1 po di um
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3 AMANDA TEIXEIRA ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO EDUARDO MONTELLI LUIZ GUIDES MARIA IVONE DOS SANTOS NATÁLIA LEITE OTACÍLIO CAMILO LETÍCIA BERTAGNA VIVI PASQUAL EVGEN BAVCAR REGINA JOSÉ GALINDO PO DI UM curadoria EDSON LUIZ ANDRÉ DE SOUSA E ELIDA TESSLER DE 07 DE OUTUBRO A 18 DE DEZEMBRO DE 2022, N O E S PAÇ O M A R I A L Í D I A M A G L I A N I , N O 5 º A N D A R D A CASA DE CULTURA MARIO QUINTANA
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6 LETÍCIA BERTAGNA Aqui, 2010/2022 Instalação | Dimensões variáveis Para a exposição PODIUM, a artista fixou o prego em uma parede da Casa de Cultura Mario Quintana, na entrada do Jardim Lutzenberger.
7 po di um Edson Luiz André de Sousa Elida Tessler a montagem como memória Elisandro Rodrigues é o meu troféu, é o que restou Guilherme Mautone não habitar o topo Andrei Moura programação paralela sobre os artistas versão em espanhol 09 17 23 35 48 52 60
8 FAÇO UM NOME, COISAS AQUI, OUTRAS ALI. E DE ACORDO COM O TEMPO QUE EU TENHO. ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO 1943, Hospital da Praia Vermelha Foto Jean Manzon. Acervo PCRJ/ IMAS-JM/ Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea.
9 PO DI UM EDSON LUIZ ANDRÉ DE SOUSA ELIDA TESSLER Bispo do Rosário nasceu em Sergipe em 1909. Era de uma família com poucos recursos e passou grande parte de sua vida internado no Hospital Psiquiátrico Colônia Juliano Moreira no Rio de Janeiro. Construiu uma obra imensa, pois acreditava ter sido o enviado de Deus para registrar, anotar e guardar a memória do mundo, para apresentá-la no dia do juízo final. Assim, fez de sua vida um trabalho comovente de arquivista e criou em torno de si uma espécie de museu de tudo. Seguia desta forma, intuitivamente, o que o filósofo Ludwig Wittgenstein propunha ao escrever que imaginar uma linguagem significa imaginar uma forma de vida. Nestes espaços de esquecimentos dos hospitais psiquiátricos, Bispo reinventa, com sua arte, uma linguagem de memória do mundo. O reconhecimento do seu trabalho foi tardio, mas hoje é considerado um dos grandes artistas brasileiros, já tendo participado de importantes exposições, entre elas a Bienal de Veneza, em 1995, quando representou o Brasil. O eixo da exposição PODIUM partiu de um trabalho de Bispo, um minúsculo e monumental pódio, objeto icônico destes lugares reservados aos vencedores. Contudo, este pódio é seccionado como se ele desmontasse o objeto para nos interrogar sobre a lógica do poder do UM. Pode um? Ele recorta a palavra e seu PO – DI – UM nos evidencia a força da arte ao abrir novas significações. Essa obra nos faz pensar sobre quem vai ouvir as histórias dos vencidos. A arte redesenha os espaços de poder, mostrando a potência do que escapa ao senso comum e às ideologias conservadoras de progresso. Abre, assim, espaços para o incontível, o inatingível e o incabível, como nos sugere a canção “Metáfora” de Gilberto Gil.
10 Uma lata existe para conter algo Mas quando o poeta diz: lata Pode estar querendo dizer o incontível Uma meta existe para ser um alvo Mas quando o poeta diz: meta Pode estar querendo dizer o inatingível Por isso, não se meta a exigir do poeta Que determine o conteúdo em sua lata Na lata do poeta tudo, nada cabe Pois ao poeta cabe fazer Com que na lata venha a caber o incabível. As obras dos artistas integrantes dessa exposição abriram metáforas inéditas, ampliando a gramática tecida por Bispo do Rosário. Luiz Guides e Natália Leite viveram a maior parte de suas vidas internados no Hospital Psiquiátrico São Pedro. Encontraram ali uma chance de construir novas linguagens com os trabalhos que produziram na Oficina de Criatividade do HPSP, que passou a ser recentemente um museu estadual, o MEOC – HPSP. Luiz Guides desenha relógios para desmontar o tempo em seus quadrantes de cor. Trabalho minucioso, lento e preciso. Os relógios se diluem nas camadas de pigmento e ficam ali pulsando, quase em silêncio, debaixo do véu cromático que ele inventa. Estamos diante de um silêncio eloquente de alguém que passou praticamente a vida inteira dentro do hospital sem quase nunca falar. Suas pinturas são as palavras vivas que deixou para o mundo: o incontável. Natália Leite abre furos no tecido de sua memória para apontar tudo que ficou de fora de sua história de sofrimento psíquico. Redesenha seus mundos com linhas coloridas: 14 casas situadas em uma espécie de flutuação junto a alguns pássaros que orientam a direção do voo. Onde buscar as palavras que ainda faltam na experiência do seu refúgio hospitalar? Ponto a ponto, a narrativa de Natália cria uma suspensão: o inominável. Amanda Teixeira aciona nossos inventários íntimos que colecionamos ao longo da vida. Tenciona a escala das
11 ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO [Podium II], S/D Montagem, carpintaria, pintura, perfuração, escrita | 9,5 x 18 x 6 cm ACERVO MUSEU BISPO DO ROSÁRIO, RIO DE JANEIRO
12 coisas em suas proximidades e distâncias nos enquadramentos inusitados que constrói. A artista pergunta sobre o que cabe em uma caixa de fósforos ou em um pedaço de céu: o impossível. Eduardo Montelli cria um pódio de palavras na ação de retirar objetos abandonados de uma casinha dos fundos. Reinstaura uma melodia das coisas ao nomear cada um deles. O deslocamento que produz com seu gesto reanima estes objetos esquecidos dando-lhes novamente voz e morada: o incomensurável. Maria Ivone dos Santos faz de seu corpo uma geografia. Mãos e pés como continentes de novos gestos poéticos. Matéria moldável que preenche alguns vazios junto ao nosso corpo e à beira de um espaço infinito: o incontornável. Otacílio Camilo produz narrativas inquietas em micro xilogravuras coladas em caixinhas de fósforos, atento ao que fica à margem. Imagens página, tudo é livro. Os desenhos colados em objetos ordinários recuperam o calor de um pensamento crítico e reivindicam tomadas de posição. O juízo final fica em nossas mãos. Situação de giro e risco: o indefinível. Leticia Bertagna instaura o fundo do fora no mapa de sua mão e recorta um fragmento de céu dentro de uma página de livro-ponto. A presença do aqui no agora se realiza na ação da artista de fixar um prego na parede durante a abertura da exposição. Busca um ponto, uma ponta, um furo, um apontamento: o inatingível. Vivi Pasqual faz subir no seu pódio personagens inquietos como se estivessem fora do lugar. Recria de forma insólita zonas de ironia. Insistência dos fundos e o jogo de ângulos desobedientes na construção do espaço: o incabível. Evgen Bavcar imagina um mundo a partir da paisagem eslovena e do obscuro de sua cegueira. Suas fotografias evidenciam que toda imagem é uma construção mental, como uma câmara escura atrás de outra câmara escura. Da janela de sua casa de infância, chega até nós o olhar de um voyeur absoluto, como ele mesmo se define. Abre assim outro espaço: o invisível.
13 Regina José Galindo desafia a ferocidade da máquina do poder quando instaura uma pequena ilha de terra a partir da resistência do seu corpo desnudo, evocando o genocídio da população indígena na Guatemala: o inconcebível. PODIUM gera uma conversa inédita entre Arthur Bispo do Rosário e esses dez artistas, ampliando os espaços de dentro e de fora que a linguagem da arte coloca em cena. Elida Tessler é artista e pesquisadora. Doutorado em História da Arte na Université Paris I, Sorbonne. Foi professora do Instituto de Artes da UFRGS. Fundou e coordenou, junto com Jailton Moreira, o “Torreão” (1993 a 2009) em Porto Alegre/RS. Realizou Pós-Doutorado junto à EHESS- Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales e na Universidade de Paris I, Sorbonne. Entre suas exposições individuais mais recentes estão “Gramática intuitiva”, na Fundação Iberê Camargo (2013); “365”, na Galeria Bolsa de Arte de Porto Alegre (2015); “Recortar Copiar Colar”, na Bolsa de Arte de São Paulo (2017); e “Palavrar” em três espaços de Porto Alegre: Centro Cultural da UFRGS, Biblioteca Pública do Estado e Galeria Bolsa de Arte (2022). Sua produção é voltada para as relações entre arte e literatura e vem sendo apresentada em coletivas como “Língua Solta”, Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, (2021); “Rétour à l’Afrique, Bandjoun Station, Bandjoun”, Camarões (2019); “Ecos Mecânicos: A máquina de escrever e a prática artística”, Museu de Arte Contemporânea MAC-USP (2018); “James Joyce & Company”, Moufflon Bookshop – House Hadjigeogakis- Nicósia, Chipre (2014); “The Storytellers – Narratives” in International Contemporary Art., Stenersen Museum, Oslo, Noruega (2012). Participou da 2a e da 8a Bienal do Mercosul em Porto Alegre. Edson Sousa, psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Foi professor titular do Instituto de Psicologia da UFRGS. Doutorado e pós-doutorado pela Universidade de Paris VII. Pós-doutorado pela EHESS (Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris). Coordenador, junto com Maíra Brum Rieck, do Museu das Memórias (in)possíveis da APPOA. Publicou, entre outros, “Furos no Futuro: psicanálise e utopia” (Editora Artes& Ecos); “Imaginar o Amanhã”, em co-autoria com Abrão Slavutzky (Editora Diadorim); “Uma Invenção da Utopia” (Editora Lumme); “Freud: Ciência, arte e política”, em co- -autoria com Paulo Endo (LP&M); e “Freud” (Editora Abril).
14 VIVI PASQUAL Pódio, 2015 Ilustração | Técnica Mista | 30 x 21,5 cm
15 VIVI PASQUAL Uma das casas do Sr. Ângelo Scola, 2015 Ilustração | Técnica Mista | 63 x 83 cm
16 NÃO É QUE O PASSADO LANÇA SUA LUZ SOBRE O PRESENTE OU QUE O PRESENTE LANÇA SUA LUZ SOBRE O PASSADO; MAS A IMAGEM É AQUILO EM QUE O OCORRIDO ENCONTRA O AGORA NUM LAMPEJO, FORMANDO UMA CONSTELAÇÃO. WALTER BENJAMIN
17 EXPOSIÇÃO PODIUM: A MONTAGEM COMO MEMÓRIA ELISANDRO RODRIGUES Uma pequena peça no meio de uma sala. Essa é a imagem inicial da exposição PODIUM. Ao entrar no 5º andar da Casa de Cultura Mario Quintana, no Espaço Maria Lídia Magliani, a caminho do Jardim Lutzenberger, somos lançados em um universo, sustentado por um fio de memória. No caminho que se abre para o jardim, um “PO DI UM”. Uma pequena peça do universo de obras de Arthur Bispo do Rosário. A obra de Bispo do Rosário é o fio de montagem que Edson Sousa e Elida Tessler, curadores da exposição, utilizam para costurar uma conversa com outros 10 artistas. MARIA IVONE DOS SANTOS Power-Podium, 1994 Objeto | Medidas variáveis
18 No texto que abre a exposição, Edson e Elida escrevem sobre “o minúsculo e monumental pódio, objeto icônico desses lugares reservados aos vencedores. Contudo, esse pódio é seccionado como se desmontasse o objeto para nos interrogar sobre a lógica do poder do um. Pode um?”. Bispo do Rosário desmonta a palavra “po-di-um” como quem desmonta a memória, abrindo um furo no futuro, uma utopia. Utopia como um corte, como uma rasura na imagem que nos coloca em movimento de memória e imaginação. Em conversa na abertura da exposição, realizada no dia 7 de outubro, Ricardo Resende, curador do Museu Arthur Bispo do Rosário, comentou sobre uma fala do artista. Ao ser perguntando se poderia realizar a troca de uma obra dele pela de outro, disse: – Se eu tirar uma peça daqui, desmonto o universo. Quem sabe essa cisão, a desmontagem da palavra, diga da abertura de possíveis frestas a outras constelações, enquanto memória do mundo, que nos são apresentadas nessa exposição de forma a não desmontar o universo de Bispo do Rosário, mas, sim, mantendo esse universo conectado por um fio. Fios inomináveis que abrem furos no tecido nas obras de Natalia Leite, que, assim como Luiz Guedes, que tece fios incontáveis sobre o tempo, viveram internados durante a maior parte de suas vidas no Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), em Porto Alegre. Linha que se conecta com a vida de Bispo do Rosário, que viveu, também, grande parte de sua vida no Hospital Psiquiátrico Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro. Nos bordados de Natalia Leite, seus fios coloridos desenham memórias em vários formatos: casas, pessoas, animais, objetos. Em um breve ensaio chamado de Sobre o Fio, Georges Didi-Huberman
19 NATÁLIA LEITE Sem título (animais e chaleira), S/D Bordado em tecido | 45 x 45 cm Sem Título (casas), S/D Bordado em tecido | 70 x 70 cm
20 escreve que “o fio é algo muito simples: apenas uma linha no espaço. Mas é também algo de muito complexo: um novelo, um emaranhado”. Emaranhados de linhas é o que vemos no “verso” da obra de Natalia Leite, o avesso da imagem, as tramas do tempo em 14 casas à espera, assim como os 22 e 23 relógios nas imagens desenhadas de Luiz Guedes. Uma espera que é “a esperança que nos faz lutar”, como escrevia Lydia Francisconi, interna do HPSP e, assim como Natalia e Luiz, participante da oficina de criatividade que hoje tem status de Museu Estadual Oficina de Criatividade (MEOC-HPSP). Didi-Huberman comenta que o fio liga, conecta, e diz que “o fio está sempre por um fio. Essa é a sua beleza – seu belo risco – e sua fragilidade”. O trabalho Tierra, da artista visual e poeta guatemalteca Regina José Galindo, apresenta esse belo risco, o inconcebível de um corpo que
21 funda uma pequena ilha utópica resistente ao apagamento da memória. O universo de “po-di-um”, enquanto imagem, queima indefinível pela memória das pequenas narrativas de Otacilio Camilo xilogravadas em caixinhas de fósforo. Molha-nos, criando um ilhota em meio à geografia corporal, na obra incontornável de Maria Ivone Santos. Colocanos à procura de lugar no incabível do pódio e das casas de Vivi Pasqual. Lampeja pequenos pontos de luz, com a imaginação do invisível, nas fotos de Evgen Bavcar. O fio arquivista e colecionador do mundo das coisas, de Bispo do Rosário, é trazido por Amanda Teixeira, de forma impossível, nos 26 botões e nas 22 pedrinhas que cabem dentro de uma caixa de fósforo ou na coleção incomensurável de objetos abandonados, nos fundos de uma casa de Eduardo Montelli, que faz morada no Jardim Lutzemberger. Letícia Bertagna tece o fio que desenha o inatingível dessa constelação, em um ponto que determina o “aqui”, ao transformar a palavra em um objeto pessoal, nas linhas que bifurcam os caminhos. Edson e Elida realizaram uma montagem em torno da memória que conecta o fio do universo em torno de uma obra de Arthur Bispo do Rosário, com uma constelação de artistas que lampejam possíveis, como pequenas brasas, onde basta um sopro para reavivá-las no escuro de nosso tempo. Elisandro Rodrigues tem formação como Pedagogo e Doutorado em Educação. É, atualmente, professor e pesquisador junto ao Grupo Hospitalar Conceição. Também atua como vice-líder do Grupo de Pesquisa “Narrativas em Saúde”, além de ser integrante do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura - NUPPEC, Eixo 2. Ao longo dos últimos anos, vem se dedicando às pesquisas sobre a monta- gem da escrita e da leitura.
22 É O MEU TROFÉU, É O QUE RESTOU. É O QUE ME AQUECE SEM ME DAR CALOR. SE EU NÃO TENHO O MEU AMOR, EU TENHO A MINHA DOR. [...] A DOR É MINHA, A DOR É DE QUEM TEM. ARNALDO ANTUNES & MARISA MONTE LETÍCIA BERTAGNA Fundo do fora (Mapa), 2015-2016 Fotografia | 62 x 42 cm Fundo do fora (Mãos à obra), 2015-2016 Fotografia | 62 x 42 cm
23 É O MEU TROFÉU, É O QUE RESTOU: POSSIBILIDADES ARTÍSTICAS PARA PENSAR SOBRE A RECUSA DO AGONISMO EM PODIUM GUILHERME MAUTONE No centro do espaço expositivo, avista-se um intrigante objeto soerguido pelo pedestal e protegido por um sarcófago de acrílico. Aproximando-se dele, vê-se que sob a sua base simples, de couro ou papel acartonado, equilibram- -se, desalinhados, três cilindros cujo tamanho e cujas inscrições sugerem, na iconicidade do signo – ou por força da sua semelhança – o pódio, estrutura no formato de uma plataforma que ordena o final de uma disputa através de certos lugares. Encerrado o certame, ao subir no pódio, o vencedor ocupa a posição de destaque: a primeira, a mediana, a mais elevada. Produzido por Arthur Bispo do Rosário, o pequeno objeto que ocupou a parte central do espaço expositivo Maria Lídia Magliani da Casa de Cultura Mario Quintana (Porto Alegre, RS) na exposição PODIUM, com curadoria de Elida Tessler e Edson Sousa, apresenta-se, de acordo com os curadores, como um “eixo”; ou seja, dispositivo que organiza, mas que também permite o giro e o movimento. Resta, no entanto, investigar e especular sobre quais seriam as razões pelas quais esse objeto – “minúsculo e monumental”, como escrevem os curadores – organiza ao redor de si mais de vinte outras obras de outros dez artistas. Que tipos de pensamentos se encontram ali confinados sob o acrílico transparente, lembrando aqui de James Joyce e dos pensamentos em sarcófagos [“coffined thoughts around me, in mummycases”] de seu Ulysses (1920)? E como esses pensamentos giram, então, sob seu
24 próprio eixo, movimentando as singulares reflexões disparadas pela arte, fazendo-nos avançar? Uma explicação trivial – mas, ainda assim, uma explicação possível – para o objeto produzido por Bispo do Rosário seria a de que seu produtor não fora totalmente indiferente à conhecida lógica da disputa, tendo sido ele mesmo pugilista por muitos anos até que um acidente em 1936 encerrasse sua carreira esportiva, três anos depois do desligamento oficial da Marinha do Brasil por “indisciplina”1. De marinheiro só – em sua insurgência ao submetimento – ao incontornável de uma derrota vivida na realidade contundente do corpo, Bispo do Rosário teria, assim, supostamente tematizado com Podium (sem data) algum tipo de acerto de contas com a lógica do perder e do ganhar. Esse tipo sedutor de explicação – que remonta às concepções filosóficas do biografismo de Sainte-Beuve, duramente criticado por Marcel Proust e retomado anos depois por Ernst Gombrich em sua conhecida palestra diante da Sociedade Psicanalítica Britânica em 19532 – embora dê conta da natureza da arte a partir da ideia de “significado pessoal”, parece, contudo, ignorar o fato de que os significados pessoais são, no limite, epifenômenos de significados contextuais, amparados pela linguagem, pela memória coletiva e transmitidos transgeracionalmente. Cumpriria, portanto, especular para além das intenções – isto é, planos e mistos de crenças e desejos – desde seu ponto de vista subjetivo e estritamente pessoal, entendendo-as sobretudo como oriundas, antes, da cultura e da linguagem. Esta é, em grande medida, a lição de Wittgenstein 1• Marta Dantas, Arthur Bispo do Rosário: a poética do delírio, São Paulo: Editora UNESP, 2009. 2• Marcel Proust, Contra Sainte-Beuve, Belo Horizonte / Veneza: Âyiné, 2017 E Ernst Gombrich, A Psicanálise e a História da Arte, 1935, in Ernst Gombrich, Meditações sobre um cavalinho de pau, 1999, p. 31. São Paulo: EDUSP.
25 em Investigações Filosóficas (1953) e sua ideia de linguagem como a forma de vida humana3 e da intencionalidade humana como desde sempre enraizada em contextos, costumes e instituições.4 Desse modo, quando Gombrich questiona os psicanalistas sobre se o “significado pessoal” interessa tanto assim para a explicação da arte diante da secular tradição de práticas, costumes, modos de fazer e de pensar (isto é, coisas que instituem as condições de possibilidade para uma história da arte e, também, para uma história da humanidade), então ele está, justamente, problematizando o tipo de explicação biográfica da arte como sendo aquela explicação mais adequada ou, ainda mais forte, como a única explicação verdadeira. Onde estão, no “minúsculo e monumental” objeto de Bispo do Rosário, as marcas da cultura, da arte e do pensamento que nós, humanos, dedicamos há milênios àquilo tudo que inventamos, criamos e transmitimos? Onde estarão esses sinais coletivos, à parte da idiossincrasia da nossa melancolia, mania, neurose ou loucura? Penso que é na trilha dessa questão – e também no reconhecimento de como a explicação biográfica se esgota em seu peculiar solipsismo – que Tessler e Sousa propõem a exposição PODIUM. 3• Para a formulação clássica sobre a noção de forma de vida, consultar Ludwig Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen – Philosophical Investigations, 2009, §19, p. 11e. Mas também, Ibidem, §241, p. 222e. Mais contundente ainda é a formulação em que Wittgenstein afirma que aquilo que se deve aceitar – ou seja, o dado – é justamente o fato acerca da existência de uma forma de vida humana que é essencialmente linguística: “Das Hinzunehmende, Gegebene – könnte man sagen – seien Lebensformen” (Ludwig Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen –Philosophical Investigations, 2009, §345, p. 238. Tradução de G. E. Anscombe, P. Hacker & J. Schulte. Oxford: Basil-Blackwell.) 4• E sobre a intencionalidade necessariamente como um produto subjetivo do contexto (linguístico, cultural, social, etc.), ainda que modificado, consultar: Ludwig Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen –Philosophical Investigations, 2009, §337, p. 115. Tradução de G. E. Anscombe, P. Hacker & J. Schulte. Oxford: Basil-Blackwell, 2009.
26 O pódio de Arthur Bispo do Rosário ocupa a centralidade da mostra e, assim, organiza os demais trabalhos precisamente porque é a lógica da disputa, do perder e do ganhar, a lógica do poder e, portanto, a lógica ocidental do agonismo5, ou da competição e da rivalidade, que estão sendo ali discutidas e, em certa medida, criticadas como a única herança cultural possível. Assim, é por meio da arte que essa lógica, mas também as suas particularidades e implicações, poderão ser reordenadas, experimentadas no horizonte da liberdade e da autorreflexão poética. E nisso se mostra a infinita capacidade da obra de arte, sobretudo de sua criação e de suas práticas diversas, em retomar aquilo tudo que nos escapa diuturnamente, conferindo-lhe, agora, aqui (como num dos trabalhos da mostra, produzido por Letícia Bertagna, um insidioso prego afixado numa saída e no qual se lê, gravada em sua cabeça, a palavra ‘aqui’), lugar, espaço e, portanto, visibilidade. Frente às heranças seculares de uma cultura capturada pela lógica triunfalista, em que apenas os vencedores aparecem e em que o progresso é compreendido como uma dinâmica teleológica rumo às vitórias, a arte se insurge como oportunidade de elaboração e de testemunho insistente de uma perda, seja qual for. Como se perdem, lembrando de outro trabalho, agora o de Eduardo Montelli, chamado Fundos (2013) – um vídeo no qual o artista retira de um depósito nos fundos da casa de sua família cada um dos muitos objetos ali acumulados e lhes restituí a existência por meio da palavra, retirando-os, assim, simbolicamente do esquecimento. Vencer, perder; lembrar, esquecer; dicotomias verbais que, para além do nosso uso corriqueiro das palavras, estabelecem relações profundas 5• Uma perspectiva interessante sobre o agonismo (disputa, competição) como marca do pensamento ocidental pode ser encontrada em Gilles Deleuze e Félix Guattari, O que é a filosofia?, pgs. 11, 12 e 13. São Paulo: Editora 34. 1992.
27 AMANDA TEIXEIRA Do lado de cá, o céu também, 2020 Vídeo, cor e som | 4’19” AMANDA TEIXEIRA Coisas que cabem em uma caixinha de fósforos, 2014 Vídeo, cor e som | 3’50”
28 com a arte, a subjetividade e, sobretudo, a história. Talvez uma das reflexões mais contundentes sobre o par dicotômico – e inalienável, pois interdefinível – formado entre ‘perdedor’ e ‘vencedor’ esteja em Walter Benjamin, quando o pensador encaminha através dele uma meditação sobre a nossa concepção ocidental de história e sobre a tarefa dos historiadores frente à barbárie e a antevisão crítica do triunfo historicista no fascismo de seu próprio tempo. Ao perguntar-se com quem, propriamente, o historiógrafo tem empatia, ele mesmo responde: A resposta é inevitavelmente: com o vencedor. Os que ora dominam são herdeiros de todos os que venceram. A empatia com os vencedores beneficia, portanto, sempre os que ora dominam. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje foram vencedores vão junto ao cortejo triunfal dos dominantes, que marcham sobre aqueles [perdedores] que jazem hoje no chão. Os espólios, como de costume, são levados no cortejo triunfal. São os chamados bens culturais. [...] Não há um documento de cultura que não seja ao mesmo tempo um documento de barbárie. E assim como a cultura não está livre da barbárie, assim também ocorre com o processo de sua transmissão, na qual ela é passada adiante. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico [...] considera que a sua tarefa é escovar a história a contrapelo.6 Como narrar, portanto, não apenas a história a partir dos vencedores? E, sobretudo, que tipo de efeito, agora ao nível da cultura, engendra-se subjetiva, política e artisticamente ao vislumbrarmos a possibilidade de uma história a partir dos vencidos, do que é esquecido, de quem perde e do que se perde? Penso que a exposição PODIUM, ao 6• Walter Benjamin, Sobre o conceito de história, p. 116-117. São Paulo: Editora Alameda. 2020.
29 seu modo, ajuda-nos a visitar essas questões, fazendo delas também projeto para o futuro. Portanto, esperança e utopia. Como no choro-canção contemporâneo de Monte e Antunes, muito ao sabor do apelo radiofônico que o gênero granjeou no Brasil7, é preciso reconhecer a capacidade singular da arte em, mediante curiosas inversões, transformar o perder-algo em ganhar-outro, trocando sinais, deslizando por significantes, dando sequência ao movimento incessante do pensamento, da sensação e da criação. Ademais, a canção, como também a mostra, lembram-nos que reconhecer ou inventar (ou reconhecer inventando e inventar reconhecendo) alguma vitória possível frente ao fundo ruidoso da derrota perpassa, necessariamente, a assunção existencial de uma certa dor do perder, compreendendo-a então como um traço da cultura e, portanto, como possibilidade de exploração de um novo campo de ação e de pensamento que se desdobra, subsumindo o espectro estritamente subjetivo. Seja na demanda amorosa, seja na demanda política, a inconformidade com a ‘derrota’ atesta uma posição de assujeitamento e alienação que, mal conduzida, atinge também seus próprios paroxismos. E, certamente, sequestram quaisquer possibilidades de assumir a continuidade mediante a elaboração e a aceitação do novo. Ou, como pensou Arendt, com a criação do novo, reconhecendo a capacidade de natividade tipicamente humana.8 PODIUM, com curadoria de Elida Tessler e Edson Sousa – e com obras de Luiz Guedes, Natália Leite, Amanda Teixeira, Eduardo Montelli, Maria Ivone dos Santos, 7• Cf. José Tinhorão, Pequena história da música popular segundo seus gêneros, 2013, p. 119. E Cf. Bruno Kiefer, Música e dança popular, 1979, p. 8. São Paulo: Editora 34. 8•Hannah Arendt, A condição humana, 1958.
30 Otacílio Camilo, Letícia Bertagna, Vivi Pasqual, Evgen Bavcar e Regina José Galindo –convidou-nos a perceber através das singelezas da arte e da criação artística a possibilidade de almejar novas formas de posição subjetivas e coletivas que não sejam mais capturadas pela alienação da vitória onipotentemente animada através da sanha do ganhar: ganhar sempre, de qualquer modo e custe o que custar. Mas a exposição abre espaço, em sua montagem e suas obras, para uma reflexão atenta, perpassada pela concretude e pela densidade metafórica da arte, sobre um dos traços mais proeminentes, e mais insidiosos, da nossa cultura – o agonismo – e de como ele nos marca subjetiva e coletivamente. Isto porque é a partir dessa visitação e dessa reflexão sobre a reestruturação de lugares, posições, heranças e lógicas oferecidas pela produção artística que poder-se-á sonhar com outras, organizando-se para finalmente concretizá-las Guilherme Mautone é Bacharel, Mestre e Doutor em Filosofia pela UFRGS, com pesquisa em Filosofia da Arte e Estética, com foco em arte contemporânea, contextualismo, relações sistêmicas e teorias da arte. Também realiza Estágio Pós-Doutoral na mesma universidade. É Editor da Revista PHILIA | Filosofia, Literatura & Arte, da UFRGS e Coordenador do Colegiado Setorial de Artes Visuais do RS (Sistema Estadual de Cultura), onde também coordena o Comitê Científico do Mapeamento Setorial das Artes Visuais no RS. Foi docente convidado na Casa de Cultura Mario Quintana, Atelier Livre Xico Stockinger e Casamundi Cultura. É professor, pesquisador e crítico de arte. Vive e trabalha em Porto Alegre, RS.
31 OTACÍLIO CAMILO Coleção de caixinhas de fósforo, S/D Xilogravuras em caixas de fósforo |Dimensões variáveis COLEÇÃO DE HÉLIO FERVENZA E MARIA IVONE DOS SANTOS
32 LUIZ GUIDES Sem título (Pintura tempo 1 e 2), S/D Pintura sobre papel | 50 x 25 cm cada
33 MARIA IVONE DOS SANTOS Abreuvoir (Açude), 1992/2022 Negativo digitalizado impresso sobre papel Hahnemühle 308g | 73 x 110 cm.
34 SE PODES OLHAR, VÊ. SE PODES VER, REPARA. LIVRO DOS CONSELHOS EVGEN BAVCAR (Casa) Da série “Eslovênia”, S/D Fotografia | 23 x 34 cm cada
35 NÃO HABITAR O TOPO: TOPOGRAFIAS POSSÍVEIS ATRAVÉS DA ARTE ANDREI MOURA A epígrafe que abre o magistral romance Ensaio sobre a Cegueira, do escritor português José Saramago, cai como uma luva para dar início ao pensamento crítico sobre a exposição coletiva PODIUM, que ocupou o espaço Maria Lídia Magliani, na Casa de Cultura Mario Quintana, de outubro a dezembro de 2022. Na obra literária, com intrépida e, por vezes, cruel honestidade, Saramago apresenta ao leitor o que sucederia se uma cegueira epidêmica, instantânea e sem precedentes, contagiasse um grupo de pessoas. Assumindo ares distópicos, o texto possibilita uma reflexão acerca da capacidade sensível humana de enxergar; sendo a visão, em sentido polissêmico, não restrita à capacidade congênita e fisiológica de ver, decodificar e interpretar as imagens no cérebro. Assim, estar subitamente cego é, neste universo ficcional armado por Saramago, antes uma metáfora para se referir a um sentir ferido, condicionado, seletivo e, portanto, mutilado de suas potencialidades recônditas, inventivas e por vir. A cegueira branca do livro (os cegos sempre estiveram rodeados duma resplandecente brancura, como um sol dentro de um nevoeiro1) surge como uma alegoria de um estado de esmorecimento das sensações, dos afetos; de uma percepção estética do mundo e da vida, que dê a ver ao humano não apenas um encontro com aquilo que ele é, mas com tudo aquilo que ele pode ser. 1• SARAMAGO, Josté. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. (p.94).
36 De tanto ver, a profusão de imagens que cerca a contemporaneidade, nos legou uma não-visão, que não corresponde à literal cegueira. Neste sentido, a pensadora ítalo-americana Camille Paglia nos alerta para os riscos da futilidade e esvaziamento de sentidos consequentes do frenesi imagético no qual estamos enredados, encontrando na arte uma instância legítima de “educação estética”: Como sobreviver nesta era da vertigem? Precisamos reaprender a ver. Em meio a tamanha e neurótica poluição visual, é essencial encontrar o foco, a base da estabilidade, da identidade e da direção na vida. [...] A única maneira de ensinar o foco é oferecer aos olhos oportunidades de percepção estável – e o melhor caminho para isso é a contemplação da arte. Olhar para a arte exige sossego e receptividade, mas é uma empreitada que restaura nossos sentidos e produz serenidade mágica2. Demonstrando a partir da captação de suas chamadas imagens interiores, o fotógrafo Evgen Bavcar (Eslovênia, 1948), nas fotografias Casa e Caminho (s/d), da série “Eslovênia”, atesta que a produção de imagens não é exclusividade dos videntes. Nestas imagens, luz e sombra adensam a relação entre o que se vê e o que não se vê, oposições que em jogo criam matizes e sutilezas visuais, intrigando o olhar, incitando-o a traçar uma vigorosa jornada através dessa atmosfera misteriosa, que convidam o espectador à mais íntima meditação. A sensibilidade do artista esloveno, cego desde os 12 anos, encontra na fotografia um modo de captar espessas imagens que interrogam sobre a fabricação e as possibilidades de se relacionar com elas, não unicamente por meio dos olhos, mas a partir de uma sensibilidade mais funda e menos 2•PAGLIA, Camille. Imagens Cintilantes: Uma viagem através da arte desde o Egito a Star Wars. Rio de Janeiro: Apicuri, 2014. ( p. VII)
37 óbvia, que não se forma a partir daquilo que se encontra fora, mas que ganha contornos a partir daquilo que está dentro de cada um de nós. A expressão de uma interioridade é o arco traçado e tocado por diferentes manifestações criativas; contudo em PODIUM a dialética dentro-fora parece ser o ponto- -chave da mostra. O que está dentro e o que está fora nas subjetividades, nas escalas de critérios, preceitos e conceitos que constituem a trama que forma e conforma as relações sociais é uma das principais linhas que entrelaça os diferentes trabalhos reunidos nesta mostra, costurada pelo psicanalista Edson Luiz André de Sousa e pela artista Elida Tessler, curadores de PODIUM. Tais condicionantes e constrangimentos são os instrumentos pelos quais o capitalismo neoliberal reconhece, classifica e condecora vencedores e os aparta dos perdedores, definindo aqueles que estarão dentro ou fora do sistema. Desse modo, o diminuto e expressivo pódio construído por Arthur Bispo do Rosário, artista de profusa e contundente produção — singularíssimo na história da arte realizada no Brasil —, ocupa posição nuclear na exposição. Sua obra nomeia a mostra e é, ao seu entorno, que se posicionam os trabalhos que compõem esta tessitura expositiva. Curiosamente, no piso do espaço Maria Lídia Magliani, estão traçadas linhas cruzadas e em paralelo, que formam o desenho de um grande tabuleiro de xadrez, que, por sua vez, evoca as ideias de jogo e disputa. Como axis e como presença, fisicamente ocupando o centro do espaço expositivo, seu pódio condensa grande parte dos debates (e embates) sobre visibilidade e invisibilidade, interioridade e exterioridade, suscitados pela mostra.
38 Sua obra é provocadora e certamente nos interpela sobre nossa cegueira. Se ele e sua obra puderam emergir dos quartos insalubres de um hospital psiquiátrico, temos a responsabilidade de tentar compreender a história desta obra. Insisto: a voracidade do esquecimento é cruel e mesmo o que se destaca e brilha nem sempre merece o destino da invisibilidade.3 (o grifo é meu). Como um ícone visual, o vocábulo “podium”, em sua decomposição silábica, abre a palavra a uma aventura semântica, sugerindo outras leituras e sentidos para este momento de glória, da conquista do primeiro lugar. A matéria ordinária com a qual o trabalho é construído, os três cilindros de madeira, parece devolver ao espectador a impressão de precariedade do nosso tempo que insiste em hierarquizar, ordenar, excluir e discriminar muitos para exaltação de poucos: os vencedores. Todo pódio é uma mentira ou uma verdade momentânea que, para se constituir como tal, deixa um rastro de apagamentos e subtrações. A comicidade e o risível que subsiste na eleição de um pódio manifesta-se materialmente na obra Pódio (2015) de Vivi Pasqual, com o grafismo das figuras divertidas, que estão dispostas no ordenamento de um pódio. A pintura espontaneamente remete à despretensão séria das brincadeiras infantis e à liberdade gráfica das pichações dos espaços públicos urbanos, sintoma de irreverente acontecimento expressivo. Por outro lado, Maria Ivone dos Santos apresenta em “Power-podium” (1994), composta por objeto e fotografia, uma sugestão das possibilidades e impossibilidades da ocupação deste espaço de poder representado pelo pódio; a mão da artista fortemente agarra uma matéria maleável que, ao mesmo tempo em 3•SOUSA, Edson Luiz André. Um pódio de palavras. Ide (São Paulo) v.31 n.47. São Paulo, dez. 2008
39 que se molda ao gesto, parece prestes a escapar. Relação que reverbera em outro trabalho da artista presente na mostra, Abreuvoir (Açude) (1992), no qual o encontro dos pés gera um espaço a ser preenchido pelo altamente simbólico elemento água, com variadas conotações, aludindo à formação e manutenção da vida e à capacidade em potencial de transformação da matéria. Nessas obras, mais uma vez estabelece-se uma relação entre continente e conteúdo, em outras palavras, abordam- -se os vínculos entre o dentro e o fora, conexão visualmente explorada com consistência também no vídeo Fundos (2013), de Eduardo Montelli. No trabalho, o artista parte de um processo de observação de um galpão no quintal da casa de sua família, onde eram armazenados os mais diversos objetos por cerca de quatro décadas. Como uma metáfora da mente humana, este depósito pode ser compreendido como uma representação do inconsciente, a exemplo dos porões e dos sótãos, onde são abrigadas as coisas que ficam fora do uso cotidiano doméstico e/ ou que saem à luz do dia apenas ocasionalmente. Neste exercício de trazer à tona todos estes guardados, o artista cria uma espécie de precária “escultura” formada de improviso, inserindo digitalmente o nome de cada objeto na tela, o que cria uma “nuvem fantasmagórica” (nas palavras de Montelli), uma espécie de inventário mnemônico de uma vida. O fenomenólogo francês Gaston Bachelard escreve que “A casa, como o fogo, como a água, nos permitirá evocar,[...] luzes fugidias do devaneio que ilumina a síntese do imemorial com a lembrança. Nessa região longínqua, memória e imaginação não se deixam dissociar4”(2012, p.25). Na montagem de PODIUM, o trabalho foi exibido em uma televisão, em um singelo casebre de 4• BACHELARD, Gaston. A poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
40 madeira, construído com ripas de madeiras descartados no lixo, no Jardim Lutzenberger; portanto fora do espaço expositivo. O íntimo nexo entre o que se resguarda e a interioridade de um objeto é tematizado no vídeo “Coisas que cabem em uma caixinha de fósforos” (2013), de Amanda Teixeira. Na obra, a artista atinge raro lirismo ao enfocar objetos mínimos cabíveis nas restritas dimensões de uma caixa de fósforos, relembrando o verso de um poema de Manoel de Barros, no qual o eu-lírico define-se como “um apanhador de desperdícios”. Afinal de contas, o que se guarda, o que se perde? Quais as subjetividades — os gestos, as emoções, as memórias — são engavetadas ou deformadas de acordo com estruturas coercitivas? Em laboração EDUARDO MONTELLI Fundos, 2013 Vídeo, cor e som | 24’17”
41 próxima a de Montelli, aqui, Amanda introduz no exíguo espaço de uma caixa de papel as minúcias memoráveis. Nove caixas de fósforo servem de suporte para as pequeninas xilogravuras do artista Otacílio Camilo (1959–1989). A impressão em tal dimensão revela um artifício adotado pelo artista para driblar os dispendiosos custos de produção e promover uma circulação mais livre da sua obra com autonomia em relação aos obtusos ditames do mercado de arte. Negro, pobre, ligado ao movimento anarcopunk, homossexual e soropositivo; a breve vida de Otacílio preenchia todas as condições para deixá-lo do lado de fora dos espaços de prestígio social. Com justiça resgatado do apagamento historiográfico pela historiadora da arte Izis Abreu5, Otacílio reúne, na coleção de caixas de fósforos, refinado humor, riqueza conceitual e concisão visual, qualidades que enfatizam a originalidade da sua obra produzida no Sul do Brasil, na década de 1980. Também presente na mostra, como objeto e vídeo, seu livro de artista “Uma Carreira Brilhante” (1984) brinca com dois sentidos usuais da palavra “carreira”, relacionada à profissão ou ao ajuntamento de cocaína, dando forma a uma corrosiva crítica em relação às competições do mundo de trabalho, estimuladas pelo capitalismo; bem como um ácido comentário sobre os obstáculos, os prazeres e os infortúnios aos quais os artistas estão submetidos. Na série Fundo do fora, as fotografias “Mapa” (2015) e “Mãos à obra” (2016), de Letícia Bertagna, a inusitada aproximação entre os títulos, as imagens e as manipulações realizadas nos elementos, como o tracejamento na 5 • A pesquisa de Izis Abreu sobre Otacílio Camilo destaca-se entre outras iniciativas em prol da memória do artista. Em 2019, o Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli (MARGS) exibiu a exposição “Estética da rebeldia”, com curadoria da referida pesquisadora, em ocasião dos 60 anos de nascimento do artista e 30 anos de sua morte.
42 REGINA JOSÉ GALINDO Tierra, 2013 Vídeo, cor e som | 33’30”
43 mão e o recorte em um cartão-ponto, desorienta o espectador, incitando uma transfusão de sentidos que só a arte é capaz de operar. A aparente incompatibilidade entre os termos “fundo” e “fora”, que articulados nomeiam a série, é um convite ao devaneio e à imaginação. Esse inusitado encontro entre as palavras positivamente aparece como meio de dar forma ao informe — e, assim, criar linguagem — e, em simultâneo, fornecer matéria para a geração das mais insólitas percepções dos espectadores, resgatadas ou emergidas do fundo do fora. Ainda no âmbito do fora, podem ser situadas as obras de Luiz Guides (1929–2010) e Natália Leite (1943–2017), artistas cuja produção está inserida na experiência do confinamento em uma unidade psiquiátrica, assim como Bispo do Rosário. Elaborados na Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro, os trabalhos reverberam o desejo vertiginoso de expressão de pessoas privadas da sociabilidade usual. Em Natália, o colorido das linhas, escolhido a partir da economia de recursos disponíveis na Oficina, forma os seus bordados e magnetiza a atenção do espectador, conduzindo-o a acompanhar, sensivelmente, pela superfície da tela, seus contornos e cruzamentos, ligações e interferências das formas, e transportando-o a uma experiência de transbordamento. Para além de uma leitura interpretativa, acionada pela trilha do intelecto, esses trabalhos parecem nos instigar a senti-los e vivenciá- -los com a coragem de fluir em um sonho, sem temer uma possível ilogicidade entre as partes. Enquanto Natália entrelaça, por meio do seu bordado, as instigantes figuras sem fundo que se sobrepõem, entre as muitas casas e os animais nascidos menos da observação empírica e mais surgidos como produtos da imaginação e
44 das memórias afetivas, Luiz Guides apresenta, nas obras escolhidas para a mostra, a presentificação de um acúmulo de tempo, ou temporalidades, em compasso com o acúmulo das camadas de tinta têmpera, que velam a tela, entre círculos, ponteiros e números. A partir de um obstinado plano chapado, sem respiro perspectivo, Guides alude à contagem temporal, instituindo na tela uma vibração de vida, que nos comunica tudo aquilo que a palavra não diz, por não poder dizer; mas que existe como uma linguagem à procura de significantes. Por fim, a contestadora artista e poeta guatemalense Regina José Galindo, em “Tierra” (2013), apresenta uma tradução visual de um terrível acontecimento de seu país: o genocídio de indígenas do povo Maya Ixil, sob o regime ditatorial de José Efraín Ríos Montt. Covardemente assassinadas pelo estado, as vítimas foram enterradas em uma vala comum, cavada por uma escavadeira. Assim, a ação performática de Regina presentifica o confronto entre diferentes forças: de um lado o corpo nu da artista, em pé e impassível, despido de proteções; de outro a potência da imponente máquina, que escava uma fossa ao seu redor. A obra reflete sobre a capacidade de resistir daqueles que não estão no topo das relações de poder, cujos índices manifestam-se nas intersecções entre etnia e gênero que marcam o corpo de Regina: índices dos que usualmente não atingem o primeiro lugar em um pódio. Embora Galindo recuse a alcunha de ativista, a política em sua poética, surge como desejo de mobilização do espectador: “Abrir os olhos e olhar – com a força de refletir-se no outro –, isso, para mim, é empatia, essa é a origem da mudança e do movimento, isso significa também
45 conexão em vez de separação”6, declara a artista em uma entrevista. Talvez seja esta minha consideração final ao termo deste encontro com a exposição PODIUM, circularmente voltando ao início deste texto: se temos o poder de olhar que, portanto, vejamos. Se podemos ver, é aconselhável nos destinarmos ao reparo. 6• WALDMANN, Judith. Conversa com Regina José Galindo: “Não sou uma mulher vulnerável”. In: Contemporary and: América Latina. [S. l.], 9 mar. 2018. Disponível em: https://amlatina.contemporaryand. com/pt/editorial/regina-jose-galindo/. Acesso em: 28 fev. 2023 Andrei Moura é licenciado em Letras – Língua Portuguesa e Literatura pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e bacharel em História da Arte pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atuou na Comunicação da Fundação Vera Chaves Barcellos, entre 2013 e 2018, e participou da equipe educativa da 7ª, 8ª e 9ª edições da Bienal do Mercosul. No ano de 2012, integrou a ação educativa do Santander Cultural, como mediador. Em 2018, atuou na Casa Baka na programação de oficinas e produção de exposições, sendo responsável pela divulgação das atividades da Casa. Atualmente, coordena o programa Educativo da Casa de Cultura Mario Quintana.
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48 A obra “Podium”, do artista brasileiro Arthur Bispo do Rosário, um dos mais instigantes criadores da arte contemporânea produzida no Brasil, foi o eixo conceitual a partir do qual a exposição com mesmo título apresentou diferentes trabalhos de dez artistas contemporâneos, entre brasileiros e estrangeiros, abrangendo um arco temporal que cobriu dos anos 1980 até as duas primeiras décadas do século XXI. A mostra coletiva, a partir do diálogo entre as obras exibidas e do conjunto resultante da sua reunião, propôs uma reflexão acerca da produção artística como potência de vida, enfrentamento das adversidades e organização simbólica do mundo e da própria existência. Com a finalidade de balizar e instigar a percepção e o pensamento crítico de distintos públicos, foi realizada uma programação integrada à exposição, incluindo encontros com curadores, oficinas de escrita e de bordado, além de uma proposição do Educativo da Casa de Cultura Mario Quintana, pensado a partir da obra de Amanda Teixeira, uma das artistas participantes. “PODIUM” também teve uma ampla visitação, acolhida por meio da mediação de agentes do Educativo, que atingiu estudantes dos níveis fundamental, médio e acadêmico, além do público espontâneo. ATIVIDADES PARALELAS