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Published by vallimw, 2018-05-30 15:13:30

Revista CAASP Ed. 35

Revista CAASP Ed. 35

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EDITORIAL

CRISE
INTERMINÁVEL

EDITORIAL 2 REVISTA DA CAASP

A crise não passa. Trocou- reportagem a respeito, convidam
se o presidente da República, ao debate a partir de argumentos
encarceraram-se empresários e sólidos em contraposição ou em
políticos por corrupção, mudou- corroboração.
se a política econômica da
água para o vinho – ou de um Como tudo no Brasil é
desenvolvimentismo populista para polarizado, esta edição traz duas
um neoliberalismo socialmente entrevistas, com dois economistas
cruel – e o Brasil não sai do atoleiro. que aglutinam os pensamentos
No fechamento desta edição, da esquerda e da direita nativas.
encontrávamo-nos imersos em Laura Carvalho e Samuel Pessôa são
uma paralisação de caminhoneiros atualmente, sem sombra de dúvida,
a provocar desabastecimento de os mais prolíficos representantes de
combustíveis e alimentos. suas respectivas escolas econômicas
no país. Ela, heterodoxa, em nada
Os rumos que o país tomará afeita às reformas do Governo Temer;
doravante são imprevisíveis, mas ele, liberal ortodoxo, enaltecedor
imprevisível jamais poderá ser a dos princípios que regem a
justiça que aqui se pratica. Segurança economia de Henrique Meirelles
jurídica é imperativo. Se o Judiciário, (não mais ministro da Fazenda,
de um lado, atua celeremente no agora candidato a presidente) e
combate à corrupção, fato que para Ilan Goldfajn, presidente do Banco
muitos configura um indesejado Central.
ativismo, de outro alguns de
seus integrantes parecem não Somente neste Brasil de tantas
compreender o papel dos advogados idiossincrasias poderiam existir
nas democracias. tantos médicos e, ao mesmo tempo,
tanta gente sem atendimento digno
Não raro, juízes e promotores de saúde. Este é o tema de outra
apontam a atuação de advogados reportagem desta edição.
de defesa como responsáveis pela
demora nas decisões judiciais,
argumentam haver abuso na
interposição de recursos. Protelação,
afirmam. Alguns respondem a eles
com bom humor e uma boa dose de
sarcasmo, como o desenhista Paulo
Caruso faz na capa desta edição.
Outros, como as fontes ouvidas na

REVISTA DA CAASP 3 EDITORIAL

ESPECIAL

VÍTIMAS DA
INEFICIÊNCIA E DA

MOROSIDADE
página 40

ENTREVISTA ENTREVISTA

LAURA SAMUEL
CARVALHO PESSÔA

página 8 página 24

ÍNDICE 4 REVISTA DA CAASP

SAÚDE CAIXA DE ASSISTÊNCIA
DOS ADVOGADOS
MUITOS MÉDICOS, POUCA DE SÃO PAULO
SAÚDE
GESTÃO 2016 - 2018
página 52
Presidente
DICAS Braz Martins Neto
Vice-presidente
COMO ESCOLHER BEM A SUA Arnor Gomes da Silva Júnior
VIAGEM Secretário-geral
Rodrigo Ferreira de Souza de
página 62 Figueiredo Lyra
Secretário adjunto
PERFIL Alexandre Ogusuku
Diretor-tesoureiro
NOSSA ENTIDADE DE CLASSE Jorge Eluf Neto
É INSUPERÁVEL Diretores
Adib Kassouf Sad, Célio Luiz
página 70 Bitencourt, Jairo Haber, Maria Célia
do Amaral Alves (in memorian),
CINEMA Rossano Rossi

A PORNOGRAFIA CONTRA A REVISTA DA CAASP
HIPOCRISIA
Conselho Editorial
página 74 Braz Martins Neto, Célio Luiz
Bitencourt, Fábio Romeu Canton
LITERATURA Filho, Gaudêncio Torquato, Jairo
Haber, Paulo Henrique Arantes e
DE OLHOS BEM ABERTOS Vanderlei Oliveira
Editor e jornalista responsável
página 80 Paulo Henrique Arantes
(Mtb.22.615)
NOTÍCIAS Repórteres
Joaquim de Carvalho e
página 87 Karol Pinheiro
Colaborador
PALAVRA DO LEITOR Vivian Schlesinger (Literatura)
Projeto gráfico e editoração
página 93 eletrônica
Brain Comunicação Digital
OPINIÃO Beatriz de Moura Barretto
Consultor de TI
RODRIGO ROCHA MONTEIRO DE Arildo Campos
CASTRO Publicidade
Anarosa Bolzachini
página 94 Fone: (11) 3292-4555
Ilustrações
REVISTA DA CAASP 5 ÍNDICE Paulo Caruso

Revista da CAASP é uma publicação
bimestral da Caixa de Assitência
dos Advogados de São Paulo
Rua Benjamim Constant, 75
São Paulo - SP CEP 01005-000
Tel.: (11) 3292-4400.
Os artigos assinados não
refletem necessariamente a
opinião da revista.

CAMINHONEIROS PÕEM EM XEQUE
POLÍTICA DE PREÇOS DA PETROBRÁS
E DESABASTECEM O PAÍS

Roberto Parizotti Greve ou locaute, ou ambos, fato é as seguintes medidas do governo em
que os caminhoneiros causaram um atenção aos caminhoneiros: diminuição
transtorno sem par na história recente do preço do diesel em 0,46 centavos por
do Brasil. Quando do fechamento desta litro pelo período de 60 dias, via redução
edição, a paralisação, então em seu nono do Cide e do Pis/Cofins; fim da cobrança
dia, começava a arrefecer mas, com suas pelo eixo suspenso dos caminhões nos
lideranças pulverizadas entre sindicatos pedágios; reserva de 30% dos fretes
e associações diversos, ainda persistia da Conab (Companhia Nacional de
em vários pontos do país. Enquanto a Abastecimento) para os caminhoneiros
população sofria com o desabastecimento, autônomos. Além disso, em acordo com
o governo via-se encurralado e atendia governo e grevistas, o Senado preparava-
a praticamente todas as reivindicações se para votar projeto de lei estabelecendo
da categoria sem obter a esperada uma tabela de valores mínimos para o
contrapartida - o completo fim da greve. frete.

A motivação central do movimento As primeiras atitudes do governo
grevista era o repúdio aos reajustes do diante da paralisação não indicavam
diesel conforme as oscilações diárias tamanha generosidade. No dia 25, o
do produto no mercado internacional, presidente Michel Temer, em um tardio
política adotada desde que Pedro Parente pronunciamento, disse que empregaria
assumiu o comando da estatal. forças de segurança federais para liberar
as estradas bloqueadas.
No dia 28 de maio, já estavam em vigor
No mesma data, Temer baixou
decreto determinando operação de GLO
(Garantia da Lei e da Ordem) e, perante
o Supremo Tribunal Federal, a Advocacia
Geral da União obteve liminar, concedida
pelo ministro Alexandre de Moraes,
estipulando multa de 10 mil reais por
dia aos motoristas que bloqueassem as
rodovias e de 100 mil reais a entidades
representativas da classe pelo mesmo
motivo.

No dia 26 de maio, o ministro da
Secretaria de Governo, Carlos Marun,

6 REVISTA DA CAASP

jogou lenha na fogueira ao classificar a LOBBY COM
paralisação como locaute, ou seja, uma greve PÉ-DIREITO DUPLO,
na verdade comandada por empresários do ENTREGUE DECORADO
setor, o que é proibido. A mesma acusação E COM AR CONDICIONADO
já havia sido feita pelo ministro da Defesa, INSTALADO
Raul Jungmann, mas Marun foi mais incisivo: COBERTURA
“Temos hoje a convicção de que existe um DUPLEX:
locaute. A Polícia Federal já tem inquéritos 92 M² A 102 M²
abertos para investigar essas suspeitas. Os
empresários suspeitos serão intimados”. TORRE ÚNICA
24 PAVIMENTOS
Já no dia 25 de maio, o presidente da OAB- 20 SALAS POR ANDAR
SP, Marcos da Costa, solicitou aos tribunais E 10 DUPLEX NO 24º ANDAR
paulistas a suspensão dos prazos processuais
por causa das dificuldades de locomoção Imagem meramente ilustrativa
provocadas pela paralisação.
DESCONTO DE ATÉ 30%*
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INCORPORAÇÃO REGISTRADO SOB O R. 12 DA MATRÍCULA Nº 43.567, EM 2
DE ABRIL DE 2014, NO 15º CARTÓRIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS DE SÃO
PAULO/SP. TODAS AS IMAGENS UTILIZADAS SÃO MERAMENTE ILUSTRATIVAS
PODENDO SOFRER ALTERAÇÃO SEM PRÉVIO AVISO. AS PLANTAS AQUI
EXPOSTAS SÃO UMA MERA SUGESTÃO DE DECORAÇÃO, ACABAMENTOS
E DISPONIBILIDADE DE ESPAÇOS. ACABAMENTOS, MÓVEIS, ARMÁRIOS,
LOUÇAS, METAIS, EQUIPAMENTOS, ADORNOS, UTENSÍLIOS E DEMAIS
OBJETOS, BEM COMO INSTALAÇÕES DECORATIVAS, FORROS, PISOS,
RODAPÉS, CERÂMICAS, MÁRMORES, GRANITOS, MOLDURAS, LUMINÁRIAS,
VIDROS TEMPERADOS, NÃO FAZEM PARTE DO MEMORIAL DESCRITIVO
DAS UNIDADES EM COMERCIALIZAÇÃO. O MEMORIAL DESCRITIVO DO
EMPREENDIMENTO ESTÁ DISPONÍVEL PARA CONSULTA NO STAND DE
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PROMOÇÃO. APRESENTAR A CARTEIRINHA DA OAB PARA LIBERAÇÃO DO
DESCONTO. INTERMEDIAÇÃO: ON LINE HOME NEGÓCIOS IMOBILIÁRIOS
LTDA - CRECI 30223 J

INCORPORAÇÃO E CONSTRUÇÃO:

REVISTA DA CAASP 7

Fotos César Viegas

ENTREVISTA

LAURA
CARVALHO

LAURA CARVALHO | ENTREVISTA 8 REVISTA DA CAASP

Laura Carvalho é a mais estridente das O QUE SE VÊ
vozes econômicas daquela que ainda se pode ATUALMENTE SÃO
chamar de esquerda brasileira. Professora da
Faculdade de Economia e Administração da FRUSTRAÇÕES
USP e colunista do jornal Folha de S. Paulo, SUCESSIVAS DE
ela costuma protagonizar debates no Brasil EXPECTATIVAS.
e no Exterior com antagonistas do peso de
Samuel Pessôa (outro entrevistado desta
edição) e Mônica De Bolle.

Desnecessário dizer que Laura é uma ácida
crítica do modelo econômico posto em prática
pelo Governo Temer, cujas incongruências
podem ser assim resumidas, nas palavras
dela:

“Eles não fizeram uma política que visasse
distribuir a renda como forma de gerar
consumo. Por outro lado, ao perceber esses
sinais fracos e a falta de indicadores para
mostrar do ponto de vista do nível real da
recuperação, eles começaram a tomar umas
medidas temporárias, que não têm impacto
permanente, como aquela do saque das
contas inativas do FGTS e o saque do PIS-
Pasep. São medidas pró-consumo, mas que
não envolvem ganho de renda e emprego,
que seriam as medidas mais sustentáveis”.

Na entrevista a seguir, concedida
ao editor da Revista da CAASP, Paulo
Henrique Arantes, e à repórter Karol
Pinheiro, Laura Carvalho aborda, com
a contundência que a caracteriza, temas
como globalização, desigualdade, reforma
tributária, desindustrialização e pensamento
econômico. “O tema da desigualdade, tão
atual, não estava presente no embate Keynes
versus Hayek”, diz. Confira a seguir.

REVISTA DA CAASP 9 ENTREVISTA | LAURA CARVALHO

[Revista da CAASP] – No primeiro quadrimestre de 2018, resultado primário, crescimento e
emprego decepcionaram. O Governo Temer erra na condução da economia?
[Laura Carvalho] O Governo Temer erra ao não ter o crescimento econômico e a geração de
empregos como objetivos, em primeiro lugar. Ficou bem claro, desde o início do governo,
que o objetivo da política é atender a uma série de demandas de setores de alto poder
econômico, que desejavam, primeiro, reforma trabalhista; segundo, manter uma política de
ajuste fiscal de longo prazo que na verdade fosse reduzindo o espaço no orçamento para os
direitos que estão presentes na Constituição de 88.
Toda a política econômica se voltou para o que eles chamam de reformas estruturais. Por
definição, o foco nessas reformas não é um foco em retomada da economia, muito pelo
contrário, acaba até prejudicando a retomada da economia e, com isso, a resolução dos
problemas fiscais. O que a gente viu até aqui foi uma frustração sucessiva das expectativas,
seja de crescimento econômico, seja de resultado primário e endividamento público. Ao
mesmo tempo, há uma frustração na geração de empregos formais – todos os resultados
vistos no mercado de trabalho foram de precarização cada vez maior. E, sobretudo, temos
visto os efeitos mais deletérios da crise, o que é pior, concentrarem-se na base da pirâmide
de distribuição de renda. Os trabalhadores mais vulneráveis são aqueles que estão sendo
mais impactados, e não há nada no desenho da política econômica que tente alterar isso.
Pelo contrario, aprovou-se uma PEC do teto de gastos que na prática vai limitando os
investimentos públicos em obras etc., investimentos que atuaram nos anos 2000 como um
dos principais motores da economia brasileira.
O que é mais importante para a economia do país, derrubar o desemprego ou derrubar a
inflação?
O que se celebra hoje é a queda da inflação. Na prática, o que a gente viu foi que a inflação
começou a cair em janeiro de 2016, antes de a nova equipe econômica assumir, como
consequência direta não só do fim do efeito do reajuste de tarifas de energia e combustível
que tinha sido feito ainda no Governo Dilma, em 2015, mas sobretudo pelo impacto da
recessão econômica e do desemprego. Então, quando você está celebrando a fraqueza
da inflação numa sociedade com esse número de desempregados, na verdade você está
dizendo: “bom, essas pessoas têm que estar felizes porque os preços não estão subindo tão

O QUE A GENTE VIU ATÉ AQUI FOI UMA FRUSTRAÇÃO
SUCESSIVA DAS EXPECTATIVAS, SEJA DE CRESCIMENTO

ECONÔMICO, SEJA DE RESULTADO PRIMÁRIO E
ENDIVIDAMENTO PÚBLICO.

LAURA CARVALHO | ENTREVISTA 10 REVISTA DA CAASP

rápidos”. Mas essas pessoas estão sem emprego ou seus salários não estão crescendo. Essa
inflação baixa é um sintoma dessa estagnação da economia, e o governo a trata como se
fosse uma grande vitória.

Mas os economistas liberais, como os do governo, não consideram o consumo como
fonte adequada de crescimento. Sob essa ótica, a queda da inflação pelo freio no
consumo está correta.

É curioso. Eles não fizeram uma política que visasse distribuir a renda como forma de gerar
consumo. Por outro lado, ao perceber esses sinais fracos e a falta de indicadores para
mostrar do ponto de vista do nível real da recuperação - que está sendo a mais lenta da
história das crises brasileiras -, eles começaram a tomar umas medidas temporárias, que não
têm impacto permanente, como aquela do saque das contas inativas do FGTS e o saque do
PIS-Pasep. São medidas pró-consumo, mas que não envolvem ganho de renda e emprego,
que seriam as medidas mais sustentáveis.

Eu acho que podemos facilmente interpretar que o apelo a essas medidas, digamos,
keynesianas de estímulo direto do consumo, ainda que não sejam as boas medidas keynesianas
que envolveriam um ganho de renda permanente para as pessoas, atesta que aquela política
não foi capaz de gerar a tal da confiança dos investidores que era prometida. O próprio
Ilan Goldfajn, presidente do Banco Central, em algum momento, quando vê o consumo
retomando um pouquinho como consequência dessas medidas, vem a público para dizer:
“olha, a gente esperava que os investimentos das empresas é que iam se recuperar primeiro,

e na verdade o que veio
primeiro foi o consumo
das famílias”. Vejam só!

Na prática, isso é só o
atestado de que empresas
não investem quando
não esperam que haja
mercado. Se você não
tiver uma política para
retomada de empregos
e de renda das pessoas,
os empresários não vão
investir com base numa
suposta confiança, nessa
mística que vem sendo
propagandeada.

Alguns economistas defendem que o Brasil adote a chamada Taxa Neutra de Desemprego,
ou seja, um nível de desemprego aceitável (em torno de 9% no Brasil), em nome de combater
inflação. O que você acha disso?

Essas variáveis não observáveis na economia, em geral, servem para justificar realidades
bastante tristes para as pessoas. Há várias dessas variáveis criadas nos modelos econômicos
para justificar realidades dramáticas. A ideia da Taxa Neutra de Desemprego, a que não

REVISTA DA CAASP 11 ENTREVISTA | LAURA CARVALHO

geraria inflação, é uma dessas coisas.

Na prática, o que a gente vê é que a inflação brasileira é gerada por motivos diversos, nem
todos eles relacionados a um “problema” de pleno emprego. Estamos muito longe de um
ponto em que o emprego seja tão elevado que gere uma dificuldade de a oferta acompanhar
a demanda. O que a gente vê é uma inflação de serviços – restaurantes, salões de beleza
etc. – quando os salários crescem mais rápido. Nos setores que respondem muito a salários
os preços crescem mais rápido nessas situações. Em compensação, há outros setores cujos
preços crescem mais devagar.

Na verdade, o grande problema aqui no Brasil, que não foi combatido da forma correta,
é que você tem um crescimento lento da produtividade do trabalho e uma concentração
muito grande da estrutura produtiva nos serviços, além de uma estrutura de indexação de
contratos, por exemplo, aluguéis, que são indexados à inflação passada. Pequenos choques
geram grandes efeitos inflacionários, e aí os economistas vão lá e interpretam isso como um
motivo para botar o desemprego lá em cima para conter a inflação.

Não! Nós não queremos essa forma de resolver. Nós queremos uma solução que implique
menos custos para a sociedade.

Você mencionou a baixa produtividade do trabalho no Brasil. Há um estudo de Fernando
Holanda Barbosa Filho e Fernando Veloso, ambos do Ibre / FGV, mostrando que o aumento
da informalidade no trabalho derruba a produtividade. Com o aumento da informalidade
do trabalho no país, para onde vai a nossa produtividade?

Há muitas falsas promessas, inclusiva com a reforma trabalhista. A reforma trabalhista vem
sendo apresentada como a solução para o problema da informalidade. Considera-se que, ao
precarizar as relações de trabalho, você vai formalizar. Esquece-se de que, ao precarizar e
flexibilizar as leis trabalhistas, você aumenta a pejotização,
por exemplo, que não é informalidade no sentido estrito,
porque está dentro da lei, mas na prática implica relações de
trabalho extremamente vulneráveis que podem reduzir os
ganhos de salário. Ao reduzir os ganhos de salário, você não
só tem efeito sobre o nível de atividade econômica, porque
o consumo e a demanda acabam ficando ainda mais frágeis,
como também há evidências de que a produtividade do
trabalho cresça mais devagar.

Portanto, esse não é um tipo de alternativa de crescimento
de longo prazo, ao contrário do que vem sendo veiculado.

Mas, apesar da queda no começo deste ano, de um ano
para cá o emprego formal não aumentou?

Se você olhar para os dados, só o que está sendo gerado
é emprego por conta própria, sem carteira assinada, isso
até os jornais têm veiculado. Não há dúvida de que estamos
falando de um mercado de trabalho que ainda patina, e
numa economia que tem abundância de mão de obra.
Mão de obra menos qualificada, é verdade, e que só será

LAURA CARVALHO | ENTREVISTA 12 REVISTA DA CAASP

empregada se os setores de construção etc. forem
retomados.

Essa ideia de termos que aceitar um desemprego SE VOCÊ NÃO
neutro significa dizer que também temos que aceitar TIVER UMA
o nosso nível de desigualdade social, que é bastante
elevado. Quem está desempregado? Quem perdeu POLÍTICA PARA
o emprego com a crise? São os trabalhadores mais RETOMADA DE
vulneráveis, que estão na base da pirâmide e que não EMPREGOS E
terão chance de voltar para a sociedade de consumo DE RENDA DAS
e ter uma vida digna se essa taxa for mantida assim. PESSOAS, OS
EMPRESÁRIOS
Por que a taxa Selic cai e os juros bancários não
acompanham? NÃO VÃO
INVESTIR COM
Sempre que a Selic cai “descobre-se” que a taxa
aplicada pelos bancos não segue exatamente a taxa BASE NUMA
do Banco Central, e aí, finalmente, como ocorreu em SUPOSTA
2012, os diferentes setores que até então culpavam
em tudo o governo pelas taxas de juros elevadas, CONFIANÇA.
percebem que se trata de coisas diferentes: uma, é a
taxa de juros do Banco Central, que caiu por conta de
um cenário externo favorável e da própria queda da
inflação; e outra são as taxas cobradas pelos bancos.

Embora a Febraban indique que o problema é a
inadimplência, a gente vê que a inadimplência vem

caindo e o spread aumentou. Também vemos que
a Selic caiu e o spread aumentou. Então, começam
a faltar pretextos à Febraban para justificar essa
aberração brasileira – acho que só Madagascar tem
spreads bancários maiores que o nosso.

Em 2012 e 2013, no Governo Dilma, também se
percebeu que havia um problema, já que a queda
da Selic não se transmitia para os spreads. O que
ela fez? Ela fez algo que descontentou muito o setor
financeiro. Eu tenho críticas contundentes à redução
da Selic naquele momento, que eu acho ter sido
rápida demais, acabou gerando inflação etc. Mas
uma coisa que a Dilma fez, e que eu acho que era
um experimento empírico que nos prova ser possível
aos bancos reduzir os spreads, é que ela, ao forçar
o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal a
reduzirem suas próprias taxas de juros, ela obrigou,
apesar de toda a resistência inicial, ela obrigou os
bancos privados a fazerem o mesmo, caso contrário
eles perderiam todos os clientes para o Banco do

REVISTA DA CAASP 13 ENTREVISTA | LAURA CARVALHO

Brasil e a Caixa. Ali, provou-se que o problema é de falta de concorrência.

Há um contra-argumento, segundo o qual o Banco do Brasil e a Caixa ficaram com a
inadimplência.

Não é verdade. Se gente olha para os lucros do Banco do Brasil e da Caixa, eles vão muito
bem, obrigado. Desde então, aliás, passaram a ocupar não só uma fatia maior no mercado
de crédito como também aumentaram seus lucros substancialmente. Os outros também
tiveram de reduzir suas taxas de juros, todo mundo teve de fazer o mesmo.

Quanto à inadimplência, as pessoas acham que ela é independente da taxa de juros. Na
prática, quanto mais alta a taxa de juros, mais alta a inadimplência – é uma via de mão dupla.

O que acontece é que os bancos brasileiros mantêm um rendimento muito alto sobre os
títulos públicos, que são livres de risco, e com isso eles exigem um rendimento altíssimo para
fazer operações de crédito que têm algum risco.

Não seria bem-vinda uma maior concorrência entre os bancos privados? O Brasil não precisa
de mais bancos?

O que os bancos públicos fizeram foi justamente criar maior concorrência bancária. O fato é
que o oligopólio que temos no nosso setor bancário também é presente no setor bancário
de vários outros países do mundo. Claro que a gente gostaria de ter maior concorrência, mas
há uma tendência à concentração bancária, e nem toda concentração bancária gera esse
nível de spread. Então, estamos numa armadilha um tanto quanto peculiar.

É claro que o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) poderia ajudar, impedindo
fusões que continuam a ocorrer e que envolvem o setor financeiro – há pouco tempo tivemos
Itaú e XP Investimentos, por exemplo. Agora, por outro lado, acho que até aqui o que se

LAURA CARVALHO | ENTREVISTA 14 REVISTA DA CAASP

viu de eficaz foi mesmo utilizar os bancos
públicos como concorrentes.

ESSA IDEIA DE Na época das privatizações – a do Banespa,
TERMOS QUE ACEITAR por exemplo –, foi dito que ao abrir para
concorrência privada se resolveria o
UM DESEMPREGO problema. Abriu-se para concorrência
NEUTRO SIGNIFICA privada e na verdade criaram-se esses
DIZER QUE TAMBÉM grandes oligopólios e não se resolveu o
TEMOS QUE ACEITAR problema. Não vejo, portanto, razão para
O NOSSO NÍVEL DE não utilizar os bancos públicos para esse
fim, como foi feito. E acho que, se não
DESIGUALDADE houvesse tanta ideologia atualmente no
SOCIAL. governo - que aliás tem reduzido o papel
dos bancos públicos, está quase que
tentando eliminar o papel dos bancos
públicos e do crédito direcionado – , o
governo teria percebido que os bancos
públicos são um instrumento importante
e poderoso que ele tem em mãos.

O economista André Lara Resende, um dos formuladores do Plano Real, publicou um artigo
no jornal Valor Econômico um ano atrás, depois lançou um livro a respeito (“Juros, Moeda e
Ortodoxia”), em que expunha uma tese nova. O texto de Lara Resende provocou estupefação
entre os economistas ortodoxos, já que a nova tese inverte a relação entre juro e inflação.
Resumidamente, ele afirma que juro alto, no longo prazo, faz a inflação subir, e vice-versa,
justamente ao contrário do que dizem os manuais da ortodoxia econômica. O que você
acha dessa tese?

Eu não compro essa teoria dele, que tem por trás uma espécie de monetarismo revisitado.
Parece, na tese dele, que o estoque da dívida pública afeta diretamente a inflação, e essa não
é a teoria de inflação na qual eu acredito. Por outro lado, eu valorizo muito uma parte do que
ele aponta, que é esse efeito da política do Banco Central de que quando você aumenta a
taxa de juros – no Brasil isso é ainda mais forte, por conta do tipo de título público que temos
indexado à Selic – você gera um custo fiscal, porque você bate diretamente no pagamento de
juros que o governo faz sobre a dívida pública.

Então, a política monetária, ainda que eu não acredite que ela tenha um efeito de aumentar
a inflação ao elevar os juros, ela tem que perceber que alguns de seus efeitos prejudicam
a própria dinâmica de estabilização da dívida, e esses instrumentos de política monetária e
política fiscal têm de estar melhor coordenados para um ambiente macroeconômico mais
saudável.

Tem um lado que o André Lara Resende aponta que é relevante: o exagero e o problema do
regime de metas de inflação, que usa os juros como único instrumento para controlar uma
inflação que às vezes não tem nada a ver com os juros.

No geral, então, Lara Resende não agradou nem a ortodoxos nem a heterodoxos.

A teoria dele é muito específica. Eu acho que embute uma série de pressupostos que não

REVISTA DA CAASP 15 ENTREVISTA | LAURA CARVALHO

se refletem na economia brasileira. Aliás, a teoria foi um pouco desmentida, porque a dívida
pública continua a aumentar e a inflação está abaixo do piso da meta.

Eu gosto muito das teorias antigas do André, como nos anos 80, quando ele tratava da inflação
inercial, dos conflitos distributivos sobre a renda como forma de gerar inflação, o efeito dos
salários na inflação e tal, que tiveram muito a ver inclusive com o desenho do Plano Real, e
que são teorias, na prática, heterodoxas.

Os economistas do Plano Real costumam dizer que o pensamento deles se modernizou.

Pode até ser, mas o problema é que a economia brasileira continua com muitos dos problemas
que ela sempre teve. Então, não sei o que quer dizer modernizar-se do ponto de vista da
explicação dos fenômenos. Ao mesmo tempo, a gente observa que a teoria econômica no
mundo não foi capaz de perceber que vinha uma crise como a de 2008, e não foi capaz de
remediar essa crise.

Toda essa teoria econômica “moderna” está sendo
revista, ela está se tornando mais moderna ainda,
ou seja, está sendo jogada no lixo.

A desindustrialização brasileira já vem de décadas.

O QUE Há economistas que insistem muito na adoção de
ACONTECE É uma política industrial forte, como Bresser-Pereira e
QUE OS BANCOS Nélson Marconi; e outros, como Samuel Pessôa, que
BRASILEIROS não veem gravidade na nossa desindustrialização
MANTÊM UM se ela decorrer de um movimento natural da
economia. Qual o seu pensamento a respeito?

RENDIMENTO Eu tenho uma visão que destoa tanto da do Samuel
MUITO ALTO quando da do Bresser nesse aspecto. É verdade
que a gente, ao fazer a abertura comercial no
SOBRE OS
TÍTULOS
fim dos anos 80, prejudicou muito os setores da

PÚBLICOS, QUE indústria que tínhamos desenvolvido nos anos 70.
SÃO LIVRES DE Também tendo a concordar com o fato de que uma
economia em que haja apenas crescimento dos
RISCO. setores de serviços e de commodities tem problemas

estruturais, como ocorreu nos anos 2000, com uma

inflação de serviços que acelera muito quando se

distribui a renda. Há o problema de desequilíbrio

comercial que pode surgir por conta de importações

muito elevadas. Você tem também questões ligadas

ao crescimento mais lento da produtividade do trabalho, tudo isso ligado a uma economia

que é só de serviços.

Mas eu não acho que a solução para o problema seja tornar o desenvolvimento da indústria
um fim em si mesmo, partindo da ideia de que devamos desvalorizar o real para competir
com o resto do mundo. Também não acho que devamos ficar dando incentivos como fez a
Dilma, desonerando setores naquela estrutura que tínhamos. Não são coisas que a gente quer
ver numa estrutura produtiva do Século XXI. Segundo, além de ficar dando esses incentivos
custosos, essa desvalorização do real que o Bresser propõe, se fosse para realmente ter o

LAURA CARVALHO | ENTREVISTA 16 REVISTA DA CAASP

efeito de tornar o Brasil um player no comércio mundial de manufaturados, isso exigiria uma
queda de salários brutal para que conseguíssemos competir com Bangladesh, Vietnã, sei lá
com quem.

Essa ideia de que a gente vai conseguir mimetizar hoje o que fizeram os asiáticos implica
numa redistribuição da renda contrária aos trabalhadores, o que eu acho que pode minar
a própria estratégia. A gente mata o nosso mercado interno, o nosso mercado de consumo,
em nome de um desenvolvimento industrial com competividade externa. Então, eu não sou
a favor dessa estratégia.

Nós somos um país continental em que as exportações são uma parcela muito pequena da
nossa economia. A nossa estratégia de crescimento tem que ser baseada no nosso mercado
interno. Isso quer dizer não ter qualquer tipo de política para o desenvolvimento produtivo?
Não. Quando você fez investimentos públicos em infraestrutura, saneamento, mobilidade
urbana, complexo da saúde, tecnologia verde, enfim, esses investimentos podem puxar
consigo o desenvolvimento de setores tanto de serviços de alta tecnologia quando de
indústria. Assim você estará desenhando uma política para melhorar serviços e bens públicos
– esse é o objetivo final. Você não estará desenhando uma política para proteger setores de
uma indústria que se desenvolveu no pós-guerra e durante a ditadura militar, que hoje não
terá mais condições mesmo de competir externamente e nem de prover o mercado interno,
porque os nossos salários são mais altos do que os dos países que estão atuando nesses
setores – e eu acho isso ótimo, desejado, pois eu não gostaria de reduzir os nossos salários.

Mas mesmo esse tratamento da questão que você defende exige a definição de uma política
industrial, não?

Eu não gosto de chamar de política industrial, porque não é só a indústria que está envolvida. É
uma política de desenvolvimento produtivo e tecnológico. Há tecnologias também em setores
de serviços, por exemplo no caso de todos os serviços ligados à tecnologia da informação.
Isso tem efeitos também dinâmicos importantíssimos. Sofisticar a estrutura produtiva e ter
mudança tecnológica não necessariamente implica em indústria como fim – eu acho que
às vezes é a indústria, às vezes é serviço –, mas sim, sou a favor de uma política diferente
da que defende o Samuel, por exemplo, que vê da mesma maneira a produção de chips de
computador e chips de batatas fritas (risos). Tampouco acho que a gente tem que orientar a
nossa política, como fez a Dilma em 2014, para atender a interesses da Fiesp etc., que depois
abandona o barco e nem serve para dar base política. Eu prefiro desenhar uma política de
desenvolvimento que tenha a sociedade com objetivo final, e não esses setores industriais
da década de 70, moribundos, que na prática ainda geram empregos, mas só geram esses
empregos porque a gente ainda não desenvolveu outros – eu sou muito a favor de a gente
desenvolver outros.

Todos acham, em graus diferentes, que a tributação no Brasil deve ser mais progressiva.
Por que ninguém tentou ir adiante com uma proposta nesse sentido?

Há uma plutocracia que interdita esse debate. Vê-se no Congresso que nem a eliminação das
desonerações para grandes empresas, feitas no Governo Dilma, conseguem ser eliminadas.
Nem o Governo Temer conseguiu eliminá-las.

Houve propostas de mudanças tributárias, no sentido de maior justiça. Não aquelas que
gostaríamos de ver, mas algumas que também nem chegaram perto de serem aprovadas no

REVISTA DA CAASP 17 ENTREVISTA | LAURA CARVALHO

Congresso. Esse é um ponto que deveria fazer parte

de todos os projetos e ser objeto de muita pressão

pela sociedade. Não basta eleger alguém que tenha

isso como prioridade no Executivo, é preciso se A NOSSA
preocupar na hora de eleger os parlamentares, ESTRATÉGIA DE

Qual reforma tributária você faria? CRESCIMENTO

Uma reforma que aumente muito os impostos TEM QUE SER
sobre a renda e o patrimônio, e que reduza muito BASEADA

os impostos sobre a produção e o consumo. Em NO NOSSO
particular, é uma reforma que cria faixas adicionais MERCADO
no imposto de renda da pessoa física no caso do INTERNO.
0,1% mais rico, que hoje paga menos imposto

do que aquele que está no meio da pirâmide de

distribuição; uma reforma que passe a tributar

dividendos, aqueles lucros distribuídos pelas

empresas às pessoas físicas que desde 1995

são isentas de tributação; uma reforma que tribute mais as heranças, claro que de forma

progressiva, e que tribute mais o patrimônio de forma geral – o IPTU no Brasil também não

é progressivo o suficiente, ainda que essas coisas, várias delas, dependam do Congresso, e

várias outras dependam apenas de vontade política até em outras esferas que não a federal.

Quando você tributa mais os dividendos, você pode reduzir os impostos sobre os lucros das
empresas que são reinvestidos nas próprias empresas. Hoje, o que você tem como incentivo
é que as empresas não reinvistam seus lucros, mas que elas transfiram para os sócios que
depois não pagam imposto sobre aquilo na renda. Você pode reduzir o imposto na empresa
e aumentar o imposto na pessoa física, essa é a ideia, inclusive com efeitos positivos para
investimento em capital produtivo.

Dentro de uma reforma ideal, também há simplificações tributárias que podem acontecer
para evitar tributação múltipla na cadeia produtiva...

E quanto à tributação sobre o consumo?

Reduzir o ICMS é muito importante, por exemplo. Mas a dificuldade é como reduzir o imposto
sobre consumo sem prejudicar o pacto federativo, porque você tem que reduzir mas não
pode tirar poder dos estados e municípios, que muitas vezes têm propostas que mudam
também a distribuição... você tem que criar altos mecanismos compensatórios para isso,
uma reforma ampla, que ataque todos esses pontos.

Por que a classe média americana, mais precisamente a partir do Governo Reagan, vem se
empobrecendo? Por que a desigualdade nos Estados Unidos aumenta desde 1980?

Primeiro, porque a parcela dos salários na renda caiu desde os anos 80 nos Estados Unidos.
Isso ocorre por uma série de razões, inclusive por causa de flexibilização das leis trabalhistas
no país, que tirou o poder de negociação dos trabalhadores. Tem o efeito da globalização
também, o tal do modelo Walmart, em que um modelo de globalização com guerra entre
países faz com que você tente economizar em custo de mão de obra. Isso é um problema
geral no mundo. Acho que a globalização tem efeitos muito negativos, apesar de ter sido

LAURA CARVALHO | ENTREVISTA 18 REVISTA DA CAASP

propagandeada como uma grande promotora de bem-estar. A globalização tem efeitos
muito ruins na distribuição da renda, já que os países ficam tentando competir reduzindo o
custo do trabalho.

Além disso, o Governo Reagan aplicou aquilo que agente chama de tricle down econômico,
essa ideia de que ao reduzir impostos para os mais ricos você vai beneficiar o conjunto
da sociedade porque esse imposto iria gotejando para a base. Na prática, isso se mostrou
equivocado não só nos Estados Unidos, mas em muitos lugares, como aqui: o Governo Dilma
fez algo parecido com as desonerações para as grandes empresas.

O modelo Reagan, inspirado pelos economistas da Escola de Chicago liderados por Milton
Friedman, de certa forma espalhou-se pelo mundo, não?

Margareth Tatcher no Reino Unido é o principal exemplo. Modelo que busca aumentar a
parcela dos lucros da renda e reduzir a parcela de salários tem como consequência o
aumento da desigualdade, que é o que o Picketty (Thomas Picketty, economista francês autor
do best-seller econômico “O Capital no Século XXI”) apontou no livro dele. A gente está vendo um
endividamento das famílias da classe média americana excessivo como forma de compensar
os salários mais baixos. Essa é uma das faces da crise de 2008.

A maneira como a crise de 2008 foi, em tese, solucionada, com o governo dos Estados
Unidos transferindo grande volume de dinheiro aos bancos e às seguradoras, foi correta?
Lembremos que só o Lehman Brothers quebrou. Seria muito simplista dizer que o governo
poderia socorrer diretamente as famílias prejudicadas pela explosão das hipotecas?

Acho que é simplista pelo simples fato de que a economia está tão financeirizada, que

não socorrer os bancos naquele momento

significaria uma crise ainda mais profunda. O

problema desses setores financeiros enormes

é que eles não estão beneficiando mais

investimento, em mais capital para investir QUANDO VOCÊ
como era prometido, mas eles conseguem TRIBUTA MAIS
prejudicar bastante a economia quando há

uma crise, não é? O benefício que eles não OS DIVIDENDOS,
trazem, eles trazem de custo. PODE REDUZIR OS
IMPOSTOS SOBRE
Por outro lado, temos uma armadilha,
porque no momento em que eles têm esse

tamanho, se você deixa uma crise bancária OS LUCROS DAS
quebrar o sistema financeiro inteiro, muito EMPRESAS QUE
provavelmente você teria uma crise de SÃO REINVESTIDOS
emprego ainda mais profunda. Não era

possível fazer isso, mas era possível destinar NAS PRÓPRIAS
mais recursos também para as famílias e EMPRESAS.
para garantir os empregos, e sobretudo na

periferia europeia, que sofre os sintomas da

economia global e onde a crise foi ainda mais

dramática.

Mas esse fato foi notado, não? A plataforma

REVISTA DA CAASP 19 ENTREVISTA | LAURA CARVALHO

da candidata Hilary Clinton não apresentava
projetos nessa linha?

Sim, sim. Veja, eu acho que agora o debate no
mundo, no centro do capitalismo financeiro
mundial, o que é muito curioso, ele está muito
menos conservador do que o debate econômico
aqui no Brasil, por exemplo. No Brasil o debate
é quase uníssono em defender as políticas de
redução de salário, as politicas que elevam o
desemprego etc. No debate eleitoral - tanto
no norte-americano quanto no britânico, com
Bernie Sanders e Jeremy Corbin, e no caso do
Sanders ele acabou sendo incorporado pela
Hilary - envolveu-se uma discussão muito mais
profunda sobre o efeito ruim da desigualdade
para o desenvolvimento econômico, sobre a necessidade da distribuição da renda, da
geração de empregos.

Você, ministra da Fazenda, privatizaria alguma coisa? Estatizaria alguma coisa?

Esse debate vem sendo dominado por muita ideologia. Na prática, o que não pode ser
privatizado? Aqueles bens públicos que dependem do Estado para que seja coordenado,
para que haja os investimentos necessários. Muitas vezes a privatização tem um custo que
é deixar de ter a provisão daquele serviço nos lugares onde ele não é lucrativo. Em tese, as
agências reguladoras fariam o papel de obrigar essas contrapartidas a ocorrerem, para que
as empresas privadas fizessem os investimentos necessários nas respectivas áreas, para que
elas levassem o serviço para todo mundo mesmo nas áreas mais remotas.

Na prática, o que aconteceu no Brasil? Nós tivemos uma série de privatizações no nos anos 90
que em tese seriam de áreas que poderiam ir para o setor privado e serem reguladas, como
a telefonia, as comunicações, distribuição de energia, água, aeroportos etc. O que se viu na
prática? Houve uma crise de racionamento de água em São Paulo, temos serviços péssimos
por parte das operadoras de comunicação, junto com tarifas elevadíssimas. Ou seja, aquela
ideia de que aumentar a concorrência vai melhorar para o consumidor... a mesma coisa nas
aéreas.

Claro que ninguém tem saudade do Sistema Telebrás, que também tinha enormes problemas,
mas a gente está vendo que entregar para o setor privado não resolve. Entregar para o setor
público também não resolve necessariamente. Então, veja: o importante não é definir se está
no privado ou no público; o importante é dar controle social para o serviço, aumentando as
formas de cobrança e a transparência. Isso tem que ser feito tanto pelas empresas públicas
quanto pelas privadas.

Portanto, acho que a discussão deveria ser muito mais sobre controle social do que sobre
quem detém. Agora, claro, é mais fácil fazer controle social quando a empresa é pública.
A gente vê que a Anatel, por exemplo, está capturada por interesses privados porque as
empresas conseguem colocar lá os seus representantes e com isso dificultam que aquilo
sirva aos consumidores.

LAURA CARVALHO | ENTREVISTA 20 REVISTA DA CAASP

A economia ainda tem em Keynes e Hayek seus
dois grandes polos?

Você pode sempre se aproximar mais de um do A
que de outro, mas veja: o tema da desigualdade, GLOBALIZAÇÃO
que é cada vez mais central para a macroeconomia
hoje, não estava presente no debate entre eles. TEM EFEITOS
Tem muitas compreensões, por exemplo, sobre MUITO
por que as economias têm crescimento menos
duradouro e menor quando são desiguais. Isso RUINS NA
tudo vem de debates novos empíricos e teóricos, DISTRIBUIÇÃO
os quais até o FMI agora está debatendo. A própria
evidência empírica de que a globalização não gera DA RENDA,
esses benefícios todos é um debate que não estava JÁ QUE OS
em Keynes versus Hayek. PAÍSES FICAM
TENTANDO
Embora eu ache que o pensamento keynesiano COMPETIR
tem uma importância muito grande para o REDUZINDO
desenvolvimento da macroeconomia, eu também O CUSTO DO
acho que há muitos temas que não estavam ali TRABALHO.
e que têm a ver com a própria transformação do
mundo, como o papel do setor financeiro etc., em
relação aos quais você precisa de muitos outros
pensadores para conseguir entender.

Os princípios da Cepal (Comissão Econômica
para a América Latina e o Caribe), definidos por
economistas do quilate de Celso Furtado e Raúl
Prebisch, ainda são aplicáveis ao Brasil?

Acho que sim. O pensamento cepalino é uma das
coisas que fogem a essa dicotomia Keynes versus Kayek e que para entender as economias
latino-americanas tem uma enorme importância, não só para entender qual é a diferença
em estar no centro do capitalismo ou na periferia, e por que teorias que valem para o centro
não valerão para a periferia. Isso é uma compreensão fundamental, afinal, a nossa estrutura
produtiva é diferente, os nossos problemas estruturais e a nossa inflação são diferentes.
O lugar em que estamos, onde esses fluxos de capitais financeiros fazem que estejamos
sempre vulneráveis a choques externos, também nos coloca numa forma diferente de pensar
a macroeconomia.

Embora os problemas hoje não sejam exatamente os mesmos da época do surgimento do
pensamento cepalino, é possível imaginar um pensamento cepalino do Século XXI, que trata
de problemas do Século XXI colocando a devida importância nas particularidades de cada
pais, na história de cada país, na hora de desenhar suas politicas, que não são políticas que
você tira dos manuais de introdução à economia.

O que significa a volta da Argentina ao FMI?

Eu acho que na verdade, a gente está diante de uma das armadilhas macroeconômicas que
América Latina tem vivido há muitas décadas, e que tem a ver com essa vulnerabilidade

REVISTA DA CAASP 21 ENTREVISTA | LAURA CARVALHO

externa, que tem a ver com o fato de que sempre que algo muda nos mercados financeiros
mundiais, isso bate muito fortemente aqui. No caso argentino, muito mais que no caso
brasileiro, porque a gente conseguiu eliminar nossa dívida externa e ter mais reservas
internacionais, e eles não. Uma parte da dívida pública argentina continua nas mãos de
credores externos.
Isso tem uma dupla face. Você, quando tenta recontrolar a inflação, você tem que ficar
usando a taxa de juros para atrair capital. Quando alguma coisa muda lá fora, você tem que
subir a taxa de juros de forma desproporcional, gerando custos para a dívida pública, que é
algo com que a gente está familiarizada. Só que lá, além disso, há uma taxa de inflação muito
mais elevada que a nossa e um problema de dívida externa que a gente não tem.
A moral da história vai na direção de que se você quer evitar esse tipo de choque e criar as
condições para que pequenos movimentos financeiros internacionais não gerem grandes
consequências para o país, você precisa começar a pensar em mecanismos de controles
de fluxo de capitais especulativos, de regulação dos mercados financeiros domésticos, de
eliminação dos mecanismos de propagação da inflação para a economia – a indexação -, ou
seja, coisas que criam condições para que a gente esteja mais blindada contra esse tipo de
movimento.
O que não se fez na Argentina foi perceber que se tratava de um problema macrocomplexo,
e se acreditou que aquele cenário benéfico internacional duraria para sempre, e que se
poderia aplicar simplesmente as soluções de manual – regime de meta de inflação, câmbio
flutuante – que estaria tudo resolvido.
O seu livro recentemente lançado, “Valsa Brasileira”, é destinado exclusivamente a iniciados
em economia?
É para pessoas que se interessam por economia. Isso significa pessoas que, por exemplo, já
leem as colunas que eu escrevo e outras coisas no jornal na área de economia, mas não é
um livro técnico ou acadêmico, que exija conhecimentos profundos de teoria econômica. O
que você vai ver é uma historinha contada do jeito mais acessível possível, mas que é uma
história que envolve elementos da macroeconomia, por exemplo, como a inflação bate no
salário, no PIB. Essas coisas são presentes, porque é uma história macroeconômica do país
nas últimas décadas, mas não foi escrita para economistas.

LAURA CARVALHO | ENTREVISTA 22 REVISTA DA CAASP

REVISTA DA CAASP 23 ENTREVISTA | LAURA CARVALHO

Fotos Ricardo Bastos

ENTREVISTA

SAMUEL
PESSÔA

SAMUEL PESSÔA | ENTREVISTA 24 REVISTA DA CAASP

Samuel Pessôa é um polemista nato. Seu O GOVERNO
debate com o filósofo Ruy Fausto, professor TEMER PRATICA
emérito do Departamento de Filosofia da O RIGOR FISCAL
USP, ocupou páginas e páginas da caudalosa
revista piauí no ano passado, quando ele POSSÍVEL.
tentou mostrar evidências de que os governos
FHC não foram neoliberais, mas social- [Revista da CAASP] – No primeiro
democratas. Cossignatário de artigos com o quadrimestre do ano, arrecadação,
colega economista Marcos Lisboa, presidente emprego e resultado primário
do Insper, travou uma boa discussão nas decepcionaram. O Governo Temer erra na
páginas da Folha de S. Paulo com o ex-ministro condução da economia?
da Fazenda Nélson Barbosa. Quando esta
entrevista estava sendo transcrita, Pessôa [Samuel Pessôa] – Eu acho que ele não
acabara de classificar o ex-presidente do está errando. Evidentemente, houve aquele
Ipea Márcio Pochmann de populista, porque problema político gravíssimo, a divulgação
este dissera que a chave para a retomada da conversa do presidente no Jaburu com
do crescimento da economia brasileira era o o empresário Joesley Batista, em maio do
aumento dos gastos públicos. ano passado. Isso gerou uma crise política
que acabou inviabilizando a tramitação
Professor da Fundação Getúlio Vargas e de algumas pautas, a mais importante a
pesquisador do Ibre (Instituto Brasileiro de reforma da Previdência.
Ecomomia, órgão da mesma escola), Samuel
Pessôa é um economista ortodoxo aberto A não aprovação da reforma da Previdência
ao diálogo, o que não significa que costume dificulta a recuperação da economia,
mudar seus pontos de vista. Na entrevista porque reduz o horizonte de planejamento
a seguir, concedida ao editor da Revista do empresário, mantém o impasse político
CAASP, Paulo Henrique Arantes, Pessôa com relação à política fiscal. Nós temos um
traz ao leitor ideias que soam como sinfonia déficit fiscal estrutural – o Estado arrecada
aos ouvidos liberais, como a Taxa Neutra de menos do que gasta. Esse déficit não é
Desemprego, que no Brasil estaria em torno cíclico, não é porque a economia entrou
de 9% - isso significa que, alcançado esse em recessão que ele apareceu. A recessão
índice, deve-se interromper a luta pela queda agravou o problema, mas o problema
do desemprego, pois ao contrário estar-se ia vinha de antes. E é estrutural no sentido de
gerando inflação. que é legal: a sociedade fez legislações que
obrigam o Estado a gastar. A sociedade
Ele também não se assusta com a
desindustrialização brasileira. “Se essa é uma
resposta natural do sistema econômico, eu
não consigo ver nenhum problema. Eu não
acho que exista falha de mercado associada
à indústria”, afirma. Confira a seguir.

REVISTA DA CAASP 25 ENTREVISTA | SAMUEL PESSÔA

estabeleceu bases tributárias, e uma coisa não
conversa com a outra.

Esse problema, e o fato de haver um impasse A NÃO
político, ou seja, não estar claro para as pessoas APROVAÇÃO DA
como a política vai equacionar esse problema, isso
sinaliza que tem desequilíbrio e esse desequilíbrio REFORMA DA
não está certo sobre como será solucionado. Pode PREVIDÊNCIA
ser por meio de aumento de carga tributária, pode DIFICULTA A
ser por meio de reformas que reduzam o gasto ou RECUPERAÇÃO
pode ser por inflação. DA ECONOMIA.

Essa incerteza dificulta muito o investimento.
Evidentemente esse choque político engasgou a
pauta política no Congresso Nacional, e isso tem
reflexos sobre a economia. Dito isso, a política
econômica no dia a dia me parece que está certa.

O Governo Temer pratica o rigor fiscal que prega?

Ele está praticando o rigor fiscal possível. Se a gente
olhar o dado no ano passado, houve contração
fiscal.

Acho que o Governo Temer errou logo no início, porque tinha uma série de aumentos para
servidores públicos que o Governo Dilma tinha negociado, mas ela tinha negociado em outra
circunstância. A crise fiscal veio mais forte do que se imaginava, não havia espaço para manter
aqueles acordos, e o Temer manteve.

Mas eu acho que, olhando o pacote como um todo, não sei se outro governo faria muito
diferente do que ele fez. Não há diferença entre a política econômica do Temer e a do Joaquim
Levy, depois a do Nelson Barbosa, durante o Governo Dilma.

A diferença é que o Congresso boicotou tudo que tentou ser feito por Levy e Barbosa, não?

Ah, sim. Mas acho que é um pouco
mais complicado que isso. Logo que o
Levy assumiu, assim que começou o
segundo mandato da presidente Dilma,
ele mandou uma medida provisória
desfazendo a desoneração da folha.
O Renan Calheiros devolveu a medida
provisória para o Levy, dizendo que tinha
que ser via projeto de lei. Então, dentro
da sua afirmação, eles boicotaram.

Agora, falando assim parece que
o Congresso é um bando de gente
malvada. Temos que lembrar que a
presidente Dilma, quando o ministro era
o Guido Mantega, em outubro do ano

SAMUEL PESSÔA | ENTREVISTA 26 REVISTA DA CAASP

anterior, negociou com o Congresso a permanência da desoneração. Essa negociação, feita

em outubro de 2014, com setores da sociedade, de tornar permanente uma medida que era

provisória, que tinha data para acabar (era em 31 de

dezembro de 2014), evidentemente, essa negociação

envolveu diversos grupos empresariais na eleição da

presidente Dilma. Então, em outubro ela disse uma

coisa, em fevereiro ela disse outra. É natural que o

A SOCIEDADE Congresso devolva.

CRIOU Hoje, comemora-se a queda significativa da taxa
LEGISLAÇÕES básica de juros, a Selic, de 14,5% para 6,5%. Por que
os juros bancários não caem? O senhor concorda

QUE OBRIGAM com as justificativas da Febraban? Note-se que o
O ESTADO A presidente Temer andou dando uns sinais de que
pode fazer como o governo Dilma, que usou os
GASTAR. bancos públicos para forçar a queda dos juros para

baixo.

Espero que o presidente Temer não faça isso. A
Dilma fez e deu errado. Essa política da Dilma, de
forçar na marra a queda do spread só gerou uma
coisa: inadimplência na Caixa Econômica Federal e

piora dos balanços e da lucratividade.

O que acontece? Os bancos sabem quem é o cliente ruim e quem é o cliente bom. Quando a
Caixa Econômica faz essa política, o que o banco privado faz? Ele pega o cliente bom e renegocia,
o cliente que é ruim ele manda para a Caixa. A Caixa não sabe quem é bom e quem é ruim. E aí
você vai pegando toda inadimplência do sistema e jogando nos bancos públicos, e essa conta
vai para o contribuinte, porque os acionistas dos bancos públicos somos todos nós.

Agora, tem dois temas. Primeiro, um tema estrutural, que é o elevado spread bancário no Brasil;
e o segundo tema, associado a esse mais não exatamente esse, que é: por que neste ciclo de
queda da Selic o spread não está caindo? São duas coisas diferentes...

A inadimplência caiu.

Caiu muito.

O fato de o spread ser muito alto é complicado, não tem uma causa só. São várias causas. E
não só há várias causas como ele deve variar de linha de crédito a linha de crédito. Se a gente
falar do crédito para a Volkswagen, o spread inclusive deve ser baixíssimo - aposto que o Itaú
empresta para a Volkswagen a juros menores do que empresta para o setor público brasileiro.
Deve ser um spread próximo de zero.

Você tem uma teia de motivos: carga tributária elevada, inadimplência elevada, custo de
recuperar garantia elevado, compulsórios muito elevados e baixa competição. A própria Selic
elevada é uma coisa que gera spread elevado. Se você imaginar um banco bem simplificado,
a taxa de lucro de um banco deve ser o spread dividido pela Selic. Quando a Selic cai, para a
fração ficar constante o spread cai. Se a taxa básica é alta, só isso já faz o spread ser maior.
Então, é uma soma de coisas e tem-se que atuar em todas elas.

REVISTA DA CAASP 27 ENTREVISTA | SAMUEL PESSÔA

Eu fiquei chateado quando o Bradesco comprou o HSBC, porque se tirou um agente participante.
Eu acho que foi ruim, talvez o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) devesse ter
impedido a compra. Eu também acho que um dos motivos que explicam os altos spreads no
Brasil é metade do setor bancário ser público. A gente sabe que o setor público é ineficiente.
Imagine você, sendo um privado, e quem compete com você é alguém ineficiente, que tem lei
de licitação e uma série de restrições para operar – isso facilita a vida do privado.

Suponhamos que o governo atuasse para impedir o HSBC de sair do Brasil. Imagine algo como
o governo dizendo: “Eu vou vender a Caixa para vocês, e vocês ficam aqui”. O HSBC teria a rede
da Caixa, que ajudaria ele a competir com o Itaú e com o Santander. Lembre-se: o HSBC saiu
do Brasil porque estava com prejuízo. Veja: o spread bancário é alto, mas o HSBC, que operava
toda a rede do Bamerindus e que era um banco internacional eficiente, estava com prejuízo no
Brasil.

Se a coisa fosse simples, um player como o
HSBC estaria tendo lucro.

APOSTO QUE O ITAÚ Uma certa ganância por parte dos bancos
EMPRESTA PARA não é um dos motivo de spread manter-se
A VOLKSWAGEN A tão alto?

JUROS MENORES DO Se isso fosse verdade, por que o HSBC tinha
QUE EMPRESTA PARA prejuízo?

O SETOR PÚBLICO Ora, mas os lucros dos bancos em geral – Itaú,
BRASILEIRO. Bradesco, Santander e outros – continuam
altíssimos como sempre, e subindo.

Sim. Mas por que o HSBC não conseguiu
enfrentar a competição? Por que o Banco do
Brasil e a Caixa Econômica não têm lucros tão
elevados?

Mas por que os lucros precisam ser tão
elevados?

Então, mas a coisa é mais complicada do que você está pensando. Se esse fator (ganância) fosse
tão importante, Banco do Brasil e Caixa Econômica estariam com lucros altíssimos e o HSBC
não tinha saído do Brasil.

A solução para o spread alto, então, seriam mais bancos?

Eu acho que é uma soma de coisas. Uma consolidação fiscal que reduza permanentemente
a taxa Selic vai ajudar. Uma consolidação que permita que o Banco Central reduza muito os
compulsórios também ajuda – os compulsórios são altos também por questão fiscal. Uma
consolidação fiscal que permita que nós consigamos reduzir a tributação sobe o setor ajuda.

Eu acho que uma série de medidas para aumentar a competição... a gente tem no Congresso
agora a legislação do cadastro positivo. A Caixa tentou fazer uma política de baixar o spread, e
por que não serviu? Porque os bancos privados seguram os bons clientes, pegam o rebotalho
e mandam para o setor público, daí o setor público fica com a inadimplência porque pega
os maus clientes e essa conta vai para o contribuinte. Agora, se os bancos públicos tivessem

SAMUEL PESSÔA | ENTREVISTA 28 REVISTA DA CAASP

um bom cadastro para extinguir,
eles poderiam brigar pelos bons
clientes como Itaú, Bradesco
e Santander – talvez assim a
política da Dilma fosse mais bem
sucedida, com os bancos públicos
com mais informação.

Para aumentar a competição
nos bancos, um elemento muito
importante é reduzir o custo de
informação. Também a gente
poderia imaginar que tem toda
uma agenda de tornar os bancos
menores mais interessantes.
Por um lado, tem que reduzir
a regulação sobre os bancos
menores – os bancos menores
são tão regulados quanto os
grandes, e são coisas diferentes.

A desregulamentação não pode gerar outros problemas?

Sim, por isso eu digo que é só para os menores, para aqueles que não são too big to fail (“grandes
demais para quebrar”). Agora, você tem toda razão. Tem que reduzir o peso regulatório dos
menores, mas melhorar a legislação de falência bancária, para quanto ocorrer uma falência
bancária, você conseguir impor perdas aos proprietários dos bancos, e não jogar toda essa
conta no Fundo Garantidor de Crédito, como temos feito nos últimos anos.

Agora, tem a segunda pergunta que você me fez: por que essa queda da Selic está sendo
repassada tão lentamente para o spread? Eu acho que tem duas coisas aí. Uma é que a crise foi
tão severa que o Judiciário, por preocupações legítimas sociais, começou a mudar uma série
de jurisprudências a respeito de contrato de crédito, favorecendo o devedor contra o credor,
no caso, os bancos. Um exemplo no setor imobiliário foi como o Judiciário tratou o distrato.

A mudança de jurisprudência de uma série de formas contratuais enfraqueceu a capacidade
dos bancos de recuperar empréstimos. Esse contrato de empréstimo é muito dramático,
porque você empresta alguma coisa e o juro é o serviço daquilo. Quando o cara dá calote, não
é que o banco perdeu só o juro – o banco perdeu o principal.

O economista André Lara Resende, um dos formuladores do Plano Real, publicou um artigo
no jornal Valor Econômico um ano atrás, depois lançou um livro a respeito (“Juros, Moeda e
Ortodoxia”), em que expunha uma tese nova. O texto de Lara Resende provocou estupefação
entre os economistas ortodoxos, já que a nova tese inverte a relação entre juro e inflação.
Resumidamente, ele afirma que juro alto, no longo prazo, faz a inflação subir, e vice-versa,
justamente ao contrário do que dizem os manuais da ortodoxia econômica. O que o senhor
acha desse novo paradigma?

O primeiro artigo em resposta ao André Lara Resende foi meu, em coautoria com o Marcos
Lisboa (economista, presidente do Insper). Eu acho que aquilo é uma bobagem. Acho que o André

REVISTA DA CAASP 29 ENTREVISTA | SAMUEL PESSÔA

Lara Resende está errado, acho que ele

não contribuiu para o debate. Acho que foi

ruim. A evidência que a gente tem de que o

A EVIDÊNCIA DE modelo ortodoxo funciona é muito grande.
QUE O MODELO Não tem nenhuma evidência empírica do
que ele falou.

ECONÔMICO Os modelos macroeconômicos modernos,

ORTODOXO que são os modelos que têm expectativas
FUNCIONA É MUITO racionais, são modelos que têm
propriedades matemáticas interessantes.

GRANDE. Eles têm múltiplas soluções e, de fato, pode
ter soluções esquisitas. A teoria de equilíbrio

geral, com expectativas racionais, ela não

serve para dizer o que está certo e o que

está errado. Aquela formulação matemática

é tão ampla, que ela sustenta qualquer

tipo de trajetória. Para esse caso, a teoria não auxilia muito. Você pode é se fiar na evidência

empírica, não tem muito mais coisa do que isso.

A gente sabe desde os anos 70 que o modelo de equilíbrio geral gera qualquer tipo de trajetória
possível, são resultados que o pessoal que trabalha com teoria conhece. Então, a discussão
tem que ser empírica, não teórica. Empiricamente, a evidência que a gente tem de que o
modelo básico funciona para o Brasil e funciona para os Estados Unidos é cavalar. Não acho
que, mesmo nos Estados Unidos, nessa situação em que está agora, com juro próximo de zero
e tal, não dá para dizer que a teoria tradicional falhou, que a teoria ortodoxa falhou. Eu não
vejo nenhuma evidência empírica disso, e o livro do André Lara Resende também não oferece.

Estamos vendo aqui: fizemos uma política mais ortodoxa, recuperamos as expectativas com
um Banco Central que tem reputação, e a taxa Selic está caindo.

É notória a desindustrialização do Brasil há décadas. Você afirmou que isso não tem muita
importância. Pode explicar?

Pergunto: isso que está ocorrendo é por força de mercado, ou seja, empresários, a partir do que
eles observam no horizonte, tomam decisões e o resultado dessas decisões é essa trajetória de
redução da participação da indústria no PIB? Ora, se essa é uma resposta natural do sistema
econômico, eu não consigo ver nenhum problema. Eu não acho que exista falha de mercado
associada à indústria.

Tem áreas com falha de mercado. Por exemplo: eu quero tomar empestado para financiar
ensino superior. É difícil, porque o colateral para esse empréstimo é o meu capital humano,
então esse é um mercado de crédito muito imperfeito. Então, crédito estudantil tem que ter
interferência do setor público, em qualquer lugar do mundo tem.

Esse tipo de falha de mercado que eu estou mencionando não existe para a indústria. Não
tem nenhum motivo razoável para a gente achar que a indústria mereça um tratamento
diferenciado.

Agora, eu não vejo sucateamento. Eu discordo dessa expressão. O que existe é que nós

SAMUEL PESSÔA | ENTREVISTA 30 REVISTA DA CAASP

tomamos decisões erradas nos últimos 10 anos, e aí gera sucateamento. Quisemos construir
oito estaleiros na costa brasileira, e isso não funciona. Uma coisa é você fazer o que fizemos
com a Embraer: você vai num lugar, constrói uma escola, junto com a escola constrói um centro
de pesquisa, junto com essa escola e esse centro de pesquisa você começa a construir uma
indústria aeronáutica. Começa pequenininho, desenvolvendo tecnologia, e aí vai achando qual
é o lugar daquele mercado em que você pode contribuir, e você vai crescendo, vende muito,
compra muito. O valor adicionado pela Embraer no avião que ela vende é metade, o resto é
peça importada. Se eu obrigasse a Embraer a ter os requerimentos de conteúdo nacional que
os nossos estaleiros tinham, não teríamos Embraer.

Esse é modelo que funciona. É um modelo pouco ambicioso, que não é caro demais, mas utiliza
muita inteligência, utiliza escola. Foi assim que a Alemanha desenvolveu a indústria química no
final do Século XIX.

Agora, eu não faço nada disso, pego um monte de dinheiro do BNDES e dou para um monte
de gente que nunca fez estaleiro na vida e os caras saem construindo estaleiro nas costas
brasileiras...

Estados Unidos e Alemanha desenvolveram seus parques industriais a partir de uma boa dose
de protecionismo, não?

Isso vale para os Estados Unidos. Não vale para a Alemanha. Se você olhar as séries de tarifas
de importação, a da Alemanha nunca foi muito alta. A Alemanha sempre usou esse modelo
tipo Embraer. Isso que a gente fez na Embraer, que eu acho que é uma coisa que funciona, a
Alemanha fez desde sempre.

Já os Estados Unidos tiveram muito protecionismo. Agora, há um trabalho de um historiador de
Harvard, Jeffrey Williamson, em que ele compara as tarifas de importação dos Estados Unidos
e as da América Latina. Quando os Estados Unidos praticavam tarifas altas, a América Latina
também as praticava. Eu não gosto muito de olhar tarifa, eu olho mais escola. Por outro lado, os
Estados Unidos, em 1750, 20 anos antes da revolução americana, tinham níveis de escolaridade
melhores que os do Brasil de 1950. Então, eu acho que tecnologia e esses setores sofisticados
estão associados ao capital humano, à disponibilidade de gente. E não é só ter o título, só fazer
um curso de engenharia: tem que fazer um curso de engenharia de alto nível.

Você tem uma coisa que é aquela evolução natural da indústria, outra coisa é a gente forçar
a mão em alguns setores, como fizemos com os estaleiros. Aquilo não fica de pé. Naquele
estaleiro de Pernambuco, contrataram-se diversos trabalhadores analfabetos. Eles mandaram
os caras para a escola. Assim, não adianta. É burrice.

Pega todos esses países que têm muita indústria – Japão, Coreia, China. Eles poupam muito e
consomem pouco. A China tem hoje o nível de renda do Brasil: a renda per capita da China hoje
é igual à do Brasil. Nós consumimos 80% do PIB, eles consomem 50%.

Tem gente que acha – o professor Bresser-Pereira, o meu colega Nelson Marconi, da GV de
São Paulo – que a indústria é especial, que produzir bens industriais gera mais crescimento do
que produzir serviços, do que produzir agropecuária. Eu acho que essa proposição não tem
nenhuma evidência empírica e nenhum argumento lógico convincente para ela.

É verdade que lugar que poupa muito tem mais facilidade de ter indústria, por dois motivos:
poupa muito, os juros são baixos. E a indústria tem muito capital, tem mais capital que os

REVISTA DA CAASP 31 ENTREVISTA | SAMUEL PESSÔA

serviços. Se poupa muito e os juros são baixos, aquele setor que utiliza intensamente aquela
coisa que fica barata quando os juros caem, fica mais fácil. Então, todo país que é muito
poupador tem uma tendência a ter mais indústria, porque um insumo importante da indústria,
que o capital, é mais barato, porque os juros são baixos – esse é um motivo.
Outro motivo é que todo mundo que poupa muito consome pouco. Conforme o consumo
como proporção do PIB aumenta, a demanda por serviços naturalmente aumenta – faz sentido,
depois que você já equipou a sua casa. Então, tem uma relação positiva entre demanda por
consumo de serviços e proporção do consumo na renda. Quando mais da renda do país é
destinada ao consumo, mais da demanda do país vai para serviços.

NÃO HÁ MOTIVO RAZOÁVEL PARA ACHAR QUE A INDÚSTRIA
MEREÇA UM TRATAMENTO DIFERENCIADO.

Eu não posso importar ou exportar serviços. Indústria, eu posso importar ou exportar. O lugar
que consome muito tem uma tendência a se especializar em serviços e importar manufaturados,
então a indústria vai ser menor. Lugar que poupa muito e tem pouco consumo vai produzir
poucos serviços, porque tem pouca demanda por serviços.
Então, o consumo não é um bom impulsionador da economia como um todo?
Não. Isso é uma lenda keynesiana que está errada. Quem diz isso fala bobagem. Se você pegar
os países que cresceram muito, eles cresceram com investimento, não com consumo.
Mas o consumo não está relacionado com o bem-estar da população?
Não há a menor dúvida disso. O problema é o seguinte: se você tem muito consumo, você vai
crescer pouco. Tem uma questão básica, que a gente sabe desde lá do Mandeville, da fábula da
cigarra e da formiga, que é: o crescimento envolve uma escolha intertemporal. Então, se você
quer crescer muito, tem que poupar. Para você ter muito bem-estar no futuro, tem que ter um
pouco menos de bem-estar hoje, e isso não tem jeito.
O que ocorre é que o Keynes estava vendo uma situação extrema, que é quando você tem
muito desemprego aberto e juro zero com deflação, que é parecido com o que as economias
centrais tiveram depois da crise de 2008. Nessa situação, o que você falou é verdade. Nessa
situação, estímulos ao consumo põem a máquina para rodar.
Foi o que Lula fez em 2009, correto? Já que você falou da crise de 2008...
Ele fez, mas acho que daquele jeito foi ruim para o país.
E se ele não fizesse naquele momento?

SAMUEL PESSÔA | ENTREVISTA 32 REVISTA DA CAASP

Baixava o juro. Se ele não fizesse todo aquele estímulo de consumo em 2009 e 2010, o
desemprego ia aumentar um pouco mais rápido, a inflação ia cair mais rápido e aí você ia
baixando a Selic. Quando o juro é alto, dá para estimular a demanda reduzindo o juro. E aí é
ótimo, porque ao estimular a demanda reduzindo o juro você consegue duas coisas de uma
tacada só: além de estimular a demanda, você reduz o custo da dívida, porque o juro está
caindo. É ótimo.
Então, de fato, se a gente tivesse sido um pouco menos afoitos em 2008, 2009 e 2010, e tivesse
muito menos na política fiscal e na política parafiscal, nós teríamos feito a transição para juros
estruturalmente mais baixos naquela oportunidade. Nós perdemos uma chance.
Uma questão que é sempre reiterada por seus antagonistas keynesianos. Por que a
desigualdade nos Estados Unidos vem aumentando desde o governo Ronald Reagan? E por
que a classe média americana, hoje, ganha menos proporcionalmente do que ganhava há 40
anos?
Há dois motivos que explicam isso, e esses dois motivos são meio interligados. Um dos
motivos são as novas tecnologias. As novas tecnologias reduziram a demanda pelas médias
qualificações. Reduziu-se a demanda por gente de escritório, puseram-se robôs na indústria
de transformação. Aquela pessoa que tinha o ensino secundário completo, a demanda por ela
caiu.
Por outro lado, essa nova tecnologia aumentou a demanda pelas altíssimas qualificações,
principalmente na área de engenharia, mas também na área médica e na área de advocacia.
Então, você tem o progresso tecnológico que explica esse aumento da desigualdade.
Em cima disso, para piorar a questão, você tem a globalização. Nos últimos 30 anos a Ásia

REVISTA DA CAASP 33 ENTREVISTA | SAMUEL PESSÔA

cresceu muito, a China é um fenômeno – provavelmente o crescimento da China é o fenômeno
mais espetacular que aconteceu na humanidade depois da Revolução Industrial: você tem um
pais com quase 2 bilhões de habitantes que estavam na miséria, e hoje estão com a renda
per capita do Brasil. Esses caras estão produzido coisas e vendendo no mundo. Em 40 anos, a
China pôs 1 bilhão a mais de trabalhadores no mundo. É difícil imaginar que os mercados de
trabalho do resto do mundo não iam ser abalados.

Então, para responder à sua pergunta, temos

tecnologia e globalização. Agora, tem um fato:

a desigualdade dentro dos Estados Unidos

aumentou, a desigualdade dentro da China

O CONSUMO aumentou (antes ela era comunista, eram
todos iguais); mas se você imaginar um país

COMO BOM hipotético, que seria a soma dos Estados
IMPULSIONADOR Unidos com a China, a desigualdade desse país
DA ECONOMIA hipotético caiu. A desigualdade na humanidade
caiu.

É UMA LENDA É uma coisa maluca, porque a desigualdade
KEYNESIANA. dentro dos países aumentou, mas a
QUEM DIZ ISSO desigualdade no mundo caiu. A desigualdade na
FALA BOBAGEM. humanidade é dada pela desigualdade dentro
de cada país e a desigualdade entre países.
Com a globalização e as reformas tecnológicas

desde Reagan, a desigualdade dentro dos

países aumentou, mas desigualdade entre os

países caiu muito. E a queda da desigualdade

entre os países foi tão grande que mais do

que compensou o aumento da desigualdade dentro dos países. A humanidade hoje é menos

desigual, a pobreza é muito menor; a expectativa de vida aumentou em toda parte; a violência

reduziu em toda parte, na média. Hoje a vida é muito melhor.

Agora, qual é o problema? O problema é que a humanidade está muito melhor, mas a unidade
que toma a decisão política é o país. Fenômenos como (Donald) Trump ou o Brexit, você os
explica porque de fato a política dentro de cada país não lidou com esse problema. O fato de a
humanidade estar melhor não importa para o eleitor americano, por exemplo. As instituições
políticas não são supranacionais, mas nacionais. Então, de fato há um aumento da desigualdade
nos Estados Unidos, que não é um problema do mundo, mas dentro daquele país, e que gerou
um desconforto e o resultado desse desconforto foi o presidente Trump.

Eu acho que os republicanos erraram. Eu acho que eles deveriam ter melhorado o estado de
bem-estar social lá. Agora, é fácil falar isso. Eu acho que o Bill Clinton gostaria de ter melhorado
o estado de bem-estar social, mas ele não conseguiu viabilizar isso no Congresso.

O sistema de saúde de Barack Obama foi no sentido do bem-estar social, não?

Foi, e mesmo assim ele acabou não elegendo a Hilary (Clinton).

O que você acha da tributação progressiva da renda como forma de diminuir a desigualdade?

SAMUEL PESSÔA | ENTREVISTA 34 REVISTA DA CAASP

Eu diria que o problema não está no Imposto de Renda. Hoje, as altas rendas no Brasil estão
nos regimes especiais de tributação, que são Simples e lucro presumido. Então, se você hoje
aumentar a progressividade do Imposto de Renda, você só vai pegar servidor público. Todas as
altas rendas no Brasil estão fora do Imposto de Renda de Pessoa Física, então tem que mexer
no Simples (aliás, o Congresso acabou de ampliar o limite) e no lucro presumido. As empresas
que operam no lucro real já pagam um Imposto de Renda de Pessoa Jurídica alto. Por exemplo,
a Natura paga uns 34% de alíquota de Imposto de Renda de Pessoa Jurídica mais Contribuição
Social sobre o Lucro Líquido. Então, não é tão verdade que contribuição sobre o lucro é baixa.
E os dividendos?
Os dividendos já foram tributados na cabeça, no lucro. Você tributa o lucro, e o que sobra
distribui como dividendos, mas já foram pagos 34% antes. Você pode até botar mais 25% em
cima, aí você vai numa tributação de 60%.
O que eu quero dizer é que nos dividendos tem dois problemas: um são os regimes especiais,
Simples e lucro presumido, outro é o lucro real. No lucro real a alíquota já é muito alta para
os padrões brasileiros e mundiais. Acho que a gente caminharia para um modelo de reduzir
alíquota no lucro real e passar a tributar na pessoa física. Até por essa questão de globalização,
as empresas são móveis, podem mudar a sede, as empresas têm mais mobilidade do que a
pessoa física, então faz sentido que o imposto no lucro e na pessoa jurídica seja menor, e que
você crave o lucro e o dividendo na pessoa física. Eu acho que seria um modelo interessante.

É UMA COISA MALUCA, PORQUE A DESIGUALDADE DENTRO
DOS PAÍSES AUMENTOU, MAS A DESIGUALDADE NO MUNDO

CAIU.

Agora, o grupo político que quiser fazer isso tem que dialogar com a sociedade, tem que dizer
que vai fazer isso, porque só se faz isso com maioria no Congresso Nacional. Não vai ser fácil,
pois o Congresso brasileiro tem um perfil mais conservador. Mas política é isso, você tem que
mostrar que o país é desigual.
E o que pode ser feito dos nossos impostos sobre consumo, que recaem igualmente sobre
ricos e pobres?
Todos pagam a mesma alíquota, é verdade. Em todo lugar tem imposto sobre consumo, mas
eu acho que a gente tem demais. Se você olhar o mundo, vou dar um chute, mas é mais ou
menos assim: um terço, consumo; dois terços, renda e propriedade. Acho que no Brasil são
dois terços, consumo; um terço, renda e propriedade. Nós temos que tirar um terço que está
consumo e jogar em renda e propriedade.
Sim, temos que fazer isso, mas é difícil. Temos que lembrar, por outro lado, que o Brasil, pela

REVISTA DA CAASP 35 ENTREVISTA | SAMUEL PESSÔA

renda per capita dele, tributa muito. O Chile tem menos imposto sobre consumo do que nós,
só que a carga tributária no Chile é 22% do PIB, e não 34%. A receita também não foi para o
consumo por uma conspiração, mas porque é difícil tributar. Por que a gente tributa tanto
telefonia, gasolina e energia elétrica? Por que é fácil. Gasolina até tem motivo, por razões
ecológicas, mas os outros não.
Tem uma economia política, os ricos não querendo... mas eu entendo que é menos economia
política e mais uma questão de facilidade da receita arrecadada. Não é para uma economia de
renda baixa como a brasileira tributar 34% do PIB – o nível é muito alto. Nesse nível muito alto, é
difícil a gente reproduzir uma estrutura mais balanceada entre consumo, renda e propriedade.
Mas eu acho que temos que tentar, há alguns caminhos, como esses que eu mencionei aqui.
Um estudo sobre produtividade do trabalho, feito por pesquisadores do Ibre / FGV, mostra
que o aumento da informalidade, que está se vendo no Brasil neste momento, derruba a
produtividade. A nossa produtividade no trabalho me parece que já é baixa. Para onde vamos,
então, com uma reforma trabalhista que informaliza?
A informalidade agora aumentou por causa da crise econômica, não pela reforma trabalhista.
A reforma trabalhista vai na direção de aumentar a formalização. A reforma trabalhista reduziu
o custo do contrato de trabalho. O contrato de trabalho é muito caro no Brasil.
Por que nós tivemos em 2012 nosso menor desemprego, cerca de 4%, sem que fosse necessário
mexer na CLT?
Esse número de 4% todo mundo tem na cabeça. A gente acha que o desemprego em 2003
era 13% e depois foi para 4%. Esse dado existiu e foi divulgado pelo IBGE, mas era relativo à
Pesquisa Mensal de Emprego, que é uma pesquisa que nem existe mais. A PME abrangia as
seis principais regiões metropolitanas do país – Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo
Horizonte, Salvador, Recife. A PME correspondia a 20% do mercado de trabalho brasileiro.
Essa queda de desemprego a que você se refere é o dado da PME. Naquele período em que a
PME indicava uma queda de desemprego de 13% para 4%, a PNAD anual, uma fotografia do
país em setembro, no país todo. Eu poderia pegar a PNAD anual. Se eu fizesse isso, naquele
período em que a PME mostrou uma queda de 13% para 4%, a PNAD anual mostrou uma
queda de 9% para 6,5% - bem menor. Isso significa que aquelas taxas altas de emprego eram
um fenômeno essencialmente metropolitano.

TODAS AS ALTAS RENDAS NO BRASIL ESTÃO FORA DO
IMPOSTO DE RENDA DE PESSOA FÍSICA; ENTÃO TEM
QUE MEXER NO SIMPLES E NO LUCRO PRESUMIDO.

A queda do desemprego no período do petismo foi uma queda importante, expressiva, mas foi

SAMUEL PESSÔA | ENTREVISTA 36 REVISTA DA CAASP

de 9% para 6,5%. E se você pegar os dados da PNA contínua, que substitui a PNAD anual, em
final de 2014, está em 6,5%.
Bem, então esses 6,5% são o percentual que pode ser comparado com os 13% de desemprego
atuais. Temos o dobro de desemprego hoje, portanto.
Exatamente. A crise levou o desemprego de 6,5% a 13%. Mas tem outra coisa a ser lembrada:
aqueles 6,5%, no fim de 2014, eram insustentáveis. Você tinha uma pressão inflacionária muito
grande, a presidente Dilma estava congelando preços de utilidades públicas, tinha feito uma à
força no setor de eletricidade para baixar o preço que não conseguiu se manter.
Tem uma coisa que os economistas chamam de Taxa Neutra de Desemprego. Trata-se da
taxa que mantém a economia crescendo dentro do potencial dela, com a inflação estável. As
pessoas calculam hoje que a Taxa Neutra de Desemprego no Brasil seja alguma coisa como 9%.
Claro, a Dilma fez um monte de políticas artificiais, que artificialmente baixaram o desemprego
abaixo da Taxa Neutra.
Isso significa que quando – e se – o desemprego no Brasil baixar a 9%, devemos parar de
combatê-lo?
Exato.
Agora, dada a reforma trabalhista – e a terceirização foi votada – essa Taxa Neutra deve ter
caído. A gente não sabe para quanto. A gente tem que escolher um novo presidente, votar a
reforma da Previdência, resolver o nosso problema fiscal e botar a economia para crescer. E
ver para onde o desemprego vai.

REVISTA DA CAASP 37 ENTREVISTA | SAMUEL PESSÔA

A Taxa Neutra de Desemprego não
é uma constante da natureza como
a constante gravitacional. Ela é
historicamente determinada e dada
pela institucionalidade. Se você pegar
um país europeu típico e comparar
com os Estados Unidos, o país
tipicamente europeu tem uma Taxa
Neutra de 9% e os Estados Unidos
de 4%. Por quê? Porque nos Estados
Unidos as instituições e o mercado
de trabalho são diferentes das
instituições e do mercado de trabalho
europeus.
O que significa a volta da Argentina ao FMI?
Significa que eles não saem do passado (risos).
O Brasil pode se contaminar pelo problema cambial argentino?
Eu não acho. Essa contaminação ocorre quando o país tem alguma fragilidade patrimonial,
como a que tínhamos no período FHC. Você tinha uma dívida interna, e uma parte dela era
denominada em dólar. O que acontece? As pessoas ficam com medo do país e tiram dinheiro
do país. Ao se tirar dinheiro do pais, o dólar se valoriza. Como a dívida está em dólar, a dívida
aumenta.
Então, esse problema de dívida em outra moeda gera um efeito amplificador: você tem um
choque externo, as pessoas tiram dinheiro, a dívida aumenta, as pessoas ficam com mais
medo e tiram mais dinheiro.
Hoje, temos o contrário no Brasil. Os governos petistas fizeram uma política de acumular
reservas – uma política acertada. A gente deixou o câmbio flutuando. Quando o câmbio flutua
ninguém toma dívida em dólar – o cara fica com medo. Só toma dívida em dólar uma empresa
como a Vale, porque vive de exportar. Então ela pode ter dívida em dólar porque a receita dela
é em dólar.
Esse mecanismo, acumulação de reservas e câmbio flutuante, fez com que nós não tivéssemos
fragilidade patrimonial ligada ao dólar. Hoje, nós temos uma estrutura patrimonial que faz com
que desvalorizações do real reduzam os nossos passivos, isso gera uma força que amortece
os choques em vez de reforçá-los, por isso eu não me preocupo muito com esse problema na
Argentina.

ESPECIAL 38 REVISTA DA CAASP

REVISTA DA CAASP 39 ENTREVISTA | SAMUEL PESSÔA

ESPECIAL

[ reportagem ]

PAULO HENRIQUE ARANTES

VÍTIMAS DA
INEFICIÊNCIA E
DA MOROSIDADE

ESPECIAL 40 REVISTA DA CAASP

REVISTA DA CAASP 41 ESPECIAL

A Justiça brasileira é lenta, diz o mantra. Antonio Araújo (Fotos Públicas) extensos demais. Contundente, como em
O que é notório não precisa ser provado, suas colunas na imprensa especializada,
sentencia o dito popular, em frase de Streck aponta a demora nos julgamentos
fácil contestação. No caso da duração dos como a grande culpada pela lentidão da
processos judiciais, à notoriedade soma- Justiça. “No STJ (Superior Tribunal de Justiça)
se farta comprovação factual. Conforme isso é dramático. Em um país de mais de
o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), a 200 milhões de pessoas, por que só há
taxa de congestionamento do Judiciário 33 ministros na corte? O equivalente ao
(processos sem sentença) chegou a 73% nosso STJ na Itália possui 380 ministros”,
em 2016, percentual que equivale a 80 exemplifica.
milhões de casos. As razões são várias,
por óbvio, e uma das mais alegadas de uns Nobre: “Ha mais servidores no 2º Grau do
tempos para cá é um suposto excesso de que no 1º”
recursos apresentados por defensores.
Os advogados, portanto, ao defenderem O ataque retórico aos procedimentos
seus clientes utilizando os meios previstos legais da defesa costuma classificar de
pela lei, seriam corresponsáveis pela chicaneiros os advogados que apresentam
morosidade da Justiça. recursos aparentemente protelatórios.
Protelar, contudo, não é necessariamente
Dois argumentos bem simples de ilegítimo. “Se é protelatório, deve assim
pronto derrubam essa tese. Primeiro, o de ser declarado. A defesa deve cuidar bem
que a apresentação de recursos cumpre do seu cliente. Recursos demoram porque
obrigatoriamente prazos exíguos. Segundo, não são julgados, não demoram por culpa
o de que em boa parte das vezes, talvez na da defesa ou da parte contrária”, salienta
maioria delas, a solução rápida do litígio é Streck.
o que mais interessa ao defensor.
Visão semelhante tem Marcelo Nobre:
“A tentativa de transferir a “Se olharmos quantas vezes a Justiça
responsabilidade pela demora na só se realiza através dos recursos nos
efetividade judicial à defesa deveria
envergonhar os irresponsáveis que ESPECIAL 42 REVISTA DA CAASP
sustentam essa tese”, afirma o advogado
Marcelo Nobre, que integrou o CNJ de
2008 a 2012. “A experiência no Conselho
ampliou minha visão sobre as causas da
morosidade. Temos uma maioria de juízes
trabalhadores, muito operosos, mas temos
também, infelizmente, aqueles que não
trabalham. Além disso, há mais servidores
do Judiciário lotados no Segundo Grau do
que no Primeiro, o que afeta diretamente a
tramitação célere dos feitos”, observa.

O advogado Lênio Streck, professor da
Faculdade de Direito da Unisinos, diz que
os prazos dados aos recursos nunca são

Thiago Lima tribunais, veremos a importância deles. Pode ser, mas aumentar o número
Se os defensores da tese de que os deles talvez não resolva o problema
recursos são protelatórios conseguirem da morosidade. Para Rubens Glezer,
fazê-la prevalecer, forçando a sociedade professor da Escola de Direito da Fundação
a acreditar que os julgadores não erram, Getúlio Vargas, trata-se de uma questão de
todos estaremos perdidos, inclusive esses qualidade, acima da quantidade. “Há uma
idealizadores e os seus entes queridos, ineficiência que pode ser exclusivamente
porque um dia eles sofrerão pela ausência pela demora em julgar processos, ou
do que hoje estão reclamando”. simplesmente devido a decisões mal
fundamentadas, decisões genéricas,
De outra parte, Nobre vê a existência de decisões que não estabelecem uma
quatro instâncias jurisdicionais no Brasil regra, tribunais que não querem aceitar
como hipoteticamente exagerada, porém orientações de tribunais superiores e que
necessária para a realidade brasileira. também não estabelecem um fundamento
Lênio Streck, por sua vez, contesta a para isso”, verifica Glezer.
própria divisão estrutural: “Não existem
quatro instâncias – STJ e STF não são assim “Eu imagino, de maneira um pouco
consideradas, porque são tribunais que impressionista, que não exista um
tratam de recursos sobre legalidade e conhecimento de gestão dentro dos
constitucionalidade”. gabinetes para gerir equipes e processos de
produção. Se não existir um investimento
O Judiciário brasileiro conta com em inteligência de gestão do Judiciário,
aproximadamente 440 mil funcionários, pode-se triplicar o pessoal que, mesmo
dos quais cerca de 18 mil são magistrados. assim, apenas serão gerados custos
Segundo o CNJ, há no país 8,2 magistrados que não se reverterão em benefícios”,
para cada 100 mil habitantes, enquanto na argumenta Glezer.
média dos países europeus a proporção é
de 17,4 para cada 100 mil. Temos poucos Também Lênio Streck ressalva que
juízes, portanto? efetividade quantitativa não significa
efetividade qualitativa. “Isso é elementar”,
Streck: “Recursos demoram porque não são frisa. “Se extinguíssemos os embargos
julgados” de declaração já daríamos um salto para
frente. É claro que isso implicaria que juízes
REVISTA DA CAASP 43 ESPECIAL não devem mais fazer sentenças obscuras,
contraditórias ou omissas”, ironiza.

Marcelo Nobre é outro que não vê no
aumento do número de juízes a solução
para o problema da morosidade, e ainda
se diz contra os mutirões de magistrados
a atuar juntos em varas abarrotadas.
“Ao se fazer isso, privilegia-se o juiz que
não trabalha e que deixou sua vara
explodir de tantos processos acumulados,
desestimulando o colega operoso,
trabalhador, que mantém sua vara em

ordem, sob controle. Precisamos cobrar WEB
aqueles que não trabalham”, propõe o ex-
integrante do CNJ. Malheiros: “Culpar advogado por recorrer não é
correto”
O papel do advogado perante o Judiciário
não é atacado, é claro, pela magistratura
como um todo. O desembargador
Antônio Carlos Malheiros, do Tribunal
de Justiça de São Paulo, é exemplo de
juiz cujo conceito de Justiça confunde-se,
salutarmente, com o de cidadania. “Eu sou
daqueles que entendem que os recursos
existentes devem permanecer. Eu entendo
que o Judiciário deve procurar meios de
agilização para julgá-los. Culpar advogado
porque advogado recorre não está correto.
Advogado tem que se aproveitar de
todos os meios processuais cabíveis para
defender seu cliente”, assinala Malheiros.

SUPREMA INÉRCIA

Entre 2011 e 2015, o tempo médio lei mineira que reservava 30%
entre a concessão de uma liminar e seu dos cargos públicos vagos aos
julgamento coletivo pelo Supremo Tribunal próprios servidores estaduais
Federal foi de 403 dias. A constatação é do esperou 10 anos até que o
projeto Supremo em Números, da Escola plenário da nossa corte maior
de Direito da Fundação Getúlio Vargas confirmasse entendimento a
no Rio de Janeiro. Casos emblemáticos, respeito.
contudo, ficam muito acima disso. A liminar
estendendo o auxílio-moradia de 4.400 “Alguns pensam que a
reais mensais para todos os juízes federais decisão monocrática encurta o
suportou o ministro Luiz Fux sentado processo porque é mais rápida,
sobre ela durante quatro anos. A decisão mas, infelizmente, isso não é a
provisória que suspendeu a eficácia da
Neste plen

ESPECIAL 44 REVISTA DA CAASP

realidade. Na verdade, essa constatação Nelson Jr. (STF) Glezer: “Os próprios ministros são a causa do
escancara a nossa insegurança jurídica. WEB acúmulo de processos”
Isso precisa ser coibido com urgência. O
problema é que só a própria corte pode grande quantidade de partidos que levou à
resolver essa incoerência”, adverte Marcelo judicialização da política? Não. É o próprio
Nobre. comportamento do STF que incentiva que
se vá àquela corte”.
Para muitos analistas, a manutenção do
STF como última instância recursal deve ser A pulverização partidária citada por
revista, como medida descentralizadora. Rubens Glezer compõe um emaranhado
Para Rubens Glezer, contudo, a culpa político no qual se enreda o tema do
pelo modelo em vigor é da própria casa. momento - a corrupção. É quase possível
“É importante verificar que os próprios contar nos dedos os parlamentares que
ministros são a causa desse acúmulo de não estejam sendo investigados ou que não
processos. O diagnóstico de sobrecarga do tenham sido denunciados. O mesmo vale
Supremo é antigo, mas tem junto com isso para autoridades do Executivo. Na visão
uma falta de vontade efetiva dos ministros popular, o instituto do foro por prerrogativa
de utilizarem mecanismos que restrinjam de função, ou foro privilegiado, constitui
a chegada de processos. Exemplo: pode uma espécie de garantia de impunidade
ou não pode habeas corpus contra ato de pela demora com que o STF julga essas
relator do STJ? Não pode, salvo exceções. pessoas.
Que exceções? O Supremo não fixa regras
claras de procedimentos e incentiva os Há quem discorde. Lênio Streck é um
advogados a recorrerem a ele”, ilustra o deles. “É outra lenda urbana e rural que
professor da Fundação Getúlio Vargas. o foro provoca impunidade. Há números
mostrando claramente que o STF julga mais
Glezer vai além: “O fato de os ministros rápido processos de competência originária
agirem como 11 ilhas, dá sentido ao fato (foro privilegiado) do que o primeiro
de as partes desejarem levar o caso ao grau. Um bom exemplo é o caso Azeredo
Supremo, porque podem dar sorte e cair (Eduardo Azeredo, ex-governador de Minas
com um relator que as favoreça. Foi a Gerais, preso em maio de 2018, protagonista
do chamado “mensalão tucano”). Ele
nário, 11 ilhas colaboram para uma justiça lenta. renunciou para buscar guarida na demora
do primeiro e do segundo graus. Mais: há
mais prescrições em primeiro grau do que

REVISTA DA CAASP 45 ESPECIAL

no STF”, relata o professor da Unisinos. nesse quesito, mas ressalva: “Não podemos
nunca retirar do julgador a possibilidade de
Se a apreciação colegiada de uma liminar examinar mais a fundo um caso do qual não
pode demorar anos, o que dizer de um pedido é o relator. Quantas vezes uma sustentação
de vista? Para Lênio Streck, este não deve durar oral bem feita não provoca dúvida em um dos
mais do que 30 dias em hipótese alguma. julgadores?”.
Marcelo Nobre também defende agilidade

LITIGANTES DEMAIS? Arquivo CAASP

O Brasil iniciou com a Constituição NET? Corre na Defensoria. Não quer pagar
de 1988 uma discussão que ainda não o estacionamento do shopping? Corre para
terminou, justamente a respeito do ingresso o MP. Ora, o que o Estado tem a ver com
dos cidadãos na Justiça quando lesados. isso? Não quer pagar o estacionamento, vai
Abriu-se a porta de entrada. Ainda não se de ônibus. Não quer pagar a NET? Acampe
resolveu, contudo, como providenciar de em frente à NET. Só não use recursos
modo célere a saída dessas pessoas da públicos caros como a Defensoria ou o
Justiça. “Essa enxurrada gerada por novos Ministério Público”, provoca o advogado,
litigantes criou um gargalo para desaguar acrescentando: “O Judiciário contribuiu
as ações, o que causou uma morosidade sobremaneira para esse fenômeno. O
processual maior ainda. Precisamos ativismo judicial é vitamina para esse
retirar muitos litígios do sistema judicial, cidadão tutelado”.
repassando algumas questões para a
solução amigável de conflitos, como a Estudos demonstram que 51% dos 95
mediação e a conciliação, mas para isso milhões de processos em andamento no
há um longo trabalho de mudança de Brasil buscam recuperar valores devidos
mentalidade a ser feito”, explica Marcelo a municípios, estados ou União, em
Nobre. processos de execução fiscal. Ações desse
tipo não tramitam no Judiciário nos Estados
Para Lênio Streck, os brasileiros hoje Unidos e na Europa. De acordo com o
habituam-se a “correr para a Santa Trindade CNJ, 40% dos casos judiciais pendentes
da Justiça” – Polícia Judiciária, Ministério referem-se a execuções fiscais envolvendo
Público e Defensoria Pública. “Cão latiu? Faz bancos, companhias telefônicas e o INSS.
B.O.. Não que pagar o segundo ponto da São demandas que poderiam, em tese, ser

ESPECIAL 46 REVISTA DA CAASP

solucionadas pela própria administração “Não dá para comparar ovos com
pública ou pelas agências reguladoras. caixa de ovos. O Brasil funcionará em
termos judiciais se obedecer aos artigos
“Nos casos dos grandes litigantes, 371 (apreciação de provas), 489 (elementos
devemos buscar soluções amigáveis, essenciais da sentença) e 926 do novo CPC
como as previstas na Lei de Mediação e (uniformização de jurisprudência). Fazendo
Conciliação”, diz Marcelo Nobre. À época isso, a Justiça passará a funcionar. O que não
da discussão sobre a normatização da pode acontecer é os tribunais superiores
mediação no país, Nobre propôs a uma tornarem-se cortes de precedentes. É
comissão de juristas do Senado a mediação quase uma pilhéria falar em precedentes
on-line, que hoje consta do texto legislativo no Brasil como cópia do common law. Essa
aprovado. “Em pleno Século XXI, não é uma mania que chegou. Parafraseando
podemos imaginar que questões menos Chico Buarque, ‘agora eu era herói e meu
complexas não possam utilizar novas cavalo só falava inglês’”, ataca Streck.
tecnologias para solucionar seus conflitos”,
enfatiza. Para Glezer, “ainda estamos lutando
para ter uma cultura em
Fórum João Mendes. Constituição abriu as que as decisões judiciais
portas de entrada da Justiça. Mas, e a saída? sejam bem fundamentadas
para casos individuais”.
Marcelo Nobre, Lênio Streck e Rubens O professor da FGV vê o
Glezer concordam quanto à criação de instituto das demandas
mecanismos de aglutinação de processos, repetitivas como “um bom
nos moldes da class action anglo-americana. caminho para forçar as
Os três não os veem como solução para a teses jurídicas a ficarem
morosidade da Justiça no Brasil. mais claras”. Quanto à
aglutinação de casos sob
uma mesma regra, tem
dúvidas: “Se o Judiciário não
conseguir estabelecer quais
regras se aplicam a quais
casos, isso talvez não seja
um avanço”.

“Uma coisa é certa:
não é porque um modelo
deu certo em determinado país que vai
automaticamente dar certo no nosso.
Precisamos é conseguir que as decisões
de repercussão geral, decisões reiteradas
de cortes superiores e súmulas sejam
respeitadas e aplicadas nos tribunais
estaduais, federais e trabalhistas”, ressalta
Nobre.

REVISTA DA CAASP 47 ESPECIAL

“NÃO SE JUSTIFICAM QUATRO
INSTÂNCIAS JURISDICIONAIS EM
NENHUM PAÍS DO MUNDO”

Leia a seguir entrevista concedida à Revista da CAASP pelo presidente do
Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Manoel Pereira Calças, sobre
morosidade do Judiciário e questões correlatas.

Revista da CAASP - Há uma “corrente” responsabilizando a defesa – e os
defensores, os advogados - pela demora das sentenças definitivas. Mas os
recursos às diversas instâncias afinal estão na lei, e a defesa é obrigada a cumprir
prazos rígidos. A responsabilidade pela demora não seria muito mais dos juízes?

[Manoel Pereira Calças] - Realmente há quem responsabilize a defesa pelo
uso excessivo de recursos de molde a fazer com que os processos se eternizem.
Na verdade, os recursos estão previstos na legislação processual. Obviamente,
usar os recursos previstos na legislação é um direito e eu diria até um dever
para o defensor. No entanto, isso não impede que se entenda que há um
número excessivo de recursos. Sempre, mesmo como advogado, entendi que o
sistema processual brasileiro – e passei por diversos sistemas processuais civis,
já que estudei no Código de Processo Civil de 1939 e comecei a atuar naquele
CPC; posteriormente, atuei no CPC de 1974 e agora judico de acordo com o
CPC de 2015 – apresenta número de recursos, sob a minha ótica, excessivo.
Isso faz com que o encerramento do processo se alongue demasiadamente
no tempo. Não diria que a responsabilidade na demora seria dos juízes. Na
verdade, os juízes têm de examinar todos os recursos que lhes são submetidos,
é um dever nosso. É claro que há juízes mais ou menos rápidos na solução das
questões apresentadas, isso faz parte da natureza humana. Todo o ser humano
tem qualidades que o autorizam, muitas vezes, a decidir de uma forma mais
rápida ou a demorar na solução de qualquer tipo de questão submetida à sua
apreciação. Muitas vezes, é a prudência, é o zelo; às vezes, o excesso de zelo
ou cuidado. Não culparia nem advogados, nem juízes pela demora na solução
dos processos, mas sim o sistema processual que, a meu ver, abriga excessivo
número e tipos de recursos.

É verdade que há recursos meramente protelatórios. Mas tentar protelação
não é uma estratégia legítima da defesa, em alguns casos?

Não creio que protelar o encerramento do processo seja uma estratégia

ESPECIAL 48 REVISTA DA CAASP

Reproduçãolegítima da defesa. O advogado, o juiz e o membro do Ministério Público têm o
dever legal de fazer com que a função jurisdicional seja exercida de acordo com
a Constituição Federal, onde se vê consagrada a diretriz da razoável duração
do processo. Interpor recursos apenas para protelar a decisão final não é uma
estratégia ética, sob a minha ótica, daí traduzir, não raro, abuso de direito. Aliás,
tenho conversado com procuradores do Estado, principalmente procuradores
do Estado de São Paulo, que são meus colegas tanto na Universidade de São
Paulo como na Pontifícia Universidade Católica, e todos entendem que não é
correta a postura do Poder Executivo de recorrer em todas as situações; de
recorrer até o esgotamento do sistema recursal. Na verdade, o próprio Estado
ao assim agir faz com que as condenações pecuniárias contra ele impostas
sejam aumentadas no seu valor, por força da incidência de correção monetária,
juros moratórios e juros compensatórios. Não é uma estratégia nem inteligente,
nem legítima. O advogado deve ter o direito de entender que a prestação
jurisdicional foi corretamente prestada, fazendo isso de forma ética, lógica e
inteligente.

Pereira Calças: “Interpor recursos apenas para protelar a decisão final não é uma estratégia
ética”

REVISTA DA CAASP 49 ESPECIAL

Quatro instâncias jurisdicionais é um número excessivo?

Evidentemente que não se justificam quatro instâncias jurisdicionais em
nenhum país do mundo. O nosso sistema constitucional não prevê o duplo
grau de jurisdição como uma garantia constitucional, no entanto, é possível sim
extrair-se da interpretação da Constituição Federal que deve se dar, pelo menos,
a oportunidade de um reexame por uma instância superior, e, principalmente,
um reexame feito por um colegiado, ou seja, por um órgão coletivo. Assim, no
nosso direito processual brasileiro o sistema recursal implica que as matérias
fáticas sejam examinadas em primeiro grau e reexaminadas em segundo grau,
seja pelos Tribunais de Justiça, seja pelos Tribunais Regionais Federais. Não se
permite o acesso ao Superior Tribunal de Justiça para se reexaminar fatos, nem
interpretar cláusulas contratuais. Aí, o recurso tem um viés exclusivamente
sob a ótica de eventual equívoco na aplicação do direito. No que concerne ao
Supremo Tribunal Federal, sempre entendi que deveria ser uma corte com
restrições à sua atuação, no sentido de ser apenas a guardiã da Constituição.

A duração dos pedidos de vista não deveria ser limitada?

Limitar a duração dos pedidos de vista me parece uma medida correta,
adequada e necessária. Aliás, aqui, no Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo, em consonância com o NCPC, fizemos uma alteração no Regimento
Interno pela qual o pedido de vista é limitado a 10 dias, prorrogável em igual
medida, uma única vez, podendo o Presidente do órgão fracionário, após o
decurso do prazo, requisitar os autos para julgamento na próxima sessão
(RI, art. 173). Creio que todos os Regimentos de Tribunais deveriam adotar a
mesma regra.

Um ex-ministro do STJ afirmou: “Estamos em plena era da provisoriedade das
decisões judiciais, com excesso de cautelares, habeas corpus e mandados de
segurança contra decisões judiciais e recursos internos contra o que acabou de
ser decidido”. O senhor concorda com a afirmação?

Veja bem, medidas provisórias, medidas cautelares, medidas liminares,
habeas corpus, mandados de segurança são institutos que podem e devem ser
utilizados desde que presentes os pressupostos legais ou constitucionais que
os autorizem. Não vejo qualquer problema em se agravar quando é o caso de se
valer desse tipo de recurso, seja o agravo interno, seja o agravo de instrumento.
Não vejo por que se discordar do manejo desses recursos ou dessas medidas
de urgência. Na verdade, isso faz parte do sistema constitucional e processual
brasileiro. O problema, eventualmente, é a falta de ética que leva ao abuso e
disto decorre o desvirtuamento do sistema.

ESPECIAL 50 REVISTA DA CAASP


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