as rou-
pas do corpo) e deixou de “voltar ao normal” temporariamente.

João, irmão de Rosália, foi quem conseguiu a internação
no hospital “para doidos”. Os meninos foram espalhados nas
casas de parentes. Dôra, irmã de Rosália que ainda não tinha
se casado, assumiu os cuidados do recém-nascido, a quem re-
gistraram, sem que Rosália desse fé, como Joaquim e chama-
ram de Quinzinho. Seis meses de internação.

Uma casinha muito simples na cidade sede do povoado foi
comprada para Rosália e os filhos após a alta do hospital. Tião

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Carmélia Cândida

já não tinha mãe e, nessa época, o pai também havia falecido.
A família dele tinha terras, e coube aos herdeiros de Tião como
herança um terreno, que foi vendido para a compra da casa.

Rosália tinha melhorado bastante, mas ainda não estava
bem. Não tinha mais as crises de nervosismo, mas ficava apá-
tica a maior parte do tempo. Dôra foi quem se ofereceu para
ficar morando com a irmã para ajudá-la. Ah! Se não fosse
Dôra... Um ano morando com Rosália, ajudando com os me-
ninos, no serviço da casa.

Aos poucos, Rosália foi se recuperando. Aos poucos, tam-
bém foi se apegando a Quinzinho e aceitando a situação.
Sentia tanta saudade de Tião que o peito doía, chorava todas
as noites, às vezes tinha vontade de sumir no mundo. Foi da
responsabilidade de mãe e do amor que tinha pelos filhos que
veio a força para que ela continuasse.

Criar os filhos sozinha foi uma batalha. Ainda bem que
Tião tinha emprego de carteira assinada e deixou um salário
mínimo de pensão. A família queria ajudar, mas ninguém ti-
nha boas condições. A mãe também tinha menino pequeno e
vivia numa labuta danada. Os meninos mais velhos cuidavam
dos mais novos quando não estavam na escola, Rosália lavava
roupa “para fora”, fazia doces para vender, buscava lenha no
mato e vendia os feixes (arroz e feijão, pelo menos, nunca fal-
tou na mesa) e, ainda, tinha que dar conta do serviço de casa
(as meninas mais velhas ajudavam), mandar crianças para a
escola. Como ela dizia, “era um lufa-lufa”!

Os filhos começaram a trabalhar assim que possível.
Quando estavam com mais ou menos doze anos, já arruma-
vam serviço. Os homens, como entregadores em armazéns
ou lavadores de carro, em postos de gasolina, como ajudantes
de pedreiro. As mulheres, sempre em casas de família. Estudo,
quando muito, era só até a oitava série. Naquela época, era
tudo muito diferente de hoje.

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O AZUL DOS OLHOS DELA

Os filhos cresceram. Apesar de toda a paciência e esforço
da mãe, alguns deles eram rebeldes ou problemáticos, pareciam
revoltados com a vida. Josélia e Otávio, os mais velhos, eram os
únicos centrados, ajuizados. Rogério se envolveu com drogas e
protagonizou pequenos roubos, um desgosto para Rosália. Ro-
semeire, a moça mais nova, engravidou aos dezesseis anos, saiu
de casa meses depois de dar à luz e deixou a filha para Rosália
criar. Adélia e Quinzinho eram tristes e calados. Mas a tristeza
maior foi a morte de Valdir, aos vinte e cinco anos, num aciden-
te de ônibus. Outra perda enorme para Rosália.

Levou tempo para as coisas melhorarem. Depois que todos
os filhos se casaram, foram se acomodando, criando juízo (Ro-
simeire é que nunca “tomou jeito”), e Rosália pôde ter um pou-
co de tranquilidade. Pudera! Ela já estava com sessenta anos!

Os últimos anos de vida foram ao lado de Emily, a filha
de Rosimeire que Rosália havia criado. Foi bom ela ter criado
a menina, pois tinha uma companhia agradável e afetuosa. A
neta adorava a avó e a enchia de carinhos. Conhecia toda a sua
história, contada por Dôra, considerava-a como mãe e sentia
muito orgulho dela.

Numa manhã fria de julho, Emily penteava o cabelo de Ro-
sália quando a avó sentiu uma forte dor no peito, que depois
se estendeu para os braços, pescoço e ombros. A respiração
ficou curta. As cores lhe sumiram do rosto. “O que foi, vó?”
Rosália não conseguiu responder. O socorro chegou rápido.

A caminho do hospital, Emily segurava a mão da avó e pas-
sava a mão por sua testa. A ambulância sacolejava, vez ou outra.
Rosália, na maca, ainda conseguiu dizer para a neta: “Não se de-
sespere. A vó está bem.” Com um sorriso nos lábios e um bri-
lho nos olhos nunca visto por Emily, desfaleceu. O atestado de
óbito registrou o horário da morte antes da entrada no hospital.

Emily olha para o caixão depositado na sepultura. Des-
folha calmamente cinco botões de rosa que levara para o

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Carmélia Cândida

enterro, jogando as pétalas sobre o caixão enquanto os co-
veiros jogam terra sobre ele. “A vó deve estar feliz. Vai se
encontrar com o vô. Hoje vai ser dia de festa no céu!”

Olhou ao redor. Apenas vasos com flores de plástico sobre
as sepulturas. Compraria vasos e mudas. Cultivaria lindas flo-
res para enfeitar o túmulo da avó.

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Viveu a vida que quis

Solitários. Assim tinham sido seus últimos anos. Os fi-
lhos, cada um cuidando da sua vida. As ex-mulheres,
idem. No apartamento, apenas ele e dona Rosa, a em-
pregada que estava com ele nos últimos anos.
Naquela tarde de agosto, do alto dos seus 78 anos, sentado
na pequena varanda do apartamento e tomando seu suco verde
preparado com água de coco, Otávio pensava no que fora sua
vida. Não se arrependia de nada. Tinha vivido a vida que quis.
Quando se formou em medicina, recebeu do pai um belo
consultório. Especializou-se em endocrinologia. Logo se tor-
nou um médico reconhecido e respeitado. Os pais se foram
cedo e, filho único, herdou fazendas de gado e imóveis espa-
lhados pelos lugares mais caros da cidade.
O primeiro casamento veio aos 27 anos, com Dulce, uma
das moças mais bonitas daquela sociedade interiorana. Era
uma mulher cheia de atributos. Otávio a amava e a queria
como esposa pelo resto da vida. Mas ele era muito atraente
e não faltavam mulheres aos seus pés, e Otávio simplesmen-
te não resistia. Era sensível por demais ao cheiro feminino.
Amava estar entre seios, coxas e vaginas diferentes. Ah! Os
cheiros das vaginas! Como resistir?!?
Quatorze anos. Foi o tempo máximo para Dulce. Cansada
de ficar em casa cuidando dos dois filhos enquanto Otávio
curtia seus “cheiros”, anunciou a separação. O acordo foi fei-

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Carmélia Cândida

to, a pensão foi acertada, e Otávio comprou um apartamento
luxuoso para a ex-esposa e os filhos. Na divisão dos bens,
teve que se dispor da sua melhor fazenda e de alguns imóveis,
o que ele não lamentou. Nessa época, havia se envolvido e
encantado com Mara, uma jovem de 20 anos, pobre, sem es-
tudos, disposta a subir na vida a qualquer custo.

Mara não era nenhuma beldade, mas tinha o frescor da
juventude, um corpo bonito e convidativo. E era sensual, ou-
sada. Fazia loucuras na cama e tinha uma vulgaridade tal que
tonteava Otávio. Nunca uma mulher o excitara tanto e lhe
dera tanto prazer como Mara. Ah, e o cheiro da vagina dela!
Era uma droga das mais viciantes.

Logo Mara se mudou para a ampla casa, com área de lazer,
piscina e empregados, onde Otávio vivera com Dulce por quator-
ze anos. Era tudo o que ela queria. E mais as roupas de butiques
de luxo, os sapatos, as joias, o carro de luxo, as viagens, as festas.
Com a chegada da nova mulher, Otávio diminuiu seus horários
no consultório. Todo o tempo possível deveria ser gasto com ela!
Mara era tão fascinante! Tão moderna! Por várias vezes, convidou
amigas para participar de brincadeirinhas sexuais com ela e Otávio.
Também aceitou ir a casas de swing diversas vezes, com desempe-
nhos que deixaram Otávio sem ar. Era maravilhosa!

Após o furor do primeiro ano de convivência, a disposição
de Mara para o sexo começou a diminuir. E foi diminuindo
mais e mais à medida que o tempo passava. No começo, fin-
gia interesse e continuava a satisfazer os desejos do marido.
Depois que engravidou e teve Isabela, estava sempre cheia de
desculpas e vivia escapando de Otávio. Ela só se preocupava
em comprar, gastar, sair com amigas e viajar. Tudo bancado
por Otávio. A filha ficava sempre aos cuidados de babás e
enfermeiras. Mara nunca perdeu uma noite de sono cuidando
da menina ou sequer trocou-lhe uma fralda. Otávio voltou a
buscar novos cheiros.

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O AZUL DOS OLHOS DELA

Não houve brigas nem discussões, apenas um acordo ju-
dicial que rendeu a Mara uma parte do patrimônio de Otávio.
Após longos oito anos, Mara se foi, com a filha. Pouco tempo
depois, casou-se com um estrangeiro e foi morar no exterior.

Depois de Mara, Otávio decidiu que não colocaria mais
mulher para viver com ele debaixo do mesmo teto. Teria, sim,
muitas mulheres, muitos cheiros diferentes. Ah! Os cheiros!
Mas seu estado civil seria solteiro. Estava livre! Queria viver
tudo que havia para viver.

Otávio era quase um cinquentão. Continuava atraente e não
tinha problemas em achar companhia. Foram muitas, incluindo
prostitutas baratas e de luxo. De diversos tipos, classes sociais,
cores, cheiros. Ele não tinha preconceitos. Trabalhava pouco e
gastava seu tempo com mulheres (na maioria das vezes, bem
mais jovens que ele). E não se importava em gastar dinheiro
com elas. Ainda tinha imóveis de aluguel e uma fazenda. Pre-
sentes caros e viagens faziam parte dos romances. Sua fama era
conhecida, e muitas mulheres, sabendo disso, iam procurá-lo,
oferecendo companhia. Ele não recusava nenhuma. Sexo! Be-
bidas! Orgias! Era uma vida intensa e de prazer. Foi assim por
quase vinte anos após o rompimento com Mara.

Gastou tudo que tinha. E bem gasto, dizia ele. Vendeu bens
para pagar dívidas. Quando o dinheiro foi acabando, as mulheres
foram diminuindo. Até ele ficar só. Não sobrou nenhuma. No
fim, ficou apenas com um apartamento modesto e a aposenta-
doria, que lhe permitia pagar a empregada e as despesas básicas.

As dores do reumatismo iam e vinham. Já tinha se recu-
perado das sequelas do AVC que sofrera quatro anos atrás. A
pressão arterial é que estava se descontrolando nos últimos
dias. Às vezes sentia falta dos filhos, que lhe faziam visitas
breves e espaçadas. Com Isabela, quase não tinha contato.
Dulce é que telefonava de vez em quando para saber como
ele estava. Como era bom falar com ela!

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Carmélia Cândida

Sentia que não lhe restava muito tempo de vida. Não se
entristecia com isso. Ao contrário, sentia-se bem. Receberia
a morte com alegria e serenidade. Não que tivesse tido uma
vida infeliz, é que já tinha vivido muito. E tudo que ele queria
viver. Estava satisfeito.

Lá fora, o vento balançava as folhas das árvores. Alguns
redemoinhos podiam ser vistos, ao longe. Fechou os olhos
e, com um sorriso no canto dos lábios, disse para si mesmo:
“valeu a pena”. Naquela noite, teria sopa de batatas no jantar.
Dona Rosa não demoraria a vir levá-lo para dentro. O sol já
estava quase se pondo.

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No enterro

Foi no sepultamento de uma mulher de família conhecida
e querida no bairro. Havia uma multidão no cemitério,
acompanhando o cortejo até o local do sepultamento.
O marido da finada estava desconsolado e, durante todo o veló-
rio, não fizera o menor esforço para conter o pranto e o deses-
pero. A filha de oito anos estava numa tristeza de dar dó.
Estando perto a sepultura, pessoas curiosas se apressavam
para ver o momento da descida do caixão. Parecia que não que-
riam perder a cena de jeito nenhum, como se se tratasse de um
espetáculo. Como havia muita gente, estava difícil se aproximar.
Um senhor, que não era da família, estava na “luta” para
conseguir um lugar de onde pudesse ver o marido e a filha
se despedindo da falecida. Corre daqui, ultrapassa dali... Em
vão, a sepultura estava longe. Não vendo alternativa ou talvez
sem prestar atenção em onde pisasse, o senhor começou a
passar apressadamente com esforço e rapidez por cima dos
túmulos onde não havia ninguém, a fim de abreviar o cami-
nho e de conseguir seu “lugar ao sol”.
Enfim conseguiu chegar perto. Podia-se ver o alívio (ou con-
tentamento) em seu rosto, ficando bem posicionado em cima
de uma lápide de cimento. Ali, poderia apreciar tudo à vontade.
Naquele fim de tarde, além de alguns murmúrios, só se ouvia
o choro do marido e da menina, acompanhado por muitos olhos
curiosos. Foi quando uma mocinha, cerca de dezesseis anos, que,

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Carmélia Cândida

como o homem, procurava um bom lugar para assistir à cena,
chegou perto do túmulo onde ele estava. O homem, vendo o
esforço da moça e querendo ser gentil, fez-lhe sinal para que se
aproximasse. Dividiria com ela o camarote em cima do túmulo.

A mocinha foi caminhando depressa (quase correndo)
para o túmulo a fim de ficar ao lado do senhor. Posicionou-se
ao lado dele. Foi o que bastou para que a laje cedesse...

Um barulho forte foi ouvido, e todas as atenções se vol-
taram para o local onde estavam o abelhudo senhor e a entu-
siasmada mocinha. As pessoas pareciam não acreditar no que
estavam vendo.

Caíram os dois dentro da sepultura.
E para sair de lá? Que dificuldade! A sorte é que havia
pessoas solidárias por perto, que logo foram acudi-los. Ainda
assim não foi fácil tirá-los de lá. O coveiro também veio cor-
rendo para ajudar.
A mocinha entrou em desespero e começou a gritar. Foi
uma cena inusitada e engraçada, apesar do lugar (ou principal-
mente por causa dele).
E, diante de todos, os dois foram retirados da sepultura,
assustados. Ambos estavam arranhados e sujos de terra. A
camisa do senhor se rasgara na queda. Parecia que tinham
ficado lá por horas. O rosto da mocinha estava vermelho, e
lágrimas se misturavam com poeira. A mãe, ao ver que era a
filha que saía da sepultura, veio em seu socorro.
Os procedimentos do enterro foram reiniciados. Mas os
dois curiosos não quiseram mais esperar até o final. Perderam
o interesse pela cena. Foram saindo sorrateiramente, na maior
sem-gracice do mundo. O homem, mancando; a mocinha,
amparada pela mãe, que lhe xingava, brava, não admitindo
que ela tivesse subido em cima de um túmulo por ânsia de
ver uma cena do sepultamento. Você não é muito inteligente, não,
minha filha? Enterro não é espetáculo. Que curiosidade louca é essa?

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O AZUL DOS OLHOS DELA

O homem teve o braço quebrado e ficou dias sentindo do-
res pelo corpo. Envergonhado, evitou sair de casa nas semanas
seguintes, tantos eram os comentários sobre o episódio. A mo-
cinha teve arranhões e ficou com o joelho inchado por sema-
nas, precisou tomar analgésicos para diminuir a dor. E teve que
aguentar a mãe chamando-a de boba, a gozação das colegas.

Por muito tempo, muitos dos que presenciaram a cena não
conseguiriam esquecer a expressão no rosto deles quando fo-
ram tirados da sepultura. Algumas pessoas chegaram até o
túmulo aberto para conferir o que havia dentro. Disseram que
o corpo que estava lá já tinha se decomposto. Os dois caíram
bem em cima do esqueleto.

Que situação! E aconteceu de verdade. Muita gente estava
lá para testemunhar.

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O azul dos olhos dela

Sentada na cadeira de descanso em seu quarto, segu-
rando um espelho, olhava seu rosto. Passava a mão
sobre a pele, olhava as pálpebras caídas, as rugas.
Lembrou-se dos versos de Cecília Meireles: Eu não tinha este
rosto de hoje / assim calmo, assim triste, assim magro / nem estes olhos
tão vazios / Nem o lábio amargo.
Não. Eu não tinha este rosto de hoje...
Era lindíssima. Tinha sido. Na juventude. Pele sem imper-
feições, olhos azuis de um azul profundo, cabelos incríveis. O
corpo era esguio, medidas perfeitas, cinturinha de pilão, seios
bem feitos. Encantadoramente linda.
Tinha agora uma beleza diferente, a de uma senhora de
setenta e cinco anos, fina e elegante, em cujo rosto podiam-se
ver traços de uma beleza inigualável na juventude. Sim, acha-
va-se bela, mas não como fora quando jovem.
Deixando o espelho de lado, recostou-se na cadeira de des-
canso e lembrou-se da conversa que tivera depois do jantar com
um sobrinho que estava prestes a completar cinquenta anos. Es-
tavam só os dois na sala de estar, e ele falava sobre o envelhecer.
— É, tia. Já vou fazer cinquenta anos. A gente vai ficando
velho, começa a aparecer uma ruguinha aqui e outra ali, a pele
vai perdendo o viço... Não é bom, não. Mas, por outro lado,
é bom, sim, pois a gente ganha experiência de vida, que não
tem preço. Muito mais vale a experiência que a gente ganha, a

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O AZUL DOS OLHOS DELA

sabedoria, do que a beleza da juventude. E o que importa é a
gente estar com saúde, não é mesmo?

- Ah, meu sobrinho, importa, sim. É importante a gente
estar com saúde, é muito bom ganhar experiência de vida,
mas isso é amadurecimento. Agora o envelhecer em si, o en-
velhecimento físico, de que você está falando, é triste. E nin-
guém venha me dizer que não é, porque é. Uns sofrem mais
com ele, outros menos e, dizem, há quem não se importe nem
um pouco — do que eu duvido. É triste ver a juventude indo
embora... ver a chegada de uma nova ruga, o cabelo raleando,
o peso aumentando, os músculos e a pele ficando flácidos...

— Ah, tia! Mas a gente ganha experiência de vida, sabedoria.
— Isso é bom. Se bem que nem todos aprendem ou ama-
durecem com o passar dos anos. Agora, dizer que uma coisa
compensa a outra é racionalizar. Você está racionalizando.
— Hum...?
— Racionalizar é encontrar razões para. É um mecanismo
de defesa, assim como vários outros que temos. A teoria psi-
canalítica explica. Quando estamos diante de uma realidade
que não queremos aceitar, seja uma atitude, uma ideia ou um
sentimento, temos a tendência de racionalizar, que é encon-
trar razões, justificativas ou explicações que possam nos con-
vencer do contrário dessa realidade e, assim, nos proteger, nos
confortar, nos fazer sentir bem.
— A senhora acha? Será que é assim mesmo?
— Acho. A gente fala isso para enganar a gente mesmo,
para não ficar triste, para aceitar a velhice com tranquilidade.
Mas que é ruim, é.
Ele ficou perplexo e pensativo. Depois de sair e dar uma
volta pelo jardim, retornou, encontrando a tia ainda na sala
de estar.
— Nossa, tia, a senhora me deixou triste... Eu estou pen-
sando que é como a senhora falou mesmo.

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Carmélia Cândida

— Ah, filho, mas a gente não deve ficar “morrendo” por
causa disso, não, nem pensando demais. Não podemos fazer
nada a respeito. É bobagem ficar paranoico. É um fato. A
gente tem que aceitar, se cuidando, claro. Tem que relaxar e
ficar bem com a gente mesmo. E não é a pior coisa do mundo.
Doenças, por exemplo, são muito piores.

— Tia... quando a senhora fala em doenças, não está ra-
cionalizando também?

— É, não deixa de ser uma forma de racionalização... Bem,
mas não vamos mudar o fato de envelhecer mesmo, não é?
Então a gente tem que preocupar é em estar com boa saúde e,
se estiver, agradecer por isso. Aparência é o de menos.

— A senhora tem razão. Mas que é triste, é. E a velhice
vem para todos. A não ser que a pessoa morra jovem.

No quarto, ela volta a pegar o espelho. Pelo menos, o azul dos
meus olhos não mudou. Azul profundo. Depois o coloca sobre a
cama e pega um porta-retratos no criado-mudo. Há uma foto
do dia em que completara quinze anos. Ela estava sorridente,
com um ramalhete de flores nas mãos, e usava um vestido
godê que lhe acentuava ainda mais a cintura fina. Como passou
rápido, meu Deus! E então ela lembra Quintana: A vida é uns
deveres que nós trouxemos para fazer em casa. / Quando se vê, já são 6
horas há tempo...Quando se vê, já é 6ª feira.../Quando se vê, passaram
60 anos...

Sessenta anos!
Sente o quarto abafado e vai respirar o ar fresco da va-
randa. A rua está deserta. Devem ser quase duas horas. Uma
coruja vinda não se sabe de onde pousa no gradil. Instantes
depois, vai embora, e ela acompanha seu voo.

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Necrochorume

Morreu sozinho no barraco em que morava. A ha-
bitação ficava entre lotes baldios. Foi encontra-
do quando vizinhos, incomodados com o mau
cheiro que se fazia sentir no bairro, chegaram até o local
para ver o que estava se passando. Sobre um sofá, na sala
(que também era cozinha), estava quase irreconhecível,
inchado, com líquidos escorrendo por todas as partes do
corpo (muitos já secos), que se mostrava cheio de grandes
bolhas. A pele das mãos, principalmente, estava como que
se descolando. Não havia sinais de violência. Estava com-
pletamente escura a pele que era, em vida, muito branca.
Pelo estado do corpo, a perícia calculou que a morte acon-
tecera cerca de seis dias atrás.
Devido ao estado de decomposição, teve que ser enterra-
do às pressas, e não foi possível detectar a causa da morte.
O caso foi tratado pela polícia como encontro de cadáver.
Conseguiram contatar um irmão, e o enterro só pôde ser
providenciado por meio da assistência social do município.
Não houve tempo para velório.
— Seis dias! Não é possível que ninguém não tenha senti-
do falta dele. Pelo que se sabe, ele trabalhava, era servente de
pedreiro — disse, ao saber do fato, uma vizinha que conver-
sava com uma amiga na vizinhança, acompanhando de longe
a movimentação no barraco.

67

Carmélia Cândida

— Sim — falou a outra — mas era comum ele invernar na
cachaça e ficar só por conta de beber. Ficava dias sem traba-
lhar, sem comer direito, até sem tomar banho. Que situação!

— Mas e os parentes? Ninguém vinha visitá-lo?
— Ninguém que a gente visse por aqui. Esse irmão dele que
está aí, eu nunca vi. Mas a vida dele não foi sempre assim, não.
Ouvi dizer que já foi casado, que tem até uma filha, que já teve
vida boa, casa, carros, foi sócio de uma próspera fábrica de doces.
— Nossa! Quando a gente olhava pra ele, nunca ia imagi-
nar isso.
— Pois é. Parece que não tinha juízo. Acabou com tudo.
Um grande problema na vida dele foi a bebida. Coisa triste...
— E o nome dele? Será que tinha nome? Todo o mundo
só o chama de...
— Que pergunta! Você, às vezes, é meio abobada. Claro
que tinha. Todo o mundo tem. Não sei, mas é lógico que tem.
O nome dele era Teodoro. Já tinha sido o Senhor Teodoro
Ribeiro Mourão, tempos atrás. Tinha sido também “Teozi-
nho”, o alegre Teozinho, na infância. Mas, ali, era conhecido
como “Gambá”, apelido que ganhara havia cerca dez anos.
Gambá, apenas Gambá.
Em breve, o corpo de Gambá estaria debaixo da terra. Em
mais ou menos duas semanas, o cabelo e as unhas estariam total-
mente soltos. A pele terminaria de rachar e se arrebentaria em múl-
tiplas zonas devido à pressão de gases internos. Nos seis primeiros
meses, seriam produzidos pelo cadáver de 30 a 40 litros de necro-
chorume. E a decomposição continuaria, por uns três anos ou
mais, até toda a carne ficar apodrecida e não restar nada, exceto os
ossos e os dentes. E ele seria apenas uma lembrança. Distante. E só.
O necrochorume é um líquido viscoso, de cor acinzentada a acasta-
nhada, produzido pela decomposição dos cadáveres, composto sobretudo
pela substância cadaverina, de odor repulsivo, subproduto da putrefação.
É altamente poluente e tóxico.

68

Upa, upa, cavalinho alazão!

Chegou à casa dela com um ramalhete de flores
numa mão e com uma garrafa de vinho na outra.
Estava todo arrumado. Todo perfumado. Esvazia-
ra o vidro de colônia da Avon. Tinha vestido até terno. Parecia
um galã de filme antigo.
Francineide esperava-o. Vestia robe e camisola curtinhos
e, por baixo, apenas uma calcinha fio dental. Todas as terças e
quintas-feiras ele vinha. Era certo. Às vezes, aparecia no do-
mingo também, quando a mulher ia para a casa da mãe. Nun-
ca sem avisar a amante.
— Ora, mas o que foi, meu bichinho, qual a razão de tudo
isso? — disse, sorrindo e pegando as flores e levando-as ao
nariz para cheirá-las.
— Ah, Francineide! É que você é formosa demais. Gostosa
demais. É que meu amor por você é enorme demais, minha “fror”!
Colocados o vinho e as flores em cima da mesa, Joseir
beija Francineide com volúpia, cheira-lhe os cabelos como se
aquele cheiro fosse necessário para ele continuar vivo, aperta-
-a contra seu corpo e enfia a mão sob a camisola, sentindo o
sexo dela molhado.
— Eita, já vi que hoje você está disposto. Ainda bem que
eu dormi de dia. Tô descansadinha, descansadinha.
Leva-o para o quarto. Ele se joga em cima dela, na cama.
— Ah, Francineide. Tenho uma notícia maravilhosa pra te dar.

69

Carmélia Cândida

— Ah, é...? Algum presente que eu vou ganhar? Algum pas-
seio que vamos fazer? Faz um tempo que não passeamos, né!

— Não, Francineide. Muito melhor...
— Hum... O que será?
— Vamos ser só nós dois agora.
— Hum...? Como assim?
— Só nós dois, Francineide! Deixei da minha mulher. Falei
pra ela que tá tudo acabado. Agora vou poder ficar com você
todos os dias. Morar aqui...
— Morar aqui?!?
Francineide sai de debaixo de Joseir, afasta-o e senta-se na
cama, com cara de assustada.
— Minha “fror”. Ah, Francineide, eu não podia mais viver
longe de você. Vamos nos amar demais... Vem. Quero você...
Se abre pra mim...
— O quê? Tá falando sério, Joseir? Joseir, você bebeu?
— Seríssimo, meu amor!
— Ô, Joseir, não me fale que você fez uma bestagem des-
sas, homem! Não me fale...
— Fiz e está feito. E fiz com gosto. Se você quiser, Fran-
zinha, a gente pode até se casar de verdade, depois que sair
minha separação.
— Casar? Quem disse que eu quero casar, Joseir? Quem te
falou isso, homem de Deus? Quem disse que eu quero você
aqui na minha casa todo dia? Peraí... você é abirobado, é?
— Francineide, eu tô te dizendo que larguei da minha mu-
lher, meus filhos, pra ficar com você. Acho que não ouviu
bem. Tô te dizendo que o meu amor é todo seu, tô te ofere-
cendo o papel de minha esposa, mulher! Minha esposa! E é
assim que você reage?
— Oh, meu amor, meu cachorrão, é que eu prefiro que a
gente viva como viveu até hoje. Nós somos tão felizes assim!
Não precisamos mudar nada. Você é um homem sério, casado.

70

O AZUL DOS OLHOS DELA

De valor. Não preciso me preocupar, não vai me trair com ou-
tras. E eu sou sua Franzinha.

— Mas...
— Você fica lá na casa da sua mulher, ela cuida de você,
lava suas roupas, faz sua comida. E eu fico aqui tranquilinha
na minha casa. Aí você vem na terça, na quinta (também no
domingo, se quiser) todo limpinho, cheiroso e gostoso, a gen-
te faz amor até não aguentar mais, eu sou sua Franzinha, sua
cadelinha — Au! Au! — depois você volta pra sua casa. Não
é melhor assim? E a gente pode viajar de vez em quando, em
lua-de-mel, como já fizemos algumas vezes.
— Não, Francineide. Eu quero você o tempo todo. Quero
dormir e acordar com você todos os dias. Quero que você cozi-
nhe pra mim. Quero que você cuide de mim. Minha danadinha...
— Ai, ai! Deus que me livre!
— Você não entende: sou louco por você! Te respeitarei como
minha esposa. E você devia querer ser uma mulher de respeito!
— Mas eu sou! Você sabe que sou uma senhora distinta. Só
não quero ser esposa. Você não entende. Não posso, Joseir. Não
nasci pra isso. Ah, Joseir, sou que nem uma cachorrinha que não
aguenta viver com coleira. Gosto é da liberdade. De ser só eu.
Sempre fui assim. Por que você acha que saí lá dos confins de
Santana do Cariri, onde o cão perdeu as esporas atrás da mãe,
e vim parar aqui em Itaberaba? Porque eu não queria homem
mandando em mim. Nem meu pai eu aceitei mandar em mim.
— Francineide?...
— Saí de casa com quinze anos. Já pelejei muito nesta vida.
Trabalhei em casa de família, lavei roupa pros outros, olhei
menino. Aqui eu tive uma chance melhor, quando conheci o
Tonico. Ele que pagou o curso pra eu aprender fazer tapete
arraiolo e que arrumou os compradores pra mim. Hoje eu
trabalho aqui em casa, no meu tempo, e eles vêm buscar as
encomendas. Ah... O Tonico...

71

Carmélia Cândida

— Não me fale em Tonico, Francineide. Pelo amor de
Deus! Você sabe que eu morro de ciúme desse caboco.

— Ô homem besta, sô! Ciúme de morto? Você fica saben-
do que eu e o Tonico vivemos muito bem como a-man-tes
durante dez anos, viu! Ele nunca veio com essa bestagem de
querer largar a esposa pra ficar comigo. Por isso que a gente
deu tão certo. Larga de ser bobo!

— Francineide, a gente se entende tão bem. Você vai recu-
sar o amor que estou oferecendo a você?

— O amor eu não recuso. Aceito e fico agradecida. Já o
casamento... dispenso. Pode oferecer pra outra, se você quiser.

— O quê?
— Ara! Me desculpe, mas eu tô muito bem do jeito que eu tô.
— Franzinha, pense bem. Tudo que uma mulher quer é
um homem que a ame ao seu lado, protegendo ela.
— Joseir, não seja bocó! De onde você tirou isso? Eu lá
preciso de proteção? E que tipo de homem deseja proteger
uma mulher? Certamente um que não vê ela como uma igual!
— Me desculpe, eu só queria que você pensasse bem.
— Pense bem, você! Pensa: você larga sua mulher, vem
morar aqui. No começo, vai ser uma beleza. Depois vai fican-
do chato, não tem jeito. A gente dormindo e acordando junto
todo dia, tendo que conviver com o mau humor um do outro,
tendo que ficar dando satisfação de tudo. Esse nosso fogo vai
passar. Vamos ficar com intimidade demais, e intimidade é
uma... Não presta. Tudo isso vai acabar.
— Você só quer o “bem bom”, né, Francineide?
— É. É isso mesmo. O que tem de mal nisso? Eu não que-
ro assumir papel de esposa, já falei. Quero ser só eu, eu com
minha vida. Posso até querer um homem do meu lado, mas
ele não precisa viver amancebado comigo, entende?
— Você não vai mesmo aceitar o que eu te ofereço, Fran-
cineide? Tem certeza?

72

O AZUL DOS OLHOS DELA

— Não vou, meu bichinho. Te agradeço de coração, de
coração mesmo, mas não posso. Me entenda.

— Não sei o que dizer. Agora tô muito azuado...
— Joseir, meu rei, deixa de ser leso. Volta lá na sua mulher en-
quanto é tempo. Faz as pazes com ela. Diz que se enganou, que
nunca vai conseguir viver sem ela. Faz uns adulos. E quer saber?
Ela é muito boa pra você. É uma mulher direita, boa mãe, e não
é de se jogar fora. É bonitona. Tem um traseirão. Nunca reparou
nos homens olhando pra ela? Aposto que, se você largar dela, no
outro dia vai tá cheio de gavião por lá, de olho...
— Você acha mesmo, Francineide?
— Acho, não. Tenho certeza! Ó, você ainda não saiu direi-
to, ela vai te aceitar de volta. Eu preciso de você casado, meu
cachorrão. É assim que tem que ser.
— Será que ela vai me aceitar?
— Vai, sim. Dê um jeito! E não tá fácil, não. Pense pra
você ver no tanto de mulher que tem nesta cidade a mais do
que homem. Acha que ela vai querer te perder? Nunca!
— Ah, Francineide, mesmo assim eu... eu ainda acho que...
— Joseir, cansei desta prosa! Se você continuar insistindo,
vou acabar com tudo que há entre nós agora mesmo. Aí não
vai ter mais nada, nem amante vou ser sua, entendeu? Nem
amante! Vou estar é livre para outro.
— Francineide, não brinca comigo!
— E aí: adeus, cadelinha! Você pode dar adeus também ao
“dedinho mágico”, ao “upa, upa, cavalinho alazão”, ao “gu-
die, gudie; chups’ chups’”, ao...
— Não, Francineide! Isso, não.
— Vai acabar tudo.
— Não! Chega! Pelo amor de Deus! Aceito a gente conti-
nuar como amantes.
— Como amantes?
— Sim! Mas não me deixe nunca, por favor.

73

Carmélia Cândida

Francineide se senta no colo de Joseir e o abraça.
— Nessas condições, nunquinha. Cachorrã-ão!
— Eu tenho que ir lá resolver com ela, então. Na quinta,
eu volto.
— Vai, sim. Mas primeiro vamos xurupitar. Você só vai de-
pois que a gente fizer o “upa, upa, cavalinho alazão”. Vamos?
— Ah, Francineide. Ah, Francineide!

74

Atendimento por
reconhecimento de fala

Olá! Você ligou para a assistência psicológica

— virtual, atendimento com reconhecimento de
fala, e eu sou sua assistente pessoal digital.

Você não paga nada por este serviço, pois ele faz parte do
Programa Mente Saudável, que é uma iniciativa do IEAPS –
Instituto Especializado em Apoio e Proteção à Saúde.

Fale uma das seguintes opções: “Estou deprimido”. “Fui
abandonado”. “Tenho que tomar uma decisão difícil”. “Não
estou conseguindo controlar minha raiva” ou “Outras opções”.

.....
— Entendi! Outras opções. Certo! Agora, para continuar
este atendimento, precisamos nos sentir mais íntimos. Fale o
seu nome pausadamente.
....
— Entendi: Paulo Vítor. Muito bem! Agora, se você pre-
ferir escolher um nome para mim, diga esse nome. Se você
preferir que eu lhe ofereça opções, diga “opções”.
— Tanto faz...? Desculpe, esse nome não está cadastra-
do em nosso sistema. Por favor, se você preferir escolher um
nome para mim, diga esse nome. Se você preferir que eu lhe
ofereça opções, diga “opções”.
....
— Desculpe, esse nome não está cadastrado em nosso sis-
tema. Aguarde um instante, vou ver se poderemos aceitá-lo. ...

75

Carmélia Cândida

... ... ... Certo, poderemos aceitá-lo. De agora em diante, eu sou
Disgracenta e serei sua conselheira. Mas, atenção, para que nosso
diálogo seja proveitoso, você precisa ter confiança em mim. Por
favor, pense em mim como uma pessoa muito amiga sua...

...
— Pensou?
...
— Não? “Puta que pariu”? “Desgraça?” “Disgracenta”?
Senhor, o senhor precisa esperar o momento certo para fa-
zer suas queixas, esse atendimento segue uma ordem previa-
mente determinada.
....
— “Me escuta, filha da mãe?” Não estou entendendo. Se-
nhor, por favor, vamos obedecer ao protocolo do atendimento.
... .... .... .... ... ... ... ... ... ... ... ...
— Senhor, se o senhor continuar falando tanta coisa as-
sim, sem parar, meu sistema não conseguirá processar todas
as informações.
... ... ...
— Senhor, não estou conseguindo processar as informa-
ções. Tente respirar fundo.
... ... ... ... ...
— Senhor, por favor...
— Parece que o senhor está chorando? Espere, vou confe-
rir no sistema se esse som significa choro. Já volto!
... ... ...
— Identifiquei, é choro. Calma, vamos conversar. Por fa-
vor, respire fundo.
...
— O senhor quer morrer? ... Senhor, peço, por favor, que
aguarde o momento de dizer isso. Nem iniciamos a fase de
pesquisa de problema, precisamos passar por ela, senão não
terei como ajudá-lo.

76

O AZUL DOS OLHOS DELA

... .... .... ....
— Aguarde uns instantes que irei processar suas informa-
ções. Mas, senhor, o senhor precisa dizê-las pau-sa-da-mente.
... ... ...
— Sua vida está uma desgraça. Eu sou uma disgracenta.
Você quer matar todo o mundo. Você quer morrer. Ninguém te
escuta. Eu não te escuto. Você é um fracassado. A vida é uma
bosta. Você está cansado de viver sozinho e de não ser ouvido...
Senhor, o senhor está me enviando muitas informações de
uma vez, e ainda não passamos a fase de pesquisa do problema...
... ...
Estou ouvindo choro novamente. Tudo bem, pode cho-
rar. Mas, para o sucesso deste atendimento, o senhor precisa
responder às perguntas de pesquisa do problema. Atenção,
vamos continuar.
....
— O senhor está chorando muito alto e está atrapalhando
meu processamento de informações. Por favor, vou esperar
uns instantes para o senhor chorar mais um pouco e passar-
mos para as perguntas, certo?
....
— Aguardando mais uns instantes...
— Aguardando mais uns instantes...
— Mais uns instantes...
....
Senhor, que barulho foi esse?
---
— Senhor, me responda, por favor.
---
— Que barulho foi esse? Não estou mais ouvindo-o chorar.
---
— Que barulho foi esse? Não estou mais ouvindo-o chorar.
....

77

Carmélia Cândida

— Por que está em silêncio, senhor? Assim, não poderei
ajudá-lo. Espere, vou tentar checar o registro desse barulho
em nosso sistema...

... ...
— Não consigo identificar que barulho é esse, senhor.
Encontrei registrado: estrondo, estampido... mas meu sistema
não está conseguindo juntar as informações. O senhor pode
me ajudar?
— Senhor? Senhor? Ainda está aí? Vou esperar cinco mi-
nutos e, se o senhor não disser alguma coisa, a ligação terá que
ser encerrada.
...................................
— Sinto muito, a ligação será encerrada. Não foi possí-
vel concluir o serviço porque o senhor não quis firmar um
diálogo efetivo entre nós. Sem diálogo e proximidade, não
temos como ajudá-lo a resolver seu problema. Você poderá li-
gar quando quiser, que estaremos à disposição para atendê-lo.
E não se esqueça: sempre que precisar de ajuda psicoló-
gica, entre em contato com a assistência psicológica virtual,
que faz parte do Programa Mente Saudável, uma iniciativa do
IEAPS – Instituto Especializado em Apoio e Proteção à Saú-
de. O IEAPS agradece seu contato e deseja-lhe um bom dia!
Tu.... Tu... Tu.... Tu... Tu.... Tu... Tu.... Tu... Tu.... Tu... Tu....
Tu... Tu.... Tu... Tu...

78

A primeira noite

Assim que saíram do banco, ela disse ao marido que
precisava ir a uma loja comprar uma “coisinha”. Ele
iria à farmácia, à loja de produtos veterinários. De-
pois se encontrariam no estacionamento próximo ao super-
mercado, onde haviam deixado o carro.
Violeta andava apressada como se tivesse algo importante
para fazer. E tinha. Certificando-se de que o Zé tinha ido para
outro lado, entrou na loja de lingeries e foi direto para a arara
de calcinhas. Escolheu duas, ambas de algodão, uma amarela
com tira bordada e outra cor de rosa, também com tira borda-
da. Pediu à vendedora que embrulhasse, e saiu da loja com o
embrulho dentro da bolsa.
Na viagem de volta para casa, ficou observando o Zé en-
quanto ele dirigia. Como ele era bonito! Um “pão”! Dos onze
irmãos, era o mais bonito da casa! Ela é que foi esperta em ter
se casado com ele. Lucrou! E era homem bom. Às vezes, bom
até demais, nem precisava ser tanto. E o Zé sabia dançar! E
bem! Quando os dois estavam num salão de dança, bailavam
lindamente, encantando a todos que os vissem.
Mas o Zé também tinha lucrado! Violeta era mulher de
muitas qualidades. Corpo esbelto, esperto e delicado. Era mui-
to alegre e animada (nisso, era imbatível). Sempre esteve ao
lado do marido, apoiando e ajudando no que fosse preciso. Era
mulher forte e cheia de energia! Como o Zé, tinha enfrentado

79

Carmélia Cândida

muitas dificuldades e trabalhado muito na vida. Mas isso tinha
ficado para trás, não ficavam se lembrando disso, não. Melhor
se ocupar com os acontecimentos bons do presente.

Apesar dessas maravilhas, os dois às vezes brigavam como
adolescentes em início de namoro. O Zé, às vezes, era “ca-
beça-dura”, fazia as coisas do jeito dele sem falar com ela.
Outras vezes, ficava envolvido demais com a igreja, ou cui-
dando exageradamente das vacas, e ela achava que ele não es-
tava dando tanta importância a ela. A Violeta, do mesmo jeito
que era alegre, era nervosa, só que na menor parte do tempo.
E brava. Às vezes ela xingava o Zé por pouca coisa... Mas o
Zé gostava dela assim mesmo, e os dois não conseguiam ficar
com raiva um do outro, não. Logo, logo, ficavam “de bem”
de novo. “Eu, dormir sem ‘minha’ costela, de jeito nenhum!”,
era o que diziam.

Os filhos, todos casados, se divertiam com o comporta-
mento dos pais. Era até engraçado o quanto o Zé e a Violeta
eram “grudados” um no outro. Violeta não gostava que o Zé
ficasse por muito tempo longe de suas vistas. Muitas vezes,
a casa estava cheia, presentes filhos, noras, genros e netos e,
quando Violeta se dava conta de que estava sem ver o Zé há
um tempinho, já saía procurando — “Cadê o Zé?” — até en-
contrá-lo. Ele também não gostava de ficar longe dela de jeito
nenhum. Se tinha que estar na roça e ela na casa da cidade por
algum motivo que se fizesse necessário, ele ficava como fica o
brilho da lua na água numa noite sem luar.

Quando os dois se arrumavam para sair, os filhos, e quem
os visse, achavam lindo vê-los de mãos dadas, bem juntinhos,
como um casal de namorados. Ele bem vestido e bem pente-
ado; ela toda arrumada, de batom, brincos e colar. Como diria
Adélia Prado: “noivo e noiva”.

Quando o Zé parou o carro para Violeta abrir o portão
e disse um “Acorda, Violeta!”, ela acabava de preparar, em

80

O AZUL DOS OLHOS DELA

pensamentos, a janta que faria para o Zé naquela noite. Após
guardarem as compras, ela deu uma ajeitada na casa, molhou
as plantas e separou os ingredientes que usaria. Assim que o
Zé foi apartar as vacas, foi até o quarto, tirou o embrulho da
bolsa, abriu. Será que ele vai gostar? Colocou as peças cuida-
dosamente na gaveta, sentindo um sorriso começar em seus
lábios e passar para todo o seu ser como tinta que cai num
pano e vai encharcando-o por inteiro.

Naquela noite, comemorariam o primeiro Dia dos Namo-
rados após terem completado 50 anos de casados.

81

Um presente para Gabriel

Tanto pediu, tanto insistiu, que a mãe improvisou uma
árvore de Natal. Percorrendo lotes vagos na vizinhan-
ça do bairro pobre e pouco povoado, ela juntou ga-
lhos secos. Envolveu-os com o algodão que conseguiu com
Sueli, vizinha que trabalhava numa fábrica de tecidos e podia
levar algumas sobras para casa. Ajeitou os galhos brancos em
uma lata com areia, formando uma árvore. Tirou do pouco di-
nheiro que tinha para as despesas do mês e comprou algumas
bolas vermelhas. Fez “presentinhos” com caixas de fósforo
vazias e papel de presente e pendurou com as bolas. A árvore
ficou linda! A mãe ainda pegou uma imagem do Menino Jesus
que tinha guardada e colocou-a ao lado da árvore. Perfeito!
Gabriel não cabia em si de contentamento por ter ali, em sua
casa, uma árvore de Natal com a imagem do Menino Jesus ao
lado. Rafael, o irmão menor, ficou encantado e tentava cantar
para a árvore e o Menino. Ah! Se tivessem um pisca-pisca...
Gabriel já tinha perguntado para a mãe, mais de uma vez,
se naquele ano haveria presentes no Natal. Ela dissera que
não, falou com carinho e pediu que ele compreendesse. As
coisas estavam difíceis. O salário de faxineira na loja de mó-
veis era pequeno, e o problema é que ainda estava pagando
as prestações de materiais usados na construção do barracão.
Não tinha sido fácil construir os três cômodos, ainda sem
acabamento, no lote doado pela prefeitura, mesmo a mão de

82

O AZUL DOS OLHOS DELA

obra tendo sido feita no sistema de adjutório. Mas, no ano
seguinte, não haveria mais as prestações, e ela iria, sim, com-
prar presentes. Um carrinho para Rafael e uma carreta para
Gabriel! E das grandes!

A mãe também explicou que o sentido do Natal não é ga-
nhar presentes, que o Natal é a comemoração do nascimento
de Jesus e que é o nascimento de Jesus no coração das pesso-
as. Gabriel entendeu tudo e estava muito feliz pelo significado
da data. Prepararia seu coração para receber o Menino. Mas
ele também queria ganhar um presente, um brinquedo, mes-
mo que o sentido do Natal não fosse isso. Só tinha sete anos!
Já tinha ouvido falar muito do Papai Noel e dos presentes no
Natal. A mãe já tinha contado que o famoso bom velhinho
não existe, que quem compra os presentes são os pais das
crianças... A mãe tinha dito que não podia comprar, pois não
tinha dinheiro. O pai sumira de casa há tempos e nunca mais
apareceu para dar nem um “oi”.

Como ele faria para ganhar um presente como as crianças
das propagandas que via na televisão quando estava na casa da
avó, como as crianças das histórias de Papai Noel?

No dia 24, quando a mãe foi buscar Gabriel e Rafael na
casa da avó depois do trabalho, estava contente e foi logo
dizendo: “Tenho uma surpresa. Neste Natal, teremos ceia!
Ganhei uma cesta 'gorda' da loja. E a senhora está convidada,
mãe. Chame os meus irmãos. Vão lá pra casa, vamos rezar o
terço e depois comer a comida deliciosa que eu vou preparar”.

Maravilha! Só faltava o presente para as crianças! Será que
a mãe preparava outra surpresa?

Foi agradável e alegre a reunião em família na noite de
Natal. Os tios contaram piadas e fizeram brincadeiras com
as crianças. A avó relembrou os tempos em que o marido era
vivo. Após o terço, todos ficaram em silêncio por uns instan-
tes, e Gabriel fechou os olhos, pois queria estar só consigo

83

Carmélia Cândida

mesmo para sentir Jesus se aconchegando em seu coração. A
comida estava deliciosa. Arroz, feijão, frango (que tinham só
de vez em quando e Gabriel adorava), maionese (um luxo!)
e refrigerante (um dos tios levara). E teve até cocada baiana
(uma coisa incrível!) de sobremesa. Na hora de ir embora, a
avó tirou do bolso duas moedas e entregou para Rafael. “Pra
comprar bala. Pra você e seu irmão.”

Na hora de dormir, Gabriel agradeceu ao Menino Jesus
por aquela noite, pelo Natal. Pediu que protegesse sua mãe,
seu irmão, a avó e os tios. E falou, baixinho, de seu desejo de
receber um presente no dia seguinte. Um brinquedo. Ele tinha
fé que iria ganhar! Pensou em se levantar sem fazer barulho e,
sem que a mãe o visse, colocar os chinelos, dele e do irmão, na
janela. Quem sabe a mãe não tinha se enganado sobre o Papai
Noel? Quem sabe ele acordaria no outro dia e haveria presen-
tes para ele e para o irmão? Mas ficou esperando a mãe, que
lavava as vasilhas do jantar, ir se deitar e acabou dormindo, só
acordando no dia seguinte.

Ao abrir os olhos, deu um pulo na cama e correu, ansioso,
para a janela. Nada... Deveria ter colocado os chinelos! Pelo
menos, teria tentado. Por que dormiu? Ficou triste. Queria
chorar, mas não choraria porque era forte. Segurou o pranto
e foi ao encontro da mãe. Quem sabe ela tinha mais alguma
surpresa que escondera apenas para ficar mais emocionante?

Nada...
Ficou amuado o dia todo. Quase não brincou. Comeu só um
pouquinho no almoço. Não quis tirar o pijama de flanela. A mãe,
vendo-o tão triste, sentia o peito apertado. “Eu devia ter deixado
de pagar a 'luz'! Depois dava um jeito. Mas que jeito, meu Deus?”
O que pôde fazer foi pegá-lo no colo, fazer-lhe carinho e
dizer-lhe palavras doces.
No fim da tarde, mãe e filhos, no sofá, ouvem alguém di-
zendo “De casa?” ao portão. O coração de Gabriel dispara.

84

O AZUL DOS OLHOS DELA

Quem será? Sobe no sofá, olha através do basculante. Um
homem e uma mulher, sorridentes e com uma sacola enorme
nas mãos, perguntam “Tem criança nessa casa?” Gabriel pula
do sofá, abre a porta e vai correndo para o portão. “Tem! Eu
e meu irmãozinho.” A mãe pega Rafael no colo e vai atrás,
mas para na porta e espera, antevendo o que irá acontecer.
“Quantos anos tem seu irmãozinho?” O coração acelera ain-
da mais. “Dois. Quase três.” O casal abre a sacola, mexe, re-
vira, depois tira dois presentes e entrega para Gabriel. “Este
é para você, e este é para seu irmão.” Gabriel não sabe o que
dizer, não sabe o que fazer. Fica imobilizado, olhando para os
embrulhos. “Pegue. É para vocês.” Os olhos ficam inquietos.
Olha para a mãe, depois para o casal, que sorri. Cria coragem,
pega os presentes e corre até a mãe e o irmão, pulando e gri-
tando “Eu sabia, mãe! Eu sabia que Papai Noel viria!”

Entrega o presente do irmão, entra na casa e corre por
ela toda. Depois vai à janela, sem abri-la por completo. O ca-
sal ainda está lá, imóvel e sorrindo. Grita: “Obrigado, moço!
Obrigado, moça! OBRIGADO!!!” Vai correndo para o quar-
to. Abre o presente. Um lindo carrinho. “Era o que eu queria!
Obrigado, Jesus! Obrigado, Papai Noel!”

Sem entender por que, chora. Um choro silencioso que a
mãe não escuta.

A mãe agradece ao casal, que se vai. Senta-se no degrau
da porta para ajudar Rafael a abrir seu presente. O menino
logo coloca o carrinho no chão e começa a brincar. Ela sente
os olhos marejarem. Pega um pedaço de tijolo e vai escre-
vendo devagar, na terra: “Obrigada, meu Deus! Obrigada,
Papai Noel!”

85





Carmélia Cândida é natural de Pará de Minas, MG.
Graduada em Letras pela FAPAM – Faculdade de Pará
de Minas, pós-graduada em Alfabetização e Letramento
pela Unincor – Universidade Vale do Rio Verde e em
Língua Portuguesa pela Faculdade Venda Nova do
Imigrante. É membro da Academia de Letras de Pará
de Minas desde 2014. O azul dos olhos dela é seu primeiro
livro, impresso pela primeira vez em 2012 (Virtual
Books). Fazem parte desta reimpressão dois novos
textos. Contadora de histórias e atriz, é membro dos
Grupos de Teatro Iluminartt e ReVerso. Mantém o blog
“Baú de Carmélia”, onde publica seus textos.

Instagram: @carmeliacandida


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