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Um papo honesto e bem humorado sobre os primeiros anos de maternidade.

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Published by Camila Santos, 2015-07-30 10:19:11

Tudo Sobre Minha Mãe

Um papo honesto e bem humorado sobre os primeiros anos de maternidade.

Keywords: maternidade,vida fora do brasil,mãe de primeira viagem,mães

Amor sem fim

Maria, 5 anos
Gael, 3 anos

Uma vez li uma frase, não me lembro onde, mas que
nunca esqueci. Dizia que o maior amor do mundo não
é dos pais pelos filhos, e sim o dos filhos, quando eles
são pequenos, pelos pais. Não quero discutir aqui a
veracidade desta afirmação, até porque nem vem ao
caso ficar medindo quem tem o maior amor do
mundo… Mas quem tem ou teve filhos pequenos com
certeza já passou por várias situações em que as
demonstrações de amor dos filhos pelos pais foram de
arrebentar o coração.

Engraçado que no começo, logo depois de eu virar
mãe, eu não percebia tanto isso. Acho que minha visão
estava ofuscada com o amor que eu sentia por eles e era
difícil notar qualquer outra coisa que não fosse o meu
próprio peito explodindo. Mas ultimamente, no meio da
nossa rotina ordinária, toda hora me dou conta dos
pequenos e grandes gestos que demonstram o amor
extraordinário que eles sentem por mim. E aí me dá
uma “nostalgia antecipada”, pois sei que vou sentir falta
disso quando eles crescerem. É claro que depois a gente
continua amando nossos pais. Meu Deus, até hoje eu
tenho a pachorra de chorar no aeroporto cada vez que
me despeço do meu pai. Mas é outro amor, é um amor
maduro, calejado pela vida. É diferente do amor puro,

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inocente e até meio cego que as crianças têm por nós.

Amar é querer estar junto? Pois nada faz meus filhos
mais felizes do que eu passar tempo com eles. Não
estou falando de passar tempo tipo piloto automático
em função logística materna, mas de dedicar tempo
mesmo. Abrir um livro, olhar as figuras, conversar sobre
o que estamos vendo. Meu filho anda ultimamente para
cima e para baixo com um livro de regras no trânsito
(sinal vermelho, verde, faixa de pedestres etc.). Quase
me dá pena ver o rostinho dele se iluminando quando
ele percebe que vou de fato ler o livro com ele, que,
sim, nós vamos conversar sobre o sinal vermelho. É
como se o Gael tivesse ganhado na loteria. Aquele
momento em que ele vai me mostrar que “aqui é que
tem que passar, mamãe”, apontando para a faixa de
pedestres, produz nele uma felicidade imensurável. Ele
faz suas considerações sobre o trânsito, olha bem para o
meu rosto para ver se eu compartilho da mesma
opinião e inevitavelmente acaba dando uma
encostadinha em mim só para garantir que está mesmo
sentando no meu colo.

E se eles percebem que você precisa de ajuda? Faz dois
dias meu celular dormiu numa poça de água criada por
uma garrafa aberta na minha bolsa. Estava tudo tão
encharcado que era óbvio que não havia mais futuro
nem para o telefone nem para a bolsa. Só não fiquei
muito louca da vida porque ele era velhinho e eu estava
mesmo querendo trocá-lo nos próximos meses. Mas

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minha filha, sem saber disso, ficou superpreocupada,
como a mamãe vai viver sem esse objeto que ela ama
tanto? Ela levou o celular para o quarto, ligou o
ventilador e ficou lá um tempão, toalhas e cotonetes em
punho, segurando o telefone na frente do ar, tentando
salvar a aparelho. Quem faz isso por você? Só uma
criança pequena. Faça uma besteira bem grande e corra
para receber um abraço sincero de alguém que vai te
acolher sem julgamentos até na hora em que você
comete seus erros mais estúpidos.

Isso para não falar na admiração, a certeza de que
ninguém no mundo é melhor do que nós. Dá até
vontade de melhorar mesmo, evoluir para ver se a gente
fica mais próximo dessa figura idealizada com que eles
nos pintam com tanta inocência.

Todos os dias, várias vezes por dia, eles nos inundam
com esse amor. O amor que um dia vai se transformar e
vai deixar saudades. Tenho pedido a todos os meus
santos que eu consiga me lembrar mais disso. Seja lá o
que esteja acontecendo nas nossas vidas, eles estão
sempre à nossa espera. Os olhinhos atentos nos
observando, as mãozinhas gordinhas querendo nos
tocar, a disposição infinita para conversar.

Que a gente consiga equilibrar a logística do cotidiano,
o trabalho, as preocupações com o futuro para não
deixar de aproveitar o presente. Se o que importa de
verdade na vida é o amor, então o momento que

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estamos vivendo agora – cheias de olheiras e
descabeladas – é um dos principais capítulos da história
da nossa existência. 


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A vida como ela é

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O primeiro bullying

Maria, 4 anos
Gael, 2 anos

Acompanhei a cena desde o começo porque estava
lendo o painel de avisos no corredor do jardim de
infância. Minha filha, na época com 4 anos, estava
sentada em um banco, tirando o lanche da mochila e se
preparando para começar mais um dia na escolinha. Eis
que passa Aline, uma criança de personalidade forte,
amiga ou rival dependendo do dia da semana. “Maria,
você está de meia-calça? Todas as meninas estão sem
meia-calça, menos você”, disparou a linguinha afiada.

Continuei ali, fingindo que lia o painel de avisos, mas
com as antenas ligadas. Lembrei-me dela de manhã
insistindo para ir sem meia-calça e eu negando: “Não,
Maria, não está tão quente assim. Isso aqui não é o Rio
de Janeiro.” Tendo vivido quase a vida inteira no Brasil,
tenho dificuldade de encarar 20 graus como verão e
sempre visto na Maria muito mais roupa do que
costumam usar as crianças alemãs.

Antes que minha filha pudesse se recuperar da
constatação de que ela era de novo o único ET da sala,
Aline soltou mais uma: “Você viu meu relógio, Maria?”,
e esticou o braço em direção a ela. “Uau”, respondeu
uma Maria cabisbaixa, com meia-calça e sem relógio.
“Você não sabe ver horas”, completou Aline. Meu

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coração doeu ao lembrar que na semana passada minha
filha estava tentando fazer um relógio de papel para si
mesma.

Depois de se sentir um pouco mais segura à custa da
insegurança da minha filha, Aline seguiu seu caminho
para a sala. Fui até a Maria. Dei um abraço. Perguntei se
ela queria tirar a meia-calça e lembrei que ela não tem
relógio, mas tem pulseira, e que ela é linda de qualquer
jeito. “Tá bom, mamãe”, respondeu, pouco convencida.

Andando de volta para o carro, me assustei um pouco
de pensar que devagarzinho a Maria está entrando
naquela fase em que a opinião dos amigos é mais
importante que a dos pais. É tão importante ser como
nossos amigos quando somos crianças... Penso em mim
mesma. Filha de uma artista plástica hiponga, tudo o
que eu mais queria era que nas reuniões da escola minha
mãe usasse uma calça jeans em vez daquelas saias
rodadas. O que eu obviamente não conseguia entender
naquela época é que ter aquela mãe atípica, criativa e
livre foi um dos maiores presentes que ganhei da vida
para a formação da minha personalidade.

Naquela época eu só sabia que a sensação de não me
sentir cool era horrível. E olha que não fui das mais
zoadas na escola. Mas tive, sim, meus problemas.
Quando me mudei do Rio para São Paulo, por exemplo,
fui parar, com meu sotaque carioca, minhas roupas
desleixadas e minha informalidade praiana, em um

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colégio particular, daqueles bem esnobes, que quase
acabou com a minha raça. Passei um ano inteiro sem
amigos, e na hora do recreio, para ninguém perceber
meu isolamento, comia meu lanche trancada no
banheiro. Só saía quando o sinal batia outra vez. A
turminha pop da escola não tinha o menor interesse na
carioquinha gordinha com mãe hippie.

Mas veja só como a vida é engraçada. Uns 15 anos mais
tarde, já adulta, virei, sem querer, chefe de um dos caras
mais populares da escola. Não fui eu quem o contratou.
Houve uma reestruturação na empresa e ele caiu no
meu departamento. Golpe do destino mesmo. A essa
altura do campeonato eu já era bem-sucedida, realizada,
tinha um namorado maravilhoso e, portanto, estava
cagando e andando para a turminha pop que tanto me
atormentou. Mas confesso que quando esse cara virou
meu subordinado me lembrei exatamente de como
aquela fase tinha sido dura para mim. Tive muita
vontade de voltar ao passado, bater na porta da menina
gordinha que se escondia no banheiro e dizer: “Ei, não
fica triste. Você é tão boa ou até melhor que esse
pessoal que está lá fora. E isso tudo que parece muito
importante agora no longo prazo não vai ter quase
nenhum valor.”

Tenho vontade de dizer a mesma coisa para a minha
filha agora. Dizer que não tem problema ter uma mãe
brasileira que não deixa ir à escola sem meia-calça. Que
tudo bem não saber ver as horas e não ter relógio.

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Queria que ela acreditasse que vai dar tudo certo. Mas
eu sei que dizer isso tudo agora é quase inútil. A Maria
só vai acreditar em mim quando ela mesma puder olhar
para trás e vir que de fato deu tudo certo. Enquanto
isso, só me resta ficar ao lado dela. Não
necessariamente lhe dando o relógio de presente. Mas
ajudando-a a ser forte e a vencer, com as armas que ela
tem disponíveis, suas próprias batalhas. Resta tentar
ensiná-la a amar a si mesma, com ou sem meia-calça. E
um dia, se Deus quiser, ela vai se dar conta de que deu
tudo certo. E para meu grande alívio, eu também. 


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Conversa de parquinho

Maria, 4 anos
Gael, 2 anos

Quando a filha nasceu, há 9 anos, Angelika parou de
trabalhar. Era engenheira e estava orgulhosa de se
sobressair em uma área tipicamente dominada por
homens. Mas a menina tinha nascido com uma
deficiência intelectual e ela queria cuidar pessoalmente
da filha. Não foi fácil. Era mãe de primeira viagem,
tinha abandonado um trabalho que amava e teve que
apertar o cinto nas finanças da família.

Mas ela e o marido eram um casal unido e estavam
convencidos de que tudo ia dar certo. Sempre tinham
sonhado com uma família grande e 5 anos depois do
nascimento da primogênita veio o segundo filho. Um
menino de ouro, desejado, motivo de muita alegria, mas
que, obviamente, significava mais trabalho ainda. Sem
dar um tom pesado à história nem encarnar o papel de
coitadinha, Angelika me contou que se sentiu muitas
vezes sobrecarregada se dividindo nos cuidados dos
filhos. Sorriu com ternura quando explicou que o caçula
desde cedo aprendeu a conviver e respeitar as
dificuldades da irmã e que os dois eram grandes amigos.
O pai colaborava como podia na rotina familiar, mas
por causa do trabalho seu tempo era limitado.

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Ela se referia a ele como um homem bom, mas o
tempo foi passando, a rotina pesada foi enfraquecendo
a vida a dois e o casamento não resistiu. Tinham se
separado fazia pouco tempo de uma forma
surpreendentemente amigável – fez questão de frisar.
Queriam manter a família que construíram e com a qual
tanto tinham sonhado, mas o casamento em si não fazia
mais sentido. A amizade e o companheirismo ainda
estavam lá, mas a intimidade de casal tinha desaparecido
em meio a um cotidiano atribulado para os dois.

Me contou também que no começo de janeiro tinha
completado 40 anos e ganhado das amigas uma
bicicleta de presente. Mas foi só no último final de
semana que, depois de anos sem pedalar, teve coragem
de tentar. Primeiro foi só empurrando a bicicleta até o
parque. Teve que respirar fundo, ficou nervosa até. Mas
lembrou-se de que dizem que a gente nunca esquece
como andar de bicicleta. E, de fato, conseguiu sair
pedalando. Estava sozinha, o sol brilhava, e sentiu uma
sensação de liberdade tão grande que teve até vontade
de chorar de alegria. “Imagina... por causa de uma
bicicleta”, e riu para mim. Quando sorria era fácil ver
que, apesar de estar meio mal cuidada, ainda era uma
mulher atraente.

No próximo verão o caçula ia entrar na escola, e agora
que a filha frequentava um boa instituição em período
integral pensava em voltar a trabalhar. Qualquer coisa.

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De preferência algo que lhe permitisse certa
flexibilidade, já que a primogênita não podia ser inserida
em uma rotina familiar rígida, na qual não coubessem
exceções.

Perguntei se ela tinha usado a solteirice recém-adquirida
para pular carnaval, tão animado e convidativo aqui por
estas bandas. Ela disse que não, mas que ano que vem
não iria perder de jeito nenhum.

Ficamos um pouco em silêncio, observando as crianças
brincando de longe. Então ela olhou para o relógio e
disse que a conversa estava boa, mas que tinha que ir.
Eu também tinha que ir. De onde eu estava sentada
podia ver minha filha feliz no balanço, mas meu caçula
já dava sinais evidentes de cansaço.

Na volta para casa, fui pensando em tudo que eu tinha
escutado. Era para ser uma conversa boba de
parquinho, afinal eu nem a conheço direito, mas, por
alguma razão, ela se sentiu à vontade e me contou os
últimos 10 anos da sua vida. Não falei muito, mas acho
que ela percebeu que eu sinceramente a compreendia.
Mas a verdade é que se eu tivesse escutado essa história
há uns 10, 15 anos, quando acreditava que a vida é
possível de ser dominada, entenderia tudo diferente.
Comigo não. Na minha vida 10 anos não iriam se
passar sem que eu não os pudesse controlar.

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Não penso mais assim. Hoje sei que as coisas vão
acontecendo bem devagarzinho, às vezes sem a gente
perceber. E quando vê, a gente está onde está. Algumas
coisas sairão como planejado, outras não. E,
principalmente com a chegada dos filhos, fica ainda
mais difícil controlar o curso da nossa vida.
Simplesmente porque existem outras vidas em primeiro
lugar. Porque tudo o que era importante antes não é
mais tanto. Porque a gente faz sacrifícios se necessário:
desiste, muda, repensa, aguenta. E faz tudo isso por
amor.
Um tempo atrás eu nunca iria entender como algo tão
simples como ter coragem de subir de novo em uma
bicicleta é capaz produzir uma alegria tão enorme. Mas
hoje eu entendo, e, talvez, essa seja uma das lições mais
incríveis dos últimos anos. 


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Um vira-latas chamado Branquinho

Maria, 5 anos
Gael, 3 anos

Vou contar para vocês mais uma história que a Maria, e,
na verdade, todo mundo da minha família, ama.

Há mais ou menos 15 anos minha irmã Carol, uma
amiga e eu alugamos uma casa em Florianópolis para
passar as férias de verão. Voltando de uma das primeiras
baladas da temporada, sob uma chuva torrencial,
encontramos um vira-latas no gramado da casa.

Era um cachorro de porte médio, mas muito magrinho.
Tinha tanta sarna e estava tão sujo de lama que quase
não dava para saber qual era a cor do seu pelo, mas
vimos logo que se tratava de um filhote porque ele
tinha os dentes bem clarinhos.

Muito dócil, ele aparentava fome – de comida e de
amor – e naquela noite ganhou uma vasilha com água,
os restos do jantar e o direito de entrar na casa para se
abrigar da chuva. No dia seguinte também ganhou um
banho de mangueira e à medida que a água ia lavando a
lama, vimos que a cor do pelo era igual à dos dentes –
daí o nome, Branquinho.

Acostumado com a liberdade, mas já consciente de que
tinha feito amigos, Branquinho dava umas voltas

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durante o dia, mas sempre voltava para dormir na cama
de papelão improvisada em nossa varanda. Antes de
terminar a semana já tinha ido ao veterinário, estava
sendo medicado e tinha oficialmente se tornado nosso
companheiro de férias.

Difícil imaginar que um filhote que tinha nascido e
passado uns 6 ou 7 meses na rua pudesse ter boas
maneiras, mas Branquinho – com sua pinta de labrador
– era um príncipe. Não fazia suas necessidades em
lugares inadequados, andava junto e em poucos dias
tinha aprendido a sentar e dar a patinha.

Adorava ir à praia, mas não era daqueles inconvenientes
que saem sujando tudo e pulando em cima das pessoas.
Corria para o mar, dava uns pulos na água e depois
deitava ao nosso lado e ficava admirando o horizonte,
como se fosse poeta e não cachorro. Era impossível não
gostar do Branquinho, mas no caso da minha irmã
tinha sido amor à primeira vista.

Mas como todo o sonho de verão tem fim, as férias
foram terminando e a pergunta que não queria calar era
com quem ficaria o Branquinho quando fôssemos
embora. Cogitamos levá-lo para São Paulo, tentamos
arrumar um esquema com as pousadas do bairro,
ligamos para amigos e conhecidos, mas não tivemos
sucesso. Ninguém queria ou podia ficar com ele.

Diante do impasse, minha irmã decidiu que não voltaria

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a São Paulo. Tinha acabado de terminar a faculdade de
Artes Plásticas, pretendia ganhar a vida pintando e
Florianópolis oferecia, sem dúvida nenhuma, inspiração
suficiente. A dificuldade em abandonar o filhote foi o
empurrãozinho que faltava para romper com um estilo
de vida em São Paulo que nunca a agradou.

Juntos, Carol e Branquinho viveram anos muito felizes
em Floripa e no Rio de Janeiro, para onde se mudaram
mais tarde, quando precisaram de novos ares. Depois de
muita praia e boas histórias para contar, minha irmã
precisou de verdade voltar para São Paulo. Ia casar e
tinha que acompanhar o futuro marido em sua cidade.
Apesar de triste, Carol sabia que um cachorro com a
alma tão livre como a sua própria seria infeliz em um
apartamento pequeno em São Paulo e decidiu aceitar o
convite do meu pai, que acolheu o Branquinho na casa
de Campos do Jordão. Lá ele teria muito espaço, seria
bem tratado e podia receber as visitas da minha irmã
nos fins de semana.

Em Campos, o “príncipe” conquistou não só a caseira
como também meu pai, que concedia regalias nunca
antes experimentadas por nenhum cachorro da família.
Branquinho encontrou seu lar definitivo na serra e foi
feliz.

Mas tem uma coisa que faz a Maria gostar
especialmente dessa história. Desde que ela era bebê,
sempre passamos temporadas com meu pai na casa de

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Campos do Jordão, e o Branquinho, com seu jeito
manso, foi o primeiro cachorro em que passou a mão,
para quem jogou uma bolinha e deu comidinha. O
primeiro abraço de cachorro com direito a lambida
surpresa na cara foi dele também e, assim como na
história da minha irmã, Branquinho fez parte dos
sonhos de verão da minha filha.

Da última vez que fomos ao Brasil não tivemos tempo
de visitar o Branquinho, o que causou na Maria uma
tremenda decepção. Meu pai até cogitou levar o
cachorro ao encontro da neta, mas desistiu por saber
que o cão já estava muito velhinho. Maria passou as
férias se divertindo, mas reclamando da ausência do
cachorro, que ela considera tão seu como a própria
caseira de Campos do Jordão.

Ontem recebi uma mensagem com a notícia de que,
depois de três dias internado, o Branquinho morreu.
Até na hora de se despedir foi companheiro: poupou
minha irmã da decisão de sacrificá-lo. Não sei ainda
como vou contar para a Maria o fim da história do
Branquinho. Talvez seja a hora de começar a explicar a
ela que nas histórias da vida real o “felizes para sempre”
não existe, mas que existe o presente e é preciso
aproveitar as pessoas e os bichinhos antes que eles
saiam das nossas vidas.

A ausência não é só triste, já que os importantes
seguem vivendo em nós no jeito que a gente assumiu

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depois que eles cruzaram nosso caminho. Vivem na
coragem de uma menininha que morria de medo de
cachorros e que hoje é louca por eles e na certeza de ter
feito a escolha certa na hora de remar contra a maré e
buscar um rota alternativa, como foi a história do
Branquinho com a minha irmã.
Sei que a Maria vai chorar. Talvez até fique brava
comigo por eu ter lhe privado da última chance de vê-lo
no Brasil. Mas espero que consiga acomodar o
Branquinho no seu coração. Talvez um dia ela realize
seu sonho de ter o próprio cachorro e se lembre, com
carinho, que tudo começou com um vira-latas especial
chamado Branquinho.


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Amizades que os filhos nos trazem

Maria, 4 anos
Gael, 2 anos

Foi por força das circunstâncias que ficamos amigas.
Nossos filhos nasceram com 3 meses de diferença e as
dificuldades de mãe de primeira viagem, recém-
chegadas em um país estrangeiro, nos aproximaram. De
tão diferentes, talvez não tivéssemos nos aturado em
outra situação. Ela menina do interior, voz mansa,
maneira simples de encarar a vida e uma dificuldade
para tomar decisões que sempre me enlouquecia. Eu
cosmopolita, prática, objetiva, a executiva que tinha
assumido com indignação as tarefas do lar. Em comum,
naqueles primeiros meses, tínhamos pouco além de um
bebê no colo, uma casa bem desarrumada e um marido
alemão.

Mas nos ajudávamos. Nos consolávamos. Dividíamos,
orgulhosas, todos os truques aprendidos e
comemorávamos cada conquista. Enquanto nossos
filhos cresciam, íamos virando mães juntas. Enquanto
um aprendia a falar o outro não dizia mais que cinco
palavras. Um largava a chupeta hoje, o outro só daqui a
2 anos. Um gostava de comer muito, o outro odiava.
Um dormia à tarde, o outro até varava a noite sem
dormir. Melhores amigos: Maria e Lucas. Eram os
primos substitutos para os primos que ficaram no
Brasil. E juntos com eles, eu e a Karina íamos

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construindo algo cada vez mais forte.

Os maridos, que no começo mantinham uma distância
cortês, constrangidos com aquela amizade imposta pela
convívio de porta, aos poucos foram se entendendo,
identificando os pontos comum, aprendendo coisas
novas um com outro.

Quando meu segundo filho nasceu e recebi alta do
hospital, a Karina foi me buscar na maternidade. Meu
marido não podia ir. É médico, teve que atender uma
emergência. Saímos da maternidade parecendo um casal
de lésbicas. Eu com o bebê no colo, ela levando a mala.
Radiantes. Dentro do carro, naquele dia lindo de
primavera, eu pensava como a vida é louca. Meu filho
nasceu e é essa menina do interior de São Paulo, de uma
cidade que eu antes nem tinha escutado falar, que está
aqui comigo, tirando fotos, se emocionando, me dando
a mão.

Compartilhamos o cotidiano. A escola dos filhos, o frio
no inverno, a receita da sopa, a reclamação da noite mal
dormida, o parquinho do bairro, a baby-sitter. E é por
isso que dá um aperto no coração quando a gente sabe
que eles vão mudar para outra cidade. Quando eles se
forem, um pedaço do nosso mundinho, do jeito que a
gente conhece hoje, vai com eles.

Fico triste quando lembro que para este verão europeu
a Maria e o Lucas tinham planejado construir o maior

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labirinto de água já existente, com barreiras e túneis, no
jardim da Karina. Não vai dar tempo. Penso no Lucas,
tão apaixonado pela Maria, aproveitando qualquer
oportunidade para checar comigo os planos de
casamento no futuro. Será que vai dar casamento
mesmo, apesar da distância? Já tenho saudades. Imagino
meu filho menor passando na frente da casa deles e
gritando “Ucas, Ucas, Ucas”, me puxando para entrar.
Ucas não está, filho. E o feijão? Lembro do feijão bem
temperado da Karina. Não sei fazer feijão. Ela sempre
cozinhava um pouco a mais para sobrar para as minhas
crianças.

Eles vão embora. Mas não quero, contudo, olhar para
essa mudança com tanta melancolia. Quero focar na
lição: nossos filhos nos levam a caminhos e pessoas que
nunca encontraríamos se não fosse por eles. É só abrir
bem os olhos e o coração. Que nossos amigos sejam
felizes, que se abram novos caminhos para eles, e para
nós. E finalmente: que a aventura possa continuar.

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Amor de pai

Maria, 5 anos
Gael, 3 anos

Nessa vida não posso reclamar, fui abençoada com pais
maravilhosos. Tanto meu pai como o pai dos meus
filhos são daqueles que todo mundo reconhece como o
paizão do pedaço.

Meu pai tem cinco filhos de dois casamentos e nós
todos passamos a maior parte das nossas vidas
morando com ele ou muito perto dele. Os filhos
sempre ocuparam o palco central da vida dele. Drama,
comédia, aventura, romance ou rock & roll – não
importa qual fosse a encenação da vez, ele sempre
estava lá – na plateia ou no meio do espetáculo,
contracenando com o protagonista do momento. E te
digo, com cinco filhos, até hoje tem sempre
acontecendo alguma coisa com alguém. Meu pai está a
serviço da filharada há quase quatro décadas non-stop,
desde que nasceu sua primogênita – eu.

Uma das coisas mais legais de ser filha do meu pai é que
ele é um dos melhores seres humanos que conheço. Ele
não é um cara legal só para os filhos dele: é bacana com
todo mundo. É inteligente, culto, generoso, super bem-
humorado, tranquilo. Não tem quem não goste de estar
perto dele. Ter nascido sua filha foi uma sorte enorme
que eu dei na vida. (Obrigada, Deus!)

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Meu marido também é medalha de ouro. Ele
personifica o estereótipo do pai moderno europeu. É
daquele tipo que sai da maternidade trocando fralda e
que levanta à noite sonâmbulo para colocar a
chupetinha na boca do neném. É ótimo para brincar de
carrinho e se empenha em se aperfeiçoar na arte de
fazer um rabo de cavalo. Não sei o que teria sido a
minha vida, com dois filhos pequenos, longe da família,
estudando e depois trabalhando, se ele não encarasse o
cuidado dos filhos como uma tarefa tão minha quanto
dele.

Às vezes olho para ele e sinceramente não sei da onde
tira forças. Ele é cirurgião, faz vários plantões por mês e
chega em casa quebrado. E – juro, sem exagero nenhum
– 80% das vezes, quando ele chega em casa, a primeira
coisa que faz depois de trocar de roupa e colocar seu
modelito “de ficar em casa” (ritual sagrado do bom
canceriano que é) é ir brincar e/ou cuidar das crianças.
Eles são a prioridade absoluta na vida dele. Há 2 anos,
ele recebeu uma proposta de trabalho maravilhosa. Era
a coroação de anos de pesquisa, além de mais grana e
mais status. O problema é que significava também
muito menos flexibilidade nos horários – chegar em
casa com as crianças dormindo, viajar com mais
frequência. Foi super duro para ele, mas no final decidiu
não aceitar. “Não dá para mim, não vou aguentar ver as
crianças tão pouco”, explicou, resoluto. Engana-se
quem pensa que ele olha para trás e fica remoendo essa
decisão: ele caminha pela vida seguro de que naquele

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momento fez a coisa certa, fez o que coração dele
mandava. A carreira é importante para ele, mas depois
que as crianças nasceram o “vale tudo” acabou.
Mas é claro que nem meu marido nem meu pai são
perfeitos. Cometem erros, metem os pés pelas mãos.
Faz parte. A vida real não é um conto de fadas em que
pais e maridos vêm montados em cavalos brancos. Mas
desses dois posso falar uma coisa com toda certeza: eles
não fogem à luta. Encaram a paternidade de frente,
com todas as suas dores e delícias. Amam seus filhos
com tanta renúncia e intensidade que o amor de pai
deles não fica devendo nada para o famoso amor de
mãe. Afinal, não basta ser pai, tem que participar.

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Um amiguinho sem mãe

Maria, 4 anos
Gael, 2 anos

Meus filhos frequentam um jardim de infância público
para o qual os pais pagam uma contribuição mensal de
acordo com os seus salários. Quem ganha mais paga
mais, quem ganha menos paga menos. O tratamento e
as atividades são os mesmos para os ricos, os pobres e
os pertencentes à classe média, a esmagadora maioria
aqui na Alemanha.

Em uma escola em que a conta bancária dos pais não é
critérios de admissão é possível encontrar crianças e
famílias de todos os tipos.

Conheci o Johnny, um menino da classe da Maria, há 2
anos, durante o período de adaptação da minha filha à
escola. Ele tinha acabado de fazer 4 anos e tinha, de
longe, o pior comportamento da turma. Lembro-me de
ter pensado que, se não fosse por ele, teríamos tido a
sorte de a Maria ter caído em uma turminha de crianças
bem tranquilas. Johnny vinha sempre com a mãe, uma
moça bonita e enfeitada que parecia ser de algum país
africano ou árabe. Talvez Marrocos. A beleza interior da
jovem mãe era menos aparente, já que ela estava sempre
com a cara fechada e demonstrava muito pouca
paciência com o filho.

7! 9

Um dia me dei conta de que ela nunca mais aparecia.
No entra e sai de pais e mães, o Johnny estava agora
sempre acompanhado por homens diferentes, sempre
de táxi. E gente que, assim como a mãe, não
demonstrava muito carinho por ele. Imaginei que, por
uma incompatibilidade de horários, o leva e traz do
Johnny havia sido delegado para o pai, tios ou amigos
da família. E além de todo mundo ser motorista de táxi
naquela família, cara fechada também era uma
característica do clã.

Mas estava claro que tinha alguma coisa meio estranha
ali. A gente percebe quando a criança,
independentemente da classe social, vem de uma família
mal estruturada. No caso do Johnny, os sinais eram a
atitude da mãe, o tom de voz por vezes agressivo, por
vezes desinteressado que ela usava com o filho, o
comportamento sempre desafiador do menino. E por
trás de toda aquela inquietude no jeito dele eu não
conseguia enxergar uma criança feliz.

Eu ficava de coração partido. Que tristeza para uma
criança ser buscada na escola por um adulto que não se
alegra ao revê-la, que não tem o mínimo interesse em
saber como foi seu dia. Me aliviava, contudo, ver que as
professoras o tratavam com muito carinho. Um beijo na
hora de ir embora, uma conversinha a mais na hora da
entrada... Para um povo que não é muito afeito a
mostrar sentimentos, o comportamento das professoras
alemãs me surpreendia. Principalmente porque o Jonny

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não é exatamente uma criança que cativa fácil.

Outro dia, entrando na escola, vi a mãe de um menino
aos berros com o Johnny. Não peguei a cena inteira,
mas pelo que dava para entender, parecia que o Johnny
tinha batido no filho dela, que é bem menor. A mulher
estava fora de si. Está certo que todo mundo tem o
impulso de defender os filhos, mas nada justificava
aquela mulher de quase 2 metros berrando com o
menino daquele jeito. Até porque ela não parava: seguia
gritando, repetindo tudo que já havia dito e colocando o
dedo na cara dele. O Johnny, claro, começou a chorar. A
professora saiu imediatamente da sala e veio para o
corredor intervir, pediu para a mãe se afastar, e disse
que ela mesmo iria conversar com ele.

Saindo da escola vi, através de uma parede de vidro, o
Johnny sentado na sala da diretora. A cabeça abaixada,
as mãozinhas no rosto, o semblante de uma criança aos
soluços. Senti muito por ele e pensei que ela devia estar,
com sua pouca idade, devolvendo para o mundo o que
andava recebendo.

Dias mais tarde, comentando a cena com uma amiga
que também tem o filho nessa escola, fiquei sabendo
que faz um ano que o Johnny vive em um abrigo para
crianças. As professoras tratam o assunto com discrição
e minha amiga só sabia disso porque o próprio Johnny
contou a ela numa festa do jardim de infância. Aqueles
homens, que vejo no horário de entrada e saída da

8! 1

escola, são motoristas de táxi, pagos pelo governo
alemão para levar e buscar o menino. Uma assistente
social me explicou que o Estado aqui faz o possível
para que as crianças que não vivem com os pais tenham
a vida mais parecida possível com a de uma criança que
mora com a família.

Alguns podem dizer que já estou há muito tempo fora
do Brasil e que essa história toda não é nada comparada
com coisas muito piores que ocorrem com crianças no
nosso país. Não me esqueci, e sei que é uma sorte o
Johnny viver num lugar onde o governo se
responsabiliza por ele. Considerando as circunstâncias,
ele está bem. Existem instituições e vários adultos
zelando pelo bem estar dele. Mas não consigo deixar de
me comover com essa situação, porque todos os dias
tenho um montão de chances de compará-lo com
minha filha.

Dou um beijo de despedida na Maria, digo que vou
sentir saudades, que é para ela não esquecer quanta
coisa gostosa tem na merendeira, olho para o lado e
vejo o Johnny pendurando a mochila sozinho. A Maria
vem ao meu encontro com a produção do dia, uma
pilha de desenhos e artesanatos: esse fiz especialmente
para você, mamãe. E ele? Será que ele leva os desenho
que faz para alguém ver? É tudo muito triste, porque no
fundo nada diferencia a Maria do Johnny, só o fato de
que ela nasceu de outra mãe. Se o problema principal da
mãe do Johnny fosse financeiro, o Estado alemão

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também iria intervir e ela poderia viver dignamente
recebendo ajuda social; mas ela é alcoólatra e por isso
eles estão separados.
Estou torcendo muito pelo Johnny. Espero que ele
saiba aproveitar o carinho da professora, que consiga
perdoar a mãe, que aprenda muito nas escolas que irá
frequentar. Que consiga se desviar dos obstáculos,
abraçar as oportunidades e fazer um bom caminho na
vida, apesar do começo tortuoso. E, para os meus
filhos, desejo que eles aproveitem, sem culpa, todos os
beijos, os carinhos, os presentes e as facilidades que a
vida lhes garantiu logo de cara. Mas pretendo ensiná-
los, o mais cedo possível, a reconhecer a sorte que têm.
Se meus filhos não entenderem que eles e o Johnny não
são diferentes, todos os beijos, os carinhos, os presentes
e as facilidades não terão servido para muita coisa, não.

8! 3

8! 4

Vai dar tudo certo

8! 5

8! 6

A bolha

Maria, 4 anos
Gael, 2 anos

Há algumas semanas fomos convidados para um
churrasco na casa de um casal de amigos. A babysitter
não podia naquele final de semana, não temos família
por perto, então o jeito era levar a dupla dinâmica. Os
anfitriões foram bem legais e atenderam o meu pedido
de adiantar em 2 horas o horário marcado inicialmente,
para que não ficasse muito tarde para as crianças.
Éramos os únicos convidados que tinham filhos.

No dia anterior, eu e meu marido já tínhamos a
estratégia – de guerra – bem planejada: as crianças iriam
tirar uma boa soneca à tarde, chegariam bem-
humoradas e no ponto para desfrutar da paciência e do
carinho dos nossos amigos e, depois de umas horas,
quando a coisa começasse a ficar preta, era só escovar
os dentes, vestir pijama, carro e cama.

No dia do churrasco, contudo, a Lei de Murphy
materna entrou em ação: milagrosamente as crianças
acordaram às 8 da manhã. Praticamente 2 horas mais
tarde do que o normal. Seria motivo de muita
comemoração se não fosse por um pequeno detalhe:
tendo dormido tão bem, ninguém queria tirar soneca à
tarde. Plano por água abaixo.

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Esforçamo-nos para desenvolver um plano B. Mas
parecia que quanto mais a gente tentava se organizar
para ser pontual e/ou cansar as crianças para elas
dormirem, mais as coisas saiam do controle. Sabe
aquela história de que quando você está prontinha para
sair o bebê faz cocô? Então, o dia inteiro estava assim.

Só para dar uma ideia do clima tensão pré-churrasco,
quando faltavam mais ou menos 20 minutos para o
horário marcado eu tentava me maquiar dividindo o
banheiro com meu filho de 2 anos, cujo objetivo
principal era alcançar a escova de limpar o vaso
sanitário e gritar touché (em cima de mim, claro). A mais
velha estava no quarto, fingia que dormia, mas na
verdade tinha surrupiado um esmalte meu e estava
pintando as unhas embaixo das cobertas. E meu marido
estava no supermercado fazendo umas comprinhas de
urgência para o final de semana.

Pensei em ligar para minha amiga com uma voz que
refletisse bem minha decepção. Pensei em tentar fazê-la
entender que as crianças sem a dormidinha da tarde
iriam surtar no churrasco. Que meu filho não queria
dormir, só queria fazer touché, que eu mesma já estava
surtada, mas a verdade é que furar não era uma opção.
Já tínhamos furado da última vez e deve haver um
limite na quantidade de desculpas relacionadas com
filhos que pessoas sem filhos podem tolerar. No
caminho, meio arrependida de ter aceitado o convite, eu
concluía que o mais sensato até as crianças ficarem mais

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velhas seria sossegar o facho e me conformar com o
fato de que aos sábados à tarde meu lugar é no
parquinho.

Assim que chegamos parei de me arrepender. Nossos
amigos nos receberam com grandes sorrisos. Pareciam
nem ter notado que, apesar de eu ter pedido para
adiantar o churrasco, cheguei depois de todo mundo,
bem atrasada.Tinham até providenciado uns brinquedos
para as crianças.

Todo aquele estresse que a gente tinha passado para
chegar lá não existia naquela atmosfera de pessoas bem
dormidas e com roupas da moda. Cada um bebericando
seu drinque, sem pressa para comer, jogando conversa
fora. Tratei de fazer como todo mundo: peguei um
drinque, tentei jogar conversa fora, só fiquei é bem
ligada no churrasqueiro para pegar o primeiro pedaço
de carne e cortar em pedacinhos bem pequenos, afinal a
duplinha tinha fome. Mas sabe que quando me dei
conta, eu já estava conseguindo sair da bolha? De qual
bolha estou falando, cara leitora? Aquela na qual
entramos e dificilmente saímos quando somos pais de
crianças pequenas.

A bolha em que só existem temas como noites mal
dormidas, febre, preço de fralda, linha pedagógica da
escola, vacinas. E ninguém melhor do que essas pessoas
que nem imaginam como é viver na bolha para te tirar

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dela. Até porque esses amigos têm esse dom especial
de, apesar da boa vontade de muitos, não compreender
100% como você pode ter passado de uma pessoa tão
cool para alguém que tem coragem de sair com um
restinho de papinha que secou na calça jeans.

E sem entender essas coisas direito, eles insistem em
conversar com você sobre a viagem deles para as
Maldivas. “Você não pode imaginar como pode ser
entediante estar nas Maldivas, largado ao sol, sem fazer
nada. Minha sorte é que eu mergulho”, me
confidenciou naquela noite o marido de uma amiga,
com uma cara descansada de fazer inveja. Mas, apesar
do choque de realidades, se não fosse só o fato de que
todos nós temos amigos queridíssimos que não são e
talvez nunca serão pais, é bacana encontrar esses
amigos livres, leves e soltos. Eles nos forçam a pensar
fora da bolha. E, convenhamos, existem tantas coisas
divertidas e merecedoras da nossa atenção no mundo
além dos nossos filhos. É que, convivendo com tanta
fofura (e tendo, pelo menos no meu caso, um cotidiano
digno de estivador), nós esquecemos do mundo.

Não ficamos muito no churrasco. As crianças estavam
meio enjoadas. E, no dia seguinte, com certeza não
iriam dormir até as 8 da manhã. Mas, apesar de tudo,
aquela noite me fez bem. No meio dos meus antigos
companheiros de aventuras, me dei conta que ainda
existe, sim, apesar de meio apagada, uma “eu” além da
bolha. E um dia, com as crianças mais crescidas, eu

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também vou chegar numa festa com cara bem dormida
e roupa da moda contando aventuras de fora da bolha.


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9! 2

Opinião de mãe não se discute

Maria, 5 anos
Gael, 3 anos

Foi um dia no mínimo engraçado. Eu estava saindo de
casa para levar as crianças para o jardim de infância
quando avistei do outro lado da rua uma mãe
igualmente saindo de casa para levar os filhos dela na
mesma escolinha.

Eles moram em uma casa praticamente em frente à
nossa, e apesar de a gente já ter se encontrado mil vezes
no caminho, nunca tínhamos trocado mais do que
bons-dias sorridentes. Mas naquele manhã saímos
sincronizadas, e como levamos as crianças a pé para o
jardim de infância, foi impossível não engatar uma
conversa no caminho. Ela era supersimpática. Depois
de 5 minutos, já estávamos naquele momento da
conversa em que você começa a achar a outra tão legal
que pensa que talvez vocês pudessem virar amigas, e os
filhos também… Mas as crianças nos interrompiam
toda hora, então combinamos que, depois de deixá-las,
caminharíamos juntas de volta para casa.

Dito e feito. Eis que estamos passando em frente à
escola primária que temos no bairro quando ela me
pergunta se eu ia matricular minha filha Maria nela no
ano que vem. Eu disse que no começo estava meio em
dúvida, mas que, conversando com outros pais que

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tinham filhos lá, só tinha escutado coisas positivas
sobre a escola. Disse ainda que a conversa com a
diretora também tinha me agradado e que a localização
era obviamente perfeita, e que agora estávamos
convencidos.

Ela disse que também tinha conversado com outros
pais, também tinha visitado a escola e escutado a
palestra da diretora, mas que eles haviam decidido
colocar a filha em outra escola – um pouco mais longe,
é verdade, mas “vale muito a pena”. Contou que havia
comparado minuciosamente as duas e que a outra era
infinitamente melhor por causa disso, daquilo e daquilo
mais.

Não sou muito de ir na onda de outras mães. Não
desperdiço exemplos e ideias que façam sentido para
mim, mas acabo tomando minhas decisões de acordo
com o que eu mesma acredito. Aquela conversa,
contudo, estava me deixando meio cabreira porque
escola é um tema sensível para mim, um tema que me
deixa mais insegura. Será que estávamos tomando a
decisão errada? Decidi discutir outra vez a questão da
escola com o meu marido mais tarde. Nos despedimos
e fomos cada uma para o seu lado. Com exceção da
parte da escola, a conversa tinha sido super agradável,
ela parecia ser um amor de pessoa.

No final do dia eu estava com as crianças na porta de
casa esperando meu marido chegar para irmos jantar

9! 4

quando encontrei a mãe de opinião diferente pela
segunda vez.

Ela nos convidou para conhecer o seu jardim. Meu
marido tinha avisado que demoraria mais que o
previsto, e então demos sequência à nossa conversa de
“reconhecimento de terreno materno”. Em algum
momento ela me perguntou se a gente já tinha um
restaurante em mente para ir, pois ela tinha uma ótima
recomendação, um restaurante mexicano não muito
longe dali que tinha área de brincadeiras para as
crianças, comida maravilhosa e ainda por cima não era
caro.

Na verdade, a gente estava pensando em ir ao nosso
sushi de sempre, mas eu, que não resisto a uma
novidade, achei a ideia interessante e acabei
convencendo meu marido a ir ao restaurante
recomendado com tanto entusiasmo pela minha nova
“amiga”.

Para resumir o fim da história: foi um dos piores
restaurantes a que fui nos últimos anos. A comida
estava longe de ser maravilhosa, a área de brinquedos se
resumia a um tunelzinho sem graça, uma mesa com
umas folhas para pintar e uns lápis sem ponta. O
atendimento foi horrível. O garçom era um cretino, fez
até a Maria chorar quando ela, cheia de coragem, foi até
ele perguntar se podíamos pagar com cartão. A música

9! 5

mexicana alta, no maior estilo La Cucaracha, nos
enlouqueceu durante todo o jantar. E a cereja no bolo
foi a conta, que, comparada ao nosso sushi amigo –
onde a comida é deliciosa e o atendimento de primeira
– foi exorbitante. No caminho de volta até me desculpei
com todo mundo por ter nos metido naquela roubada
mexicana.
No final das contas, resolvi nem comentar direito com
meu marido a opinião da minha nova amiga sobre a
escola em que pretendemos colocar a Maria. O episódio
do restaurante veio a tempo para me lembrar de que
opinião, principalmente no que diz respeito à maneira
de criar os filhos, é algo muito pessoal mesmo. Se
minha nova amiga sabe escolher escola tão bem como
escolhe restaurante para ir com as crianças, prefiro
matricular a Maria na escola aqui da rua mesmo. 


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A corrida

Maria, 3 anos
Gael, 1 ano

No dia 26 de dezembro eu finalmente corri. Apesar de
ter sido uma das corridas mais lentas da minha vida, foi
uma das melhores. Nunca vou esquecê-la. Eu estava
com um nó no peito, engasgada entre a gravidez, o pós-
parto e o tempo que passei enclausurada terminando
um mestrado. Fazia quase 2 anos que não me mexia.
Para mim, corredora amadora, que depois de muita
insistência tinha aprendido a digerir tristezas, maus-
humores e quilos extras com o esporte, tinha sido difícil
ficar esse tempo parada. Mas como arranjar tempo e
disposição para correr se eu nem dormia?

Choveu durante a corrida. Uma chuva de verão na
serra, onde eu tinha ido passar o Natal com minha
família. Quando vi a água começando a cair, lamentei o
azar e tentei me abrigar em um telhadinho que
encontrei pelo caminho. Não fiquei nem 2 minutos ali e
percebi que não queria parar. Voltei a correr, dessa vez
na chuva.

Recordei dos aguaceiros da infância, quando minha mãe
abria a porta dos fundos e eu e minha irmã saltitávamos
alegres e ensopadas pelo quintal de um sobradinho em
Ipanema. Lembrei-me também do banho de chuva que
tomei com uma amiga querida, as duas ainda solteiras,

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voltando de uma festa em Boipeba.

E assim, correndo sem me importar com a água que
caía no rosto, me senti livre. Pensei que mais um ano
estava começando, agradeci aos céus pelo meu filho
recém-nascido, pelo mestrado terminado. Estava
carregando tantas coisas durante aquela corrida que não
sei como conseguia me sentir tão leve. Quando voltei
para casa, encontrei meu pai se divertindo com os netos
no colo. Ele me olhou curioso: eu tinha o cabelo e as
roupas encharcadas, mas sorria. Não sei se percebeu
que eu também chorava – de alegria.

Depois daquele dia corri muitas outras vezes. Claro que
nem todas foram corridas na chuva. Algumas foram
com sono, outras foram sem vontade, outras foram
bem curtas – como são as de uma mãe de duas crianças
pequenas que não tem tempo para nada. Houve ainda
“corridas-terapia”, quando eu precisava ordenar os
pensamentos, e aquelas só para aproveitar o tempo
bom. Mas uma coisa todas essas corridas tinham em
comum: elas começavam difíceis, enroladas em meio a
um cotidiano abarrotado. Porém, invariavelmente,
terminavam felizes e eu agradecia a mim mesma por ter
conseguido.

Aquela tinha sido uma fase difícil e agora, com a vida
um pouco mais tranquila, eu estava orgulhosa de ter
conseguido encontrar um momento só para mim. Que
não tivesse a ver com o marido, os filhos ou o trabalho.

9! 8

Que fosse pouco, já que mais não podia ser, mas que
sempre houvesse.
Sei que às vezes vai me custar um pouquinho de
egoísmo, um pouquinho de loucura e, na maioria das
vezes, bastante coragem. Mas estou disposta a nunca
mais me perder de mim mesma.


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