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sociologia para jovens do sec. xxi - PNLD 2018

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Published by Agent 005, 2020-05-19 12:47:24

sociologia para jovens do sec. xxi - PNLD 2018

sociologia para jovens do sec. xxi - PNLD 2018

Diante desses depoimentos e do que vimos Um jovem amotinado de Bristol
neste capítulo até aqui, será que podemos (Inglaterra) desabafa:
concluir que “bandido bom é bandido morto”?
De que “os meninos do tráfico estão nessa Não tenho emprego, nunca vou ter.
vida porque querem”? Afinal, quem são os Ninguém quer nos ajudar a sair desta (...).
verdadeiros responsáveis pela violência? Basta Se o governo pode gastar tanto dinheiro
colocar policiamento ostensivo nas ruas para para construir um submarino nuclear, por
acabar com a criminalidade? Essas medidas que não para gastar conosco? Se brigar
podem excluir cada vez mais os pobres? Ou com a polícia é a única forma de ser
será que, como enfatiza o sociólogo Loïc ouvido, então vamos brigar com eles.
Wacquant, grande parte da classe trabalhadora,
“excluída” pelo neoliberalismo, é entregue ao (WACQUANT, 2001, p. 34)
seu próprio destino, vivendo da economia de
pilhagem das ruas, cada vez mais dominadas O problema da violência, como tentamos
por atividades criminosas controladas por descrever, não se limita a questões de ordem
poderosas redes internacionais? pessoal (como o “caráter” dos criminosos)
ou a falta de maior repressão por parte do
Na falta de um instrumento de ação para Estado. Ela deve ser analisada, do ponto
dar voz a uma necessidade de sobrevivência em de vista sociológico, na complexa rede de
uma linguagem compreensível aos políticos e relações sociais existentes nas sociedades, dos
dirigentes do Estado, o que resta aos jovens interesses de grupos e classes sociais e das
das grandes cidades senão tomar as ruas? desigualdades sociais. E para se combater esta
realidade cada vez mais dramática, que alguns
Diego Felipe autores chamam de barbárie, a Sociologia
Kayser deve dar uma contribuição fundamental, com
seus instrumentos de análise e suas teorias.

299Capítulo19 - “Chegou o caveirão!” E agora? Violência e desigualdades sociais

Interdisciplinaridade

Droga, que Química! Conversando com a Química

Neste capítulo, foram abordados os temas sobre a Fernanda Lima
criminalidade urbana e a violência, relacionados também
à questão das drogas. Mas, o que vem a ser uma droga? remédio que Julieta tomou para fingir estar morta tenha sido
extraído dela.
O termo droga, de origem controversa, é a designação
no Brasil para substâncias, naturais ou sintéticas, que As drogas podem ser classificadas como: drogas
causam alguma ação sobre o sistema nervoso central, depressoras ou depressores, aquelas que diminuem o
provocando dependência. nível de atividade cerebral e por isso são muito utilizadas
em hospitais, em doses controladas, como sedativos
Desde os tempos mais remotos, substâncias de efeito e anestésicos (ex.: álcool, barbitúricos, cloreto de etila,
alucinógenos, estimulantes, depressivos e envenenatórios clorofórmio, ópio, morfina etc.); psicodislépticas ou
têm sido referenciadas na literatura. Poções, unguentos1 e alucinógenas, aquelas que têm por característica
fumigações2 foram utilizados amplamente por milhares de principal a despersonalização em maior ou menor
pessoas e levou à desgraça muitas outras. Principalmente, grau (ex.: ∆-9-tetrahidrocanabinol “maconha”, skunk,
em quase todos os países da Europa, mulheres pobres e dietilamida do ácido lisérgico (LSD), psilocibina (princípio
idosas eram queimadas na fogueira, enforcadas ou torturadas, ativo de cogumelos), diacetilmorfina “heroína” etc.) e,
acusadas de bruxaria, por uso de seus conhecimentos as psicoanalépticas ou estimulantes, aquelas que
como herboristas, de meados do século XIV ao XVIII. produzem aumento da atividade cerebral, diminuem a
Essas moléculas, embora possam não ser inteiramente fadiga, aumentam a percepção, tornando os demais
responsáveis por esses séculos de perseguição, tiveram sentidos ativados – ex.: cocaína, crack (mistura de pasta
considerável importância. A perseguição às mulheres, a de cocaína com hidróxido de sódio –NaOH ou bicarbonato
Inquisição e o sistema legislativo da época formatam um de sódio – NaHCO3), cafeína, teobromina (encontrada
contexto que pode explicar a utilização dessas drogas pelo no chocolate), MDMA “ecstasy”, anfetaminas “bolinha,
sexo feminino. Lamentavelmente, porém, a fuga temporária arrebite” e outras drogas sintéticas conhecidas como
da realidade possibilitada por essas drogas era, muitas vezes, “crystal”, “ice”, “keramina”, “shahoo” etc.). Muitas dessas
fatal, pela overdose ou, surpreendentemente, pela confissão drogas são bases químicas para inúmeras formulações que
dos “feitos incríveis”. Existe uma excelente explicação química beneficiam a humanidade há séculos. Infelizmente, muitas
para a crença daqueles que confessavam ter vivenciado dessas moléculas, principalmente alcaloides presentes
fantasiosas aventuras – um grupo de compostos conhecidos nas plantas, estimularam o comércio gerando fortunas,
como alcaloides. promovendo guerras, sustentando governos, financiaram
golpes de estado levando à escravidão e à morte bilhões
Os alcaloides são compostos químicos naturais, de de seres humanos. O abuso e desconhecimento de suas
origem vegetal, heterocíclicos, que possuem um ou mais propriedades e a falta de políticas, que levam à extinção de
nitrogênios em seu esqueleto carbônico. Alguns dos mais plantas nativas por substituição por outras “mais rentáveis”,
conhecidos são: a piperina (da pimenta do reino); a cafeína pode nos privar da descoberta de novas moléculas
(do café); a conina ou cicutina (da cicuta); a atropina (da com propriedades antitumor, ativas contra o HIV, para o
beladona); a codeína e a tebaína (do ópio); a hiociamina tratamento da esquizofrenia, Alzheimer, Parkinson e, quem
(do meimendro); a escopolamina (da mandrágora); e a sabe, males que ainda desconhecemos.
ergotamina (da cravagem). A mandrágora, Mandragora
officinarum, foi citada mais recentemente no filme Harry Fernanda de Melo Lima é professora de QuímicaAnalítica
Potter e a Câmara Secreta. No filme, elas dão um escândalo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
quando são retiradas do solo pelos alunos de Hogwarts, Rio de Janeiro – IFRJ. Graduada em Química Industrial
mas o grito das mandrágoras já havia sido citado antes pela UFF e Doutora em Química na UFF.
por Shakespeare, no clássico Romeu e Julieta, quando,
em certo momento Julieta diz: “... com cheiros repugnantes 1 Nome que os antigos davam às drogas aromáticas com que
e guinchos como mandrágoras arrancadas da terra/Que perfumavam e embalsamavam os corpos.
mortais, ouvindo-os, enlouquecem.” Acredita-se que o 2 Ação de produzir fumaça ou vapor desinfetantes.

300 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas

Interatividade

Revendo o capítulo (C) A violência urbana não se trata apenas de uma
questão social, pois se relaciona principalmente
1 – Defina ou redefina a ideia de “exclusão”, ao caráter das pessoas que se envolvem com a
tomando como referência a análise de Karl criminalidade.
Marx apresentada no texto.
(D) O fenômeno da violência urbana deve ser ana-
2 – O que significa capitalismo de pilhagem? lisado, sob o ponto de vista sociológico, levan-
3 – O que é a política da “tolerância zero”? do-se em conta a complexa rede de relações
sociais existentes nas sociedades, dos interes-
Dialogando com a turma ses de grupos e classes sociais e as desigual-
dades sociais.
1 – Em relação à diminuição da maioridade penal,
qual sua posição, a favor ou contra? Por quê? (E) Devemos entender as operações militares em
Reflita, em sua resposta, os dados que o texto favelas como ações concretas da parte do
aponta a respeito do sistema prisional brasileiro. Estado para desmantelar as redes do tráfico de
drogas, no seu alto comando.
2 – Debata com seus colegas: quais seriam as
soluções para se combater o crime organizado e 2 – (ENEM, 2001). O gráfico compara o número de
a violência generalizada em nossa sociedade? homicídios por grupo de 100.000 habitantes entre
1995 e 1998 nos EUA, em estados com e sem pena
Verificando o seu conhecimento de morte.

1 – Observe a charge abaixo, de autoria do cartunista
Latuff, analise as afirmativas apresentadas a
seguir e assinale aquela que melhor corresponde
às questões debatidas neste capítulo.

Latuff

(A) O problema da violência urbana pode ser Com base no gráfico, pode-se afirmar que:
resolvido somente com maior repressão por
parte do Estado, como servem de exemplo as (A) a taxa de homicídios cresceu apenas nos estados
incursões das forças policiais em favelas. sem pena de morte.

(B) A charge “Operação militar na favela” não (B) nos estados com pena de morte a taxa de
corresponde à realidade que se presencia no homicídios é menor que nos estados sem pena
cotidiano da vida dos moradores dessas regiões de morte.
que vivem ou viveram situações de intervenção
das forças de segurança pública. (C) no período considerado, os estados com pena
de morte apresentaram taxas maiores de
homicídios.

(D) entre 1996 e 1997, a taxa de homicídios
permaneceu estável nos estados com pena de
morte.

(E) a taxa de homicídios nos estados com pena de
morte caiu pela metade no período considerado.

301Capítulo19 - “Chegou o caveirão!” E agora? Violência e desigualdades sociais

Pesquisando e refletindo Site que apresenta o resultado de pesquisas de Globo Filmes / José Padilha
professores e alunos das Ciências Sociais sobre a
LIVROS realidade urbana, principalmente com relação a
situações sociais de conflito e violência. Acesso:
PEDROSO, Regina Célia. Violência e cidadania janeiro/2016.
no Brasil: 500 anos de exclusão. 2.ed. São Paulo:
Ática, 2002. MÚSICAS
Livro que analisa a violência institucional existente
no país, descrevendo e discutindo diversos HEY JOE – Autor: Billy Roberts. (Versão do
momentos da nossa História. Rappa). Intérpretes: O Rappa.

PINHEIRO, Paulo Sérgio; ALMEIDA, Guilherme Versão do Rappa para uma música de Jimmy
Assis. Violência urbana. São Paulo: Publifolha, Hendrix, chamando a atenção para o fato de que a
2003. marginalidade e a violência existentes na periferia,
O livro debate o que é violência, como ela se sempre focada pela mídia, encobrem a realidade de
manifesta nas grandes cidades e as perspectivas que uma grande maioria que tem uma vida marcada por
podem ser apontadas para a sua superação. sacrifício e trabalho honesto.

FILMES TEMPOS DIFÍCEIS – Autores e intérpretes:
Racionais MCs.
CIDADE DE DEUS (Brasil, 2002). Direção:
Fernando Meirelles. Elenco: Matheus Nachtergaele, Afinal, quem são os culpados pela corrupção, pela
Leandro Firmino da Hora. Duração: 135 min. miséria e pela violência?
História de dois meninos – Buscapé e Dadinho/
Zé Pequeno – durante a ocupação do conjunto FILME DESTAQUE
habitacional Cidade de Deus, no Rio de Janeiro.
Enquanto o primeiro consegue virar fotógrafo, o TROPA DE ELITE 2 -
outro se transforma em bandido. O INIMIGO AGORA É OUTRO.

NOTÍCIAS DE UMA GUERRA PARTICULAR FICHA TÉCNICA:
(Brasil, 1999). Direção: João Moreira Salles e Kátia Direção: José Padilha.
Lund. Duração: 56 min. Elenco: Wagner Moura,
Documentário que retrata de forma ampla e André Ramiro, Sandro Rocha,
contundente a violência no Rio de Janeiro. O Milhem Cortaz, Maria Ribeiro.
filme apresenta flagrantes do cotidiano das favelas Duração: 116 min.
dominadas pelo tráfico de drogas, com entrevistas (Brasil, 2010).
com todos os envolvidos no conflito.
SINOPSE:
INTERNET O Capitão Nascimento,
promovido a subsecre-
NÚCLEO DE ESTUDOS DA VIOLÊNCIA (NEV) tário de Segurança Pú-
– Universidade de São Paulo – USP: blica do estado do Rio
http://bit.ly/19DnPot de Janeiro, agora se defronta com um novo ini-
migo: as milícias. Mas, ao investigar suas ações –
Apresenta relatórios, artigos e informações impor- com a ajuda de um deputado estadual, Diogo Fraga
tantes sobre a violência e a criminalidade no país, –, descobre um sistema muito mais poderoso do
bem como sobre o tema Direitos Humanos. Acesso: que ele poderia imaginar.
janeiro/2016. Continuação do filme TROPA DE ELITE (Brasil,
2007, 118 min.), realizado pelo mesmo diretor,
NÚCLEO DE ESTUDOS DA CIDADANIA, que gerou diversas polêmicas por sugerir que
CONFLITO E VIOLÊNCIA URBANA (NECVU) os consumidores de drogas seriam diretamente
– Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ: responsáveis pela violência urbana e por apresentar
http://bit.ly/17pNlcJ uma visão quase heroica do BOPE, batalhão de
elite da Polícia Militar, apesar das suas práticas de
302 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas torturas físicas e assassinatos.

Aprendendo com jogos

V de Vinagre Divulgação: UOL policiais? Um jogo de plataforma em estilo casual
elaborado, com certa dose de humor e facilmente
(Flux Game Studio, 2013) acessível (porém, roda apenas em Firefox e Internet
POLÍCIA PARA QUEM PRECISA DE POLÍCIA. Explorer). Ele é gratuito.

As ruas estão tomadas por manifestantes que Como jogar:
reivindicam melhoras no transporte, na saúde, na
educação e em outros setores. Mas a tropa de choque 1. Acesse o jogo preferencialmente pelo Firefox em
está pronta para perseguir aqueles que portarem http://goo.gl/So6pQW ou baixe a versão Android
o perigoso vinagre! Você consegue passar pelos para celular em https://goo.gl/3HDuxh

2. Veja o filme V de Vingança (da Warner Bros.
lançado no Brasil em 2006 e, por sua vez, baseado
na HQ de Alan Moore e David Lloyd de mesmo
nome, V for Vendetta).

3. Dicuta com os seus colegas em sala de aula
a violência policial que busca criminalizar
movimentos sociais e manifestações de rua.

Cangaço Divulgação: Sertão Games

(Sertão Games, 2014)

O DIREITO A SE REBELAR CONTRA A VIOLÊNCIA DO ESTADO

grupo de Lampião na década de 1940. O cangaço
tem relação direta com o contexto de miséria, fome,
seca, estrutura fundiária e coronelismo.

Seu objetivo é sobreviver aos inimigos na Como jogar:
Caatinga. Neste RPG o foco está no “Banditismo
Social”, também conhecido como cangaço, 1. Se for possível, obtenha o jogo em
fenômeno social ocorrido no Nordeste brasileiro http://goo.gl/9bAQAa
do século XIX até a derrocada do emblemático
2. Crie o seu herói e a partir da experiência do jogo
relacione a biografia do seu personagem com o
contexto social do Nordeste que influenciou o seu
personagem a inclinar-se para o conflito do cangaço.

3. Relacione o cangaço com outras revoltas civis
contra o domínio do centro, como Canudos. Debata
com seus colegas em sala.

303Capítulo19 - “Chegou o caveirão!” E agora? Violência e desigualdades sociais

Capítulo 20

“A gente não quer só comida...”
Religiosidade e juventude no século XXI

Columbia Pictures / Ron Howard

Qual a diferença
entre crer e saber?
O filme Anjos e
demônios apresenta
uma interessante
reflexão sobre a
relação entre a
ciência e a religião.

Reportagem publicada em um jornal local sobre uma pesquisa realizada em vinte e um
países pelo Instituto Bertelsmann Stiftung, na
da cidade de Paranaguá, A Folha do Litoral, no Alemanha, que revelava que a religião está
estado do Paraná, em 13 de setembro de 2009, mais presente no Brasil do que na maioria
apresentava o seguinte título: “Jovens procuram das outras nações. Esse estudo confirma que
religião na internet”. A matéria descrevia a o jovem brasileiro é o terceiro mais religioso
experiência de vários jovens entre 18 e 29 anos do mundo, atrás apenas dos nigerianos e dos
que consultavam a Bíblia pela internet. Além guatemaltecos. Segundo a pesquisa, 95%
disso, dizia que uma jovem levava seu celular dos brasileiros entre 18 e 29 anos se dizem
para um culto e, quando precisava, acessava religiosos e 65% afirmam que são religiosos
um versículo da Bíblia através da rede. Por fervorosos, sendo que 90% afirmam acreditar
outro lado, a reportagem descrevia a nova em Deus. E a reportagem ainda dizia que
moda nos Estados Unidos, ou seja, igrejas e esse estudo ajuda a comprovar que os jovens
entidades que, em seus sites, oferecem aos seus brasileiros são uns dos que mais recorrem à
fiéis a oportunidade de se confessar através internet para buscar resolver seus problemas
do computador, com a utilização de diversos espirituais, pois a rede abrange a diversidade
chats e emails anônimos. Outra informação de crenças que se propaga rapidamente.
importante que A Folha do Litoral trazia era

304 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas

Entre o crer e o saber que, até há pouco mais de vinte anos, era aceita
pela maioria dos sociólogos. Segundo esta
“O século XXI será religioso ou pura e tese, as consciências e ações dos indivíduos,
simplesmente não será”. Esta frase tem origem em relação à religião e suas instituições, não
nos anos 1960 e tem sido atribuída, por muitos, desapareceriam, porém, estariam em declínio no
ao escritor francês André Malsaux (1901-1976). que diz respeito à sua autoridade em conduzir e
Autor ou não da frase, ele não viveu o suficiente influenciar decisivamente as pessoas.
para se certificar de que a afirmação estaria ou
não correta. Nós, entretanto, nos perguntamos A maioria dos sociólogos começou a
a respeito e indagamos a você, como reflexão: rever essa tese, primeiro porque a presença das
será que isso é verdade? Caso sim, como isso religiões na vida das pessoas não diminuiu. Por
se tornou possível? Afinal, não vivemos numa exemplo: em 2002, foi feita uma pesquisa nos
sociedade altamente tecnologizada, onde é a EUA e constatou-se que 59% dos americanos
ciência que explica tudo? Também não é verdade consideravam a religião importante. Já no
que os jovens, por exemplo, não acreditam mais Brasil – um dos países mais religiosos do
nas religiões, preferindo os divertimentos que mundo –, numa análise dos dados do IBGE,
as novas tecnologias oferecem? entre o período de 1940 e 2000, não houve um
declínio de adesão às religiões, mas somente
Mas como explicar, por exemplo, as guerras uma diminuição de adeptos ao catolicismo e um
e conflitos religiosos que continuam presentes aumento dos evangélicos. Outro motivo para
no mundo? E no Brasil, por que os evangélicos que os sociólogos começassem a rever a tese da
estão crescendo em número de adeptos? E os secularização foi o crescimento do fenômeno
adeptos do candomblé e da umbanda, por que chamado fundamentalismo.
ainda existem, já que suas religiões acreditam
na “magia” e, como se sabe, no mundo O fundamentalismo se caracteriza pelo
industrializado e urbano, a magia não funciona? fato dos adeptos de determinada religião
interpretarem seus princípios literalmente como
Essas dúvidas vêm, geralmente, está escrito. São intolerantes em relação aos não
acompanhadas de ideias do senso comum fundamentalistas e, frequentemente, apoiam
que, muitas vezes, não conseguem explicar as concepções políticas e sociais conservadoras,
causas reais do fenômeno religioso, como “os pois possíveis mudanças sociais podem não estar
evangélicos crescem porque iludem as pessoas de acordo com os preceitos religiosos.
ignorantes”, “o candomblé e a umbanda vão
desaparecer porque vivemos num mundo de alta Notícias sobre os fundamentalistas que
tecnologia”, “os jovens já não acreditam mais tomaram o poder num determinado país
nos princípios religiosos”. Ou, quando estamos são constantemente divulgadas na mídia.
numa roda de amigos, costuma-se dizer que “a Muitas vezes o islamismo é acusado de ser
religião não pode se misturar com a política”, ou fundamentalista. Mas, tomemos cuidado, nem
que “os católicos são todos iguais”. todo adepto do islamismo tem uma prática
fundamentalista.
A reportagem citada revela ainda que muitas
afirmações do senso comum não condizem com Vamos, a partir de agora, tomar este
a realidade que vivemos, assim como algumas cuidado e estudar o fenômeno da religiosidade
teorias modernas que entendem que a sociedade para entender um pouco mais o fenômeno
atual passa por um processo cada vez maior de religioso que continua interferindo fortemente
secularização. Mas, vamos explicar melhor o na vida da maioria dos indivíduos.
que acabamos de escrever.
Nosso objetivo não é discutir os princípios
No início do século XX, o sociólogo ou conteúdos das diversas religiões e chegar
Max Weber (1974) afirmava que a ciência e as à conclusão de qual é a melhor para orientar
formas de pensamento racional substituiriam a nossas vidas. O que estudaremos aqui, com base
autoridade religiosa. Essa é a tese da secularização numa especialidade dos estudos sociológicos
chamada de Sociologia das religiões, é o

305Capítulo 20 - “A gente não quer só comida...” Religiosidade e juventude no século XXI

papel que a religiosidade tem na formação é também sério, honesto, cumpridor de seus
das ideias dos indivíduos sobre o mundo, a deveres e obrigações? Ou seja, seguidor de
sociedade, a política e a cultura. Como, no regras de comportamentos que a própria
Brasil, a religiosidade interfere na política, sociedade cultiva.
na democracia e na cidadania? A sociedade
brasileira sofreu mudanças em consequência Outro autor clássico da Sociologia, Karl
disso, nos últimos anos? Marx, também analisa a importância da religião
para as sociedades, mas de uma outra forma: “A
O objetivo da Sociologia da religião é religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração
compreender os efeitos sociais do pertencimento de um mundo sem coração, assim como é o espírito
religioso, ou seja, como os indivíduos se de uma situação sem espiritualidade, ela é o ópio
comportam e tomam decisões, baseados na sua do povo” (MARX; ENGELS, 1960, p. 42).
crença específica, diante da realidade brasileira.
Outro objetivo seria estudar a religiosidade Para Marx, a religião não faz o homem,
de grupos sociais para entender melhor, por mas é o homem que faz a religião. Durkheim
exemplo, as maneiras que os brasileiros pensa da mesma forma. A diferença, no caso, é
encontram para enfrentar seus problemas e de abordagem e de sentido, pois, em Durkheim,
dificuldades. E, por fim, analisaremos como a Deus e a religião são criações humanas e sociais,
juventude, neste início de milênio, se encontra embora os fiéis de uma religião costumem
diante do fenômeno religioso. compreendê-las de modo inverso: o homem e a
religião como sendo criações divinas.
O que tem a ver a Sociologia
com a religião? Marx entendia a religião como a expres-
são de um sofrimento real dos homens, ou seja,
Émile Durkheim (1973a), um dos fundadores eles têm necessidade de acreditar em algo para
da Sociologia, escreveu, no século XIX: “Diz-se aliviar seus sofrimentos – como o ópio. Por ou-
que em princípio a ciência nega a religião. Mas tro lado, segundo Marx, as classes dominantes
a religião existe, é um sistema de fatos dados; utilizam-se da religião como ideologia para do-
numa palavra, ela é uma realidade. Como poderia minar os oprimidos e explorados. Portanto, ela é
a ciência negar uma realidade?” (p. 534). vista como ilusão, ideologia que contribui para
justificar uma dominação de classe. Marx e seus
Para Durkheim, toda religião tem como seguidores fornecem exemplos disso: quando as
característica separar o mundo em coisas igrejas afirmam que os pobres devem se confor-
profanas e coisas sagradas. Nas coisas mar com sua condição de pobreza, pois o mundo
profanas, os indivíduos têm atitudes utilitárias, foi criado por Deus assim e assim sempre será.
ou seja, objetos, ideias e coisas quando não
servem mais podem ser descartados, pois só Max Weber (1974) foi outro sociólogo
têm valor na medida em que são úteis. Nas que também estudou as religiões. Para ele, é
coisas sagradas, ocorre o contrário: objetos, na compreensão dos comportamentos religio-
ideias e coisas assumem um valor superior ao sos que podemos entender melhor as atividades
dos indivíduos. O sagrado é objeto de adoração, humanas, pois a religiosidade influencia tam-
é superior ao homem, é reverenciado. bém outras como a ética, a economia, a política
ou as artes. Em seus estudos, por exemplo, ele
Essas características, para Durkheim, tentou provar que houve uma mudança na con-
revelam que a religião é uma das fontes onde cepção de trabalho a partir da ética protestante.
se criam regras de comportamento, normas Se, na Antiguidade, o trabalho era visto pelos
e garantias de harmonia entre os homens. homens como uma coisa penosa e vil, na Idade
É também através dela que as sociedades Média como fruto do pecado original e como
se organizam, se estruturam e formam uma tortura, com o aparecimento do capitalismo,
imagem de si mesmas. Quantas vezes, por combinado com a nova ética protestante, o
exemplo, ouvimos dizer que quem é religioso trabalho passa a ser visto como êxito da vida

306 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas

Shulterstookmundana, expressão das bênçãos divinas, pois, O que Gramsci quer dizer com isto é que
assim, se cumprirá uma vocação e a garantia da as religiões são poderosas forças também para
graça divina. Segundo Weber, essa concepção mobilizar os homens por um mundo melhor.
de trabalho, protestante e puritana, servirá per- Insatisfeitos com a realidade em que vivem, os
feitamente para o aparecimento do capitalismo. indivíduos podem tentar transformar o mundo
A referência à concepção puritana, em Weber, se inspirados pela religiosidade. Essa concepção
relaciona à prática dos adeptos do calvinismo, de Gramsci – de perceber a religião como
cujo comportamento austero, rígido e moralista força transformadora, e não de alienação –,
tornava-os mais dedicados ao trabalho e, portan- inspirada pelas suas observações a respeito
to, à acumulação de riquezas. da religiosidade da população italiana, foi
inovadora em relação aos demais sociólogos
João Calvino (1509-1564), teólogo cristão francês e um clássicos, tornando-se bastante relevante
dos mais influentes líderes da Reforma Protestante. para se pensar, na atualidade, nas diversas
possibilidades de reflexão sociológica sobre
Vejamos o que pensa outro autor importante, as relações entre a religião, a política e os
mas tradicionalmente pouco estudado no campo movimentos sociais, estabelecidas em várias
da Sociologia das religiões, o italiano Antônio regiões do planeta por movimentos religiosos
Gramsci: de origens bem distintas.

A religião (...) afirma na verdade que Esses autores nos demonstram a
o homem, em geral, enquanto criado importância do estudo das religiões no sentido
por Deus, filho de Deus, sendo por isso de compreender melhor nossa sociedade,
irmão dos outros homens, igual aos outros pois, muitas vezes, as ações dos indivíduos
homens, livre entre outros e da mesma não são inspiradas por interesses somente
maneira que os outros, e ele pode se econômicos ou políticos, mas também por
conceber desta forma, espelhando-se em questões religiosas. Para entendermos melhor
Deus, autoconsciência da humanidade; a Sociologia da religião, vamos estudar o
(...) Desta maneira, as ideias de igualdade, fenômeno da religiosidade no Brasil.
liberdade e fraternidade fermentam entre
os homens, entre os homens que não se As religiões no Brasil
veem nem iguais, nem irmãos de outros
homens, nem livres em face deles. Ocorreu O Brasil é considerado um dos países mais
assim que, em toda sublevação radical das religiosos do mundo. Entretanto, é necessário
multidões, de um modo ou de outro, sob perceber que nossa formação nacional se caracteriza
formas ideológicas determinadas, foram pela influência de vários matizes religiosos, como
colocadas estas reivindicações. o catolicismo oficial e o popular, as religiões de
matrizes africanas – como o candomblé e a umbanda
(GRAMSCI, 2007, p. 1.488) –, o protestantismo, os pentecostais, os espíritas
kardecistas, a teologia da libertação e os católicos
carismáticos. Segundo os dados do censo do IBGE
em 2000, os católicos representavam 73,8%, os
evangélicos 15,4%, outras religiões 3,5% e os sem
religião 7,3%. Já o último censo, realizado em
2010, revelou uma mudança bastante significativa:
os católicos passaram a representar 64,6% e os
evangélicos cresceram para um percentual de
22,2%. Além desse universo cristão que abrange
86,8% da população, aqueles que declararam
pertencer a outras religiões correspondem a

307Capítulo 20 - “A gente não quer só comida...” Religiosidade e juventude no século XXI

um total de 5,2%, enquanto os sem religião Luiz Fernandes Por conta disso, também, o catolicismo oficial
passaram para 8%. sempre esteve ao lado dos poderes constituídos,
Andre Vicente/Fotoarena/Folhapress legitimando e justificando, muitas vezes, a
Segundo o Censo de 2010, do IBGE, houve queda no percentual situação política e social do país.
de católicos, no Brasil, em comparação com o censo anterior. Por
que será que isto vem acontecendo nos últimos anos? A eleição de O chamado catolicismo popular, no
um latino-americano, o Papa Francisco, em 2013, reverterá essa Brasil, tem características devocionais de culto
tendência de queda percentual no número de fiéis católicos, que aos santos, diferentemente da prática oficial
da Igreja, quando só quem está autorizado
atinge todo o continente? a dirigir um culto são os padres, bispos ou o
Papa. Nos centros urbanos, foi constituído
“Amai-vos uns aos outros” – pelas irmandades. No campo, através do
catolicismo oficial e popular culto aos beatos, aos monges e da crença nas
“rezadeiras”. Estas últimas também eram
O chamado catolicismo oficial é facilmente encontradas há décadas atrás no meio urbano,
identificado pela instituição da Igreja, vinculado em razão da grande migração campo-cidade
ao Vaticano e com sua hierarquia interna. Até a que ocorreu a partir da metade do século XX.
Proclamação da República, o catolicismo era a Elas se caracterizavam como católicas, mas
religião oficial do Estado Imperial brasileiro. A suas rezas, envolvidas com práticas de cura de
partir da República, apesar de não constar nas doenças com a utilização de ervas, envolviam
constituições como religião oficial, era e é, até elementos sincréticos das tradições religiosas de
os dias atuais, a religião que mais tem adeptos no origem indígena e das religiões afro-brasileiras.
Brasil. Segundo dados do último censo IBGE, o
Brasil é, ainda hoje, a maior nação católica do Irmandades são grupos de devotos leigos,
mundo com cerca de 126 milhões de adeptos. reunidos em associações privadas que têm como
O catolicismo oficial tem como característica objetivo a manutenção do culto ou devoção.
se organizar enquanto instituição denominada Têm autonomia jurídica e econômica. Os
Igreja Católica Apostólica Romana. beatos e os monges são os penitentes, ermitões
encontrados nos sertões e que, em alguns casos,
Na linguagem sociológica, Igreja é uma se tornaram santos populares e passaram a atrair
organização burocrática religiosa que se romeiros e penitentes.
adapta à sociedade profana ou secular. Ela
não desafia a autoridade do Estado, tem uma Imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré, durante a festa
organização de treinamento de seus líderes, do Círio de Nazaré, Belém (PA). Apesar de pertencer ao calendário
tem hierarquia forte e regulamentos bem oficial da Igreja Católica, essa procissão pode ser um exemplo de
definidos. Essas características fazem esse manifestação do catolicismo popular no Brasil.
tipo de instituição ter uma longa durabilidade.

308 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas

Quais são as características desse tipo não pode, em hipótese alguma, se confundir
de catolicismo? Ele tem uma origem laica, com o culto aos orixás, já que cada um deles
um caráter penitencial, com devoção às tem doutrina e liturgias próprias.
imagens, em que o invisível se torna palpável
possibilitando uma comunicação entre vivos O culto aos eguns se realiza em terreiros
e mortos, que dispensa uma mediação de específicos. O espaço onde se reverencia a
autoridades religiosas. Por fim, há a relação memória dos antepassados é o Ilê Igbalé –
pessoal entre santos e fiéis. representação de uma antiga clareira existente
no âmago da floresta africana e consagrada
“Laroiê Exu!” – candomblé e aos eguns. Nestes terreiros, a invocação dos
umbanda ancestrais é a própria essência e a razão maior
do culto.
Durante o cativeiro, uma das únicas coisas
que não se pôde roubar ao africano escravizado Enquanto o candomblé cultua as forças
foi a fé religiosa. E essa fé foi sempre um fator de da natureza, chamadas de orixás, a umbanda
reconstrução de suas culturas. Assim, a religião pratica o culto de diversos espíritos ancestrais,
impregnou todas as atividades negras brasileiras chamadas de entidades, como pretos-velhos,
influenciando até a sua vida profana. Recriando, caboclos, exus e crianças. Esses espíritos
então, aqui, nas comunidades-terreiro, o incorporam em seus fiéis – adeptos iniciados
candomblé – o espaço da África e sua herança ritualmente na umbanda – para dar consultas
cultural –, foi justamente através da religião que de ajuda e prestar caridade à comunidade.
o africano escravizado conservou um profundo A umbanda é uma criação essencialmente
sentido de comunidade e transmitiu de geração brasileira, surgida na primeira década do século
a geração as raízes de sua cultura. XX, no Rio de Janeiro. É um culto chamado de
sincrético, pois há uma certa mistura de cultos
Luiz Fernandes africanos aos ancestrais, cultos aos ancestrais
indígenas e há também alguns símbolos
católicos. A pessoa que recorre à umbanda
espera obter proteção dos espíritos ancestrais.

Ritual das religiões de matriz africana, como o candomblé e a “Ele vai voltar” – protestantes e
umbanda, no Rio de Janeiro. Fiéis fazem caminhada, no Centro pentecostais

da cidade, em 02 de fevereiro de 2012, para a entrega do No século XVI, na Europa, apareceram vá-
presente de Yemanjá. rias igrejas cristãs, que não obedeciam às ordens
do Papa e discordavam dos católicos em várias
Além dos orixás, entidades divinas, poderes questões e por estes foram chamados de protes-
e patronos de forças da natureza, Exu, Yemanjá, tantes. Devido à corrupção e ao excesso de im-
Oxum, Oxossi, Xangô, Iansã, Oxumaré e postos pagos para a Igreja, iniciou-se, através de
outros, os africanos e seus descendentes sempre padres e fiéis, uma grande contestação aos pode-
cultuaram também os antepassados, os eguns – res desta. Essa contestação culminou na chamada
aqueles espíritos de indivíduos que depois se Reforma Protestante. A principal crítica religiosa
converteram em ancestrais, em “pais” (Baba dessa reforma – dirigida aos católicos e impulsio-
Egun). O culto aos antepassados, entretanto, nada por Martinho Lutero, Thomas Münzer e João
Calvino, era a de que os cristãos não deveriam
mais se submeter às autoridades religiosas, mas
somente às próprias escrituras, ou seja, à Bíblia.

No final do século XIX, os imigrantes
alemães trouxeram o luteranismo ao Brasil. Já
no século XX, diversos missionários americanos

309Capítulo 20 - “A gente não quer só comida...” Religiosidade e juventude no século XXI

fundaram várias igrejas cristãs não católicas, Rodrigo Coca/Fotoarena/Folhapress Ser pentecostal ou neopentecostal no
como a Batista e a Metodista. Sua característica Brasil passou a significar: oposição a ser
principal é tentar converter os indivíduos aos católico, romper com a religião da família,
princípios da Bíblia e conduzir suas vidas abandonar a devoção aos santos, interromper
rigidamente a partir desses princípios. ciclos de promessas, em contrapartida, sentir-
-se escolhido por Deus. A visibilidade dos
Os pentecostais são grupos que partilham neopentecostais é devida, principalmente, à sua
da espera de uma segunda vinda de Cristo e inserção nos meios de comunicação de massa.
acreditam ter acesso, no dia a dia, à ação do
Espírito Santo, a quem atribuem curas dos “Fora da caridade não há salvação”
males do corpo e da alma. – o Espiritismo Kardecista

Note-se que, nos últimos anos, ocorreu um A Doutrina Espírita ou o Espiritismo,
crescimento vertiginoso dessas religiões. Ao conhecida no Brasil, de uma forma geral, como
longo da História, os pentecostais sempre foram Kardecismo, é também conhecido por parte
minoria. É somente a partir do final da década da população, em algumas regiões, como o
de 1970 que começam a crescer em número “Espiritismo de Mesa Branca”. Isso se dá por
de adeptos, pois introduzem a concorrência referência à toalha branca que sempre cobre a
religiosa explícita que significa a exigência de mesa onde se sentam aqueles que presidem as
conversão e exclusividade. sessões nos centros espíritas, acompanhados
pelos “médiuns”, ou seja, as pessoas que têm
Com visibilidade através dos meios de comunicação de massa, as igrejas o dom de se comunicar com “os espíritos
neopentecostais também promovem grandes cultos e manifestações daqueles que já se foram da vida terrena”,
fazendo parte do “além”, ou seja, de outro
em lugares públicos, mobilizando fiéis de igrejas localizadas em regiões “plano espiritual”. Outra justificativa para o
diferentes. Na foto, a 18ª edição da Marcha para Jesus, realizada pela uso do termo “mesa branca” diz respeito a uma
Igreja Renascer em Cristo, em São Paulo, 2010, SP. forma de diferenciação e oposição aos centros
das religiões afro-brasileiras, inclusive pelo fato
Esse crescimento ocorreu princip­almente da sua teologia – diferentemente destas últimas
entre os grupos intitulados neopentecostais. – ter como base de sustentação o Cristianismo.
Estes se tornaram mais “populares” em razão de
apresentarem duas diferenças fundamentais, em O Espiritismo se autodefine como, ao
relação aos pentecostais: o fato de assumirem mesmo tempo, uma doutrina, uma filosofia
uma postura mais liberal em relação aos costumes e uma ciência, criada na França, no século
vigentes na sociedade e a adoção da “teologia da XIX, por Allan Kardec, pseudônimo do
prosperidade”. Ou seja, a crença de que a fé e a pedagogo francês Hippolyte Léon Denizad
devoção “verdadeiras” são as responsáveis pela Rivail. Kardec é reconhecido pelos espíritas
obtenção de ganhos materiais e pela garantia de como o codificador da doutrina, ou seja, ele
cura para todos os males da vida. não teria “inventado” nada, mas apenas sido
o instrumento da organização teórica que
310 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas traduziu os “fenômenos espirituais” presentes
no cotidiano e que já eram identificados e
percebidos por centenas de pessoas. Suas
leituras desses fenômenos foram sistematizadas
em diversas obras que até hoje servem de
referência para todos os praticantes e adeptos
do Espiritismo – uma delas, inclusive, relê os
textos dos Evangelhos cristãos à luz da doutrina,
interpretando teologicamente, sob o ponto de

vista espírita, a vida e as palavras proferidas por “Libertar os pobres da opressão” – a
Jesus Cristo. Teologia da Libertação

Apesar do Espiritismo não se definir Apartir da identificação da grave crise social
na América Latina, nos anos 1960, proliferou
Joel Silva/Folhapress um vasto movimento social de católicos
preocupados em melhorar as condições de vida
dos povos latino-americanos. Surgiram vários
movimentos como a Ação Católica, Juventude
Universitária Cristã, Juventude Operária Cristã
e as Comunidades Eclesiais de Base. Na
preparação da Conferência de Medelín (1968),
bispos progressistas orientaram os católicos a
uma opção preferencial pelos pobres.

A partir de 1970, teólogos como Leonardo

Cortejo acompanha caixão do líder espírita Francisco Cândido Xavier, Sérgio Lima/Folhapress
o Chico Xavier, em Uberaba (MG), em 2002. Ele era o “médium” mais
popular do país, tendo publicado mais de 450 livros, com cerca de 25 Bispo Pedro Casaldáliga discursa durante o terceiro congresso do
Movimentos dos Sem-Terra, no Parque da Cidade, São Paulo (SP),
milhões de exemplares vendidos – faleceu aos 92 anos. em 26/07/1995.

especificamente como uma religião, pode- Boff, Clodovis Boff, Frei Betto, e bispos como
se dizer que ele assumiu esse formato no Dom Hélder Câmara e Dom Pedro Casaldáliga,
Brasil, sendo praticado por cerca de quatro entre tantos outros, denunciaram as condições de
milhões de pessoas. Uma curiosidade é miséria do povo trabalhador, defendendo alguns
que seus praticantes contabilizam dezoito princípios:
milhões de “simpatizantes” no país, ou seja,
quase 10% de toda a população brasileira, • Luta contra a idolatria do mercado, da
segundo o Censo de 2010 – um percentual
não detectado pelas pesquisas censitárias do força militar, da riqueza – identificados
IBGE. Esses simpatizantes seriam adeptos de como inimigos principais da religião.
outras religiões (principalmente católicos) ou
pessoas sem religião oficial definida, mas que • Uma nova leitura da Bíblia, do momento
creem na doutrina ou “na vida após a morte”,
atestada pela existência dos espíritos. Um do êxodo, como modelo de luta do povo
exemplo disso seria a grande acolhida popular escravizado pela sua libertação.
de diversas novelas de TV, assim como filmes
de temática especificamente espírita que foram • Uso das teorias socialistas para entender
campeões de bilheteria.
as causas da pobreza, das contradições do
A FEB – Federação Espírita Brasileira capitalismo e a luta de classes.
– relaciona a existência de cerca de 10 mil
instituições espíritas em todo o país. Além dos • Opção pelos pobres e solidariedade
centros espíritas, centenas delas são voltadas
para a prática da caridade, como hospitais,
escolas, creches, orfanatos e asilos.

311Capítulo 20 - “A gente não quer só comida...” Religiosidade e juventude no século XXI

com sua luta pela autolibertação. Evelson de Freitas/Folhapress “mercado religioso” no Brasil. É a partir daí
que podemos entender o grande sucesso de
• Criação de Comunidades Eclesiais de figuras como o padre Marcelo Rossi.

Base para organizar o povo em suas lutas, Coisas de brasileiro! O
com o seu método político de Ver-Julgar- fenômeno do sincretismo no
Agir-Rever. Este movimento foi muito Brasil e no mundo
importante na resistência à ditadura militar
e contribuiu na formação do PT, da CUT e Um fenômeno social bastante interessante
do MST. no Brasil é o chamado sincretismo religioso.
Este é o resultado do contato social entre povos
“Intimidade com a Santíssima e grupos, resultando em uma espécie de “fusão”
Trindade” – os carismáticos ou “amálgama” de determinadas características
distintas desses grupos, referentes a elementos
A Renovação Carismática Católica religiosos e culturais. É, portanto, a existência
(RCC) é originária dos Estados Unidos e comum de traços culturais e religiosos,
chega ao Brasil em 1972. Nasce do movimento originalmente diferentes, que poderiam ser
de leigos no interior da Igreja Católica e tem interpretados até como incompatíveis ou
por base os grupos de oração com encontros antagônicos, mas que acabam se apresentando
semanais. Não desejam substituir a vida como um só elemento novo e único.
sacramental, mas complementá-la, ao trazer
os participantes para a vida no espírito. No caso do Brasil, o sincretismo se dá
com o encontro entre negros africanos, índios
Os encontros se baseiam em: louvor, ação nativos e brancos europeus. Porém, antes
de graça, cânticos, testemunhos e partilhas; de examinar o sincretismo na religiosidade
encontros nos quais as pessoas cantam, brasileira, vamos ver como este foi analisado
pulam, extravasam as tensões e trocam calor. na História.
Também fazem grandes encontros em locais
públicos. Para os carismáticos, “ser cristão O fenômeno do sincretismo não foi
é viver em relacionamento íntimo com a inventado no Brasil. Ele se origina na Grécia
Santíssima Trindade”. Antiga: dizem alguns historiadores que os
cretenses, sempre dispostos a brigar entre si, se
Um exemplo de manifestação dos carismáticos: “Carnaval de Jesus” uniam quando eram atacados por um inimigo
promovido pelo padre Marcelo Rossi, em Jurubatuba (SP), em 1999. externo, ou seja: SIM + CRETISMO = união
dos cretenses.
O movimento carismático na década
de 1990 serviu, no Brasil, como alternativa Ao longo da História, o termo foi associado
religiosa diante da diminuição da influência do aos contatos e fusões religiosas e culturais dos
catolicismo. Começa então, uma disputa pelo diversos povos. Atualmente, no sul da Itália (na
Calábria), por exemplo, acontece na semana de
312 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas Páscoa um ritual religioso que mistura a Paixão
de Cristo com rituais de autoflagelação dos
antigos gregos.

No caso do Brasil, o sincretismo se
manifestou em vários níveis. O candomblé,
por exemplo, é o resultado da reelaboração
de diversas culturas africanas. Tanto nessa
religião, como na umbanda ocorre a realização
de um acerto, de um jogo de contatos, uma
troca de influências (SODRÉ, 2002). Essas
religiões podem ser entendidas como “espaços

de resistência”, na medida em que os africanos Luiz Fernandes da Bahia. Por esse motivo, a novela havia
escravizados e seus descendentes geraram novas sido censurada durante a ditadura militar. Os
formações sincréticas no território americano, chamados “coronéis” diziam que o povo deveria
todas originais em comparação com as religiões sempre rezar e ser devoto dos santos, pois
africanas que lhes serviram de origem. somente assim alcançaria o paraíso dos céus, pois
aqui na Terra há uns que nasceram ricos e outros
O jogo dos contatos, a troca de referências, a harmonia entre pobres e não tem como mudar esta situação.
diferentes culturas.
O candomblé e a umbanda, por sua vez,
A prática do catolicismo popular também são religiões essencialmente constituídas de
é sincrético como o culto a Nossa Senhora dos negros, apesar de encontrarmos não negros entre
Navegantes e a Iemanjá. A mesma imagem seus adeptos. Alguns estudiosos da cultura negra
representa rituais na igreja e no mar. A festa afirmam que, com a necessidade de os africanos
do Nosso Senhor do Bonfim também se reza a e seus descendentes manterem suas culturas no
missa e se faz a lavagem das escadarias pelas Brasil, houve a reterritorialização de costumes
mães de santo e filhas de santo. e crenças no espaço dos terreiros de candomblé
e umbanda. Era uma espécie de recurso de
A sociedade, seus problemas e sobrevivência, pois tratados à base da tortura, do
a religiosidade terror da escravidão, não lhes restava outra coisa
que não suas crenças, valores, costumes.
Como foi dito no início deste capítulo, o
que nos interessa é analisar a importância desses Hoje, a sua permanência no território bra-
grupos religiosos para a formação da sociedade sileiro, inclusive com expansão, demonstra que,
brasileira e como eles interferem na política, na apesar de um mundo globalizado e tecnologi-
democracia e no exercício da cidadania. zado, essas crenças têm fortes raízes culturais
e representam a expressão de resistência e luta
Em relação ao catolicismo popular, contra o racismo ainda presente na sociedade
podemos afirmar que as classes dominantes no brasileira.
Brasil, principalmente na área rural, utilizaram-
-se da boa-fé dos camponeses para exercer uma Neste sentido, estas expressões de religio-
dominação política e econômica. Na década de sidade colocam para todos nós que, ou vive-
1980, foi exibida uma novela que obteve grande remos numa sociedade multicultural, em que
audiência na televisão brasileira, intitulada todos respeitem as diversidades humanas, ou
“Roque Santeiro”, escrita pelo dramaturgo Dias sucumbiremos aos totalitarismos, intolerâncias
Gomes. Nela, o personagem Sinhozinho Malta, e racismos.
um latifundiário (chamado de “coronel”),
utilizou-se da crença popular aos santos para O crescimento dos pentecostais não é
justificar sua dominação política no interior devido simplesmente à dita manipulação pro-
movida nas mentes dos “ignorantes e pobres”.
A partir da década de 1980, eles se apresentam
na sociedade brasileira, que vive uma profunda
crise social, como agentes que oferecem uma
solução para ausência de cidadania e nos fazem
entender como alguns brasileiros enfrentam seus
problemas materiais e emocionais imediatos.

Mas quais são os elementos e mecanismos
que contribuem para a conversão pentecostal e,
por consequência, o seu crescimento numérico?
Os principais são: os pentecostais atraem seus
futuros fiéis através dos poderosos meios de
comunicação que têm em mãos; diferentemente

313Capítulo 20 - “A gente não quer só comida...” Religiosidade e juventude no século XXI

da Igreja Católica, há um acesso direto aos Marlene Bergamo/Folhapress os destinos dos pobres na América Latina. Este
pastores; há uma permanente consolação dos setor da Igreja Católica assume a ideia de que
aflitos; eles produzem, de fato, uma dignidade João Alexandre Peschanski os pobres devem se rebelar contra as injustiças
cidadã num espaço de pobreza como as favelas, e a exploração capitalista.
periferias etc.; eles ocupam espaços onde
quase não existem instituições como escolas, No Brasil, a expressão máxima dessa ideia
assistência social, em suma, o Estado; também se concretizou nas Comunidades Eclesiais de
tornam-se um recurso de recuperação familiar Base (as CEBs). Tais entidades tiveram um
(contra o alcoolismo, contra as drogas etc.) papel importante na defesa dos direitos humanos
e, por fim, apresentam-se à população mais na época da ditadura militar e no processo de
carente como a alternativa à falta de cidadania. redemocratização.

Cerimônia religiosa na igreja evangélica Bola de Neve É interessante notar, nas palavras de Frei
(também conhecida como Bola de Neve Church), reunindo Betto, a reinterpretação, em termos políticos, por
exemplo, da morte de Jesus Cristo. Segundo ele,
5.000 seguidores, em Perdizes (SP). Jesus Cristo não morreu doente na cama, triste e
amargurado. Ele morreu crucificado. Na época
Outra característica importante do papel do Império Romano, quem era crucificado,
dos pentecostais é o fato de retirarem muitos geralmente, eram os presos políticos, aqueles
jovens da influência do tráfico de drogas. O que combatiam os opressores romanos.
interessante é que seu sucesso vem também
do fato de que o tráfico perdoa quem entra Frei Betto, assim como os demais defen-
para a Igreja. Até porque, os pentecostais não sores da Teologia da Libertação, deduz, daí,
querem saber do passado do jovem, eles não que é tarefa dos cristãos lutar pelo fim da po-
representam riscos para o tráfico, pois não vão breza e das injustiças, seguindo o exemplo de
“dedurar” ninguém. Jesus Cristo na luta contra os opressores.

Por fim, a Teologia da Libertação signi- A Teologia da Libertação mobilizou leigos e religiosos, tanto católicos
ficou uma nova interpretação do catolicismo na como protestantes, em razão do seu caráter ecumênico. Na foto, o
América Latina. O sociólogo Michael Löwy (cf. sociólogo Michael Löwy, um dos teóricos que procurou analisar a
1999) descreve que, a partir do Concílio Vatica- influência das teorias de Karl Marx nesse movimento religioso e político.
no II, alguns bispos e religiosos cristãos iniciam
um processo de reinterpretação dos preceitos Religiosidade, juventude e o
bíblicos em conjunto à adoção de ideias mar- novo milênio
xistas. O autor afirma que se operou – a partir
dos encontros de bispos latino-americanos, em Como vimos acima, mais do que a religião
Medelín (Colômbia – 1968) e, depois, em Pue- em si, a religiosidade é muito importante
bla (México – 1979) – uma preocupação com para grupos e indivíduos. Entende-se por
religiosidade uma qualidade do indivíduo que
314 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas é caracterizada pela disposição ou tendência
do mesmo para perseguir a sua própria religião
ou a integrar-se às coisas sagradas. Portanto,

há religiões organizadas em Igrejas, cultos e trabalho e as drogas são fatores de sofrimento.
outros tipos de instituições e há a religiosidade A religiosidade ajuda a tornar isto suportável.
dos indivíduos. Essa diferença é bem marcante Diante da competição do mercado de trabalho,
quanto observamos a expressão de religiosidade que é muito dura e, consequentemente, cria
entre os jovens. muitas angústias, somente o acesso à informação
tecnológica e científica não alivia o sofrimento.
Em pesquisa do Instituto de Estudos da
Religião (ISER) de 2001, verificou-se que entre Regina Novaes afirma, ainda, na mesma
800 brasileiros, com idade entre 15 e 24 anos, entrevista, que todas as religiões formam
98% deles responderam que acreditam em Deus. grupos jovens e que isso é muito positivo, pois,
Trata-se de uma grande maioria, capaz de pôr é um lugar de trocas, no qual o lazer se associa
em questão qualquer ceticismo em relação à à religião: “Jovem precisa de turma, precisa
religiosidade dessa geração de jovens. encontrar uma identidade. Jovem e isolamento
não combinam. Nestes grupos, eles partilham
Essa pesquisa foi conduzida pela socióloga suas angústias e encontram esse sentido para a
Regina Novaes, da UFRJ (cf., entre outras vida.” (NOVAES, 2001, p.2).
obras, o artigo publicado posteriormente em
NOVAES, 2005). Para ela, esses números Ao contrário do que aparece no senso
são surpreendentes. Numa entrevista dada ao comum, e mesmo com as novas tecnologias
Caderno B, do Jornal do Brasil, ela afirmou que: que seduzem essa nova geração, a religiosidade
fornece aos indivíduos concepções sobre a vida,
Os jovens estão à procura da a sociedade, seu passado, presente e futuro, não
religião. Crer é uma coisa que se se restringindo à crença individual, ao culto aos
coloca de uma maneira forte para esta deuses, ou a Deus. Como vimos em Durkheim
geração. Existem ateus que acreditam (1973a), Marx (1960), Weber (1974) e Gramsci
em Deus. É uma coisa incrível. Eles (2007), a religiosidade nos orienta a ter normas,
acreditam em tudo. (...) todos os itens regras de comportamento, mas, também, pode
tiveram percentual alto. Por exemplo: demonstrar os interesses de grupos subjugando
mais de 30% acreditam em orixás, uma outros, além de interferir em outras atividades
taxa muito mais alta do que os que humanas, incluindo a luta contra as injustiças e
declararam ser do candomblé (1,8%). explorações.
O que é espantoso é que, entre os
jovens que disseram que gostariam O brasileiro sempre teve na religião um dos
de procurar alguma religião (32%), a recursos mais fortes para manter suas culturas,
que mais atrai a curiosidade (32%) é suas relações com a realidade social e suas lutas
a evangélica, seguida do espiritismo por uma vida mais digna.
(23,3%). (...)
Religiosidade e política sempre se
Os jovens precisam disso. O que envolveram mutuamente. Observamos que, na
se esperava é que, a partir do desen- História do Brasil, isto ocorreu com frequência:
volvimento da ciência e do avanço na resistência dos africanos e seus descendentes
tecnológico, estas explicações fossem para manter suas culturas; no caso da Teologia
surgir. Mas isso não aconteceu. As da Libertação; e, ainda hoje, quando os
pessoas continuam procurando um pentecostais cumprem um papel onde o Estado
sentido para vida e uma forma para se encontra ausente, suprindo, assim, as
lidar com suas angústias e sofrimentos. necessidades de muitos brasileiros excluídos.

(NOVAES, 2001, p.2) Como veremos a seguir, quando
ocorrem pesquisas a respeito da religiosidade
Esta última constatação revela o fato de dos brasileiros, os resultados são sempre
que os jovens, o tempo todo, estão preocupados expressivos, ou seja, a grande maioria declara
com o futuro, querem uma explicação para o sua crença:
sentido da vida.

Para esta geração, o futuro, o mercado de

315Capítulo 20 - “A gente não quer só comida...” Religiosidade e juventude no século XXI

2000 2010
Fonte: Gráficos reproduzidos de IBGE , 2012, p. 90-91.

Como podemos observar em um dos e da religiosidade. Pelo contrário, a nova
dados apresentados nesses gráficos, a geração de brasileiros demonstra que o mundo
evolução dos “sem religião” cresceu nos tecnologizado e a religiosidade se movem no
últimos 30 anos, mas muito pouco. Essa sentido de descobrir as várias dimensões do
pesquisa confirma aquilo que dissemos no mistério da vida e dos níveis de profundidade
início deste capítulo, ou seja, o Brasil é um dos das perguntas humanas. Isto porque a marca
países mais religiosos do mundo. Portanto, o de todas as religiões é o esforço para pensar
desenvolvimento de um mundo globalizado e a realidade a partir da exigência de que a vida
tecnologizado não significou o fim das religiões faça sentido.

316 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas

Interdisciplinaridade

Arte e religião: tudo a ver Conversando com a Arte

Houve um tempo em que religião e vida foram Christiane Ribeiro
indissociáveis. O indivíduo nascia totalmente inserido
em certa crença e ao entorno disso eram norteadas a Arte desvencilhou-se das representações cristãs,
condutas sociais e individuais. A autoridade religiosa era surgindo então manifestações artísticas desassociadas
máxima e soberana. da religião.

Com os avanços tecnológicos, há uma mudança No Brasil, as representações religiosas também
de direção nesse panorama e o pensamento antes serão “função” da Arte, durante séculos seguindo
teocêntrico (Deus como centro) transforma-se aos um modelo europeu e estas são evidenciadas nas
poucos em antropocêntrico (o homem como centro, a construções religiosas que se espalham ao longo de
razão) e depois científico (a ciência e a tecnologia como todo território. Podemos citar as igrejas barrocas, que
centro). Mas este fenômeno social não foi o suficiente possuem toda a sua arquitetura e decoração (utilizando-
para que a religiosidade fosse abolida da vida cotidiana, -se inclusive de certa teatralidade) voltadas para o
uma vez que se trata de um processo interno e individual, sentimento de exaltação do Divino e a subordinação
diferente da religião, que possui dogmas, preceitos e humana a ele.
práticas próprias, estando ligada a um grupo social.
Como religião e religiosidade se apresentam
Ao longo da nossa História mudanças significativas socialmente como fatores que podem estar interligados
ocorrem e elas resultam de um ciclo interminável em ou não, em algumas decorações barrocas notaremos
que o homem é modificado e modifica o tempo todo e imagens como conchas, estrelas e búzios que são
neste processo mantém viva uma busca constante. Este elementos simbólicos pertencentes às religiões de
fato pode ser notado em diversas esferas, inclusive e matrizes africanas e à religiosidade dos africanos
principalmente na Arte. escravizados (a Igreja de Santa Efigênia, atribuída à
Chico Rei e localizada em Ouro Preto, é um rico exemplo).
A humanidade se utiliza de símbolos e signos Deixar esses vestígios em construções religiosas cristãs
a serviço de sua expressão ou quando não mais acha era uma forma de estar à serviço de uma crença que não
palavras para descrever algo. era a sua, mas preservar sua fé e prestar homenagem
aos seus guias espirituais e religiosos.
Desde os primórdios da História da Arte, as
suas produções estão intimamente ligadas à religião Hoje, é consenso geral que a Arte e a religião estão
e à religiosidade. Há estudos que indicam um caráter totalmente desvinculadas, mas se partimos do conceito
religioso às pinturas rupestres ocorridas em lugares de eternas mudanças concomitantes entre homem e seu
diversos do mundo e evidencia esse caráter como meio sociocultural poderemos chegar à conclusão de
universal. No mundo ocidental, com a união do Império que a religião e religiosidade fazem parte do processo
Romano ao Cristianismo, a Arte vincula-se fortemente individual, interferindo na nossa formação ética-social e,
à religião e isso perdura até poucos séculos atrás. No portanto, também modificando a cada dia esse homem
período que compreende a Idade Média, a Arte era que produz a Arte.
utilizada para propiciar o ensinamento religioso e a de
exaltação dos sentimentos da cristandade. Após o Christiane Cardoso Ribeiro é professora de Artes
período do Renascimento, com todas as mudanças no Município do Rio de Janeiro. Graduada em Artes
ocorridas nas Ciências e com o surgimento do Estado Plásticas pela UFRJ (Escola de Belas Artes) e MBA
laico (o Estado não mais assume uma religião oficial), em Gestão Pedagógica e Institucional (Faculdade de
Maringá e DDG Educação).

317CapítuloC2a0pí-tu“Alog1e9n-te“Cnhãeogqoueor csaóvceoirmãoid!”a.E..”aRgoerliag?ioVsidoalêdneciea jeuvdeenstiugduealndoadseéscuslocXiaXisI

Interatividade

Revendo o capítulo desempenhado pelo trabalho nas diversas
sociedades.
1 – Explique a importância da religião para
Durkheim, Marx e Weber. 2 – (ENEM, 2000)
Os quatro calendários apresentados abaixo mostram
2 – Qual a importância do estudo das religiões para a variedade na contagem do tempo em diversas
a Sociologia? sociedades.

3 – A religiosidade é um fator importante na vida Fonte: Adaptado pelos autores, de revista Época,
dos jovens de hoje? Por quê? nº 55, 7 de junho de 1999.

Dialogando com a turma Com base nas informações apresentadas, pode-se
afirmar que:
1 – Você acredita que algumas lideranças religio- (A) o final do milênio, 1999/2000, é um fator
sas manipulam de alguma forma os seus fiéis,
como de vez em quando denuncia parte da mí- comum às diferentes culturas e tradições.
dia? Realize um debate sobre este tema com (B) embora o calendário cristão seja hoje adotado
seus colegas, a partir das informações contidas
no texto. em âmbito internacional, cada cultura registra
seus eventos marcantes em calendário próprio.
2 – Em sua opinião, considerando as questões (C) o calendário cristão foi adotado universalmente
apresentadas neste capítulo, você acha possível porque, sendo solar, é mais preciso que os
considerar que no atual mundo globalizado as demais.
religiões de matriz africana, como o candomblé (D) a religião não foi determinante na definição dos
e a umbanda, poderão se extinguir? Justifique a calendários.
sua resposta. (E) o calendário cristão tornou-se dominante por
sua antiguidade.
Verificando o seu conhecimento
Pesquisando e refletindo
1 – Durkheim, Marx e Weber desenvolveram
pesquisas e reflexões a respeito do papel da LIVROS
religião nas sociedades. Dentre as formulações e ALVES, Rubem. O que é religião. São Paulo:
conclusões que esses pensadores apresentaram, Brasiliense, 1984.
assinale abaixo a única que deve ser considerada
como incorreta:

(A) Para Marx, a religião é uma criação humana,
relacionada à necessidade que os homens têm
de acreditar em algo que alivie o seu sofrimento.

(B) Para Durkheim, a religião é uma criação humana
e social, sendo importante por estabelecer regras
de comportamento que contribuem para a
organização da sociedade.

(C) Segundo Weber, a compreensão dos
comportamentos religiosos torna possível um
melhor entendimento das atividades humanas.

(D) Para Durkheim, a religião não pode ser negada
pela ciência, pois ela é um fato social.

(E) De acordo com Weber, o surgimento do
capitalismo foi determinante para a mudança
nas concepções religiosas a respeito do papel

318 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas

Deus existe? Qual é o sentido da vida? E da morte? sobre o tema ECUMENISMO. Acesso: janeiro/2016. Luiz Carlos Barreto Produções Cinematográficas
O livro responde a estas e outras perguntas, numa
linguagem bastante acessível e atraente. MÚSICAS

GASPAR, Eneida Duarte. Guia de religiões PROCISSÃO – Autor e intérprete: Gilberto Gil.
populares do Brasil: rezas, símbolos, santos, A excelente letra de Gil apresenta uma reflexão
ancestrais, deuses afro-brasileiros, ciganos, política sobre a condição social do sertanejo
histórias. Rio de Janeiro: Pallas, 2002. nordestino e sua religiosidade.
Inventário de diversas manifestações religiosas
populares espalhadas pelo país, com a descrição de REZA VELA – Autores: Marcos Lobato, Rodrigo
suas principais características. Valle, Marcelo Lobato, Marcelo Falcão, Xandão,
Lauro Farias. Intérpretes: O Rappa.
FILMES
A manifestação da religiosidade popular diante da
ATLÂNTICO NEGRO – NA ROTA DOS condição social na favela marcada pela realidade
ORIXÁS (Brasil, 1998). Direção: Renato cotidiana de violência.
Barbieri. Duração: 54 min.
Documentário que faz uma viagem no espaço e no FILME DESTAQUE
tempo em busca das origens africanas da cultura
brasileira. Historiadores, antropólogos e sacerdotes IGREJA DOS OPRIMIDOS
africanos e brasileiros relatam fatos históricos e
dados surpreendentes sobre as inúmeras afinidades FICHA TÉCNICA:
culturais que unem os dois lados do Atlântico. Direção: Jorge Bodanszky
Duração: 75 min.
O AUTO DA COMPADECIDA (Brasil, 2000). (Brasil, 1986)
Direção: Guel Arraes. Elenco: Matheus
Nachtergaele, Selton Mello, Fernanda Montenegro, SINOPSE:
Marco Nanini. Duração: 104 min. Documentário que relata
A religiosidade característica do povo nordestino as ações das comunidades
está presente nessa comédia que denuncia tanto as eclesiais de base e a Co-
desigualdades sociais do sertão, a discriminação e o missão Pastoral da Terra
racismo, quanto as hipocrisias comportamentais da no Araguaia-Tocantins,
sociedade e das autoridades religiosas. Baseado na com inúmeros conflitos
obra de Ariano Suassuna. violentos entre trabalha-
dores rurais em situação de miséria e pistoleiros a
INTERNET mando de latifundiários. O filme discute o papel de-
sempenhado pela Igreja católica e pelos seguidores
RELIGIOSIDADE POPULAR: da Teologia da Libertação, entrevistando lideranças
http://goo.gl/UMxRQA rurais e das comunidades, teólogos como Leonardo
Página apresentando diversos materiais de pesquisa Boff, e padres que atuam na região, como François
sobre a religiosidade popular, com artigos, notícias, Gouriou, Aristides Camio e Ricardo Rezende Fi-
bibliografia e um Dicionário da Religiosidade gueira.
Popular. Acesso: janeiro/2016.

Portal ADITAL – NOTÍCIAS DA AMÉRICA
LATINA E CARIBE: http://bit.ly/1aip1wN

Este Portal de notícias apresenta uma seção
específica reunindo um clipping de notícias sobre
todos os acontecimentos que envolvem igrejas e
religiões. Oferece também outros links de interesse

319CapítuloC2a0pí-tu“Alog1e9n-te“Cnhãeogqoueor csaóvceoirmãoid!”a.E..”aRgoerliag?ioVsidoalêdneciea jeuvdeenstiugduealndoadseéscuslocXiaXisI

Aprendendo com jogos

Contos de Ifá

(Ilê Axé Oxum Karê, do Centro Cultural Coco de Umbigada de Guadalupe / 3Ecologias, 2014)

CONHECER PARA RESPEITAR. RESPEITAR PARA CONVIVER

Divulgação: 3Ecologias 2. Após jogar, realize
uma pesquisa sobre
Esta é uma aventura baseada na mitologia de diferentes religiões,
matriz africana, construída a partir de uma narrativa suas origens, princi-
lúdica com quatro fases que representam, cada uma, pais preceitos, ritos e
a história de um orixá: Exu, Ogun, Oxóssi e Omolu. crenças, e apresente
A plataforma Contos de Ifá visa a formação cultural as suas descobertas
como forma de combater o preconceito, o racismo por meio de uma ex-
e a intolerância religiosa. O projeto está baseado na posição de imagens
Lei 10.639/03, que insere o estudo da História da representativas desses
África, dos Africanos e da Cultura Afro-Brasileira aspectos nos corredo-
nos currículos escolares, a fim de valorizar a cultura res de sua escola, de
afrodescendente e romper preconceitos. O jogo é, modo que às imagens
em verdade, uma plataforma que experimenta novas estejam associadas
mídias e busca proporcionar experiências imersivas. pequenas narrativas
do próprio universo
Como jogar:
de crenças da religião pesquisada. Mas a exposição
1. Jogue diretamente no site, construído em software deve priorizar as imagens! E que sejam representa-
livre e de acesso gratuito: contosdeifa.com tivas da religião pesquisada, que ajudem a quebrar
preconceitos e que estejam bem associadas aos cur-
tos textos que as acompanham.

3. Por fim, inicie o esboço de um “site-jogo” simi-
lar para diferentes religiões – você deve somente
apresentar um esboço com a concepção, a “mecâ-
nica do jogo” (o que deve fazer o jogador ao jogar,
o percurso do jogador pelo site, o objetivo que ele
deve alcançar), as imagens ou os desenhos e al-
guns textos, além das narrativas mais representa-
tivas que constituirão o conteúdo de sua proposta
de “site-jogo”.

4. Debata com os seus colegas em sala de aula a sua
proposta de jogo para a religião escolhida.

320 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas

Capítulo 21 Public-domain-image.com

“Onde você esconde seu racismo?”
Desnaturalizando as desigualdades raciais

Ku Klux Klan,
organização racista
norte-americana que
defende com violência
a ideia da “supremacia
branca” sobre todas
as demais “raças”.

Imagem de 1915.

Em reportagem divulgada pelo site do Em fevereiro de 2010, durante uma das
apresentações que a cantora norte-americana
jornal O Globo, em novembro de 2009, foi Beyoncé realizou no Brasil, o antropólogo
noticiado que um estudante de Psicologia Jocélio Teles utilizou a internet para denunciar a
em Aracaju, Sergipe, foi preso em flagrante humilhação sofrida por um amigo que ele havia
por ter chamado um vigilante de um posto convidado para assistir ao show na ala VIP, do
de gasolina de “macaco, neguinho e urubu”. Parque de Exposições de Salvador. Como o
Naquele mesmo mês, na mesma cidade de seu amigo era, segundo Teles, praticamente o
Aracaju, o Jornal Nacional, da Rede Globo, único “negro retinto” naquela ala, foi o alvo de
informou sobre o caso de uma mulher que uma agressiva abordagem policial que buscava
ofendeu um funcionário negro de uma empresa identificar o responsável por um delito que
de aviação com o uso de termos como “nego”, havia sido denunciado momentos antes. Um
“morto de fome” e “analfabeto”. Ela fez isso dos policiais que fez a revista justificou a sua
depois de insistir em embarcar num voo para atitude afirmando, para a vítima, que havia
a Argentina, mas o funcionário não permitiu, ocorrido um roubo na área VIP e que a pessoa
pois ela estava atrasada e tinha perdido o era do seu estilo.
prazo/horário do check-in – apresentação,
antes da viagem, à companhia aérea, dos Os relatos expressam a existência em nosso
documentos de identificação pessoal para país de um mal que muitas pessoas não gostam
retirada do bilhete de embarque. de discutir e conversar: o racismo.

321Capítulo 21 - “Onde você esconde seu racismo?” Desnaturalizando as desigualdades raciais

Mas por que discutir racismo quando já De acordo com essas definições, o
nos encontramos no terceiro milênio? Quem preconceito se expressa na sociedade, mas
faz este tipo de pergunta talvez considere essa não necessariamente segrega ou discrimina; já
discussão desnecessária, tendo em vista o a discriminação promove, baseada em certos
entendimento de que a humanidade, de certa preconceitos, a separação de grupos ou pessoas.
forma, tenha “aprendido” com as experiências Por outro lado, o racismo mata, extermina,
de extermínio vividas durante séculos de produz o ódio entre grupos e indivíduos.
História, e que envolveram episódios de ódio,
perseguição e morte, tendo como origem muitas A História da sociedade brasileira é
vezes a questão racial. marcada pelo racismo desde a chegada dos
portugueses em nossa terra. Primeiro foram
A resposta à pergunta, na verdade, é os índios, exterminados pelo branco europeu;
bem simples: ainda vivemos os desastres depois, o tráfico de africanos escravizados,
desse fenômeno social intitulado racismo em que representou um dos maiores extermínios
escala mundial, que se manifesta em novas humanos da História mundial.
formas. Ainda convivemos com os diversos
estereótipos contra negros, indígenas, judeus, O racismo, hoje, se manifesta ainda de forma
palestinos e demais grupos que são percebidos aberta ou em formas sutilmente elaboradas.
como sendo “outros”no interior de nossa Teoricamente, o racismo é uma ideia ocidental
sociedade. (europeia) excludente, porque versa sobre a
universalização do conceito de humanidade.
E não é mera coincidência. A maioria dos Universalizar, segundo Muniz Sodré:
povos não brancos passa fome, é exterminada por
políticas internacionais dos Estados poderosos, (...) significa reduzir as diferenças a
são vítimas da barbárie econômica do mercado um equivalente geral, um mesmo valor.
global, não tendo nenhuma perspectiva de É a universalização racionalista do con-
futuro. Enfim, além das desigualdades sociais, ceito de homem que inaugura, no século
as pessoas não brancas, na sua grande maioria, XIX, o racismo doutrinário. Até então, as
sofrem com o fenômeno do racismo. raças ou as etnias podem ter sempre ali-
mentado ódios ou desconfianças mútuas
O que é realmente o racismo? – que frequentemente culminavam em
massacres cruéis –, mas nunca sob ale-
Para iniciarmos nossa reflexão, é conve- gações científicas, sob o critério de uma
niente que saibamos o significado de alguns razão universal. (...) A palavra racismo é
termos – preconceito, discriminação e racismo fruto do século XIX, consequência de um
– que são normalmente utilizados nas discussões conceito de cultura fundado na visão in-
sobre este tema tão polêmico: diferenciada do humano.

(SODRÉ, 2005, p. 27-28)

Preconceito: conceito ou opinião formada antecipadamente, sem maior ponderação
ou conhecimento dos fatos; julgamento ou opinião formada sem levar em conta os fatos
que o contestem. Trata-se de um pré-julgamento, isto é, algo já previamente julgado.

Discriminação: separar; distinguir; estabelecer diferenças. A discriminação racial
corresponde ao ato de apartar, separar, segregar pessoas consideradas racialmente diferentes,
partindo do princípio de que há raças “superiores” e “inferiores” – o que ficou definitivamente
comprovado pela ciência que não existem. Nós, seres humanos, fazemos parte de uma única
espécie – o Homo sapiens.

Racismo: teoria que sustenta a superioridade de certas “raças” em relação a outras,
preconizando ou não a segregação racial ou até mesmo a extinção de determinadas
minorias.

322 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas

O racismo, portanto, é o conceito Marcelo Reis
pretensamente universal de classificação dos
seres humanos, pois foi elaborado a partir de O conceito de etnicidade refere-se a um tipo de solidariedade
um centro europeu. Construído em bases particular, laços intelectuais de língua e cultura. Na foto,
pseudofilosóficas e pseudocientíficas, o manifestação cultural em frente ao monumento em homenagem
racismo nega a capacidade de razão do outro a Zumbi dos Palmares, no Rio de Janeiro, em 2001.
fora da Europa. Esse movimento teórico
tem característica etnocêntrica, em que o No Brasil, presenciamos diversas formas de
outro foi estigmatizado e racializado nas racismo, preconceito e discriminação, majori-
ciências sociais – influenciando e gerando tariamente contra os negros. Elas se expressam
consequências para a compreensão do senso nos índices estatísticos de escolaridade de
comum –, até meados do século XX. jovens negros, que se apresentam inferiores aos
brancos; no nível de renda, em que negros e
No pós-guerra, ganham força os conceitos negras recebem os menores salários na mesma
de “etnia” ou “etnicidade”, para definir um profissão em relação aos brancos; nos bairros
conjunto de indivíduos ou grupos identificados pobres onde moram, que são menos assistidos
pela língua, mitos, religiosidade e instituições pelo Estado, ao contrário, por exemplo, de bairros
comuns. Posteriormente, inventa-se o termo mais luxuosos, onde moram predominantemente
“fator étnico”, denominando aqueles grupos brancos.
de imigrantes que se encontram à margem das
sociedades ou que são reservas econômicas Uma história invisível
de trabalhadores fora da cadeia de produção
dominante. Em tempos de globalização, o O racismo em nosso país é acompanhado de
termo etnicidade vem denominando também uma série de ideias pré-concebidas sem a menor
as manifestações regionalistas como as de base de apoio aos fatos históricos, às pesquisas
tibetanos, croatas, catalães etc. científicas e à ética humana.

Entretanto, o termo etnicidade surgiu na Em relação à ciência, podemos citar a
França no início do século XX. Sua definição pesquisa do Projeto Genoma Humano que
inicial refere-se a um tipo de solidariedade afirma não haver, biologicamente, diferenças
particular, laços intelectuais de língua e raciais entre os humanos. Foi constatado nessa
cultura, diferente do termo nação, atribuída à pesquisa que a diferença genética de uma pessoa
organização política, e o termo raça, atribuída para a outra é de pouco mais de 0,01%. Isso
às semelhanças físicas. Este conceito – significa que somos 99,99% idênticos do ponto
etnicidade – é resultado de uma invenção dos de vista biológico. Portanto, não se justifica
países colonizadores, para melhor descrição
dos povos dominados. Muitas vezes, as diversas
definições se confundem com termos como
raça, nação, sociedade e identidade.

As formas sutis de racismo se manifestam
através de piadas, brincadeiras, olhares, frases de
duplo sentido, etc. A forma aberta se expressou
na história do regime de apartheid da África
do Sul até inícios dos anos 1990; em alguns
estados do sul dos EUA, como o Mississipi e
o Alabama, cujas constituições segregavam
negros; na repressão a árabes palestinos pelos
judeus israelenses e no extermínio de judeus
na Alemanha nazista.

323Capítulo 21 - “Onde você esconde seu racismo?” Desnaturalizando as desigualdades raciais

mais qualquer argumento dizendo que existem ignorância da História do Brasil e dos africanos. mapsofworld.com
seres humanos inferiores ou superiores devido à Vamos ver por quê?
cor da pele, formato do nariz, tipo de cabelo ou
tipo físico. Uma das coisas que a maioria das pessoas
pensa é que o continente africano é um país;
Do ponto de vista ético, não cabe considerar outra, que a História da África começa com
a cor da pele como uma diferença na capacidade a chegada dos europeus para capturarem
intelectual das pessoas. Ora, se todos forem escravos. Além disso, a imagem que se tem é de
tratados de forma igualitária em seus direitos, uma África de homens “primitivos”, que andam
não há como dizer que brancos, negros, amarelos nus e, quando encontram um homem branco,
ou indígenas são incapazes de realizar diversas o cozinham no caldeirão para comê-lo, já que
tarefas e raciocínios lógicos. são “todos uns canibais”.

Mas é do ponto de vista sociológico e Ao contrário do que se pensa, a África
histórico que existem diferenças entre negros, tem muitas histórias. Foi neste continente
brancos e indígenas, mas que, infelizmente, que surgiu a Humanidade. O Homo sapiens
são tratados, de forma desigual e opressiva por – inteligente, forte, habilidoso e com muitas
aqueles que se consideram superiores. Vejamos capacidades técnicas e culturais – se desenvolve
alguns exemplos na História do Brasil no que e progride, e mais, tinha a pele negra. Somente
diz respeito à história dos negros brasileiros. milhares de anos depois com a migração desse
homem e sua adaptação ao clima, na Ásia, na
Desde pequenos aprendemos algumas Europa e nas Américas, é que surge o Homo
coisas, tais como: “o negro foi escravo”, “na sapiens branco ou de pele mais clara.
África só tem pobreza e miséria”, “a princesa
Isabel libertou os escravos”, Continente africano: o berço da Humanidade.
“dia 13 de maio é dia dos
escravos”, e por aí vai...

Quando crescemos
com essas ideias, muitas
delas aprendidas na escola,
reforçamos mais ainda o
preconceito através de outros
termos e frases: “moça
escurinha, mas educada”,
“moço pretinho, mas nem
parece”, “preta feia”, “preto
horroroso”, “fome negra”,
“lista negra”, “moreninho,
mas honesto”, “preto de alma
branca”, “só podia ser preto”,
“samba do crioulo doido”,
“ovelha negra da família”,
“olha o beiço do negão”,
“nariz de crioulo”, “cabelo
ruim”, e muito mais...

Tudo isso é construído
pela maioria daqueles que
têm introjetada na mente
uma falsa realidade e uma
falsa compreensão ou

324 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas

Foi no continente africano que se desen- Qual é a cor do Brasil?
volveram as primeiras técnicas de metalurgia,
de fundição de metais, a escrita, os cálculos Qual é a cor da pele dos brasileiros? Muitos
matemáticos, a engenharia e o comércio afirmam que somos morenos ou de todas as
internacional. Outra questão, que é silenciada cores, e que a grande marca do brasileiro é a
na História ensinada, é que a grande civilização miscigenação, ou seja, a mistura das “raças”.
egípcia, das pirâmides, dos faraós, era uma Para muitos, isso comprova que não existe
civilização negro-africana. Aliás, a maioria dos racismo no Brasil.
faraós era negra.
Estudiosos brasileiros afirmam que no
Na África, antes da chegada dos europeus, final do século XIX e início do século XX as
existiam (e ainda existem) grandes construções elites políticas brasileiras estavam preocupadas
arquitetônicas, ocorriam navegações em em “embranquecer” o país. E muitas teorias
alto mar, comércio internacional e trocas de surgiram para ratificar a ideia de que negros e
mercadorias com a antiga China, o antigo índios são inferiores e que o Brasil só iria se
Japão e a antiga Índia. São histórias que desenvolver se “branqueássemos a Nação”.
comprovam que o racismo construído pelos
brancos europeus também tinha como objetivo Segundo o pesquisador norte-americano
apagar a História de uma parte da Humanidade. Thomas Skidmore (1985) e o antropólogo
Pois, assim, facilitaria demonstrar que os Kabengele Munanga (1999), no início do século
brancos sempre foram superiores. Esta é uma XX havia um entusiasmo cultural brasileiro
das características do racismo, ou seja, apagar pelo modelo de pensamento racial francês.
histórias, negar ao outro uma identidade e uma Nesse modelo, o Brasil era visto como um país
raiz milenar cultural e social. impossibilitado de formar uma nação por ser um
produto da miscigenação, a qual era associada à
As histórias da África e de nossos ancestrais ideia de atraso.
não são contadas ou são ignoradas, e isto sugere
uma visão de que os negros e seus ancestrais A proposta das elites brasileiras para
africanos são inferiores e sem cultura. a solução de seu problema racial foi o
“branqueamento”. Essa saída defendia a tese
Agora pense: imagine uma criança negra de que a miscigenação produzia uma população
aprendendo que seus ancestrais foram grandes mestiça sadia que estava tornando-se, a cada
arquitetos, engenheiros, ferreiros, navegadores, geração, mais branca. Num esforço para acelerar
comerciantes habilidosos etc. Será que essa o branqueamento, surge a proposta de uma
criança negra teria vergonha de ser diferente política imigratória direcionada principalmente
do branco? Geralmente ocorre o contrário, para a população de origem europeia. Ou seja, a
as crianças negras sentem vergonha de seus entrada de imigrantes europeus foi incentivada
antepassados, pois a imagem que se passa, pelo Estado brasileiro, como contraponto à
predominantemente, é a de que o negro sempre grande maioria da população de origem africana,
foi escravo, primitivo e inferior. trazida à força para o país durante os séculos de
tráfico através do Atlântico.
Enfim, contar uma outra história pode
ser muito questionador, pois arrisca-se Quando foi publicado o livro Casa
desmascarar o eurocentrismo e colocar em Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, em 1933,
evidência que, entre as maiores atrocidades ocorreu uma mudança no pensamento sobre o
humanas – além dos assassinatos de judeus caráter das relações raciais existentes no Brasil.
por parte dos nazistas alemães ou das vítimas Freyre, a partir da década de 1930, estudou
japonesas inocentes de Hiroshima e Nagasaki o desenvolvimento da temática de um novo
– soma-se o tráfico de africanos escravizados mundo nos trópicos, construindo a visão do
que exterminou uma quantidade absurda de Brasil como um país quase “livre de preconceito
seres humanos!

325Capítulo 21 - “Onde você esconde seu racismo?” Desnaturalizando as desigualdades raciais

Rogerioracial”, servindo de espelho para o restante do com tarefas econômicas e militares, na opressão
planeta resolver seus problemas raciais – que aos africanos escravizados e seus descendentes.
se viram ainda mais destacados a partir da Esse fator crescente de miscigenação imposta
ascensão do fascismo e do nazismo na Europa. exerceu muita influência no pensamento
Com isso, ao longo do século XX, ganha força brasileiro e no imaginário popular. A decorrência
a teoria da mestiçagem. Influenciada pela obra desses movimentos foi a elaboração de uma
de Gilberto Freyre (1971), ela deu lugar à teoria da democracia racial, ou seja, a ideia de
apologia da miscigenação, enaltecendo a ideia que a diferença entre grupos étnicos e a mistura
da “democracia racial brasileira”. não se constitui como fator de desigualdade.

Carneiro / Folhapress Mas esse mito está perdendo sua força
atualmente. O conjunto de gráficos, a seguir,
Gilberto Freyre representa dados estatísticos que mostram
(1900 - 1987) escreveu em 1933 as profundas desigualdades baseadas na
o livro Casa-Grande & Senzala. Sua obra inaugurou uma nova discriminação e no racismo. Dessa forma, esses
visão sobre as relações raciais no Brasil, reforçando a ideia de que gráficos contribuem bastante para desmistificar
vivíamos em um país caracterizado por uma “harmonia racial”. a ideia de que “não existe um problema étnico-
racial no Brasil” mas, sim, um problema social
Segundo Kabengele Munanga, o discurso – já que, supostamente, os rendimentos baixos
da mestiçagem foi uma estratégia inteligente das e o problema educacional atingem a todos,
elites para evitar tanto o aparecimento explícito brancos e negros. Acompanhe e avalie conosco.
do racismo quanto a dominação cultural Trata-se de um bom exercício interdisciplinar,
explícita branco-europeia. O autor afirma que, combinando a Sociologia com a Matemática (no
diferentemente dos EUA, onde a cor da pele caso, a parte correspondente à Estatística).
define o lugar dos indivíduos na estratificação
sociorracial, no Brasil a miscigenação não foi O Gráfico 1 procura representar, percen-
voluntária, mas causada pelo desequilíbrio tualmente, como se dá a distribuição da popula-
demográfico entre homens e mulheres brancas. ção brasileira pela cor da pele e por sexo. Con-
O “mulato” nasce de uma relação sexual imposta sultando o IBGE, em 2009 – a data escolhida
pelo branco sobre a mulher negra e índia. Neste como referência para a elaboração do gráfico –,
sentido, estabelece-se, desde a Colônia, um o percentual de homens brancos é de 47% do to-
grande contingente populacional mestiço que tal, enquanto que o de homens negros é de 52%.
cumpriu um papel intermediário na sociedade, Já o percentual entre mulheres brancas e negras
é de 49,3% e 49,9%, respectivamente – quase
326 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas um “empate” estatístico, portanto. Esses dados
se relacionam com uma questão histórica im-
portante: se pegarmos como exemplo somente
o Censo de 2000, do IBGE, e verificarmos que
a população de negros (pretos e pardos) apre-
sentava um percentual de 44,7%, percebemos
que nos últimos anos há uma tendência dos bra-
sileiros se autodeclararem mais como pretos e
pardos. Isto acontece em relação a 2000 e tam-
bém se compararmos com os censos anteriores.
Como veremos adiante, isto pode ser resultado
das ações dos movimentos sociais negros e do
crescimento dos debates sobre as ações afirmati-
vas nas universidades, que incluem as chamadas
políticas de cotas.

Reproduzido de Brasil / IPEA 2011 p. 16 GRÁFICO 1 População: Distribuição percentual da população
segundo sexo e cor/raça. Brasil, 2009

Reproduzido de Brasil / IPEA 2011 p. 34 GRÁFICO 2 Brancos/as
Negros/as
Brancos/as Outros/as
Negros/as
Outros/as Pobreza, distribuição e desigualdade de renda
Renda média da população,

segundo sexo e cor/raça. Brasil, 2009

O segundo gráfico mostra, por outro dados que constam do Gráfico 3, que apresenta
lado, como a distribuição de renda é extrema- evolução da média de anos de estudo, no período
mente desigual. Enquanto homens e mulheres de dez anos (entre 1995 e 2005), para o conjunto
brancos(as), em 2009, em média, tinham uma de negros e brancos, levando-se em conta duas
renda per capita (= por cabeça, ou seja, por
cada pessoa), respectivamente, de R$ 1.491,00 faixas etárias utilizadas na pesquisa: somente
e R$ 957,00; homens e mulheres negros (as) jovens, entre 15 e 24 anos; e para jovens e adultos
recebiam, em média, R$ 833,50 e R$ 544,40, maiores de 15 anos. Esta segunda faixa engloba
respectivamente. Quais seriam as razões dessa
diferenciação entre brancos e negros? a anterior, mas não limita o resultado à idade de

Uma resposta possível poderia se relacionar 24 anos, seguindo pela vida adulta do indivíduo.
ao nível de escolaridade. Assim, analisemos os Avaliando-se o Gráfico 3, percebe-se que

há um crescimento do número médio de anos

de estudo para brancos e para negros. Porém,

327Capítulo 21 - “Onde você esconde seu racismo?” Desnaturalizando as desigualdades raciais

ainda há uma diferença significativa entre anos anos (ou seja, na faixa de 15 anos ou mais de
de escolaridade nas duas faixas etárias. Segundo idade), a tendência é a redução da média de anos
de estudo, tanto para brancos como para negros.
estudos de vários especialistas, continuando-se Mais uma vez, o resultado em relação à população
negra apresenta um percentual bem inferior,
o ritmo de acesso à escolaridade que atualmente pois, certamente, pretos e pardos apresentam
maiores dificuldades para dar continuidade aos
se constata na população negra, esta diferença seus estudos a partir da vida adulta.
somente se reduzirá significativamente em um
prazo de quarenta anos.

No mesmo gráfico, repare que, quando
incluímos a vida adulta na pesquisa, acima de 24

GRÁFICO 3

PNAD

Fonte: Gráfico reproduzido de SOARES, FONTOURA e PINHEIRO, 2007, p. 408.

O Gráfico 4 apresenta o percentual Esse tipo de cálculo, no caso do nosso país, é
de indivíduos que, entre 1995 e 2005, que justifica políticas como as do Programa
viviam abaixo da “linha da pobreza”. O que Bolsa Família para atendimento focado nessa
significa este termo? Trata-se de uma forma parte da população.
de se calcular a distribuição de renda, algo
importante para definir as políticas que um Repare que o Gráfico 4 apresenta uma
governo, em qualquer país, pode aplicar em redução percentual dos indivíduos que viviam
relação à população mais pobre. No Brasil, a abaixo da linha de pobreza, no período
“linha de pobreza” é medida como um valor pesquisado. Desse gráfico, retiramos duas
correspondente a meio salário mínimo per constatações. A primeira é bem positiva
capita. Exemplificando: se um casal tem três para a população negra: cada vez mais os
filhos pequenos e tanto o marido como a esposa negros estão reduzindo percentualmente o
trabalham, mas cada um deles ganha apenas seu pertencimento ao grupo abaixo da linha
um salário mínimo, a renda per capita fica de pobreza. No período, saíram da pobreza
abaixo da linha de pobreza (pois seriam dois 2,7 pontos percentuais de brasileiros brancos,
salários mínimos divididos por cinco pessoas). mas os negros alcançaram um índice de 7,1.
Isto significa que as políticas sociais desse
328 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas

período beneficiaram os negros, mesmo que era, em 2005, de 46,3% de toda a população
modestamente. A segunda diz respeito à negra. Já entre a população branca, os pobres
comparação entre o percentual da população dessa faixa eram, nesse mesmo ano, de 22,5%
branca e negra abaixo da linha de pobreza: – menos que a metade dos negros, apesar da
apesar do avanço citado anteriormente, o população negra ser praticamente a metade da
percentual de negros abaixo desse índice população total do país.

GRÁFICO 4

PNAD

Fonte: Gráfico reproduzido de SOARES, FONTOURA e PINHEIRO, 2007, p. 412.

Segundo estudos estatísticos do próprio a existência de uma democracia racial, ainda há
IBGE, se as taxas de redução da pobreza dúvidas e questionamentos quanto à classificação
verificadas entre 1995 e 2005 continuarem que os indivíduos realizam para se identificar
nesse mesmo ritmo, a população negra enquanto membros ou não de uma etnia.
brasileira somente conseguirá alcançar o
mesmo nível de pobreza dos brancos em 52 Milton
anos. Quanto à possibilidade de se eliminar
a pobreza entre os negros, o prazo calculado
pelos especialistas é de 65 anos.

Se você entrar no site do IBGE, verá que
vários outros dados estatísticos confirmam
que há uma nítida desigualdade entre brancos
e negros, revelando um sério problema de
desigualdades raciais no Brasil.

Tendo em vista as informações e dados
apresentados no texto, esta charge proporciona
um bom debate, não acha?

Entretanto, uma discussão se faz cada dia
mais necessária: se não há mais como admitir

329Capítulo 21 - “Onde você esconde seu racismo?” Desnaturalizando as desigualdades raciais

Kabengele Munanga afirma que a situação preconceitos, ou seja, como fruto da ideologia
do negro é a de “refém” de um sonho de do embranquecimento e da democracia racial,
embranquecimento, de um desejo de fazer muitos indivíduos ainda não conseguem admitir
aquela passagem em direção à cultura branca. uma identidade étnica diferente daquela de
E que também há um verdadeiro processo de origem europeia.
dissimulação étnica quando se discute a questão
do negro no Brasil. Um exemplo disso foi uma pesquisa do
IBGE, realizada em 1976, a respeito das cores
O sociólogo Florestan Fernandes (1978) do brasileiro na qual foram declaradas 136 cores:
afirmava que o brasileiro tem preconceito de ter

1 . Agalegada 24.Branca pálida 47.Clarinha 70.Loira-clara 93.Morena escura 116.Quase negra
2.Alva 25.Branca queimada 48.Cobre 117.Queimada
3.Alva escura 26.Branca sardenta 49.Corada 71.Loura 94.Morena fechada 118.Queimada de
4.Alva rosada 27.Branca suja 50.Cor de café praia
5.Alvarenta 28.Acastanhada 51.Cor de canela 72.Lourinha 95.Morenão 119.Queimada
6.Alvinha 29.Branquiça 52.Cor de cuia de sol
7.Alvo-escura 30.Branquinha 53.Cor de leite 73.Malaia 96.Morena parda 120.Regular
8.Amarela 31.Bronze 54.Cor de ouro 121.Retinha
9.Amarela queimada 32.Bronzeada 55.Cor de rosa 74.Marinheira 97.Morena roxa 122.Rosa
10.Amarelada 33.Bugrezinha-escura 56.Cor firme 123.Rosa queimada
11.Amarelosa 34.Burro-quando-foge 57.Crioula 75.Marrom 98.Morena ruiva 124.Rosada
12.Amorenada 35.Cabo-verde 58.Encerada 125.Roxa
13.Avermelhada 36.Cabocla 59.Enxofrada 76.Meio-amarela 99.Morena trigueira 126.Ruiva
14.Azul 37.Café 60.Esbranquecimento 127.Russo
15.Azul marinho 38.Café com leite 61.Escura 77.Meio branca 100.Moreninha 128.Sapecada
16.Baiano 39.Canela 62.Escurinha 129.Sarará
17.Bem branca 40.Canelada 63.Fogoió 78.Meio morena 101.Mulata 130.Saraúba
18.Bem clara 41.Cardão 64.Galega 131.Tostada
19.Bem morena 42.Castanha 65.Galegada 79.Meio preta 102.Mulatinha 132.Trigo
20.Branca 43.Castanha-clara 66.Jambo 133.Trigueira
21.Branca avermelhada 44.Castanha-escura 67.Laranja 80.Melada 103.Negra 134.Turva
22.Branca melada 45.Chocolate 68.Lilás 135.Verde
23.Branca morena 46.Clara 69.Loira 81.Mestiça 104.Negrota 136.Vermelha

82.Miscigenação 105.Pálida

83.Mista 106.Paraíba

84.Morena 107.Parda

85.Morena bem chegada 108.Parda clara

86.Morena bronzeada 109.Parda morena

87.Morena canelada 110.Parda preta

88.Morena castanha 111.Polaca

89.Morena clara 112.Pouco clara

90.Morena cor de canela 113.Pouco morena

91.Morena jambo 114.Pretinha

92.Morenada 115.Puxa para branca

Fonte: PNAD/IBGE, 1976. Reproduzido de SCHWARCZ,1996, p. 172.

Nesse caldeirão multicolorido, fica quase soas, a classificação que elas próprias se dão.
impossível construir análises mais precisas
Esta metodologia é essencial para se perceber
acerca da desigualdade racial brasileira. Por
como o fenômeno do racismo afeta a população
conta disso, o IBGE, a partir da década de
1990, instituiu somente cinco classificações brasileira – como explica o próprio IBGE:
no que diz respeito à cor/”raça” do brasileiro:
No bloco sobre as questões relativas
branca, preta, parda, amarela e indígena. Essa ao tema central da pesquisa, a primeira
classificação é adotada até hoje em diversos pergunta (...) propõe-se a dar início ao
estudos demográficos e sociológicos. tratamento da classificação racial com a
opinião do entrevistado sobre a influência
Você pode se perguntar: se, como apresen- da cor ou raça na vida das pessoas. Ao
mesmo tempo, esta pergunta visa captar o
tamos neste capítulo, o termo “raça” começou a grau de percepção dos fenômenos sociais
de discriminação, baseados na cor ou
cair em desuso após a II Guerra Mundial e se o identificação racial das pessoas.
Projeto Genoma Humano comprovou que “não
existem raças humanas”, por que o IBGE con- A seguir, estimulando a pessoa entrevis-
tada a refletir sobre sua própria identifica-
tinua utilizando “raça” em suas pesquisas? Na ção, pergunta-se se ela saberia dizer qual
verdade, os censos demográficos oficiais tomam é sua cor ou raça (...) e, caso a resposta
como base a autodeclaração dos entrevistados,
ou seja, o ponto de partida da pesquisa, como
não poderia deixar de ser, é a opinião das pes-

330 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas

fosse afirmativa, pede-se para especificá- segregação racial era parte da legislação oficial
-la, levantando os termos que o entrevis- do Estado. Nelson Mandela, Steve Biko e outros
tado escolhe de forma espontânea para se transformaram em símbolos mundiais da luta
definir a sua cor ou raça. A localização da contra o racismo.
pergunta no início do questionário obede-
ce à necessidade de quem responde não Dentre os diversos conflitos ocorridos na
estar influenciado pelo conteúdo e catego- luta da população negra sul-africana contra o
rias das demais perguntas que seguirão. apartheid, destacamos a manifestação que os
movimentos negros daquele país realizavam
(BRASIL. IBGE, 2011, p. 27) na localidade de Sharpeville, em 21 de março
de 1960. O ato público, apesar de pacífico, foi
Fica claro, portanto, que a pesquisa do massacrado pela repressão policial, resultando
IBGE não pode partir do princípio de que na morte de setenta pessoas. Por esta razão,
todas as pessoas entrevistadas conhecem os a data de 21 de março foi transformada pela
resultados do Projeto Genoma ou se encontram ONU no Dia Mundial de Protesto contra o
a par dos debates acadêmicos que polemizam Racismo.
sobre o assunto, sob o risco de invalidar o
caráter científico da sua investigação. Esses movimentos, segundo o sociólogo
brasileiro Clóvis Moura (1983), despertaram
Independentemente do que foi dito acima, intelectuais negros, profissionais liberais, es-
os movimentos negros brasileiros, a partir tudantes, funcionários públicos e negros po-
das influências e reflexões internacionais – bres no Brasil, a partir do final da década de
especialmente de movimentos intelectuais, 1970, a se conscientizarem da necessidade de
movimentos negros nos Estados Unidos, se autoafirmar como negros. Essa consciência
movimentos de libertação nacionais na África aconteceu na contramão da ideia de embran-
–, inventaram novos conceitos e classificações quecimento e da hegemonia do mito da demo-
para os negros brasileiros. cracia racial. O movimento ganha força e com
isto aparecem slogans como “negro é lindo”
Primeiramente, o conceito de “consciência (que tem origem na frase do movimento negro
negra” foi fomentado, a partir dos anos 1960, norte-americano “black is beautiful”), “não
contra a opressão colonial na África e pelo deixe sua cor passar em branco” etc.
Protesto Negro nos EUA. Surge, daí, uma ênfase
nas lutas anticolonialistas de países africanos, A partir dessas novas construções é que
decorrendo o pan-africanismo, rumo a uma o Movimento Negro, na década de 1990, no
África livre e descolonizada pelos europeus. Brasil, consegue transformar o 13 de maio em
Esta ecoou nas organizações de vanguarda Dia Nacional de Denúncia Contra o Racismo
nos EUA, onde apareceram a Nação do Islã, e institui a Semana Nacional da Consciência
liderada por Malcolm X, e o Movimento pelos Negra, com destaque para o dia 20 de
Direitos Civis, liderado por Martin Luther novembro, quando se comemora a resistência
King. Também durante os anos 1960 surgiram e a morte do “herói negro” nacional Zumbi
os Panteras Negras e ganhou força a luta dos Palmares.
feminista, sob a liderança da afro-americana
Angela Davis, filiada ao Partido Comunista De “cor preta” ou “negro” como termino-
dos Estados Unidos. Foi um período de muitos logia pejorativa, o Movimento Negro consegue
conflitos étnico-raciais neste país. ressignificar o termo “negro” como símbolo
de uma condição étnica e racial. Até o termo
Por outro lado, nesse mesmo período, “raça” é ressignificado, não se tratando mais
vieram à tona na imprensa mundial os violentos de um termo biológico, mas político, ou seja,
conflitos raciais existentes na África do Sul “raça negra” como um conjunto de indivíduos
desde o processo de colonização daquela região que possuem histórias e culturas comuns, no
com o regime do apartheid, ou seja, no qual a passado e no presente.

331Capítulo 21 - “Onde você esconde seu racismo?” Desnaturalizando as desigualdades raciais

©Angeli - FSP - 20.11.2006 Fundo Nacional de Políticas Afirmativas;
criação do Conselho Nacional de Promoção da
Reprodução: www.circulopalmarino.org.brIgualdade de Oportunidades; democratização
dos meios de comunicação social; Programa
de combate às doenças comuns em
afrodescendentes etc. Mas uma dessas propostas
vem causando uma polêmica enorme entre
os jovens brasileiros: é a política de cotas
para negros nas universidades.

Devemos registrar que, nesse momento Logomarca do Movimento Negro Unificado, fundado em 1978. O
histórico – anos 1980 e 1990 –, a ideia da Movimento Negro foi o grande responsável pelas mudanças mais
existência de “raças” diferentes entre os seres recentes e que significaram conquistas de direitos para negros e negras.
humanos ainda não havia sido desconstruída
pela ciência. Assim, afirmar a “raça negra”, A política de cotas é um dos elementos das
naquela época, representava uma atitude ações afirmativas e significa que nos concursos
política da militância do movimento como de acesso às universidades existe uma cota para
forma de enfrentamento do racismo vigente. aqueles que se declaram negros. Isto não significa
que a pontuação para passar nestes concursos
Em fins da década de 1990, com a (obtida nas provas do ENEM ou de vestibulares
contribuição também de muitos estudiosos específicos) seja rebaixada. Os critérios são os
acadêmicos, surge um novo termo para a mesmos para aqueles que não optam por disputar
definição de cerca de 45% do povo brasileiro: nas vagas das cotas. Ou seja, se não tiver uma
o afrodescendente, que abrange os pretos e pontuação exigida pelos exames, não passa. A
pardos, denominados nas pesquisas estatísticas diferença é que cria-se uma oportunidade a mais
do IBGE. Aqui, o que se procura construir é uma para aqueles que se declaram negros. Mas, como
nova identidade positivamente afirmada, com dissemos, isto está gerando muitas polêmicas
histórias e culturas tradicionalmente herdadas nas várias universidades públicas que adotaram
ou reconstruídas de uma África ressignificada. o sistema de cotas.
Mas, também representa uma resposta-proposta
às ambiguidades classificatórias que tanto E você, o que acha desta discussão? Ela
pesaram e pesam sobre os negros no Brasil e realmente traz uma importante colaboração
seus descendentes. para tentarmos superar o racismo no Brasil,
ou não? Reflita com seus colegas e com seus
Outro movimento importante é a proposta professores.
de ações afirmativas. O que significa isto?

Constatando que as lutas dos negros não
podem ficar somente no nível da denúncia, os
movimentos negros elaboram uma proposta
de ações de caráter legal que se constituem de
diversas formas, tais como: Lei de diversidades
nas empresas; Lei de proporcionalidade étnico-
-racial no ensino universitário; criação de um

332 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas

Novaes do pensamento de Florestan Fernandes (1978)
de que o brasileiro não admite ter preconceito.
A partir dessas propostas e do estudo de Escrevendo nesse mesmo sentido, Hélio San-
História da África e dos negros no Brasil, que tos (2001) ressalta que no Brasil existe uma
está sendo assunto nas diversas disciplinas dissimulação por parte dos brasileiros quando
dos ensinos Fundamental e Médio (a partir, se fala de racismo e discriminação racial.
principalmente, da aprovação, em 2003, de
uma lei federal a esse respeito, a Lei 10.639), Enfim, nosso país é certamente
há no Brasil atual uma nova consciência de que multicolorido e multirracial, porém, ao mesmo
o racismo precisa ser discutido e combatido. tempo em que a maioria dos brasileiros não
gosta de discutir o assunto, também considera
Ainda assim, muitas pessoas não gostam que há muito racismo espalhado em todos
de se assumir como negras. Numa reportagem os lugares. Mesmo assim, a discussão racial
em programa dominical de TV, em 2005, o jo- ganha uma importância grande no Brasil
gador de futebol Ronaldo (que ficou conheci- porque os últimos dados do Censo do IBGE
do como “o fenômeno”) afirmou ser branco. (2010) revelaram que 47,7% dos brasileiros
Como essa declaração lhe causou certo cons- (91 milhões de habitantes) se declararam
trangimento, ele se retratou dizendo que era brancos, 50,7% se declararam negros – pardos
negro. Nessa mesma e pretos – (97 milhões de pessoas) e 1,5% se
reportagem, a jorna- declararam amarelos e indígenas (veja o gráfico
lista Glória Maria, a seguir). Assim como já ressaltamos neste
perguntando ao povo capítulo, parece que a discussão dos problemas
na rua qual era sua raciais no Brasil está fazendo com que muitas
cor, obteve como res- pessoas assumam a sua identidade negra.
posta, da maioria das
pessoas, que ela era E você, o que acha, afinal: o racismo existe
“morena” ou “clari- ou não em nosso país? Se existe, entendemos as
nha”, enquanto ela se politicas de cotas como uma medida justa para
declarava negra para se combater o racismo? O que se pode fazer
todos. Ou seja, apesar para se construir um Brasil sem racismo?
de todas as estatísti-
cas mostrarem que há GRÁFICO 5
uma desigualdade ra-
cial no Brasil e muitos Fonte: Gráfico reproduzido de MELO, 2012.
afirmarem que existe
racismo, há, por outro
lado, a confirmação

333Capítulo 21 - “Onde você esconde seu racismo?” Desnaturalizando as desigualdades raciais

Interdisciplinaridade

Conversando com a Biologia

Determinismo biológico: a ciência a favor do preconceito

Lana Fonseca

Com o avanço da Biologia e, mais precisamente, “bem-dotados biologicamente”, os cientistas eugênicos
da Genética – área da Biologia que estuda os genes, também propunham a esterilização em massa daqueles
a hereditariedade e a diversidade dos seres – muitos humanos considerados inferiores.
estudos e pesquisas passaram a querer comprovar que
todos os fenômenos ligados aos seres vivos poderiam A Eugenia forneceu as bases “científicas” para
ser determinados biologicamente, ou seja, já estariam o nazismo e suas ideias de superioridade ariana que
determinados pelo nosso material genético. culminaram no Holocausto.

Há, ainda, muita controvérsia sobre esse tema, Além desses exemplos, a Biologia também vem
mas desde a descrição da molécula de DNA (ácido sendo usada para “comprovar” a superioridade de
desoxirribonucleico) em 1953, pelos cientistas James homens sobre as mulheres, de brancos sobre negros e
Watson e Francis Crick, inúmeros cientistas, ao redor para discriminar homossexuais.
do mundo, têm tentado determinar geneticamente as
características humanas. A ideia de que tudo pode ser determinado
biologicamente vem servindo de base para discriminação
Entretanto, antes da descoberta da estrutura do de todas as formas e o avanço das pesquisas em
DNA, a Biologia já contribuía com inúmeras facetas do Genética traz muitas implicações éticas, pois poderemos
preconceito, do racismo e da discriminação. A Teoria da chegar ao ponto de mapearmos o código genético de uma
Evolução, elaborada por Charles Darwin e publicada em pessoa antes mesmo dela nascer! Algumas polêmicas
1859, revolucionou a Biologia e foi usada como base já têm surgido, como o pedido de testes genéticos para
para inúmeras atrocidades cometidas na História da admissão em empresas e o mapeamento genético na
Humanidade. Um dos conceitos fundamentais dessa vida intrauterina, o que poderia gerar a discriminação
teoria, a Seleção Natural, afirma que os indivíduos com de bebês com necessidades especiais antes mesmo do
características favoráveis à sobrevivência no ambiente nascimento.
são selecionados e transmitem aos seus descendentes
essas características favoráveis. Esse conceito darwinista A Biologia é uma ciência que tem crescido muito nos
criou a base para a ideia de que “só os mais fortes e mais últimos anos, mas acompanhando esse desenvolvimento
aptos sobrevivem” e que essa “força” e essa “aptidão” científico, temos que realizar um grande debate sobre as
são determinadas geneticamente. questões éticas que implicam nesse avanço.

O cientista britânico Francis Galton, primo de É importante nos questionarmos se todas
Darwin, se utilizou da Teoria da Evolução e de seus as características dos seres humanos podem ser
conceitos para criar as bases do que ele denominou determinadas biologicamente. Qual o papel do
uma nova “ciência”, a Eugenia, em 1883. Essa nova ambiente na expressão dessas características? Somos
área tinha como principal objetivo o aperfeiçoamento da o resultado exclusivo da combinação de genes? Qual
espécie humana, através de casamentos entre os “bem- a influência da cultura em nossa vida biológica?
nascidos”, ou seja, aqueles que possuíam características Essas são questões que devem acompanhar o
consideradas superiores, os homens, brancos, com olhos desenvolvimento da Biologia e da Genética.
e cabelos claros. Além desses cruzamentos entre os
Lana Claudia de Souza Fonseca é professora da

UFRRJ. Graduada em Biologia pela UFRRJ e Doutora

em Educação pela Universidade Federal Fluminense.

334 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas

Interatividade

Revendo o capítulo (C) ruptura na estrutura socioeconômica do país,
sendo responsável pela otimização da inclusão
1 – Defina preconceito, discriminação e racismo. social dos libertos.
2 – De que maneira podemos identificar o que
(D) fruto de um pacto social, uma vez que agradaria
intitulamos como “formas sutis” de racismo os agentes históricos envolvidos na questão;
presentes no cotidiano? fazendeiros, governos e escravos.
3 – Comente o resultado da pesquisa realizada pelo
PNAD/IBGE de 1976 a respeito das cores do (E) forma de inclusão social, uma vez que a
povo brasileiro. Abolição possibilitaria a concretização de
direitos civis e sociais para os negros.

Dialogando com a turma Reprodução2 – (ENEM, 2011)
Que aspecto histórico da escravidão no Brasil do
1 – Pesquise na internet notícias de discriminação Séc. XIX pode ser identificado a partir da análise do
racial que ocorreram recentemente no Brasil e em vestuário do casal retratado na foto a seguir?
outros países. Comente as matérias encontradas.
Foto de Militão,
2 – Discuta com seus colegas as manifestações de São Paulo, 1879.
racismo existentes no cotidiano escolar e, a partir In: ALENCASTRO, L.
das conclusões obtidas, organize um trabalho, F. (Org).
em equipe, para ser apresentado à escola como História da vida privada
um todo e que possa contribuir para o fim da no Brasil Império: a
discriminação racial. corte e a modernidade
nacional. São Paulo:
Verificando o seu conhecimento Cia. das Letras, 1997.

1 – (ENEM, 2010) (A) O uso de trajes simples indica a rápida
incorporação dos ex-escravos ao mundo do
Ó sublime pergaminho trabalho urbano.
Libertação geral
A princesa chorou ao receber (B) A presença de acessórios como chapéu e
A rosa de ouro papal sombrinha aponta para a manutenção de
Uma chuva de flores cobriu o chão elementos culturais de origem africana.
E o negro jornalista
De joelhos beijou sua mão (C) O uso de sapatos um importante elemento de
Uma voz na varanda do paço ecoou: diferenciação social entre negros libertos ou em
“Meu Deus, meu Deus melhores condições na ordem escravocrata.
Está extinta a escravidão”.
(D) A utilização do paletó e do vestido demonstra
O samba-enredo de 1968 reflete e reforça uma a tentativa de assimilação de um estilo europeu
concepção acerca do fim da escravidão ainda viva em como forma de distinção em relação aos
nossa memória, mas que não encontra respaldo nos brasileiros.
estudos históricos mais recentes. Nessa concepção
ultrapassada, a Abolição é apresentada como: (E) A adoção de roupas próprias para o trabalho
doméstico tinha como finalidade demarcar
(A) conquista dos trabalhadores urbanos livres, que fronteiras da exclusão social naquele contexto.
demandavam a redução da jornada de trabalho.

(B) concessão do governo, que ofereceu benefícios
aos negros, sem consideração pelas lutas de
escravos e abolicionistas.

335Capítulo 21 - “OCnadpeítuvloc1ê9e-s“cCohnedgeouseoucravceisirmão?!””EDaegsnoaratu?raVliozlaênndcoiaaesddeessiigguuaallddaaddeesssroaciais

Pesquisando e refletindo se agravando nos últimos anos. Acesso: janeiro/2016. Conspiração Filmes/Lula Buarque de Holanda

LIVROS FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES:
http://www.palmares.gov.br/
SOUZA, Marina de Mello. África e Brasil africano. No ano em que completou 100 anos da Abolição
São Paulo: Ática, 2006. da escravatura no Brasil, o Governo Federal criou a
Livro didático que traz a História da África e dos Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério
negros que vieram sequestrados para o nosso da Cultura. Como se afirma na apresentação do site,
país, com uma abordagem bastante ampla sobre o a fundação foi fruto das lutas do Movimento Negro
continente, a escravidão no Brasil e as manifestações brasileiro, criado para promover a preservação, a
culturais afro-brasileiras. proteção e a disseminação da cultura negra. Acesso:
janeiro/2016.
GOMES, Nilma Lino; MUNANGA, Kabengele.
Para entender o negro no Brasil de hoje: histórias, MÚSICAS
realidades, problemas e caminhos. São Paulo:
Global/Ação Educativa, 2004. A CARNE. Autores: Seu Jorge, Marcelo Yuka e
Este livro procura entender a importância de se Wilson Capellette. Intérprete: Elza Soares.
estudar a história do negro e seus descendentes no Uma denúncia da situação social do negro e das
Brasil de hoje. consequências do racismo no Brasil, refletindo
sobre as alternativas que se apresentam para se lutar
FILMES contra essa condição.

VISTA A MINHA PELE (Brasil, 2003). Direção: TODO CAMBURÃO TEM UM POUCO DE
Joel Zito Araújo. Duração: 15 min. NAVIO NEGREIRO. Autor: Marcelo Yuka.
Divertida paródia da realidade brasileira: numa Intérpretes: O RAPPA.
história invertida, os negros são a classe dominante O título da música já diz tudo. Uma pergunta: quem
e os brancos foram escravizados. está segurando hoje a chibata?

ALGUÉM FALOU DE RACISMO? (Brasil, 2003). FILME DESTAQUE
Direção: Claudius Ceccon e Daniel Caetano.
Duração: 23 min. PIERRE VERGER: MENSAGEIRO
A partir de uma discussão em sala de aula, um ENTRE DOIS MUNDOS
grupo de jovens começa a descobrir as origens de
um racismo do qual eles são vítimas. FICHA TÉCNICA:
Direção: Lula Buarque de
INTERNET Hollanda
Duração: 82 min.
Pesquisa MAPADAVIOLÊNCIA2012 –ACOR DOS (Brasil, 2000)
HOMICÍDIOS NO BRASIL: http://bit.ly/1eujT7Q
Resultado da pesquisa sobre violência no Brasil, SINOPSE:
efetuada anualmente sob a coordenação do professor Documentário sobre a
Julio Jacobo Waiselfisz. Nessa edição de 2012, vida do fotógrafo e et-
publicada também em PDF (Rio de Janeiro: CEBELA, nógrafo francês Pierre
FLACSO; Brasília: SEPPIR/PR, 2012), houve uma Verger. Após viajar ao
atenção especial ao quesito cor da pele em relação redor do mundo como
aos homicídios, fazendo com que essas informações fotógrafo, Verger ra-
assumam um caráter de denúncia do genocídio em dicou-se em Salvador,
curso contra a população negra, atingindo geralmente BA, em 1946, onde
jovens do sexo masculino. Os dados apresentados passou a estudar as relações e as influências cultu-
pelo relatório anual mostram que esse quadro vem rais mútuas entre o Brasil e o Golfo de Benin, na
África.

336 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas

Aprendendo com jogos

Capoeira Legends: Path to Freedom

(Donsoft Entertainment/ Escola de Capoeira Água de Beber, 2009)

PORQUE A IGUALDADE NÃO PODE SER UMA PALAVRA VAZIA

Divulgação: Donsoft Entertainment/ 4. Após o jogo, assista o documentário Preto contra
Branco em https://youtu.be/dfRlplv7oxY (Doc
Você controla Gunga Za, protetor do Mucambo TV, 2011). A partir desse vídeo, questione como
das Estrelas durante o ano de 1828. Gunga precisa a relação de um indivíduo com a sua cor pode ser
proteger seu povo contra fazendeiros e governantes diferente de outros. Relacione em no máximo 2
escravagistas. Eles dizem que os negros são objetos minutos o que sentiu vendo o vídeo.
de sua propriedade e Gunga protagoniza a luta do
povo negro pela sua própria liberdade. 5. Faça uma exposição em sua escola exclusivamente
por imagens sobre o racismo atual na sociedade
Como jogar: brasileira – sem textos, só imagens.

1. Baixe a versão gratuita do jogo em http://goo. 6. Escreva uma redação sobre o tema Racismo na
gl/dHX7rB Jogue e reflita sobre a resistência dos sociedade brasileira: origens, manifestações e como
negros em torno das organizações quilombolas. superar.

2. O game Capoeira Legends utiliza a capoeira para 7. Organize-se com todos os seus colegas de turma
combater o racismo. Com base na experiência do para criarem uma adaptação de um jogo de tabuleiro
game, utilize a história de Gunga e o conhecimento ou de cartas sobre o racismo no Brasil. Para isso,
aprendido na disciplina para comparar as relações utilize como base de sua criação alguns jogos ou
raciais no Brasil do século XIX e do século adaptações apresentadas em capítulos anteriores,
XXI. Comente com os seus colegas de sala a sua como os jogos Conhecendo a África e a história
experiência com o jogo. de nossos ancestrais (capítulo 4), Detetive por
um dia (capítulo 5) ou Lutas simbólicas (capítulo
3. Entreviste adeptos do esporte Capoeira em seu 11). Jogue novamente esses jogos para retomar
formato atual e colete relatos, histórias e letras de as experiências. Pense em suas experiências com
músicas para socializar com os seus colegas em sala os outros jogos sugeridos ao longo deste livro,
de aula. como Búzios, Ecos da liberdade e Contos de Ifá.
Apresente o jogo às outras classes do mesmo ano e
realize algumas rodadas de jogo.

8. Se não for possível o acesso ao jogo sugerido
aqui, organize-se com os colegas de sala de modo a
analisarem quais dos games experimentados podem
servir a uma reflexão sobre o tema deste capítulo.
Pensem nos jogos sugeridos nesse livro ou em
outros que sejam do conhecimento de vocês. Pode
ser interessante organizar um dia de jogos na sala de
aula para que todos conheçam e experimentem os
jogos comentados, desde que mantenham o foco no
tema do racismo.

337Capítulo 21 - “OCnadpeítuvloc1ê9e-s“cCohnedgeouseoucravceisirmão?!””EDaegsnoaratu?raVliozlaênndcoiaaesddeessiigguuaallddaaddeesssroaciais

Capítulo 22

“Lugar de mulher é onde ela quiser?”
Relações de gênero e dominação
masculina no mundo de hoje

É MENINA
É menina, que coisa mais fofa, parece com o pai, parece com a mãe, parece um joelho,
upa, upa, não chora, isso é choro de fome, isso é choro de sono, isso é choro de chata, choro de
menina, igualzinha à mãe, achou, sumiu, achou, não faz pirraça, coitada, tem que deixar chorar,
vocês fazem tudo o que ela quer, isso vai crescer mimada, eu queria essa vida pra mim, dormir
e mamar, aproveita enquanto ela ainda não engatinha, isso daí quando começa a andar é um
inferno, daqui a pouco começa a falar, daí não para mais, ela precisa é de um irmão, foi só falar,
olha só quem vai ganhar um irmãozinho, tomara que seja menino pra formar um casal, ela tá até
mais quieta depois que ele nasceu, parece que ela cuida dele, esses dois vão ser inseparáveis,
ela deve morrer de ciúmes, ele já nasceu falante, menino é outra coisa, desde que ele nasceu
parece que ela cresceu, já tá uma menina, quando é que vai pra creche, ela não larga dessa
boneca por nada, já podia ser mãe, já sabe escrever o nomezinho, quantos dedos têm aqui, qual
é a sua princesa da Disney preferida, quem você prefere, o papai ou a mamãe, quem é o seu
namoradinho, quem é o seu príncipe da Disney preferido, já se maquia dessa idade, é apaixonada
pelo pai, cadê o Ken, daqui a pouco vira mocinha, eu te peguei no colo, só falta ficar mais alta
que eu, finalmente largou a boneca, já tava na hora, agora deve tá pensando besteira, soube
que virou mocinha, ganhou corpo, tenho uma dieta boa pra você, a dieta do ovo, a dieta do tipo
sanguíneo, a dieta da água gelada, essa barriga só resolve com cinta, que corpão, essa menina
é um perigo, vai ter que voltar antes de meia-noite, o seu irmão é diferente, menino é outra coisa,
vai pela sombra, não sorri pro porteiro, não sorri pro pedreiro, quem é esse menino, se o seu pai
descobrir, ele te mata, esse menino é filho de quem, cuidado que homem não presta, não pode dar
confiança, não vai pra casa dele, homem gosta é de mulher difícil, tem que se dar valor, homem
é tudo igual, segura esse homem, não fuxica, não mexe nas coisas dele, tem coisa que é melhor a
gente não saber, não pergunta demais que ele te abandona, o que os olhos não veem o coração
não sente, quando é que vão casar, ele tá te enrolando, morar junto é casar, quando é que vão ter
filho, ele tá te enrolando, barriga pontuda deve ser menina, é menina.

Gregório Duvivier – Folha de São Paulo, 16/09/2013  

Por que será que “ser menina” em uma Tentando responder a essas e outras ques-
tões, este capítulo fará uma reflexão sociológi-
sociedade como a nossa apresenta características ca acerca das relações entre homens e mulheres
tão distintas e desiguais quando comparadas no mundo atual. Relações, essas, marcadas por
com as ideias e as atitudes que se reproduzem tensões, preconceitos, discriminações e poder.
em relação ao “ser menino”?

338 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas

Augusto Tadeu Alves A luta organizada das
mulheres determinou
uma revolução
sociocultural no
século XX. Faixa
movimento”Marcha
Mundial das
Mulheres”, Rio de
Janeiro, 2010.

O que nos torna homens ou mulheres? O que as identidades de gênero não estão pré-
gênero de uma pessoa depende exclusivamente -estabelecidas como se fossem roupas que
se ela nasce com genitais e características vestimos, nem são fixas e imutáveis.
físicas de homem ou de mulher? Perguntas
simples parecem ter respostas também simples. Uma das estudiosas sobre o tema de
No entanto, veremos que não é bem assim. gênero, a socióloga norte-americana Deborah
Blum (1997), nos mostra como os sentimentos,
Sexo, gênero e poder as atitudes e os comportamentos dos seres
humanos podem condicionar as orientações
Antes de começarmos estritamente no as- pelo masculino ou pelo feminino. É nesse
sunto, será necessário definir alguns conceitos sentido que podemos falar sobre gênero.
de fundamental importância para compreender-
mos de forma científica e aprofundada a temá- De acordo com outra socióloga norte-
tica desse capítulo. E aqui é necessário diferen- -americana, Joan Scott (1989) – considerada
ciar sexo e gênero. uma das maiores especialistas sobre o assunto
– gênero é um termo importado da Gramática
O sexo biológico pode ser definido como pelas feministas norte-americanas, nos anos
o conjunto das características fisiológicas e 1960, exatamente com o objetivo de se contrapor
biológicas (órgão genital, hormônios, genes, às definições presas à Biologia. Dessa forma, a
sistema nervoso e morfologia). O gênero tem ideia de gênero passou a significar as relações
relação com a cultura, com o aprendizado de caráter cultural que estão sempre presentes
vivido desde o nascimento, pois toda cultura – mesmo sem percebermos – nas definições e
elabora, de algum modo, os papéis relacionados nas distinções sobre o que é “masculino” ou
à identidade de gênero, inclusive, os papéis do “feminino”.
“ser homem” e do “ser mulher”. A identidade
de gênero é uma influência de convenções, Quando você se comporta, com gestos ou
estereótipos, e expectativas construídas na atitudes, de acordo com as expectativas de outros
socialização das pessoas (com possibilidade de indivíduos, para agir como homem ou mulher,
adaptação ou não aos padrões estabelecidos). você está adotando um papel de gênero. O gênero
Porém, veja você que essa influência em nossa é a construção social que demarca identidades,
socialização não é absoluta e que os sujeitos se como de homens, mulheres e de outros gêneros,
apropriam e atualizam os elementos culturais e como elaborações do contexto histórico e
representações que servem à construção de sua social, e não decorrentes simplesmente da
própria identidade. É importante compreender diferença anatômica dos corpos. A constituição
biológica não deve tornar, portanto, indiscutível

339Capítulo 22 - “Lugar de mulher é onde ela quiser?”Relações de gênero e dominação masculina no mundo de hoje

a divisão dos humanos em dois blocos distintos Wikimedia Commons Gêneros e transgêneros: o que
(homens e mulheres). A essa visão de dois mudou e o que não mudou no
gêneros distintos denominamos visão binária século XX
(dividida em dois) e ela própria é objeto da
investigação científica de áreas como Sociologia Historicamente, vimos que o capitalismo
e Antropologia. Porque é uma contradição nós apresenta um grande conflito: a luta entre as
afirmarmos que gênero é uma elaboração social classes sociais. Entretanto, a História apresenta
e apontarmos exclusivamente duas únicas outros conflitos de interesses que vão além da
identidades de gênero, masculino e feminino, divisão da sociedade em classes e que percorrem
como se apenas essas duas identidades fossem toda a estrutura social, se relacionando ou não
possíveis. Na verdade, o gênero não é algo que à divisão de classes da sociedade capitalista:
aprendemos somente, mas que elaboramos em conflitos entre homens e mulheres, entre
nossas trajetórias de vida. heterossexuais e homossexuais e entre brancos
e não brancos e/ou grupos étnicos diferentes.
Essa distinção hierárquica entre o masculino As mulheres, a partir do século XIX – de
e o feminino foi marcada historicamente desde, acordo com um determinado ponto de vista da
pelo menos, o estabelecimento do poder pátrio, história –, passaram a demonstrar sua revolta à
instituído pelo Código Romano no século VIII a. “dominação masculina” de forma coletiva.
C., que influenciou a produção jurídica das Leis
ocidentais. Com o poder pátrio e a instauração Passeata pelo voto feminino, Nova York (EUA), 1912.
da sociedade patriarcal, o homem tornou-se
proprietário da mulher e esta foi colocada sob Foram os movimentos sociais voltados
tutela e desprovida de capacidade jurídica. Sua para a discussão das questões de gênero que
única função era reproduzir, gerando herdeiros, iniciaram uma grande mudança nas ideias que
e cuidar do lar. preconizavam haver uma diferença natural entre
o feminino e o masculino e, a partir daí, uma
De acordo com a filósofa Judith Butler predisposição natural para os comportamentos
(2015), foi produzida e estruturada de forma e para as relações sociais que constituem papéis
arbitrária uma oposição binária entre o de homens e papéis de mulheres, rigidamente
masculino e o feminino, um pensamento naturalizados. Assim como hoje, são os
dicotômico e polarizado sobre os gêneros: movimentos sociais que nos fazem ver que
homem e mulher como polos opostos dentro não podemos falar somente de “masculino” e
de uma lógica invariável de dominação- “feminino” quando tratamos de gênero, porque
-subordinação. As relações de gênero são essa visão binária faz parecer que gênero apenas
estabelecidas como relações de poder por se define como “masculino” e “feminino”, como
causa da assimetria construída ao longo da se existissem “por natureza”, como se existisse
História. Essas oposições foram construídas
por meio das instituições de controle, tais como
religião, Estado, Justiça, escola, que formaram
e idealizaram hierarquias fixas e imutáveis
entre os gêneros. Portanto, falar de gêneros (no
plural!) também é falar de dominação. E aqui
está uma lição importante para todos nós.

E aí, o que você está achando até agora
desta nossa conversa sobre sexo e gênero?
Muito complicada? Muitas novidades? Bem,
você verá que a Sociologia ainda tem muito
mais a dizer a respeito desse tema.

340 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas

uma essência do que é o masculino e do que em última instância, do sentimento. Essa
relação social (...) oferece (...) uma ocasião
é o feminino, e como se as representações do única de apreender a lógica da domina-
ção, exercida em nome de um princípio
masculino e do feminino fossem identidades simbólico conhecido e reconhecido tanto
fixas e não construídas socialmente. A visão pelo dominante quanto pelo dominado (...)
do domínio masculino quer nos fazer crer
(BOURDIEU, 2014, p. 12)
que segundo uma predisposição biológica, da
De acordo com Bourdieu, a violência
mulher e do homem, de forma universal, elas simbólica faz parte da experiência feminina
de forma cotidiana. Como não se trata de uma
são dóceis e eles, agressivos. Elas centram violência física e visível, ela torna-se quase im-
suas vidas nos cuidados com os filhos e eles, perceptível, pois atua no âmbito psicológico,
como provedores da sobrevivência da família. causando danos emocionais. E para além do
âmbito psicológico, esse tipo de violência se
Essas características foram bastante reforçadas impõe sobre as consciências individuais, ne-
gando ao sujeito a sua autonomia e a sua racio-
por uma teoria sociológica do século XX nalidade. Por exemplo, a relação que a mulher
denominada Sociobiologia. Esta afirma que possui com seu corpo está sempre relacionada
a estrutura dos genes e do cérebro humano ao olhar e ao discurso dos outros. É como se
ela precisasse de um retorno externo, que ge-
explica também os comportamentos e práticas ralmente lhe causa um mal-estar e um estado
de insegurança corporal permanente, devido à
sociais, e não somente as características físicas. distância entre o seu “corpo real” e o “corpo
Mas, a influência dos movimentos feministas ideal”, ou socialmente exigido. O ideal de be-
mudou muita coisa em relação a essa forma de leza pode ter efeitos concretos na saúde e no
pensar, com o auxílio teórico de novas reflexões psicológico das mulheres, ocasionando baixa
elaboradas pela Sociologia e pela Filosofia. autoestima, dietas, cirurgias plásticas, bulimia,
anorexia, causadas pela busca excessiva pela
Vamos pensar um pouco a respeito da magreza e pela aparência jovem. As expectati-
vas sociais são dirigidas muito mais às mulhe-
reação organizada das mulheres à “dominação res do que aos homens. Por isso, elas sofrem
masculina”. Esta última foi oficializada com de forma mais acentuada e mais diretamente
a sociedade patriarcal. Isso significa que as com a violência simbólica, com formas sutis ou
relações sociais de gênero existentes nas até mais explícitas de humilhação, chantagem
emocional, culpabilização, invisibilização. A
sociedades são marcadas por relações de poder, violência simbólica, portanto, também se im-
como afirmamos acima, onde, em quase todos os põe ao corpo, disciplinando-o e controlando-o,
exemplos históricos conhecidos, o “masculino” como se alguns sujeitos não tivessem autorida-
de sobre o seu próprio corpo biológico.
se sobrepõe à ideia e às representações sobre o
Voltemos à socióloga Joan Scott que, em
que é “feminino” e sobre outras identidades de seus estudos, nos mostra exatamente o apre-
sentado aqui. A definição de gênero, além de
gênero. ter origem e trajetória históricas, é importante
para se entender como as relações sociais
Pierre Bourdieu foi um dos sociólogos construídas pelos seres humanos se vinculam às
relações de poder presentes em cada sociedade.
que se debruçou sobre esse tema, inclusive
publicando em 1998 um estudo específico
intitulado exatamente A dominação masculina

(2014). Nesse livro, Bourdieu apresenta a

condição feminina, “no modo como é imposta

e vivenciada”, como o maior exemplo da
chamada violência simbólica, ou seja, aquela
que se caracteriza por se apresentar como uma

(...) violência suave, insensível, invisí-
vel a suas próprias vítimas, que se exer-
ce essencialmente pelas vias puramente
simbólicas da comunicação e do conhe-
cimento, ou, mais precisamente, do des-
conhecimento, do reconhecimento ou,

341Capítulo 22 - “Lugar de mulher é onde ela quiser?”Relações de gênero e dominação masculina no mundo de hoje

Assim, Scott chama a nossa atenção para Marlene Bergamo/Folhapress

diversos aspectos históricos e culturais

relacionados às diferenças de gêneros. Um

exemplo bem claro disso diz respeito às

contradições existentes na representação

do “feminino” na tradição cristã ocidental,

em personagens bíblicos como Eva e

Maria, por exemplo, que se relacionam

com definições como “mitos da luz e da

escuridão, da purificação e da poluição, da

inocência e da corrupção” (SCOTT, 1989,

p. 21).

Essas representações bíblicas foram

amplamente utilizadas na literatura.

Concepções como as citadas não são

desvinculadas de qualquer interesse, pois

estão diretamente ligadas ao papel que

se deseja (dependendo do caso) que a

mulher assuma na sociedade. A literatura

falhou em produzir e criar uma mulher

misteriosa. Esses personagens funcionam

como mitos, projeções e temores sobre um

“feminino” único e cristalizado, que não Comemoração do Dia Internacional de Luta das Mulheres, nas ruas
se conhecia. de São Paulo, em 08 de março de 2005.

Cada um dos mitos pretende resumir

a mulher inteiramente: Maria, neste caso, O papel das mulheres nas sociedades
enquanto mãe de Jesus Cristo, somente poderia modernas é discutido desde a Revolução
representar “luz, purificação e inocência”. Eva, Francesa (cf. SCHMIDT, 2012), apesar de uma
ao contrário, teria provocado a “perdição” do visão histórica eurocêntrica, que entende a
primeiro homem, Adão. Como se à mulher Europa como centro de referência e “modelo”
fossem atribuídos somente dois papéis sociais: de sociedade. Entre as dezenas de participações
ou ela é boa, santa, dócil, passiva, resignada (a políticas femininas durante a Revolução, se
mãe é cercada de manifestações de respeito, destacou Marie Gouze, que adotou o nome
é apresentada como doce e virtuosa) ou ela é Olympe de Gouges (1748-1793). Como
má, pecadora, mentirosa, pervertida, feiticeira e resposta ao conteúdo universalista presente
sedutora que fascina o homem, que o submete na Declaração dos Direitos do Homem e
a seus encantos. do Cidadão, que excluía as mulheres dos
direitos, Olympe de Gouges escreveu e
Praticamente todas as representações apresentou à Assembleia Nacional, em 1791,
da mulher entre os filósofos, escritores, a Declaração dos Direitos da Mulher e da
cientistas, a mitificam dessa forma. Não se Cidadã. De origem proletária, mas opositora
debateu, abordou ou explorou a mulher real de Robespierre, acabou guilhotinada em 1793,
– até porque, esses escritores, homens, nunca acusada de “contrarrevolucionária” e de mulher
souberam quem é a mulher, não se conheciam “desnaturada” (cf. a sua história na graphic
as mulheres “de verdade”. Escreveram sobre novel de autoria de BOCQUET e MULLER,
imagens fictícias, pois não reconheciam na 2014). Veja, a título de exemplo, dois artigos da
mulher um ser humano, um sujeito, uma Declaração elaborada por Gouges:
semelhante, uma igual.

342 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas

Artigo 1º: A mulher nasce livre e tem os do Projeto de Lei, de autoria do Senador
mesmos direitos do homem. As distinções Juvenal Lamartine, que dava o direito de voto
sociais só podem ser baseadas no às mulheres. Este direito foi conquistado em
interesse comum. 1932, quando foi promulgado o Novo Código
Artigo 6º: A lei deve ser a expressão Eleitoral brasileiro” (PINTO, 2010, p. 16).
da vontade geral. Todas as cidadãs e
cidadãos devem concorrer pessoalmente UN Photo/Mili
ou com seus representantes para sua
formação; ela deve ser igual para todos.
Todas as cidadãs e cidadãos, sendo iguais
aos olhos da lei, devem ser igualmente
admitidos a todas as dignidades, postos
e empregos públicos, segundo as suas
capacidades e sem outra distinção a não
ser suas virtudes e seus talentos.

Apesar de Olympe de Gouges e de outras Bertha Lutz, uma das pioneiras do movimento feminista no Brasil.
mulheres revolucionárias, parte da história
do feminismo considera o surgimento de Na metade do século XX, podemos afirmar
uma primeira onda do movimento somente que é a partir da publicação do livro O Segundo
nas últimas décadas do século XIX. Nesse Sexo, escrito pela filósofa francesa Simone
período, a primeira bandeira de luta das de Beauvoir e lançado em 1949, que o debate
mulheres se deu em torno da luta pelo direito sobre a condição das mulheres e a relação
ao voto. Esse movimento pioneiro teve início entre os sexos ganha uma outra conotação, que
na Inglaterra. Lá, as chamadas “suffragettes” vai influenciar a análise sociológica de forma
promoveram grandes manifestações, sendo marcante.
reprimidas e presas por diversas vezes,
reagindo com a organização de greves de fome. Simone de Beauvoir procurou mostrar que
O movimento acabou sendo vitorioso em 1918, o termo feminilidade foi inventado pelos homens
com a conquista do direito ao voto no Reino e tinha como intenção limitar o papel social das
Unido. Para alcançar esse fim, no entanto, as mulheres. E como você sabe, uma palavra não
suffragettes tiveram como mártir a militante é somente uma representação de fonemas, mas
Emily Davison, que se atirou à frente do cavalo carrega consigo valores, modos de pensar e
do rei inglês durante uma famosa corrida hípica visões de mundo. A filósofa questionava a ideia
(PINTO, 2010, p. 15). de que as mulheres são inferiores e também
questionava a sua posição de subordinação.
Ainda segundo a historiadora e cientista Para Beauvoir, as mulheres tinham que superar
política Céli Regina Jardim Pinto (2010), no o “eterno feminino”, que as amarrava e
Brasil “a primeira onda do feminismo também formava seu próprio ser, além de escolher seu
se manifestou mais publicamente por meio próprio destino, libertando-se das ideias pré-
da luta pelo voto” (p. 15-16). As suffragettes -concebidas e dos mitos pré-estabelecidos. Você
brasileiras foram lideradas pela cientista e deve observar que a palavra “eterno” supõe
bióloga Bertha Lutz, uma das fundadoras da algo universal, natural e imutável. Essa crença
Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. na ideia de “eterno feminino” condicionou a
Ela estudou na França, retornando ao país mulher a aceitar resignada e sem discussão as
no final da década de 1910. O movimento verdades e leis que os homens lhe propunham,
encabeçado por ela organizou uma campanha a ser sempre o Outro, o Objeto, perante o
pública e um abaixo-assinado, apresentado homem, Sujeito e Absoluto. Isto fez com que
ao Senado em 1927, “pedindo a aprovação

343Capítulo 22 - “Lugar de mulher é onde ela quiser?”Relações de gênero e dominação masculina no mundo de hoje

os dois sexos não partilhassem o mundo em Folhapress Os movimentos feministas, inspirados em
igualdade de condições.
várias intelectuais como Simone de Beauvoir,
Dessa forma, Beauvoir afirmou: “não se
nasce mulher, torna-se mulher” (V. II, p. 361, Betty Friedan, Kate Millet, Shulamith Fires-
2009). Isto é, ela era contra qualquer tipo de
determinismo que prendesse a mulher em apenas tone, Bell Hooks e Juliet Mitchell, a partir da
um aspecto. Definir a mulher unicamente em
virtude da sua estrutura fisiológica e pela sua década de 1960 organizaram aquela que é con-
condição natural é uma forma muito simplista
e equivocada, pois a mulher não é somente um siderada a sua segunda onda, na qual se apro-
corpo com útero, vagina, óvulos, hormônios.
Para a filósofa, a mulher deve escolher afirmar e fundam as lutas por direitos iguais perante os
reivindicar sua liberdade e não alienar-se como
objeto, não ficar limitada a um papel biológico, homens. Fazendo uma crítica à sociedade pa-
mas sim, possuir projetos pessoais, trabalhar,
ter direito à remuneração equivalente a do triarcal, ou seja, a um modelo de família que dá
homem e poder exercer as mesmas funções que privilégios aos homens, as feministas reivindi-
eles. “Cumpre-lhes recusar os limites de sua
situação e procurar abrir para si os caminhos do cam igualdade de condições de trabalho e salá-
futuro; [...] trabalhar pela sua libertação. Essa
libertação só pode ser coletiva e exige, antes rio, direito ao aborto e ao controle do corpo, au-
de tudo, que se acabe a evolução econômica da
condição feminina” (V. II, p. 814). O que Simone tonomia intelectual e punição aos homens pela
de Beauvoir defendia é que a mulher é um ser
em permanente construção que deve caminhar violência doméstica e sexual, entre outras ques-
em direção à sua individualidade e autonomia.
Tornar-se mulher é não depender do homem tões. Pode-se dizer que outros fatores vincula-
intelectual, financeira, nem emocionalmente.
dos aos avanços da Ciência, como é o caso da
A escritora Simone de Beauvoir em conferência sobre “A condição da
mulher no mundo moderno”, em São Paulo, em 1960. invenção da pílula anticoncepcional, na década

O que você acha sobre isso? Por que será de 1950, desempenharam um papel importante
que a frase escrita pela filósofa na década de
1940 ainda provoca tanta polêmica neste século no processo de emancipação feminina.
XXI? (Estamos nos referindo, à questão que
constou da Prova do ENEM de 2015). Segundo Céli Pinto, foi no contexto de

344 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas revolução comportamental que marcou essa

década que Betty Friedan lançou, em 1963, a

obra que passou a ser considerada como “uma

espécie de ‘bíblia’ do novo feminismo: A mística

feminina”:

Durante a década, na Europa e nos
Estados Unidos, o movimento feminista
surge com toda a força, e as mulheres
pela primeira vez falam diretamente sobre
a questão das relações de poder entre
homens e mulheres. O feminismo aparece
como um movimento libertário, que
não quer só espaço para a mulher – no
trabalho, na vida pública, na educação –,
mas que luta, sim, por uma nova forma de
relacionamento entre homens e mulheres,
em que estas últimas tenham liberdade e
autonomia para decidir sobre suas vidas
e seus corpos. Aponta, e isto é o que
há de mais original no movimento, que
existe uma outra forma de dominação –
além da clássica dominação de classe –,
a dominação do homem sobre a mulher
– e que uma não pode ser representada
pela outra, já que cada uma tem suas
características próprias.

(PINTO, 2010, p. 16)

A questão do aborto. A luta pela garantia dos direitos sexuais e reprodutivos e pela
descriminalização do aborto teve como consequência, a partir da década de 1970, a
legalização da prática sem restrições em diversos países, principalmente na América do Norte
e Europa. Em 2014 foi legalizada no Uruguai.

A descriminalização do aborto está relacionada ao direito de autonomia reprodutiva,
necessário para que a maternidade não seja compulsória. O direito reprodutivo é o direito das
mulheres decidirem, de forma livre e responsável, se querem ou não ter filhos, quantos filhos
desejam ter e em que momento de suas vidas querem tê-los. Direito de exercer a sexualidade
e a reprodução, livre de discriminação, imposição e violência. Direito da mulher, que vive
com AIDS, de ter filhos. O direito sexual está relacionado a viver e expressar livremente a
sexualidade, sem violência, discriminações e imposições, sem medo, vergonha, culpa. Direito
de escolher se quer ou não ter relação sexual, independentemente da reprodução. Direito
a serviços de saúde que garantam privacidade, sigilo e atendimento de qualidade e sem
discriminação.

A pauta ainda é uma reivindicação importante no Brasil, pois em nosso país uma das
maiores causas de morte materna é o abortamento inseguro. Muitas mulheres, principalmente
pobres, morrem sem atendimento adequado, pois não podem pagar por um aborto sem
riscos. A lei brasileira não considera nesse caso a laicidade do Estado, que deve garantir
a liberdade de ser, de crer e de não crer. Ser contra o aborto é uma opinião pessoal – ou
determinada por visões religiosas –, mas a criminalização das mulheres que pensam diferente é
uma questão política, coletiva e de saúde pública. Fato é que a criminalização dessas mulheres
e a ilegalidade do abortamento não impedem que, por diferentes motivos, essas mulheres
interrompam sua gravidez. Afinal, você não entende que um país que se pretende livre, laico,
democrático e plural não pode reproduzir apenas a visão pessoal e moral de alguns, nem de
instituições religiosas? Pense a respeito. Você acha que cabe usar um julgamento pessoal para
medir a experiência de todas as mulheres, o que cada uma deveria ter feito para se prevenir
de uma gravidez indesejada? É papel do Estado garantir a saúde e a vida dessas mulheres,
o direito a métodos contraceptivos nas unidades públicas de saúde e a autonomia das que
optarem por interromper sua gestação de forma segura, sem risco de morte.



A revolução cultural vivida pelas mulheres Um dos marcos teóricos da luta feminista
na década de 1960 teve repercussões também na brasileira nesse período foi o trabalho da
sociedade brasileira, com a intensa participação socióloga Heleieth Saffioti (1934-2010), A
feminina na luta contra a ditadura civil-militar mulher na sociedade de classes, lançado em
instaurada em 1964, inclusive com a opção de 1969. Esta obra foi considerada “como o
militância através da luta armada, como foi o primeiro grande avanço teórico do feminismo
caso de nomes como Maria do Carmo Brito – dos anos 1960-70, em termos mundiais, e
primeira mulher a comandar uma organização é descrito como uma teorização sofisticada
de guerrilha na América Latina –, Sônia Lafoz, sobre as formas em que o sexo está presente na
Vera Silvia Magalhães, Lúcia Murat, Renata estratificação social” (cf. o Prefácio de Marília
Guerra de Andrade, Dulce Maia, dentre outras Pinto de Carvalho para CONNELL e PEARSE,
(CARVALHO, 1998). Mesmo não tendo 2015, p. 11).
participado da luta armada, há de se registrar
a luta travada pela estilista de moda Zuzu Durante o processo de redemocratização
Angel, morta enquanto buscava notícias de seu da sociedade brasileira, uma das lideranças
filho, Stuart Jones, e sua nora, Sonia Maria, feministas de maior relevância foi a historiadora,
desaparecidos nos porões da ditadura. filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez (1935-
1994). Sua intervenção acadêmica e sua

345Capítulo 22 - “Lugar de mulher é onde ela quiser?”Relações de gênero e dominação masculina no mundo de hoje

militância feminista se pautaram por um As críticas trazidas por algumas fe-
caráter de denúncia sistemática não somente
do machismo, mas também do racismo, ministas dessa terceira onda [...] vêm no
em especial aquele que atinge e exclui de
forma bastante violenta as mulheres negras sentido de mostrar que o discurso univer-
e indígenas na sociedade brasileira. Lélia
Gonzalez se contrapôs ao feminismo branco sal é excludente; excludente porque as
e elitista que se impunha como hegemônico
em nosso país, destacando a necessidade de opressões atingem as mulheres de modos
se repensar as reivindicações das mulheres
e a luta contra as opressões existentes, tendo diferentes, seria necessário discutir gêne-
como ponto de partida as diferentes trajetórias
vividas, demarcadas pela sua classe social e ro com recorte de classe e raça, levar em
pela cor da sua pele (CARDOSO, 2014).
conta as especificidades das mulheres.

Por exemplo, trabalhar fora sem a au-

torização do marido jamais foi uma rei-

vindicação das mulheres negras/pobres,

assim como a universalização da catego-

ria “mulheres” tendo em vista a represen-

tação política, foi feita tendo como base

Acervo JG / Januário Garcia a mulher branca, de classe média. Além

disso, propõe, como era feito até então,

a desconstrução das teorias feministas e

representações que pensam a categoria

de gênero de modo binário, masculino/

feminino. (RIBEIRO, 2014)

Lélia Gonzalez (1935-1994). Trata-se, portanto, da desconstrução de
paradigmas existentes no próprio movimento
A militância de Lélia Gonzalez em tor- feminista, apresentando questões que se pro-
no do que ficou conhecido como o feminismo punham a repensar as definições de gênero, de
negro marcou a década de 1990, no Brasil. sexualidade e de identidade até então inexis-
O feminismo negro já não era novidade nos tentes ou não problematizadas. Ainda segundo
Estados Unidos desde a década de 1960, em Djamila Ribeiro, assim como O Segundo Sexo,
especial com a visibilidade alcançada pela ati- de Simone de Beauvoir, se tornou o marco da
vista Angela Davis, que se notabilizou por se segunda onda feminista, a obra Problemas de
afirmar não somente como mulher negra, mas Gênero, de Judith Butler, se torna a principal
também como comunista, candidatando-se por referência teórica do feminismo em sua terceira
duas vezes à vice-presidência da maior po- onda (cf. BUTLER, 2015).
tência capitalista do planeta. Mas as ideias le-
vantadas por essa terceira onda tinham como É importante ressaltar que a divisão da
principal referência as formulações da filóso- história do feminismo em três ondas coloca
fa Judith Butler. Segundo a filósofa feminista as mulheres brancas de classe média como os
Djamila Ribeiro: agentes centrais da história da luta pelos direitos
das mulheres, numa análise em que mulheres
346 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas não brancas tornam-se agentes secundários,
somente aceitas no decorrer da História. De
um momento para o outro, durante a terceira
onda, mulheres não brancas aparecem para
transformar o feminismo em um movimento
multicultural. Como escrito anteriormente,
essa perspectiva histórica estabelece o início
do movimento feminista com o movimento

das sufragistas e está relacionada a um ponto nelas e no surgimento do feminismo nas
de vista eurocêntrico que ignora iniciativas, sociedades branco-ocidentais.
organizações e associações de outras mulheres,
de outros continentes e etnias. Sendo assim, o feminismo negro pretende
mostrar que a mulher negra sofre formas de
A perspectiva feminista clássica, que tem opressão que não se reduzem às sofridas por
o seu paradigma na mulher branca ocidental, mulheres brancas ou pelos homens. A África
encobrindo as contradições intragênero e entre possui as civilizações mais antigas no mundo,
os gêneros em uma sociedade racializada, e por mais que a palavra feminismo não seja
tendeu a apresentar as experiências desse grupo de origem africana, o seu conceito de oposição
específico como sendo a experiência de todas as ao patriarcado e a razão de ser do feminismo
mulheres. O movimento feminista “oficial” não sempre estiveram presentes nesse continente.
levou em consideração as sobreposições das
desigualdades, pois gênero, raça e classe social No Brasil pós-Abolição, apenas o estatuto
se combinam de um modo muito cruel na vida jurídico de homens e mulheres livres não
de algumas mulheres. garantiu aos negros acesso aos bens sociais
e o direto à cidadania. Atualmente ainda
É preciso desmistificar, portanto, a visão permanecem substanciais diferenças entre os
universalizante do feminino, pois não há apenas sexos, agravadas pela questão racial, fazendo
um tipo de mulher e uma experiência em comum com que a pobreza brasileira seja em sua
para todas. São diversos tipos de mulheres que maioria sofrida por mulheres negras. Essas
têm lutado ao longo do tempo por um mundo são aquelas que, acumulando desvantagens
com maior igualdade e pelos mesmos acessos e vulnerabilidades, encontram-se na base da
e oportunidades a todas as pessoas. É claro pirâmide social. Existem reivindicações muito
que não se deve negar as contribuições feitas mais urgentes, como, por exemplo, poder
por feministas brancas, mas é importante não alimentar seus filhos e colocá-los em uma
centrar a historicização e as análises somente creche pública enquanto trabalham.

Jaqueline Oliveira

Marcha das Mulheres Negras.
Brasília, 18 de novembro de 2015.

Como você aprendeu, o movimento pelo direito ao voto, empoderou ainda mais as
feminista trouxe uma grande contribuição à mulheres daquela época.
autonomia e à luta das mulheres pelos seus
direitos, dando voz às mudanças que já vinham Mas, apesar dessas mudanças, atualmente
ocorrendo nas sociedades ocidentais a partir ainda, presenciamos em nossa sociedade
da metade do século XX, como foi o caso do aquelas ideias sobre a predisposição natural
crescimento da participação das mulheres no de mulheres e homens. Uma forma de se
mercado de trabalho. O trabalho feminino havia pensar que as feministas chamam de ideologia
sido uma exigência dos esforços empreendidos machista. Vejamos de um modo bem sintético
nas Grandes Guerras, em especial entre 1939 e – e reiterando algumas questões apresentadas
1945. Essa experiência, no entanto, aliada à luta neste capítulo – como as teorias feministas
criticam essa ideologia.

347Capítulo 22 - “Lugar de mulher é onde ela quiser?”Relações de gênero e dominação masculina no mundo de hoje

Para o movimento feminista as relações entre homens e mulheres acontecem da seguinte forma,
em determinadas situações:

– A maioria dos homens tenta demonstrar que a opressão sobre as mulheres não existe e que a
relação entre eles é paritária. Muitos homens e mulheres sustentam que hoje há entre os gêneros uma
igualdade e que “as coisas não são mais como em tempos atrás”.

– Os homens tendem a desestimular e a desvalorizar os momentos de encontro autônomo
das mulheres. Muitos homens gostam de passar horas a fio entre eles, mas reclamam quando as
mulheres fazem a mesma coisa.

– Os homens não suportam que as mulheres se divirtam de maneira autônoma e fora das regras
estabelecidas por eles. Para muitas mulheres é impensável que, casadas e com filhos, saiam de casa para
se divertir sem os maridos.

– Os homens mantêm o próprio domínio com a coerção e a persuasão. A coerção se dá
com a violência. O uso da violência por parte dos maridos ainda é tolerado, fazendo com que
a violência doméstica se constitua como o principal problema das mulheres em todo o mundo.

– Em diversas partes do mundo as violências contra as mulheres também são justificadas
ideologicamente por religiões, com destaque para as discriminações e agressões praticadas, por
exemplo, por seguidores do islamismo, do hinduísmo e do cristianismo contra aquelas que, de
alguma forma, não seguem rigidamente seus preceitos, ou pertencem a determinadas minorias
étnico-religiosas.

– Uma violência recorrente em regiões de conflitos armados é o estupro de mulheres que
pertençam a nações ou etnias consideradas como inimigas. O estupro, nesses casos, é praticado
por militares e milícias armadas como mais uma forma de subjugar os adversários também sob
o ponto de vista moral.

– A persuasão sempre se deu através de sistemas de ideias que têm como características básicas
preconceitos não provados cientificamente. Hoje a persuasão mais eficaz se efetiva com a produção
cultural da mídia. Este recurso tende a fazer parecer normal a divisão dos papéis e permite maior
fôlego aos homens. Apesar de a maioria da população mundial ser constituída por trabalhadores –
principalmente operários, camponeses, comerciários etc. – cujas vidas são ricas, interessantes e variadas,
a grande maioria dos filmes, novelas e romances tem como protagonistas homens brancos, burgueses
e intelectuais.

– A maioria das mulheres é chantageada economicamente pelos homens. Muitas dependem
economicamente dos maridos na maior parte do mundo.

– As formas de dominação podem ser mais ou menos intensas. Entre mulheres não há diferença
somente entre a burguesa e a trabalhadora, mas também entre uma médica e uma dona de casa
da periferia das grandes cidades. Outra diferença notória também se dá em relação à cor da pele: a
realidade enfrentada por uma mulher negra não é a mesma que a vivenciada por uma mulher branca.

– Entre as mulheres há muita concorrência, sobretudo naquilo que os homens as avaliam com maior
destaque: a beleza (o que é, em determinadas épocas, considerado padrão de beleza feminina). Do sucesso
desta característica pode depender a sua posição social. O capitalismo estimula tal competição.

– A dominação é introjetada pelas mulheres. Por isso é difícil para elas o reconhecimento da
dominação da qual são vítimas. A maioria não se dá conta e não se considera incluída nesse contexto.
Uma jovem educada pela ideologia machista – convencida de que é sedutora e adequada à imagem
esperada pelos rapazes – dificilmente se reconhecerá como dominada. Ao contrário, terá a impressão
de ser “natural” e de dispor de um terrível poder (de sedução) sobre os homens.

– Da parte de algumas mulheres há a tendência equivocada de tirar proveito dos mais fracos.
Algumas descontam nos filhos o não enfrentamento do marido violento.

– Uma outra tendência das mulheres que impede a tomada de consciência é aquela de não
generalizar a própria condição. Assim, grande parte das esposas tende a pensar que o problema que
ela está enfrentando se refere somente ao “seu” marido, à sua condição de opressão específica.



348 Unidade 3 - Relações Sociais Contemporâneas


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