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Published by , 2017-04-25 11:08:38

TCC LUIZA DE DEUS ok

TCC LUIZA DE DEUS ok

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL

DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL

LUIZA DA COSTA DE DEUS
FAMÍLIA E QUESTÃO RACIAL:
Implicações da Reprodução da Desigualdade Étnico-Racial Frente às
Determinações do Capitalismo no Brasil.

NITERÓI
2016/ 2º

LUIZA DA COSTA DE DEUS

FAMÍLIA E QUESTÃO RACIAL:
Implicações da Reprodução da Desigualdade Étnico-Racial Frente às

Determinações do Capitalismo no Brasil.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
à Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obtenção do grau de
Bacharel em Serviço Social.

Orientadora:
Profª Drª Larissa Costa Murad.

NITERÓI
2016/ 2º

ESS/UFF - Universidade Federal Fluminense
FlufFluminense

ESS/UFF - Universidade Federal Fluminense
FlufFluminense

ESS/UFF - Universidade Federal Fluminense
FlufFluminense

Aos meus pais Luiz Claudio(em memória) e Fátima de Deus
Pelo amor incondicional, dedicação e apoio em tudo
À Laís de Deus
Por tudo que fez pela minha felicidade

Ao amor da minha vida Miguel Nuñez
Pelo companheirismo, incentivo e apoio de sempre

Agradecimentos

Há quatro anos e meio atrás o medo diante da angústia de uma escolha
precoce, que resultou na minha primeira graduação no curso em enfermagem numa
universidade particular, dava lugar à esperança de um novo recomeço, porém, ainda
desconhecido. Desdenhando da minha capacidade no momento que a rotina pesada
dos dias de trabalho não me possibilitava o tempo necessário para a preparação
para o vestibular, as mulheres mais importantes da minha vida (minha querida mãe
e minha irmã) fizeram acreditar que eu poderia realizar meu maior sonho: estudar
numa universidade federal. O que eu não contava é que a maior felicidade de todo
esse sonho seria desvendar um universo crítico, até então desconhecido, que
resultaria na paixão pelo melhor curso que eu poderia escolher! Por tamanha
felicidade, dedico primeiramente a minha vida à minha mãe Fátima de Deus, pois
dedicar somente esta vitória seria muito pouco para agradecer tudo que fizestes por
mim. O resultado da minha vitória é fruto do seu lindo amor por mim, mãe!

Agradeço ao meu anjo da guarda, herói e pai Luiz Claudio de Deus por nunca
abandonar suas únicas filhas, pois mais do que nunca sinto que sempre esteve
presente e do nosso lado, nos protegendo e guiando o nosso caminho.

À Laís de Deus (melhor amiga e irmã) pela minha felicidade, pois se não
fosse sua insistência em me inscrever escondido no vestibular e brigar comigo para
fazer aquela prova, certamente eu não seria tão realizada e tão feliz como sou hoje!
Não me canso de declarar meu amor à você, minha preta. Você me inspirou para
esse trabalho e, portanto, dedico este trabalho, a minha graduação e a minha vitória
à você.

Ao grande amor da minha vida, melhor amigo, professor, companheiro e
namorado, Miguel Nuñez, que sempre esteve ao meu lado me apoiando e
incentivando em todos os sentidos e momentos da minha graduação. Por eu te amar
tanto, você é minha grande inspiração. Nosso amor me tornou quem eu sou hoje e
dedico também essa vitória à você.

Às minhas queridas avós Gildete e Alice que zelaram sempre por suas
netinhas e dedicaram suas vidas a nós com muito amor e carinho.

À minha querida tia Edna que sempre esteve presente e sempre fez de tudo
pelas suas sobrinhas. O excesso de amor, carinho, preocupação e dedicação me
impulsionou a chegar onde estou.

Ao meu eterno bebe lindo da dinda Abraão Amaral. Você é a maior motivação
da dinda e é por você que quero crescer para um dia lhe proporcionar tudo que eu
puder, meu filho. Te amo muito!

Ao meu querido Padrasto, Tio Rui, pelo apoio e carinho ao longo da minha
caminhada.

À meu irmão e cunhado querido, Thiago Araújo, que sempre foi solicito e me
ajudou sempre que precisei. Me lembro muito bem aquele primeiro livro sobre os
grandes filósofos que você me deu assim que passei no vestibular.

Aos meus tesouros Paulinha Fernanda, Vanessa, Jeane, Jorgito, Aline e
Felipe Finn que jamais quero perde-los, uma vez que vocês são meus presentes da
UFF. Sem vocês, meus amigos, a trajetória teria sido bem mais difícil. Nos demos
força uns aos outros em todos os momentos, compartilhamos as alegrias,
superamos as tristezas e hoje a nossa vitória é conjunta!

À todos os meus colegas de turma dos turnos da tarde e noite. Conheci
pessoas incríveis durante a trajetória acadêmica, que independente da intimidade,
marcaram para sempre a minha vida. Foi um prazer conhecê-los, pois todos vocês
estão no meu coração e jamais esquecerei as manifestações de carinho.

À minha querida orientadora e professora Larissa Murad. Agradeço
infinitamente pelo seu compromisso impecável comigo e paciência. Diante das
dificuldades que me surpreenderam no final do semestre, certamente eu não teria
conseguido “dar conta” deste trabalho sem a sua perseverança.

Aos melhores professores do mundo, meus queridos mestres da UFF! À
todos vocês dedico meu trabalho, pois sem o compromisso ético e justo que vocês
afirmam todos os dias em aula, eu não seria quem eu me tornei hoje. Obrigada
especialmente pelo incentivo e carinho de sempre à professora Drª Jacqueline
Botelho, pois a senhora foi minha fonte de inspiração e é na senhora que eu me
espelho. Do mesmo modo, agradeço infinitamente pelos ensinamentos com
muitíssimo carinho, aos professora e doutores Eblin Farage, Douglas Barbosa, Kátia
Lima, Andrea Vale, Bruno Perez, Ana Lívia, Márcia Brasil, Carmem Alvarenga,
Beatriz Venâncio, Fábio Simas, Javier Blanck, Tatiana Dahmer e Raphaela
Daros(Psicologia). Obrigada, meus mestres, pelos ensinamentos que não sairão
mais da minha vida!

“Tudo é considerável impossível até acontecer”
Nelson Mandela

RESUMO

Ao considerarmos as profundas desigualdades étnico-raciais, as quais implicam no
aprofundamento das expressões da “questão social”, objetivamos neste presente
trabalho problematizar a reprodução do racismo, bem como sua necessidade de
reatualização na ótica da sociedade capitalista. Para desvendarmos tal questão,
considera-se como elemento central deste debate a funcionalidade do racismo na
sociedade de classes frente os interesses do capital. Para tanto, compreende-se
nesta breve revisão bibliográfica as particularidades da formação sócio-histórica
brasileira, escrita pela trajetória do capital e ações do Estado burguês e que,
portanto, resultam nas condições de vida (objetivas e subjetivas) das famílias
negras. Visando a problematização dessas questões, recortaremos a situação das
famílias negras num olhar relacional às famílias brancas na tentativa de desvendar
os porquês de tamanha desigualdade, convertidas em estruturais, no modo de
produção capitalista.

Palavras chave: Desigualdade Étnico-Raciais; Funcionalidade; Família; Racismo,
Estado; Capitalismo.

RESUMEN

Al considerar las profundas disparidades étnicas- raciales, en las que se implica en
el profundamiento de las expresiones de la "cuestión social", en este trabajo, nuestro
objetivo es problematizar la reproduccíon del racismo, como bien su necesidad de
reactualización en la óptica de la sociedad capitalista. Para desentrañar la cuestión,
consideramos como elemento central de este debate la funcionalidad del racismo en
la sociedad de clases frente a los intereses del capital. Comprendemos en esta
revisión bibliográfica las particularidades de la formación socio historica brasilera,
escrita por la trayectoria del capital y acciones el Estado Burgues, que resulta en las
condiciones de vida ( objetivas e subjetivas) de las familias negras. Observando la
problemática de estas cuestiones, recortaremos la situación de las familias negras
con una mirada relacionada a las familias blancas en la intención de desvendar los
porque de tamaña desigualdad, estructural, del modo de producción capitalista.

Palabras clave: Disparidades Étnicas- Raciales; Funcionalidad; Familia; Racismo,
Estado; Capitalismo.

SUMÁRIO

1 Introdução.............................................................................................................12
2 Particularidades históricas da formação social brasileira: O capitalismo à
brasileira e o gerenciamento do Estado burguês.................................................19
2.1 Particularidades do capitalismo à brasileira..........................................................21
2.2 Estado, capitalismo e desigualdades étnico-racial...............................................28
3 Família e questão racial........................................................................................45
3.1 Fundamentos: A funcionalidade da família na ótica capitalista............................45
3.2 Reprodução social, ideologia e família.................................................................48
4 O açoite do Negro: A face das desigualdades étnico-raciais...........................53
4.1 Funcionalidade do racismo quanto a sustentação da desigualdade social na
sociedade de classes.................................................................................................55
4.2 Funcionalidade do racismo na relegação dos lugares e dos “papeis
sociais”.......................................................................................................................57
4.3 Funcionalidade do racismo no extermínio dos “sobrantes” para o
capital.........................................................................................................................60
4.4 Funcionalidade do racismo enquanto manutenção da segregação e
naturalização dos processos sociais..........................................................................63
5 Considerações finais............................................................................................67
6 Referências............................................................................................................69

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1. INTRODUÇÃO

As desigualdades étnico-raciais, ao se converterem em estruturais
diante das particularidades do capitalismo no Brasil, se deparam com diversos
contextos que aprofundam as expressões da “questão social”. Para além da
compreensão incansavelmente reproduzida no meio acadêmico da “questão
social” como fruto das contradições do capital e trabalho, se faz necessário se
aprofundar nos seus recortes mais diversificados que exprimem tal
desigualdade, bem como as particularidades históricas que desencadearam
esse processo na realidade social brasileira.

A necessidade de problematizar a funcionalidade do racismo se estreita
com a história de vida de milhares de famílias negras, do mesmo modo que se
expressa nas cicatrizes da minha família que viram gerações e gerações sendo
afetadas pela barbárie e injustiças decorrentes da fomentação do racismo. Por
tais razões, a problematização da questão racial e família através do viés da
funcionalidade do racismo assume a centralidade neste trabalho.

O modo que a “questão social” é tratada pelo Estado e reconhecida pela
sociedade se revela através de uma trama social que sempre reprimiu e
ofuscou a luta daqueles mais atingidos pela perversidade do modo de
produção que vivemos. Basta percebermos como a vida do negro e suas
famílias (ontem e hoje) ainda são banalizadas no Brasil, isto é, no segundo pais
onde mais há negros no mundo estando atrás somente da Nigéria. Quantas
vezes já ouvimos que isso ou aquilo é o típico “jeitinho brasileiro” num alto tom
de naturalização da vida social. Frases e ditados populares racistas
(homofóbicas, machistas e etc.) ou de criminalização da “questão social”
destinadas aos cidadãos negligenciados pelo Estado, revelam-se pela própria
sociedade a real face das relações sociais. Aclamam que “bandido bom é
bandido morto” e se esse for negro e morador de favela a legitimidade da sua
morte é aplaudida como um alívio para a sociedade.

Debater a questão racial sob o recorte da situação das famílias negras
– em um olhar relacional às famílias brancas – frente às determinações do
capital pressupõe necessariamente a análise da totalidade, a qual oriunda as

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expressões das contradições desse sistema em seus eixos estruturantes,
particulares e singulares. Como ônus dos avanços do capital numa sociedade
que se construiu através das determinações dos países imperialistas,
compreende-se que a “questão social” assume no Brasil características ainda
mais dramáticas, que por ora aparecem como “típicas” ou até mesmo
naturalizadas na sociedade brasileira. Os traços arcaicos herdados do período
escravocrata revitaliza-se em um outro contexto social que, ainda sim,
necessita encontrar no outro, as condições materiais para o avanço dos
interesses da hegemonia.

Os lugares e não lugares relegados à família negra na
contemporaneidade têm seus fundamentos ancorados na formação sócio-
histórica da sociedade brasileira, que de longe não se justificam pelo acaso,
mas certamente se estreitam com a intencionalidade da hegemonia sobre os
modos de produzir e reproduzir a vida de acordo com seus interesses
ambiciosos. Ora, se no período pré-capitalista o negro era a máquina que
sustentava os lucros exacerbados do sistema vigente, na sociedade de
classes, o negro será a peça importante para o jogo de interesses do capital –
mesmo o Estado liberal ignorando, inicialmente, a problemática do negro
fomentada pelo antigo regime, uma vez que não houve nenhuma ação
reparadora do Estado.

Neste sentido, a centralidade do debate deste trabalho parte do
pressuposto que a (re)produção do racismo e sua reconfiguração na
sociedade de classes é funcional aos interesses do capital. Ao
desvendarmos sua funcionalidade, explicitaremos quatro aspectos para a
análise do referido debate. Em seu aspecto primeiro, a funcionalidade do
racismo frente às determinações capitalistas adota o caráter de sustentação da
desigualdade social estrutural e “necessária” para a manutenção do sistema
que aprofunda a “questão social” a níveis mais intensos às famílias negras. O
segundo aspecto se configura no sentido da relegação do papel do negro na
sociedade capitalista, bem como suas funções e espaços na divisão sócio-
técnica do trabalho. Destaca-se, no terceiro ponto desta análise, a relação do

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negro com o extermínio dos “sobrantes”1 para o capital. Finalmente no quarto
aspecto, evidencia-se a funcionalidade do racismo no próprio sentido de
difusão da ideologia que contribui para a alienação e segregação étnico-racial
que, consequentemente, se estreita com a segregação da própria classe
trabalhadora, pois embora pertencentes da mesma classe social, muitos não
reconhecem e/ou aceitam no outro as mesmas condições de classe.
Entretanto, tal análise implica afirmar que o fator étnico-racial, frente os
interesses do capital, potencializa as desigualdades sociais na produção
e reprodução da vida das famílias negras em relação às famílias brancas,
que, embora possam pertencer à mesma classe social, evidencia-se uma
diferenciação no que diz respeito a todas as esferas, indissociáveis, da
vida social (direitos/justiça, trabalho, educação, moradia, cultura, religião
e etc.).

Trata-se de um achado ideológico tão forte e convincente reapropriado
pelo capital, capaz de causar estranheza e até mesmo incômodo quando os
“lugares” são trocados. Imagine a repercussão de uma família negra com uma
empregada doméstica branca! Aliás, as coisas, nesse sentido, nunca se
inverteram significativamente a esse ponto e, nem de longe, a suposta
igualdade formal do modelo capitalista se concretizou, visto que a “igualdade”
no capitalismo tem caráter abstrato.

Para tanto, destacaremos nesta pesquisa a relação vital para a ordem
capitalista entre o público e privado. Na esfera pública, o Estado ainda assim
assume de forma contundente o caráter de difusor dos interesses do capital,
visto que sem essa aliança não seria possível o avanço da ordem vigente, uma
vez que este se constitui no primeiro canal de fortalecimento dos interesses
capitalistas.

Ao considerarmos que o Estado burguês passa a ter uma
intencionalidade em suas ações que põe em curso o projeto da classe
hegemônica, tal análise pressupõe uma rígida influência e controle das
relações sociais e da vida privada na qual implica a doutrina dos corpos, da
subjetividade humana, da cultura e, sobretudo, das famílias – visto que esta se

1 Trata-se de “sobrantes” para o capital, entendendo que a crise estrutural tem como consequência a
expulsão em massa do trabalho vivo do processo produtivo, visto que no Brasil parte significativa dessa
população que não encontra espaço no mercado formal de trabalho são negros.

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consagra como uma valiosa instituição para a manutenção dos propósitos do
capital.

Do mesmo modo, se torna indispensável analisarmos a estreita relação
entre o capital, o Estado e os países imperialistas na corrida pela riqueza
socialmente produzida e especulada, bem como a posição dos países
periféricos no mercado mundial frente às determinações dos países centrais na
atual fase monopolista do capitalismo. O capital na intencionalidade de se
expandir e se fortalecer utiliza-se de países que possuem funções
estabelecidas para o fortalecimento de seus interesses. As intenções do capital
e as formas de se reproduzir a vida nos países periféricos certamente não são
as mesmas que nos países centrais. Os países periféricos, a exemplo do
Brasil, aparecem como um combustível, ou melhor, como uma possibilidade de
exploração da riqueza para o enriquecimento das elites mundiais. Logo, haverá
países que, em tom de obediência e concordância de projetos societários,
acatarão as ordens de seus emprestadores monetários e, portanto, entrarão
nesta dinâmica perversa de exploração extrema e/ou exportador de mão de
obra barata para então sobreviver ao mercado como rentável. Se o Capital
determina os lugares e os “papeis” dos países no contexto do mercado
internacional, não é um absurdo pensarmos que na conjuntura particular
do capitalismo de cada país, este também determina a posição e os
lugares dos sujeitos sociais para a manutenção de seus propósitos, uma
vez que a vitalidade desse modo de produção, segundo Netto e Braz (2007), é
a busca interminável pelo lucro.

Se trata de uma busca tão selvagem, que o homem, criador da sua
forma de (re)produzir a vida social, se torna escravo das regras de sua própria
criação. Portanto, o capitalista se vê obrigado a se reinventar e criar novas
formas de alcançar o lucro para então se manter na disputa pela acumulação
da riqueza. Para permanecer nessa selva de leões ambiciosos, é preciso ter
artimanhas jamais imagináveis no qual o princípio humano de “amor, respeito e
solidariedade ao próximo” é esmagado pelas mais variadas estratégias do
capital para perdurar no jogo. Para isso, perversidades e coisas horríveis
acontecem aos seres humanos quando o assunto é o lucro. Vejamos bem:
para uma importante empresa do cenário mundial ou nacional permanecer na
disputa pelo ouro, o capital seleciona aqueles que manterão a vitalidade do

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mercado em diferentes funções. Na divisão sócio-técnica do trabalho haverá
técnicos, pensadores e doutores que zelarão pelo lucro da empresa, por
exemplo, assim como haverá pessoas que precisarão fazer funções menos
prestigiadas, porém não menos importantes, uma vez que alguém precisa
construir e fazer o prédio da empresa funcionar, a exemplo dos operários e
auxiliares de serviços gerais – que certamente em sua maioria não são
espaços ocupados pelos brancos. Do mesmo modo, na lógica do capital, se faz
necessário haver aqueles que precisarão viabilizar os lucros das empresas
pelo consumo de determinados serviços e mercadorias, porém essa escolha
pode ser muito dramática quando se trata de vidas, sonhos e liberdade.

Ora, são justamente as classes subalternas que consomem, não
somente as mercadorias para o suprimento de suas necessidades, mas
também será essa classe a principal consumidora dos serviços que sustentam
o capital, sejam esses serviços adquiridos por vontade própria ou não. O
encarceramento, por exemplo, fomenta uma indústria enorme de empresas
prestadoras de serviços contratadas pelo Estado, no qual se faz necessário o
aprisionamento dos corpos para que a vitalidade desse segmento do mercado
se mantenha. Sem contar com os gastos públicos no mercado bélico em
detrimento da necessidade de se investir no social. Aliás, a criminalização e o
encarceramento ainda assim são lucrativos aos olhos do capital e, por outro
lado alguém precisa “consumir” esses serviços. Então, por que não o negro?!
Nesse aspecto, o descarte do negro na cena contemporânea é legitimado pela
sociedade civil e pelo Estado, visto que a condição de bandido é naturalizada
pelo estereótipo racista.

Nessa mesma lógica que compreende a classe trabalhadora como o
principal combustível que produz e sustenta os lucros capitalistas, serão os
filhos dos mais necessitados que se inscreverão nas faculdades particulares se
quiserem estudar, fortalecendo mais uma vez os interesses das grandes
empresas de ensino superior. A seletividade do ensino superior público, as
condições e intencionalidade do modelo de educação burguesa direcionada
aos filhos dos trabalhadores, não permitem de maneira igual o acesso dos
negros e pobres nas universidades públicas. Do mesmo modo, será esta
mesma classe que reproduzirá os futuros trabalhadores que, certamente, serão
incorporados à dinâmica das relações sociais existente e consequentemente

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serão afetados pela desigualdade estrutural deste sistema, visto que as
políticas atuais fomentadas às famílias pobres, majoritariamente negras (pretas
e pardas), não carregam em si o caráter de encaminhar esses indivíduos
sociais para sua emancipação.

Contudo, diante de alguns (dos inúmeros) exemplos citados acima
presentes na sociedade brasileira, percebe-se o porquê da necessidade de
reproduzir o desigual, de selecionar e, sobretudo, fomentar o racismo na
sociedade de classes. Isto é, o racismo é funcional para a indústria do capital
que se sustenta através da fomentação da desigualdade. Entretanto, a
reprodução social abre o caminho para novas formas de pensamento social
para fora da “caixinha” da dominação a qual exige do Estado, por sua função
de gerenciamento do status quo, o controle diferenciado entre grupos e
segmentos sociais (BILAC, 2006).

No entanto, não se ofusca nesta perspectiva de análise as relações
sociais de gênero, religião, território, classe e etc., uma vez que tais categorias
se encontram intimamente interlaçadas à questão étnico-racial, no contexto das
expressões da “questão social”. Logo, as condições produzidas pela
sociabilidade do capital, com as quais se deparam as famílias negras, não
tratam de uma coincidência naturalizada pela cor da pele, pelo contrário, trata-
se de um problema social historicamente (re)produzido pela hegemonia egoísta
desde a concepção do que veio a ser o Brasil e que ainda produz e reproduz a
barbárie da desumanização para além da exploração do homem pelo homem.

Pois é, a barbárie do capital contra o negro é real e intensa: lesa, viola,
humilha e mata diante do estereótipo fomentado aos negros e negras que
todos os dias se ferem pelo peso alienador do racismo. Além das condições
de desigualdade material diante da historicidade dos afro-descendentes
brasileiros, as falsas ideias dominantes difundidas nas relações sociais
comprometem a liberdade das subjetividades para a conquista do homem
genérico.

Não por acaso, tais questões perpassam pela categoria de análise
família, visto que esta representa uma das instituições mais importantes para a
manutenção dos propósitos do modo de produção capitalista – seja em seu
caráter de reprodutor social e de difusor moral-ideológica das visões de mundo
compatíveis com as intenções do capital.

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Contudo, a análise das desigualdades étnico-raciais no Brasil neste
trabalho não se limita apenas à remissão do passado de escravidão que reflete
na situação do negro na sociedade contemporânea que, portanto, buscam de
forma consciente ou não, igualdade, respeito e firmamento de seus valores e
culturas nas sociedades de classes. Mais do que isso, buscaremos
compreender tal categoria considerando as particularidades históricas da
formação da sociedade brasileira desde sua gênese até a consolidação do
capitalismo monopolista, bem como as funcionalidades do racismo frente os
interesses do capital, visto que se faz necessário uma análise baseada na
totalidade na qual está inserido o Brasil na dinâmica dos interesses capitalistas
dos países centrais e da própria necessidade de manutenção da ordem no
país. A nosso ver, tais particularidades desencadearão consequências
alarmantes na dinâmica social brasileira, as quais incidirão desde a cultura
política até as relações de trabalho e sociabilidade, que com certeza trarão
reflexos no que se refere a dinâmica de vida das famílias negras em relação às
famílias brancas.

Contudo, os esforços de debater o tema questão racial e família não se
limitam a uma compreensão da realidade partindo de si mesmo de forma
fragmentada ou dissociada da análise da totalidade, pelo contrário, a referida
pesquisa se ancorará na perspectiva do materialismo histórico-dialético. Para
tanto, faremos um recorte da questão racial vivenciada pelas famílias negras
no Brasil, de modo a problematizar esses fenômenos sociais historicamente
(re)construídos na ótica do capital, que de forma incisiva contribuem, não
somente para a segregação da classe trabalhadora, mas também para o
acionamento das desigualdades sociais. Entretanto, pretende-se neste futuro
estudo, aprofundar a referida análise considerando três módulos para o
enfrentamento da questão.

No primeiro módulo fundamentaremos as particularidades históricas da
formação social brasileira, de modo a problematizar os efeitos das
intencionalidades do capital no Brasil que, portanto, resulta na barbárie
vivenciada pelo negro na sociedade de classes. No segundo capítulo
abordaremos a funcionalidade da categoria família sob o domínio do capital
considerando sua capacidade de reprodução social, assim como
problematizaremos as desigualdades étnico-raciais no contexto das famílias

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brasileiras. No terceiro módulo, abordaremos a problemática das famílias
negras no cenário brasileiro diante das intencionalidades do capital na qual se
evidencia as desigualdades étnico-raciais. Para dar conta de desvendá-las,
destrincharemos as funcionalidades do racismo na sociedade de classes.

2 PARTICULARIDADES HISTÓRICAS DA FORMAÇÃO SOCIAL
BRASILEIRA: O “CAPITALISMO À BRASILEIRA” E O GERENCIAMENTO
DO ESTADO BURGUÊS

Os modos de produzir e reproduzir a vida material determina a
complexidade das relações sociais existentes, as formas de pensar, leis e
regras sociais de acordo com as intencionalidades de cada modo de produção.
Entender a nossa forma de ser e estar no mundo, a origem e os porquês das
relações sociais que justificam os meios e os fins das práticas sociais difusas,
bem como as condições sociais de uma determinada sociedade, nem sempre
toma conta do pensamento mais simples do cotidiano das nossas vidas. A
ilusão de que tudo “é como é” e pode ser justiçado pela natureza do biótipo
humano (racismo), por exemplo, indica certo conformismo e alienação que
encobre o caráter contraditório e histórico da vida social. Segundo Barroco
(2009):

No contexto da alienação, a riqueza humana não é apropriada
pela totalidade dos indivíduos; na ordem capitalista a
coexistência entre a miséria e a pobreza (material e espiritual)
é pressuposto fundamental para a (re) produção do sistema,
donde o processo de coexistência contraditória, de tensão
permanente e não linear, de afirmação e negação das
capacidades éticas do ser social. (BARROCO, 2009, p.171)

Nesse sentido, se faz necessário ir além do aparente, num exercício de
suspensão da cotidianidade para confrontar as origens, continuidades e
descontinuidades da reprodução de traços que se reconfiguram na história
social brasileira e, ainda sim, persistem. Não por acaso, a “questão social”
aparece como o principal objeto de intervenção do Serviço Social, e,
sobretudo de estudos nesse sentido. Suas múltiplas expressões, que se
configuram e reatualizam nos diferentes contextos do modo de produção
capitalista, não podem ser desvendadas e enfrentadas sem considerar a

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totalidade social na qual está exposta a sociedade de classes. Ao
destrincharmos a “questão social” e as intencionalidades do Estado frente às
determinações do capital, desvendamos questões tão complexas que, ao
mesmo tempo em que se apresentam como categorias analíticas que
justificam sua origem e examinam suas particularidades, estão interlaçadas
entre si e, portanto, se explicam através da análise de um todo social. Nesse
sentido, compreende-se que a “questão social” expressa, articuladamente, às
relações sociais de gênero, raça e etnia, meio ambiente, classe social, religião
e regionalidade e etc. (IAMAMOTO, 2007). Entretanto, há de explicitar nesse
estudo que o fator étnico-racial é determinante nos mais variados recortes da
“questão social” que expressam tais desigualdades. Aliás, os maiores índices
de violência contra a mulher, intolerância religiosa, desemprego, evasão
escolar e genocídio de jovens têm cor certa e a pobreza também!

Nesse caminho que o capital percorre para alcançar seus objetivos de
lucratividade a qualquer preço, esbarra-se uma massa de trabalhadores reféns
das intencionalidades e “armadilhas” internas e externas do capital. Portanto, a
historicidade que desvenda a natureza dos contrastes sociais entre raças, que
recortam as famílias negras nas mais variadas situações, se forja através das
particularidades históricas da formação social brasileira, bem como nas
determinações do capital (e do Estado), uma vez que estes se configuram
como elementos incisivos na (re)produção das desigualdades étnico-raciais
nos dias atuais. Isto é, considerando a centralidade da funcionalidade do
racismo na sociedade de classes neste debate, analisamos que o fator étnico-
racial, frente os interesses do capital, potencializa as desigualdades sociais na
produção e reprodução da vida das famílias negras em relação às famílias
brancas, independente da classe social de pertencimento2, evidencia-se uma
alarmante desigualdade étnico-racial no que diz respeito a todas as esferas,

2Sem dúvida, o recorte de classe diante do racismo é alarmante aos negros das classes
subalternizadas, uma vez que a barbárie do capital recai sobre eles de forma mais dramática e
selvagem. Porém, a ascensão da classe social não tem significado a redução do racismo, visto
que este se consagra de diferentes maneiras, talvez mais sutil ou explicíta, mas sempre
presente quando se trata da ascensão do negro. Certamente um negro engenheiro ou médico
pode não sofrer as mesmas repressões dos jovens negros das periferias e entrar na estatística
do genocídio, mas pode sofrer (de outros modos) a discriminação e negação no seu local de
trabalho e|ou convivência, por exemplo, do mesmo modo que a diferenciação nos salários e
“status” indica que o racismo é presente em todas as classes sociais.

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indissociáveis, da vida social compreendendo, portanto, as dimensões do
direito/justiça, trabalho, educação, moradia, cultura, religião e etc.

Por essa razão, afirmamos que a “questão social” se configura como a
expressão mais aflorada das contradições do modo de produção capitalista.
Para tanto, compreender as particularidades culturais, sociais e econômicas
nacionais possibilita-nos desvendarmos não somente algumas das
expressões da “questão social” que referimos neste trabalho, mas também os
rumos econômicos que conduzem o país na posição em que se encontra no
mercado mundial e, por consequente, refletem numa trajetória histórica
desastrosa quando se trata da conquista e efetivação dos direitos humanos
(direitos sociais, civis e políticos) na sociedade brasileira, principalmente no
que diz respeito à população negra.

Portanto, para dar conta da compreensão da “questão social” no Brasil
contemporâneo, no qual observaremos a situação das famílias negras na
sociedade de classes, é preciso, primeiramente, desvendar as
particularidades históricas e suas mediações na sociedade brasileira
responsáveis por desencadear as expressões atuais da velha “questão
social”. Do mesmo modo, se faz necessário desvelar as relações entre capital
e trabalho, considerando a realidade nacional, assim como a sua formação
social. Entende-se nesta perspectiva de análise, que o avanço do capital se
desdobrará de formas diferenciadas de acordo com cada espaço nacional,
que, por sua vez, se relacionará com as características econômicas, políticas,
sociais e culturais de cada país. Logo, as implicações desse desdobramento,
incidirão na trajetória de vida das famílias negras, observando, portanto,
novas e velhas mediações do Estado e do capital que aprofundarão as
desigualdades étnico-raciais na sociedade brasileira. Por tais razões,
destrincharemos as particularidades do capitalismo “à brasileira”.

2.1 Particularidades do capitalismo “à brasileira”

O lugar que os seres sociais ocupam na sociedade em suas diferentes
conjunturas revela em sua trama a certeza que nenhuma forma de

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sociabilidade é eterna, isto é, se transforma se esgota e, portanto, pode ser
revolucionada. Tais mudanças não se dão de forma simples ou natural. Sem
dúvida as decisões políticas, as intencionalidades e projetos societários em
disputa entre os sujeitos sociais e as formas de mobilização do povo frente o
pensamento social fomentado (pela cultura política, econômica e social), são
determinantes que forjam a trajetória social de um determinado país. Além das
próprias contradições internas às formas sociais.

As análises hodiernas de Fernandes (1985) sinalizam que o avanço do
capitalismo em todos os continentes, diante da necessidade de expansão do
capital, não se dá de formas iguais ou universais para todos os países que
tiveram esse modelo econômico implementado, considerando assim as
particularidades e a historicidade de cada sociabilidade. Segundo o autor, para
que uns floresçam, outros crescem atrofiadamente. Daí se justifica o avanço
dos países centrais e a pauperização dos países periféricos, o
desenvolvimento da cidade e a precarização do campo, bem como a
progressão do asfalto e o descaso com a favela.

Contudo, compreende-se que o avanço do capitalismo nos países
centrais na lógica do capital implica no desenvolvimento periférico dos países
emergentes, a exemplo do Brasil. É nessas circunstâncias que Florestan
recupera o conceito desenvolvido por León Trotsky sobre a lei do
desenvolvimento desigual e combinado, uma vez que se observa nos
países da America Latina a ocorrência simultânea de aspectos avançados e
atrasados no processo de desenvolvimento econômico. Trotsky (1962 apud
LOWY, 1995) sinaliza que “o desenvolvimento de uma nação historicamente
atrasada conduz, necessariamente, a uma combinação original das
diversidades. A órbita descrita toma, em seu conjunto, um caráter irregular,
complexo, combinado”. Logo, como afirma Lowy (1995) diante das análises de
Trotsky, fica inviável o argumento evolucionista dos rumos históricos da
sociedade, uma vez que as bases dos antigos modos de produção não se
fundem, simplesmente, em consequência das contradições estruturais nos
países atrasados ou ainda em fase pré-capitalista. Ocorre uma articulação e
associação com as características arcaicas, no qual tais países aparecem
como uma saída para a crise do capital, visto que diante da circunstância de
seu esgotamento, o capital se expande na condição de imperialista. Para tanto,

23

a dinâmica de expansão do capital impossibilita o mesmo nível de avanço para
todos os territórios, visto que os países periféricos admitem a possibilidade de
sustentação dos lucros aos países centrais. Neste sentido, a possibilidade de
transformação é limitada pela realidade cultural, política e social de uma nação.

Entretanto, a posição que os países da América Latina ocupam na
economia mundial revela um padrão de expropriação dual do excedente
econômico evidenciado pela necessidade de abastecer os grandes centros
econômicos, ditos “países imperialistas”. Segundo Fernandes (1973), novos
padrões de dominação externa emergiam rigorosamente quando uma
determinada forma de organização capitalista da economia e da sociedade é
absorvida em consequência de uma alteração na natureza do capitalismo na
Europa e nos Estados Unidos. Entretanto, ao identificarmos as
intencionalidades do capitalismo nos países periféricos, questionamos como as
particularidades históricas da sociedade brasileira viabilizaram a trajetória
selvagem do capital no Brasil, bem como o recrudescimento das expressões da
“questão social”? Para o enfrentamento da referida indagação,
destrincharemos as particularidades do capitalismo “à brasileira”.

O desenvolvimento do capitalismo nos países como França e Inglaterra
certamente tiveram um terreno histórico diferenciado a nível social, político e
cultural no qual incorporou significativamente o cunho democrático e
nacionalista em beneficio de uma camada anteriormente excluída no antigo
regime.

Nos países que vivenciaram a revolução clássica, o capitalismo surgiu
nas ruínas do feudalismo já no auge de sua crise. A fim de derrotar o antigo
regime feudal que não atendia aos interesses da nova classe social em
ascensão, a burguesia aparece como uma classe revolucionária ancorada em
ideais iluministas – sobre a ideia de igualdade, liberdade e fraternidade – e
ideais positivistas. Ancoradas nessa visão de mundo, buscavam nas ciências
naturais a justificativa deste desdobramento, ou melhor, deste percurso
“natural” e “incontestável” que a sociedade tomara (LOWY, 1995). A razão
neste momento se fez como a base dos princípios da burguesia até então
revolucionária e, que de fato, conseguiu derrotar o antigo regime com a ajuda e
mobilização de frações da sociedade excluída dos privilégios da época.
Contudo, tendo estabelecido as relações sociais necessárias para o

24

capitalismo existir (considerando, entretanto, as transformações políticas,

econômicas, social e cultural) e tendo derrotado o antigo regime, o capitalismo
se encontra livre para progredir e reproduzir a acumulação em escala

ampliada. Contudo, esse se constitui no modelo clássico de revolução
burguesa, pois houve não somente uma revolução econômica, mas também

uma revolução de cunho político, isto é, uma revolução burguesa democrática
pressionada pelas camadas insatisfeitas com o regime vigente. Nesse sentido,

pode-se dizer que nos países centrais em que ocorreu a revolução burguesa
clássica como na Inglaterra, França e Estados Unidos houve também uma

revolução nacional, formação do Estado Nacional, revolução cultural e agrária,
assim como se efetivou a democracia burguesa – mesmo que tenha sido
dentro da ordem. As denominadas por Fernandes (1995) de “burguesias
conquistadoras” conseguiram mesclar os dois tipos de interesses, tanto dos
que vivem do trabalho, tanto quanto aqueles interesses mais egoístas e
individualistas que contemplam a classe burguesa.

Já nos países nos quais a revolução clássica não se consagrou, a
realidade se mostrou bem mais obscura para os “excluídos” da riqueza
socialmente produzida. Como referimos no início deste tópico, tal análise
implica afirmar que a “inauguração” do capitalismo não ocorreu de forma

universal e invariável a todos os países como alguns sociólogos defendiam.
Tão pouco a democratização da renda, prestígio social e do poder, bem como

a integração nacional das estruturas de poder, segundo padrões democráticos,
se concretizou de forma equivalente à todos os países nos quais o capitalismo

se desenvolveu, como sinaliza Fernandes(1995).
O mesmo autor, ao analisar os estudos de Lênin, revela que:

[...] em certas condições concretas, a burguesia pode não
dispor de espaço político para promover a criação de uma
democracia burguesa e para transformar a revolução nacional
no eixo político da industrialização. Nestas condições, as
frações mais poderosas e influentes da burguesia se esforçam
por dissociar a revolução econômica da revolução política,
acomodando-se aos padrões de dominação autocrática e
reacionária da nobreza, da burguesia e do governo central.
Produz-se uma articulação entre os interesses da burguesia e
os interesses das outras classes dominantes, que redunda na
neutralização da burguesia como “classe revolucionaria”, mas
que possibilita conciliar o desenvolvimento capitalista com a

25

preservação ou o recrudescimento de formas autocráticas e
reacionárias de dominação política. Em outras palavras, tais
condições deixa de haver forte correlação(ou qualquer
correlação) entre aceleração do crescimento econômico, a
eliminação ou a diminuição de privilégios pré-capitalistas e a
intensificação da democratização da renda, do prestigio social
e do poder(FERNANDES, 1995, p.133)

Tais estudos já desvendavam de forma concreta a outra face do

processo revolucionário (ou não) da burguesia frente à realidade social,

político, econômica e cultural de certos países, a exemplo do Brasil.
Compreende-se a “revolução burguesa” no Brasil sob um subtipo de

capitalismo de origem dependente, de uma capacidade de subalternização

consentida e pertinente às intenções das individualidades externas e internas a

sua nação. Modelo este que não favorecera a formação de um Estado

nacional, e independente que contemple, simultaneamente, as classes

fundamentais desse modo de produção. Pelo contrário, admite-se e jamais se
rompe com os detentores do poder – verdadeiros anelídeos do povo.

Inicialmente, para as classes dominantes atingirem os interesses da

implementação e desenvolvimento do capitalismo no Brasil, a revolução

econômica seguiu-se separada da revolução política. Nesse processo de
“revolução burguesa” no Brasil, as classes dominantes adotaram um modelo de

contrarrevolução antidemocrática em todo processo histórico. A ordem

estabelecida se direcionara a um caminho irreversível para uma ditadura de

classe, com maior centralização de poder e eficácia, sem intenções de

introduzir padrões nacionais de relação, mas sim de padrões de desigualdade

econômica, social e política (FERNANDES, 1995). Nesse sentido, o referido

autor caracteriza o desenvolvimento do capital como:

[...] um tipo especifico de dominação burguesa, que não faz
história através da revolução nacional e de sua aceleração.
Mas ao contrário, pelo caminho inverso, de sua contenção e
esvaziamento. Esta modalidade de revolução burguesa não
busca autonomia do crescimento econômico capitalista, mas
crescimento econômico rápido (ou tão rápido quanto possível)
nas condições permanentes (embora constantemente
renovadas, a partir de fora para dentro) do capitalismo
dependente. [...] Assim, para atingir seus fins, a dominação
burguesa dissocia a revolução econômica da revolução
política, o que faz com que a revolução burguesa fique
representando um deslocamento totalitário do poder de classe,

26

que elimina, de fato ou de direto(ou de fato e de direito), o resto
da sociedade do espaço político e suprime os ritmos
turbulentos da história social, proscrevendo o conflito
social.(FERNANDES, 1995, p.126)

Nessa mesma direção analítica, Iamamoto (2008) avalia que as
desigualdades sociais no Brasil se revelam através de um descompasso entre
temporalidades históricas distintas, porém coetaneamente articuladas,
atribuindo particularidades à formação social no país. Diante da realidade
social brasileira, nem de longe o desenvolvimento econômico e o processo de
industrialização significava o caminho para a salvação dos problemas sociais
fomentados no antigo regime econômico. Segundo Iamamoto (2008), o que
viria a ser o novo modo de produzir a vida material surge como desdobramento
do velho, uma vez que se recriou e atualizou elementos da nossa herança
histórica colonial e patrimonialista no contexto de mundialização do capital.
Nesse sentido, a autora analisa que:

O “moderno” se constrói por meio do arcaico, recriando
elementos da nossa herança histórica colonial e
patrimonialista, ao atualizar marcas persistentes e, ao mesmo
tempo, transforma-las, no contexto de mundialização do capital
sob hegemonia financeira.[...] O novo surge pela mediação do
passado, transformado e recriado em novas formas nos
processos sociais do presente. A atual inserção do país na
divisão internacional do trabalho, como um país de economia
dita “emergente” em um mercado mundializado, carrega a
história de sua formação social, imprimindo um caráter peculiar
à organização da produção, às relações entre o Estado e a
sociedade, atingindo a formação do universo político-cultural
das classes, grupos e indivíduos sociais.(IAMAMOTO, 2008,
p.128)

Contudo, a revolução burguesa no Brasil, que se deu desde a queda do
Estado monárquico até o fim da ditadura, de fato não ocorreu como nos países
desenvolvidos. Ao seguirmos o caminho de desvendarmos as particularidades
históricas que originam as expressões da “questão social” no Brasil, nos
desperta o fator decisivo da historicidade de um passado colonial que
contribuiu e subsidiou um modelo particular da tal contrarrevolução vivenciada
no Brasil. Para Fernandes (1995), muito das condições que explicam o
caminho seguido pela revolução burguesa na Inglaterra e França não eram

27

“estruturais”, mas “históricas”. Da mesma forma que nos países da America
Latina, por exemplo, as investigações sobre os povos de origem colonial ou
que foram submetidos à colonização contribuíram para ampliar as concepções
teóricas resultantes. (FERNANDES, 1995). Logo, a situação na qual se
encontrava o Brasil viabilizou esse caminho, uma vez que as relações de poder
das elites com a população subalternizada foi decisiva no sentido de controlar e
inibir qualquer força ou ideia revolucionária que pudesse partir das
revindicações das camadas populares, para então maximizar seus objetivos
econômicos. São essas condições de tal natureza que Fernandes (1995)
salienta ser um espaço político seguro, seja para enfrentar e eliminar as
pressões de baixo para cima, seja para ter base política de barganha e de
autoproteção nas relações com os países capitalistas hegemônicos.

Enquanto nos países desenvolvidos a industrialização se deu nos
grandes centros urbanos, no Brasil o modelo agrário se fundiu à
industrialização, na qual os grandes proprietários de terras viraram
“simultaneamente” os capitalistas do novo tempo, já que a indústria se baseava
na produção cafeeira. Neste sentido, Iamamoto (2008) afirma que no momento
de modernização conservadora evidencia-se a incorporação e/ou criação de
relações sociais atrasadas nos setores de ponta na economia. Isto é, na
medida em que o desenvolvimento capitalista não implicava na ruptura com a
ordem societária anterior como ocorreu nos países que tiveram a revolução
clássica, a burguesia brasileira se configura neste momento como parceira dos
senhores do engenho e do imperialismo, uma vez que esta nova forma de
organização econômica não se preocupou em romper com segmentos arcaicos
da classe dominante ou com os donos do campo. O coronelismo e a
reatualização do trabalho escravo sinalizava esse retrocesso. Características
do passado revitalizam-se na prática da peonagem, escravidão por dívida de
imigrantes presos a terra do seu trabalho, clandestinidade nas relações de
trabalho e precarização mediante a regressão dos direitos sociais e
trabalhistas, principalmente no que diz respeito aos trabalhadores rurais que
não tiveram efetivada a tão sonhada reforma agrária.

Mas quem se beneficia dessa transformação capitalista? Certamente
não são as classes jogadas ao destino. Fernandes (1995) salienta que:

28

Se uma fase de intenso crescimento econômico e de profunda
mudança sócio-cultural não é, por si mesma, uma fase de
aumento da igualdade econômica, sócio-cultural e política, no
caso ela surge e se particulariza, historicamente, de forma
negativa perante os requisitos centrais de um “estilo
democrático de vida” ou da “integração nacional” da sociedade
brasileira. Pois o que se vê[...] é que o intenso crescimento
econômico e a profunda mudança sócio-cultural
acarretaram, continuam a acarretar e irão acarretar no
futuro, mantidas as presentes condições: agravamento das
desigualdades econômicas, sócio-culturais e políticas em
todas as direções( de classes, raciais e regionais);
revitalização de privilégios de ordem colonial ou neocolonial e
criação de privilégios novos, com a marca do “antigo
regime”,[...]enriquecimento da opressão de classe como arma
de controle econômico, social e político, como se as fronteiras
da nação e da ordem legal coincidissem com os interesses
privados de uma minoria de 10 ou 20%. (FERNANDES, 1995,
p.136).

Contudo, ao considerarmos tais particularidades e as intencionalidades
do capital frente às determinações dos países imperialistas, as consequências
do desenvolvimento do capitalismo no Brasil “sem freios”, certamente, viriam a
confirmar as indagações de Florestan Fernandes sobre o agravamento das
desigualdades sociais a nível econômico, sociocultural e político. Entretanto, o
Estado sobre o domínio burguês se configura como a principal Instituição do
capital para viabilizar o seu grande projeto, logo, será incisivo para a
manutenção das relações de poder e subalternidade sobre o povo. Estado
esse que abrirá o caminho para o aprofundamento da “questão social” no
Brasil. Anuncia-se, então, pelas decisões políticas-econômicas, o caos social
desenhado pela trajetória de um Estado historicamente dependente das elites
mundiais e selvagem.

2.2 Estado, Capitalismo e desigualdade étnico- racial

Na ótica da sociedade capitalista, todos os modos de ser, se relacionar e
conviver se estreitam com a sociabilidade do capital. O Estado, por sua vez,
deve ser compreendido a partir das relações sociais existentes. Diante das
diferentes conjunturas históricas, este assumiu características que viabilizaram

29

as condições materiais de existência. Portanto, a sociabilidade de uma época,
na qual se refletem as regras, a moral, o comportamento, a “ideologia” – até
mesmo os arranjos familiares – se depara com os interesses dos segmentos
sociais dominantes e compatíveis com as relações sociais de um determinado
modo de produção.

Percebendo-se que, na sociabilidade capitalista, o racismo sempre foi
elemento determinante no que tange às condições de vida da população,
entende-se que a situação vivenciada pelas famílias negras no cenário
brasileiro se estreita com as relações permeadas entre o Estado e a sociedade
para o avanço do capitalismo “à brasileira”. O caos social testemunhado nas
periferias, no campo, nas relações precárias de trabalho, nos presídios, nas
escolas públicas (ou nas Instituições Estatais em geral) revelam, em seu
sentido primeiro, as intencionalidades do Estado com o tratamento dos
segmentos pauperizados.

Nas mais variadas conjunturas históricas o Estado brasileiro assumiu
características particulares que não se desprenderam de sua modernização,
sem dúvida, controlada. Se o Estado se configura como o comitê da burguesia
como já dizia Marx, a burguesia brasileira, que não possuía autonomia
nacional, será mais rígida quando se trata de sua legitimação. Portanto,
compreender a natureza da burguesia brasileira nos ajuda a interpretar o
posicionamento do Estado em diferentes momentos, sem deixarmos de
perceber suas singularidades na forma de conduzir seus objetivos. Embora
seja de extrema importância para a compreensão das infinitas expressões da
“questão social” e, portanto exige-se um estudo detalhado posteriormente, a
intenção aqui não é se aprofundar nas singularidades do Estado brasileiro em
cada momento da trajetória social. O que nos importa perceber para
identificarmos a fomentação dessa desigualdade étnico-racial é a capacidade
do Estado em exercer sua relação de poder para viabilizar o poder do capital.
Relação essa de poder:

 [...] que se particularizou, considerando-se assim o
percurso do modo de produção capitalista que, em diferentes momentos
da história, não se desprendeu de uma herança colonial valiosa para os
padrões de dominação imperialista.

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 [...] que doutrina a subjetividade dos corpos e fomenta
(mesmo que de forma camuflada) ideologias e políticas funcionais a
conservação das relações de subalternidade (relações de gênero e raça,
por exemplo);

 [...] que dita as regras e leis favorecedoras de sua
governabilidade;

 [...] que exclui dos privilégios da riqueza socialmente
produzida, os trabalhadores, desdenhando-se dos problemas sociais
vivenciados por estes;

 [...] que extermina uma massa de “sobrantes” para o capital
por uma política de cunho racista, que implica em não enxergar o outro
como igual, não se identificando, portanto, com ele.

Relações de poder, relações de poder, relações de poder!
Incansavelmente citaríamos inúmeras relações de poder exercidas pelo Estado
que acarretaram nas remanescentes expressões de desigualdade social e que,
portanto, se convertem em estruturais na sociedade brasileira. Para esses
efeitos, destrincharemos de forma breve a intervenção do Estado frente às
determinações do capital na sociedade brasileira.

Como já nos referimos no item anterior, de acordo com o pensamento de
Fernandes (1995, 1973), a natureza da burguesia se caracteriza por um padrão
dual de exploração econômica e com o padrão compósito de hegemonia que
nasce contemplando o imperialismo e os senhores rurais, mas que ao mesmo
tempo percebe a classe trabalhadora como seus inimigos. Ora, se
percebermos as características particulares da burguesia brasileira, percebe-se
também nas ações do Estado, os porquês de suas decisões políticas em
diferentes conjunturas, que por sua natureza burguesa, acompanharam as
mudanças do capital. Segundo Behring (2009), o “Estado acompanha os
períodos longos do desenvolvimento do capitalismo de expansão e estagnação
e, portanto, se modifica histórica e estruturalmente cumprindo seu papel na
reprodução do trabalho e do capital.” No entanto, este manteve a direção
política com consciência de classe da hegemonia burguesa, expressando a
correlação de força com a sociedade civil.

31

Por tais razões, não dá para pensar as desigualdades étnico-raciais sem
pensar nas origens das estruturas particulares e predominantes das relações
sociais brasileiras. O Estado, por sua vez, aparece como grande interventor na
alteração da forma de (re)produzir a vida material, para a permanência das
disparidades econômicas e sociais que garantem o lucro dos grandes
exploradores. Não aventa de uma ascensão do povo na cena política como
protagonista da “revolução”, mas que, de fato, tratou de ser incisivo em oprimir
e coagir a classe trabalhadora em detrimento dos interesses de grupos
privados, certamente uma minoria. Mas que Estado é esse que nos
deparamos no contexto do avanço do capital em suas diferentes
conjunturas, e que efeitos de suas ações e decisões políticas interferem
na vida das famílias negras no Brasil?

O modo como o Estado brasileiro se posicionou frente os problemas
gerados pela viabilização do capital, implica num destrato e descaso com
aquilo que veio a ser chamado de “questão social”, posto que suas expressões
são tratadas apenas no âmbito da repressão. Ao que indica a defesa do
projeto privado de uma determinada classe, o Estado brasileiro, na sociedade
de classes, tratou de lidar com a “questão social” sem ao menos buscar uma
possível “amenização” das desigualdades remanescentes e “reconfiguradas”
na nova sociabilidade. “Reconfiguradas” no sentido de conservar as
relações sociais passadas em um novo contexto social, imputando,
sobretudo, uma nova função social aos negros, de modo que estes não
se desligassem da herança colonial de subalternidade aos brancos. Se a
máquina que sustentava os lucros do período monárquico era os braços fortes
e suados dos negros, no qual se compreende sua funcionalidade indispensável
para os interesses da época, na sociedade de classes a funcionalidade do
negro, inicialmente, será evidenciada por um novo lugar de ocupação na
divisão sócio-técnica do trabalho. Logo, se a dinâmica do Capital determina os
lugares e os “papeis” dos países periféricos no contexto de mundialização do
capital, não é um absurdo pensarmos que na conjuntura particular do
capitalismo de cada país, este também determina a posição e os lugares dos
sujeitos sociais para a manutenção de seus propósitos, uma vez que o
florescimento de uns tende à depressão de outros. Logo, a defesa da

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funcionalidade ideológica do antigo regime, no qual a violência exacerbada, a
ridicularização humana e o racismo eram ancorados por leis, se consagra por
um sistema de classes, que em consequência de sua dinâmica estrutural,
inviabiliza a real igualdade, uma vez que se determinam os lugares
“desproporcionados” para a sobrevivência dos capitalistas. Isso implica afirmar
que o racismo é funcional no início do desenvolvimento do capitalismo no
Brasil, pois por meio dessa funcionalidade se delegou aos negros os piores
postos de trabalho. (FERNANDES, 2008 apud MURAD, 2016).

De fato as particularidades históricas da sociedade brasileira (na qual a
condicionalidade do povo também é imposta) se deparam com uma profunda
desigualdade social justificada pelo desenvolvimento histórico do capital, no
qual o Estado aparece como grande gerenciador desta disparidade. Nos
desperta neste trabalho a correspondência (ou não) do Estado com os
assuntos de interesse das frações populares da sociedade; o Estado e as
relações de poder coercivas em prol da intervenção (semi) exclusiva no
mercado; bem como a trajetória do Estado para viabilizar os projetos internos
e externos de avanço do capital. Nesse sentido, as intencionalidades do
Estado brasileiro se estreitam com o percurso do capitalismo no Brasil –
selvageria anunciada e reformulada de acordo com os avanços do
capitalismo.

Contudo, as particularidades históricas brasileiras se consagram como
um capitalismo dependente, em um Estado que aparece em todos os
momentos históricos, (desde a monarquia ao militar) de forma autoritária,
opressora e antidemocrática. A raiz das relações sociais de dependência e
subalternidade (ora consentida) eclode na sociedade brasileira desde os
primórdios da nossa economia em uma relação intensa, primeiramente, com
Portugal e em seguida com os países centrais na economia mundial como
Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha e demais países imperialistas. Nas
profundezas da historicidade do referido debate, Ianni (1985) sinaliza que
desde a independência até os dias atuais, todas as formas históricas de
atuação do Estado denotam continuidade e reiteração de soluções autoritárias,
de cima para baixo, pelo alto, organizando o Estado segundo os interesses

33

oligárquicos, burgueses e imperialistas. Considerando esses traços, Ianni
(1985) caracteriza o Estado brasileiro em suas diferentes conjunturas:

No princípio, sob o Estado monárquico (1822-89), no qual o
poder moderador do rei tem uma conotação arbitraria,
predominam os interesses do bloco agrário vinculado
principalmente à cana e ao café. Em seguida, sob o Estado
oligárquico(1889-30), no qual a política dos governantes tem
um papel saliente, reforçando o autoritarismo, predominam os
interesses do bloco agrário apoiado principalmente pela
cafeicultura. Depois, sob o Estado populista(1930-64), que
passa por um período de “formação”(1930-37) e pela ditadura
de Estado Novo(1937-45), predominam os interesses do bloco
industrial agrário, vinculado principalmente ao café e a industria
de bens de consumo duráveis. A partir de 1964, sob o Estado
Militar, apoiado em um poderoso bloco industrial, ou melhor,
financeiro e monopolista, predominam os interesses da grande
burguesia financeira e monopolista estrangeira. (IANNI, 1985,
p.21)

No entanto, Ianni (1985) salienta que em diversas fases da república, o
Estado adquiriu fisionomia oligárquica, corporativa, populista e militar. O que
nos desperta a atenção diante da característica marcante do Estado brasileiro
em suas diferentes concepções históricas, é o seu compromisso de ofuscar as
lutas sociais e camuflar as contradições geradas pelo modo de organização e
de produção da vida social. Desde o Estado monárquico, as péssimas
condições de vida do povo foram ignoradas pelo governo que recriminava todo
e qualquer movimento popular que fosse contra ele. Há que se concordar que
no regime de trabalho escravo, se vivenciou a forma mais aflorada, aberta e
transparente da exploração do homem pelo homem, uma vez que o ser
humano considerado escravo era visto como propriedade privada de seu
semelhante não negro. Nem mesmo o próprio escravo tinha liberdade sobre si
mesmo e este não tinha direito a nada. O escravo era expropriado do produto
de seu trabalho e submetido às regras de seu dono, sem mesmo ter direito a
algum tipo de negociação.

Cabe ressaltar que, em concordância aos interesses do Estado,
historicamente, a Igreja assumiu um papel singular no controle e difusão da
moral e dos lugares assumidos pelos sujeitos sociais, principalmente no que
diz respeito ao período colonial. Se ao rei era concebido o poder divino dos

34

céus, aos escravos cabia a aceitação de sua condição e negação de suas
heranças culturais.

Ao contrário da aparência de paz e tranquilidade que se pregava durante
a fase monárquica, na prática a realidade era de lutas e protestos por parte dos
escravos, brancos pobres insatisfeitos no meio rural, reivindicações de
artesãos, empregados e funcionários da cidade (IANNI,1985). Não é a toa que
as punições contra os escravos ficaram mais severas, o que justifica o temor
das elites pelas revoltas e mobilização das classes excluídas dos privilégios
das elites. Com o movimento abolicionista, a instituição do trabalho livre e a
implantação da república, os ex-escravizados, índios, imigrantes, negros e
trabalhadores rurais continuaram sendo deixados de lado pelo Estado
Oligárquico, uma vez que não houve nenhuma ação do Governo que pudesse
restituí-los pelos prejuízos humanos vivenciados no período escravocrata, uma
vez que se tratava de um Estado liberal. Restou-se apenas a política do favor a
esses cidadãos jogados às ruínas, do mesmo modo que os vestígios das
práticas escravistas recaíram sobre a vida da população negra.

O racismo impregnado por partes dos governantes justificava a suposta
ideia de um Estado forte capaz de doutrinar os mestiços com sua “mão de
ferro” (IANNI, 1985). Não é a toa que Menezes (2013 apud MURAD, 2016)
destaca a política do embranquecimento com a vinda dos trabalhadores
europeus subsidiada pelo Estado. Sem contar com o aparecimento das
periferias que surgem como consequência da política de desenvolvimento das
cidades, que por razões de atender as expectativas dos países centrais para o
avanço das empresas capitalistas, remodelaram o novo centro urbano
(desenvolvimento desigual e combinado). Políticas essas que na visão de
Murad (2016) legitimam a expulsão dos trabalhadores pobres e negros dos
grandes centros urbanos e de seu local de sobrevivência, os cortiços, visto que
as favelas passam a ser seu lugar de convívio e resistência (no sentido da
construção de formas de sociabilidade não mercantis). Neste sentido, Murad
(2016) salienta a construção e a origem do subúrbio carioca marcada pela
segregação étnica fundamentada na ideologia do branqueamento, a qual surge
em consequência do movimento de deslocamento forçado, remoção e
construção do sistema de transportes. (MURAD, 2016 apud ABREU 2013).

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Qualquer ascensão ou afirmação de valores pelas camadas populares
significava uma ameaça ao controle da hegemonia. Murad (2016) sinaliza o
disciplinamento necessário dos corpos por partes das elites, para consolidação
da modernidade, no qual no Brasil ocorre um tensionamento contínuo em um
movimento de expropriação (do tempo livre e do espaço), bem como
acompanhado da permanência de formas de violência extraeconômica e
resistência. Do mesmo modo, desdenhavam da capacidade do povo, mas
imputavam a repressão para o controle da ordem estabelecida sem que
coubesse algum ganho por parte dos de “baixo”. À medida que se afloravam os
problemas sociais, a “questão social” no Brasil se desenhava nos rumos de
criminalização e repressão por parte do Estado. Segundo Ianni (1985):

O arranjo dos interesses do bloco agrário fundamentava e
organizava todas as principais atuações do aparelho estatal contra
colonos, seringueiros, caboclos, sitiantes, índios, negros, operários,
populares e inclusive setores de classe média que se organizavam
para reivindicar. Tanto assim que a questão operaria, por exemplo,
era considerada “questão de policia”. A mesma ideia da sociedade
“amorfa” vinha junto com a pratica da repressão.( IANNI, 1985, p.16)

Contudo, a crise da oligarquia cafeeira inaugura a era do capitalismo
monopolista. Segundo Ianni (1985), nessa nova fase do capital, o Brasil entra
em um estágio de transição no qual viabiliza a industrialização, urbanização,
sindicalismo estatal, fortalecimento do aparato do Estado (principalmente o
poder executivo), bem como se observa uma forte intervenção Estatal em
assuntos econômicos. O Estado começa a expressar um novo arranjo de
classes compreendendo de um lado algumas reivindicações das forças
populares (o que não distancia a natureza do Estado brasileiro de seu caráter
contrarrevolucionário), objetivando a formação e o fortalecimento do bloco
industrial-agrário composto por interesses das burguesias cafeeiras, comercial,
industrial e imperialista (IANNI, 1985). De acordo com a literatura, houve um
grande salto na industrialização de bens duráveis e implantação de empresas
estrangeiras no Brasil que exportavam toda a riqueza socialmente produzida
para o exterior. Entretanto, com a passagem do capitalismo concorrencial para
o capitalismo monopolista, nessa característica particular da revolução
burguesa à brasileira, combinava-se a incorporação e a importação de técnicas

36

e exportação de matérias primas com a mobilização subalternizada e abafada
pelas elites do poder. Tratara-se, portanto, de uma exploração dual, a fim de
abastecer, não somente o capital nacional, mas também os países
imperialistas. (FERNANDES, 1973).

A cultura de subalternidade, mandonismo e obediência se torna
marcante no cenário brasileiro, uma vez que uma massa de trabalhadores
recém-chegados aos centros urbanos e necessitados de trabalho não tinham
estreitamento com o engajamento político na luta por direitos, já que o bem
estar do povo do campo, e tão pouco dos escravos, jamais preocupou aos
governos. Realidade esta que contribuíra para a irregularidade e
superexploração daqueles que nada tinham, nem mesmo os direitos que lhe
caberiam como seres humanos.

Diante dessa forma especifica e selvagem do capital direcionada aos
países periféricos, percebe-se que os Estados brasileiros percorreram sua
trajetória pelo caminho da ocultação e a negação da política, como se esta
fosse restrita a certos assuntos, cargos e classe. A insistência na negação de
atribuir a luta do povo ao caráter político de sua conquista é mascarada
estrategicamente pelas elites, pela roupagem de populismo e paternalismo –
Não é por acaso que ainda nos dias atuais o sinônimo de política no Brasil se
limita aos assuntos do planalto, câmara e políticos, enquanto que os interesses
do povo ainda acabam sendo tratados como caso de segurança pública, ou
então quando concedidos, como benesses. Apesar disso, as reivindicações
dos trabalhadores contribuíram para pressionar o Estado liberal a reconhecer
que a “questão social” é uma realidade. O Estado nos anos 30 a 37 passa a
constituir alguns direitos e medidas, como por exemplo, as leis trabalhistas, de
forma a acalmar os “ânimos do povo que continuara na luta por melhores
condições de saúde, moradia, emprego e, sobretudo, de vida. Nesta medida, a
constituição do mercado de trabalho e do regime de trabalho, bem como os
mecanismos de proteção social e regulamentações trabalhistas se configuram
no Brasil como mediações importantes que determinarão tais particularidades
(SANTOS, 2012). Segundo Pochmann (2006 apud SANTOS, 2012), as
características que aparecem na formação do mercado de trabalho no Brasil
entre os anos 1930 e 1970 se configuram através do:

37

[...] padrão de sociedade salarial incompleto, com traços
marcantes de subdesenvolvimento, [a exemplo da] [...]
distinção entre assalariamento formal e informal [que] constitui
a mais simples identificação da desregulamentação, assim
como a ampla presença de baixos salários e de grande
quantidade de trabalhadores autônomos (não assalariados).
(POCHMANN, 2006 apud SANTOS, 2012, p135).

Como se sabe, o Estado brasileiro estava mais preocupado em fazer ele
mesmo a revolução antes que o povo fizesse. Qualquer sinal de democracia,
típica dos países burgueses desenvolvidos, poderia ameaçar a ordem na visão
dos conservadores. Nesse sentido, vários autores, como Fernandes (1995),
Ianni (1985) e Iamamoto (2008) sinalizam que todo o processo de decisão
política brasileira se deu “pelo alto”. Entretanto, partindo desta interpretação, há
de se afirmar que a concessão de alguns direitos sociais, políticos e civis
observados por parte do Estado, é evidenciada pela chamada revolução
passiva Gramsciana.

Porém, mesmo em meio a um possível salto no momento que se
reconhecera a “questão social” para o tratamento dos problemas sociais
recém-gerados e remanescentes do antigo regime, a intervenção, bem como
as intenções do Estado, não significou de fato e nem de longe um momento de
bem estar social, como acontecera em alguns países da Europa e Estados
Unidos. A democracia típica do sistema capitalista também adotara um novo
conceito adaptado pela forma selvagem do capital, pois mesmo que tivesse
designado a democracia aos cidadãos brasileiros, a cidadania era restrita
àqueles que tivessem uma assinatura pelos seus patrões em uma folha de
papel, denominada de carteira de trabalho.

Resumindo, nas palavras de Antunes (2011), a industrialização
brasileira, de caráter fortemente Estatal, deslanchou a partir de 1930 e
posteriormente em meados da década de 1950 quando o padrão de
acumulação industrial pode dar seu segundo salto. O terceiro salto ocorre a
partir de 1964 com o aceleramento da industrialização e modernização do
Brasil. Diante de tal dinâmica de acumulação, o referido autor sinaliza que o
país se estruturava pela vigência de um processo de “superexploração da força
de trabalho”.

38

Logo, à medida que as classes dominantes e o Estado capitalista
atendiam seus interesses particulares (internos e externos) com o avanço
intenso do capital, passando por cima da grande maioria (sempre reprimindo,
ofuscado e banindo-os das decisões políticas), a classe trabalhadora sofria
consequências profundas, uma vez que se fazia “necessário” sua exploração
em níveis cada vez mais altos. Isto é, o Brasil investiu fortemente na expansão
do capital e proporcionalmente, as desigualdades e o pauperismo cresciam,
assim como a informalidade do trabalho que excluía a maioria dos direitos,
evidenciando-se então, um enorme contingente de seres humanos que
“sobram” para o capital. Logo, o avanço do capital se depara com uma massa
de trabalhadores historicamente excluídos dos privilégios das classes
dominantes e da riqueza socialmente produzida, porém não da dinâmica
capitalista. O resultado não seria diferente àquele já citado por Marx, em seus
eixos estruturantes e independente das particularidades históricas de cada
país:

Quanto maior a riqueza social, o capitalismo em
funcionamento, o volume e a energia de seu crescimento,
portanto também a grandeza absoluta do proletariado e a força
produtiva do seu trabalho, tanto maior o exercito industrial de
reserva. A força de trabalho disponível é desenvolvida pelas
mesmas causas que a força expansiva do capital. A grandeza
proporcional do exercito industrial de reserva cresce, portanto,
com as potências da riqueza. [...] quanto maior, finalmente, a
camada lazarenta da classe trabalhadora e o exército industrial
de reserva, tanto maior o pauperismo oficial (MARX,1984,
p.209)

Como as contradições do capital e trabalho são conflituosas por sua
natureza estrutural, o povo exausto passa a reivindicar melhores condições de
vida. Influenciado pelo capital financeiro externo, as forças dominantes tendem
a lançar um golpe militar para que seus interesses de expansão do capital
fossem preservados sem nenhuma interferência de correntes comunistas ou
socialistas (NETTO, 2011). Logo, o Estado de forma escancarada passa a
reprimir tudo e todos que fossem contra a ordem. O Estado ditador ancorado
sobre a “ordem e desenvolvimento” avança de maneira intensa com o
capitalismo.

39

O Estado sobre o domínio da autocracia burguesa passa a ser a
resposta de um povo que nunca deixou de lutar embora tenha sido ofuscado
por toda a história da sociedade brasileira. Contudo, neste momento de pleno
avanço do capital a consequência dessa expansão se evidencia pelo
afloramento da “questão social” em todas as suas mazelas.

Com as consequências da crise do capital da década de 1970 e no
Brasil a partir dos anos 90 (MENEGAT, 2013), observa-se profundas alterações
nas formas de produção e de gestão do trabalho no qual altera-se
profundamente as relações entre capital e sociedade, diante das exigências do
mercado mundial (IAMAMOTO, 2007). Seria essa uma saída estratégica do
capital para seu restabelecimento econômico diante da crise e, portanto, exigiu-
se sua reconfiguração. Paralelamente, os movimentos populares começam a
ganhar força e, de fato, retomam a democracia em finais dos anos 80. A
realidade pós-ditadura revelava uma real necessidade em priorizar os inúmeros
problemas sociais gerados pelas decisões políticas do sistema vigente que
jamais priorizou a necessidade do povo. Porém, como se não bastasse, nesse
momento de vitória da sociedade brasileira, as classes subalternizadas são
surpreendidas por um Estado neoliberal que visava à reestruturação produtiva
e, sobretudo, se recuperar da crise.

Antunes (2011) sinaliza que foi em meados da década de 1980, pós-
ditadura militar, que o padrão de acumulação centrado no tripé setor produtivo
estatal, capital nacional e capital internacional começou a sofrer alterações no
Brasil. Segundo o autor, foi nessa mesma década que ocorreram os primeiros
sinais de reestruturação produtiva, no qual evidenciava-se novos padrões de
organização social do trabalho e tecnologias no Brasil. Abria-se espaço na
cena contemporânea para a então chamada acumulação flexível que
intensificara ainda mais os problemas sociais e, sobretudo, as disparidades
étnico-raciais fomentadas e atualizadas em uma nova lógica de acumulação

Desdobra-se então no Brasil uma nova fase de organização do capital,
na qual as estruturas que regem o sistema se adaptaram e atenderam a tal
dinâmica. Trata-se daquilo que Behring (2003) chamou de contrarreforma do
Estado, visto que esta irá adquirir maior ou menor profundidade de acordo com
as escolhas políticas dos governos e a relação com as classes em cada
espaço nacional (BEHRING, 2009). Certamente, diante das particularidades

40

históricas que moldaram a trajetória econômica e a relação do Estado com a
sociedade civil – compreendendo certa particularidade na trajetória do
capitalismo no Brasil (“revolução burguesa à brasileira”) e a singularidade nas
formas dos governos viabilizarem este processo – os efeitos da chamada

contrarreforma será mais intensa e esmagadora à população historicamente

subalternizada e reprimida.

Segundo Iamamoto (2007), é no contexto da reestruturação do capital

que:

[...] as importações substituem parte da produção nacional em
um verdadeiro processo de substituição das importações. A
economia passa a mover-se entre a estruturação de sua
indústria e a destruição de parte do aparato industrial que não
resiste à competitividade dos grandes oligopólios e a grande
expansão das exportações e importações. Cresce a necessidade
de financiamento externo e, com ele, a dívida interna e externa,
os serviços da divida– o pagamento de juros–, ampliando o
déficit comercial. As exigências do pagamento dos serviços da
dívida, aliada às elevadas taxas de juros, geram escassez de
recursos para investimento e custeio. Os investimentos
especulativos são favorecidos em detrimento da produção, o que
se encontra na raiz da redução dos níveis de emprego, do
agravamento da questão social e da regressão das políticas
sociais públicas. (IAMAMOTO, 2007, p.142).

Segundo Antunes (2011), tal processo indica que:

no estágio atual do capitalismo brasileiro, combinam-se
processos de enorme enxugamento da força de trabalho,
acrescidos das mutações sociotécnicas no processo produtivo e
na organização do controle social do trabalho. A flexibilização e
a desregulamentação dos direitos sociais, bem como a
tercerização e as novas formas de gestão da força de trabalho
implantadas no espaço produtivo, estão em curso acentuado e
presentes em grande intensidade, indicando que o fordismo
parece ainda vigente em vários ramos produtivos e de serviços.
(ANTUNES, 2011, p. 122)

Logo, a “questão social” que se via aflorada por toda a particularidade

histórica desencadeada pelo Estado brasileiro, principalmente na ditadura,

agora se depara com novos arranjos do mundo do trabalho que intensificaram
ainda mais a condição de “exclusão” (que não significa a exclusão do sistema,

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e sim da riqueza socialmente produzida) e desproteção social. Como
consequência da flexibilização na esfera produtiva surge, como mazelas da
“questão social” na sociedade contemporânea, a terceirização e precarização
do trabalho, aumento do exército industrial de reserva, pela substituição do
capital variante (força de trabalho) pelo capital constante (máquina), aumento
do pauperismo, rebaixamento dos salários, e ainda sim pouco investimento
para políticas sociais de educação, habitação, saneamento e etc., uma vez que
o Estado passa a investir mais fortemente no mercado em detrimento dos
anseios sociais.

É nesta relação complexa entre Estado, sociedade civil e capital que as
famílias negras no Brasil se deparam com as particularidades históricas da
“questão social” na sociedade brasileira e, portanto, refletem no fruto dessas
relações de poder, subalternidade e racismo de forma mais intensa e pesada
quando comparada às condições das famílias brancas. Contudo, é notável que
o produto das contradições do modo de produção capitalista (a “questão
social”) provoca às classes subalternas e aos mais diversos movimentos de
trabalhadores, compreendendo indivíduos, grupos étnico-raciais e, sobretudo
às famílias, que afetadas por esta dinâmica perversa, necessitam de moradia,
comida e emprego para sobreviver. Ora, não é preciso gritos tão fortes para
ouvir o socorro das famílias pauperizadas no amontoado de barracos nas
periferias dos grandes centros urbanos em pleno século XXI.

Ao compreendermos a trajetória da formação social brasileira são
inevitáveis os questionamentos: como dar conta dos problemas sociais
remanescentes e atualizados na ótica da acumulação capitalista? O que o
Estado pode fazer ao não dar conta dos problemas sociais estruturais
ocasionados pela reprodução particular do capital no Brasil? Culpabiliza-se
esses indivíduos ou oferece uma política vazia de transferência miserenta de
renda ou aprisiona e/ou extermina toda essa população “sobrante”? As
indagações que nos incomodam nos levam a afirmação que as formas que as
famílias subalternizadas (re) produzem sua sobrevivência, refletem e são
determinadas pelo modo que o Estado gerencia a pobreza.

Numa lógica ideológica que julga os serviços públicos como o peso dos
gastos estatais, o projeto neoliberal subordina os direitos sociais à lógica
orçamentária e a política social à política econômica (IAMAMOTO, 2007).

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Portanto, como repostas a efervescência da “questão social” na fase atual do
capital, de fato as políticas sociais não correspondem aos interesses das
classes subalternas. Segundo Behring (2009), as políticas neoliberais
comportam orientações e condições que se combinam, visto que tais políticas
partem da dinâmica do capitalismo contemporâneo diante da inserção
(posição) de um país, e, portanto se organizam em prol da busca pela
rentabilidade, por intermédio da reestruturação produtiva e da mundialização.
Como reflexo desse processo, as políticas sociais, neste cenário, caracterizam-
se como paternalistas, geradoras de desequilíbrio, custo excessivo de trabalho
e que de preferência devem ser acessadas via mercado, transformando-se em
serviços privados (BEHRING, 2009). Iamamoto (2007) completa que:

A política social, submetida aos ditames da política econômica, é
redimensionada ante as tendências de privatização, de cortes
nos gastos públicos para programas sociais, focalização no
atendimento à pobreza e descentralizados na sua aplicação. Os
impactos da redução dos gastos sociais e a consequente
deteriorização dos serviços sociais públicos dependeram das
relações entre o Estado e a sociedade, das desigualdades e das
políticas sociais anteriormente existentes ao programa de
“contra-reformas”. (IAMAMOTO, 2007, p.147)

Entretanto, tais modelos de políticas não significaram uma redução das
desigualdades, tão pouco resultou em um programa de distribuição de renda e
serviços púbicos, numa perspectiva progressista, que minimizasse as
disparidades sociais, visto que as expressões mais importantes da “questão
social” pós 1970, na visão de Iamamoto (2007) se traduziam no retrocesso no
emprego, distribuição recessiva de renda e ampliação da pobreza,
acentuamento das desigualdades nos estratos socioeconômicos, de gênero e
localização geográfica urbana e rural, queda dos níveis educacionais dos
jovens. Trata-se de decisões políticas e ações do(s) governo(s) de interesse do
capital.

Do mesmo modo, na negação de dar conta dos problemas sociais
fomentados pela forma de (re) produzir a vida material, resgata-se a
funcionalidade do racismo, agora na sociedade de classes. Contudo, o Estado
brasileiro diante de seu compromisso rígido com a natureza particular da

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burguesia no país, historicamente, fomentou políticas públicas legitimadas pelo
racismo institucional (por parte do Estado, órgãos públicos e privados), nas
quais se refletem as formas do pensamento social (o qual se traduz em
práticas difusas socialmente).

Pode até terem mudado as condições burocráticas do Estado brasileiro
ora absolutista (modelo colonial), liberal (capitalismo concorrencial) ou até
mesmo ampliado como na fase monopolista, mas o que não se alterou de
forma significativa foi a essência explícita na forma de gerenciamento da
acumulação capitalista em avançar com os interesses que beneficiam e
enriquecem os grandes poderosos. Assim como também não mudou a forma
de coagir e reprimir os anseios das classes subalternizadas, aliás, o negro
ainda continua sendo caçado e açoitado pelo próprio Estado. Se a trajetória do
negro é marcada por tamanha negligência e racismo pelas forças dominantes
em diferentes conjunturas, a barbárie contra os negros ficará ainda mais
perversa quando, na década de 1970, este segmento sobra (para as
necessidades do capital) e, portanto, o Estado atua no sentido de dizimar e
controlar os “sobrantes”.

Há de se afirmar que na sociedade de classes a relação vital entre o
público e o privado aparece numa correlação estreita de poder, articulada a
objetividade do projeto societário que se pretende fortalecer. A direção política
assume uma das estratégias mais importantes das classes dominantes para a
garantia do consenso necessário. Nesta ordem na qual as necessidades do
capital se sobrepõem aos anseios do povo, considerando as análises do
pensador italiano Gramsci, não basta à hegemonia dominar pela força, mas
sim controlar e disseminar suas ideias para então fortalecer sua hegemonia e
consenso, encobrindo a realidade dos fatos diante da deficiência de dar conta
das responsabilidades sociais.

Doutrinam-se os corpos: expulsando de seu local de pertencimento,
ridicularizando e reprimindo qualquer cultura forjada pelo ato de resistência,
coagindo, tirando direitos e ofuscando as lutas sociais, assim como se controla
a subjetividade humana sobre o instrumento ideológico majoritariamente aceito
pela sociedade como forma de moral e “camufladamente” legitimada como
forma de racismo ou machismo. São por essas relações de poder entre o
Estado e a sociedade que milhares de jovens das periferias não conseguem

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realizar o sonho de uma determinada profissão, por não conseguirem acesso
em universidades públicas diante das condições precárias direcionadas ao seu
ensino básico, por exemplo. Da mesma maneira que muitas famílias veem
seus filhos sendo mortos pela política de segurança do Estado e não têm voz
ao reclamar os direitos que lhe cabem como humanos. Esses são apenas dois
exemplos diante das inúmeras relações de poder que inibe sonhos, ceifa vidas
e fomenta a desigualdade a nível estrutural, perante as quais há uma relação
determinante de raça e etnia em todo fenômeno em que se evidencia a
desigualdade social. A culpabilização do indivíduo, a criminalização da
“questão social” e, sobretudo, a produção e reprodução do preconceito racial
claramente direcionado às classes subalternas e defendido por alguns
segmentos da sociedade, são responsabilidades do Estado que negligencia o
enfrentamento dessas questões para melhor atender os interesses do capital.
Para tal funcionalidade, o racismo se converte em estrutural no capitalismo sul
americano.

Contudo, ao observarmos a atuação do Estado em vários momentos
históricos, percebemos que é impossível uma suposta neutralidade nas
relações sociais e, sobretudo, por parte do Estado na condução de seus
objetivos. Os objetivos, aliás, se refletem em suas ações, visto que imputa uma
direção política capaz de determinar o futuro do outro, isto é, o poder sobre o
outro. Como se não bastasse é no seio da família, por mais afetada ela seja
pela acumulação capitalista, que recai o peso deste poder.

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3 FAMÍLIA E QUESTÃO RACIAL

Como analisamos no primeiro capítulo, a trajetória e as
intencionalidades do capital no Brasil diante da particularidade da burguesia
brasileira, é subsidiada pelas ações de um Estado aliado aos interesses do
capital. Estado esse que, ao incorporar a natureza de tal forma particular de
“burguesia à brasileira”, tratou de ser incisivo e contundente ao banir
rigorosamente as camadas subalternizadas dos privilégios da riqueza
socialmente produzida, implicando, portanto, em consequências duríssimas
para a maioria da população. Tratara de uma relação de poder (e outros
aspectos particulares da formação sócio-histórica brasileira) enraizada e
remanescente nas relações sociais entre o Estado e a sociedade civil que
imputa não somente o controle da vida social, da subjetividade e dos corpos,
mas que determina, por meras decisões políticas egoístas, a trajetória
banalizada de vida de milhares de pessoas negligenciadas em todos os
momentos históricos do país. É nessa complexa trama que as famílias refletem
e reproduzem as condições materiais e subjetivas pertinentes ao sistema.

Diante desta complexidade, o referido capítulo trará um breve exame da
categoria de análise família, a fim de contextualizar a utilidade da família no
modo de produção capitalista, considerando o reflexo das desigualdades
étnico-raciais e sua capacidade de reprodução social.

3.1 Fundamentos: a funcionalidade da família na ótica capitalista

A categoria de análise família se situa num campo polêmico e
diversificado, no qual possui diferentes enfoques a cerca de sua concepção,
origem e funcionalidade na sociedade. De fato as transformações
acompanhadas pelas conjunturas históricas denotam a importância da família
como uma importante instituição na qual se expressam as relações sociais e,
portanto, o contexto político, econômico e social de uma determinada
sociabilidade. Como afirma Reis (2004) é na família, mediadora entre o

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indivíduo e a sociedade, que aprendemos a perceber o mundo e a nos situar
nele.

Como existem diferentes matrizes teóricas e visões de mundo sobre a
construção da sociedade e da relação entre os indivíduos, o mesmo ocorre no
que se refere às interpretações do que vem a ser a família na sociedade
capitalista. Há pensadores que abordarão o conceito de família dentro de uma
abordagem conformista e cientificista, negando o caráter histórico-dialético das
estruturas sociais. Dentre os autores destacam-se as concepções de Parsons
e Freud (apud REIS, 2004) sobre a ideia de que a família burguesa se
consagra como imutável e natural dentro da ordem capitalista.

Por outro lado, na perspectiva crítica, percebe-se que as famílias
refletem as condições materiais da vida social dentro de um determinado
contexto histórico, o qual contempla certas particularidades, por ora funcionais,
ao modo de produção vigente. Deste modo, a família se constitui numa
instituição criada pelos homens, na qual se transformou historicamente para
responder as necessidades sociais em diferentes contextos. Isso implica
afirmar que as famílias nem sempre tiveram as mesmas noções de moral,
comportamento e estrutura. Poster (1979 apud REIS, 2004) já sinalizava as
diferenças entre os modelos de família aristocrática, família camponesa, família
proletária e família burguesa, as quais correspondiam com a dinâmica das
relações sociais pertinentes ao sistema de cada época. Entretanto, ao
considerarmos a dinâmica histórico-dialética das relações sociais, as
possibilidades de novos arranjos familiares não se esgotam em um modelo
único e invariável de arranjo familiar. Para Bilac (2004), a variabilidade suposta
na execução do modelo nos diferentes grupos sociais verificam-se alterações
importantes nos padrões familiares.

Engels (1984) já dizia que graças a mudanças estruturais e econômicas
da sociedade, surge a propriedade privada dos meios de produção e,
consequentemente, a necessidade do aparecimento da família monogâmica.
Os escravos, a mulher, os meios de produção e as terras passam a ser
propriedade privada do homem. A partir disso, o homem que detém poder
absoluto sobre a mulher passa a ter o desejo de transmitir essas riquezas por
herança aos seus filhos, cuja paternidade seja indiscutível. Nesse sentido,
caberia a mulher a esfera privada: os serviços domésticos, a administração do

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lar e o cuidado dos filhos. Enquanto que aos homens incumbiria a esfera
pública, o trabalho e o domínio dos vícios da rua.

Logo, é no interior da família que surge a primeira forma de divisão
social, evidente na divisão sexual do trabalho. Segundo Engels (REIS, apud
2004) essa divisão foi o ponto de referência para a complexidade do processo
de divisão do trabalho que resultou na divisão entre trabalho manual e trabalho
intelectual, assim como na principal divisão que fundamenta o modo de
produção capitalista: a existência de duas classes fundamentais e antagônicas.

Como analisa Netto (2007) nas relações sociais de produção, se a
propriedade dos meios de produção fundamental é coletiva (como na
comunidade primitiva), tais relações são de cooperação e ajuda mútua, pois o
produto do trabalho é desfrutado coletivamente e nenhum membro do grupo se
apropria do fruto do trabalho alheio. Logo, não se caracteriza uma divisão de
classes. Porém, se a propriedade dos meios de produção for privada, as
relações sociais são de antagonismo no qual uns detêm os meios de produção
(objeto de trabalho, meio de trabalho e força de trabalho) e exploram aqueles
que nada têm a oferecer a não ser a sua força de trabalho. É na propriedade
privada que está a raiz das classes sociais, que independentemente de nossa
vontade, podemos nascer em uns dos grupos de interesses antagônicos: os
proprietários (burguesia) e os não proprietários (proletariados/trabalhadores)
dos meios de produção fundamentais.

Contudo, diante da necessidade do capital garantir as dicotomias
pertinentes à funcionalidade do sistema, o Estado, ao se posicionar como um
representante dos interesses do capital, usa-se de varias instituições
autônomas (a exemplo da família) que reproduzem as relações sociais para a
manutenção do status quo.

Neste sentido, Reis(2004) destaca algumas premissas a cerca da
família:

A primeira delas é que a família não é algo natural, biológico,
mas uma instituição criada pelos homens em relação, que se
constitui de formas diferentes em situações e tempos diferentes,
para responder as necessidades sociais. [...] A segunda
consideração é que a família, qualquer que seja sua forma,
constitui-se em torno de uma necessidade material: a
reprodução. Isso não implica que é necessário haver uma
determinada forma de família para que haja a reprodução, mas
que essa é condição para a existência da família. A terceira

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consideração é que, além da sua função ligada à reprodução
biológica, a família exerce também uma função ideológica. Isto
implica que além da reprodução biológica ela promove também
sua própria reprodução social: é na família que os indivíduos são
educados para que venham a continuar biológica e socialmente
a estrutura familiar. Ao realizar seu projeto de reprodução social,
a família participa do mesmo projeto global, referente à
sociedade na qual está inserida. (REIS, 2004, p.102).

Contudo, a família se constitui entorno da necessidade social, assim
como exerce a necessidade material entorno da reprodução. Do mesmo modo,
a família se consagra como uma instituição em que sua funcionalidade se
consagra como grande agente de reprodução ideológica. Segundo Reis (2004,
p.104), a família “é o lócus da estruturação da vida psíquica. É a maneira
peculiar com que a família organiza a vida emocional de seus membros que lhe
permite transformar a ideologia dominante em visão de mundo, em um código
de condutas e de valores que serão assumidos mais tarde pelos indivíduos.”

Entretanto, como a reprodução social se estreita com a funcionalidade
da família sob a dominação capitalista?

3.2 Reprodução social, ideologia e família

Segundo Frigotto (2006), todos os seres humanos são seres da natureza
e, portanto, têm a necessidade de alimentar-se, proteger-se e criar seus meios
de vida. O pressuposto de Marx parte da existência humana, no qual para o
homem existir, este precisa suprir suas necessidades básicas como
comer/beber, morar e vestir. Logo, na produção e reprodução da vida social, os
homens entram em relações determinadas, necessárias e independentes de
sua vontade, ou seja, as relações sociais de existência não são determinadas
por nós na sociedade moderna.

Diante da teoria social crítica, entende-se que ao nascermos nos
relacionamos necessariamente com aqueles que cuidarão de nós, seja a mãe
biológica ou não, que além de nos dar proteção necessária, nos alimenta, já
que quando bebes não temos capacidade de suprir nossas necessidades sem
a ajuda da nossa família. Por tais razões, compreende-se que a família se

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configura como a primeira relação social de existência e em seguida a escola,
a igreja, o lazer entre outros espaços que complementam o universo das
relações sociais.

Entretanto, sob a ordem capitalista e independente à nossa vontade,
nascemos inseridos em uma determinada classe social fundamental ao modo
de produção capitalista (classe burguesa ou trabalhadora), no qual incidirá
diretamente sobre o percurso de nossas vidas, sobretudo, nas relações sociais
que desenvolveremos para a produção material da vida.

Deste modo, se nasceremos em uma família da classe trabalhadora,
por exemplo, compartilharemos e vivenciaremos experiências diárias comuns a
tal classe. Provavelmente nossos corpos e nossa subjetividade estarão
submetidos à dinâmica do capital. Acordamos cedíssimo para trabalhar,
pegamos ônibus lotado com os demais trabalhadores, batemos o ponto no
trabalho na hora combinada com o capitalista, trabalhamos muito e recebemos
pouco dinheiro no fim do mês, e temos pouco tempo para o ócio, já que a rotina
pesada do trabalho não nos permite. Até mesmo a escola que estudaremos
dependerá das nossas condições de classe, ora, nessa sociedade desigual
provavelmente as classes subalternas não terão acesso às melhores escolas e
rede de ensino por conta da dinâmica perversa de dominação do capital, que
incide intencionalmente na educação da classe trabalhadora.

Enfim, vendemos nossa força de trabalho, assim como nos relacionamos
diariamente com os processos de trabalho e com os colegas ali conquistados,
compartilhando características comuns que nos identificam como pertencentes
de uma mesma classe. Esta identidade coletiva, nas análises de Marx e
Engels, nos dá a noção de classe em si, que independente da consciência ou
não sobre a realidade, o indivíduo se encontra inserido em uma determinada
classe social, porém não o reconhece ainda como tal e, nem mesmo, a
realidade social em que está inserido. Contudo, são essas relações sociais de
existência que estabelecemos dotada de moralidade, valores, regras e
ideologias que nos darão sentido para construir a nossa visão de mundo. Na
sociedade capitalista, evidencia-se a adequação da subjetividade aos
mecanismos de reprodução sistêmica do capital, pautadas por um sentido
positivista.

50

Logo, a família não somente refletem a dinâmica das relações sociais,
assim como contribui para as condições materiais e subjetivas na sociabilidade
capitalista. Entretanto, a família – assim como a escola– se constitui como um
importante aparelho privado do Estado para a manutenção da dominação e das
relações sociais3. Entretanto, a dominação não significa a perpetuação da
forma de reprodução social. Segundo Bilac (2004):

A reprodução dos seres humanos ocorre em condições
diferenciadas, através de praticas sociais diversificadas[...]
Contudo, é preciso evitar a confusão de processos: a reprodução
humana nos grupos sociais não é, a priori, a reprodução do
grupo social: a reprodução dos pobres não é a reprodução da
pobreza, a reprodução dos operários não é a reprodução da
classe trabalhadora. O que reproduz os negros como minoria
sociológica não é a cor de seus filhos, mas o estigma, o
preconceito e condições socioeconômicas diversas. (BILAC,
2004, p.32)

No entanto, somente na vida cotidiana, na vivência da realidade social
que o indivíduo dotado de sua singularidade, poderá compreender tal
realidade. Ora, basta percebermos o fortalecimento das lutas dos jovens nas
periferias contra a lógica que assombra seus lugares de pertencimento. De
forma consciente ou não da totalidade que estão expostos os problemas
sociais, as lutas e protestos ganham força nas periferias diante do genocídio
dos negros pela política de segurança do Estado, repressão policial, remoção
de moradores de suas moradias, aliciamento de crianças e adolescente para a
criminalidade e etc. De fato são realidades que, de certo modo, perpassam
pela vida de toda as famílias que ali vivem.

Não por acaso, o Estado é contundente no controle do privado (das
famílias) para então estabelecer o controle da reprodução da vida social
marcada pela lógica do capital. Segundo Bobbio (1997), o Estado ou qualquer
outra sociedade organizada onde existe uma esfera pública, é caracterizado
por relações de subalternização entre governantes e governados e/ou
detentores de poder e destinatários do dever de obediência, no qual implica
numa relação entre desiguais. Para o autor, a distinção entre sociedade de

3 Não se confundem nessa perspectiva de análise a família e a escola como aparelhos
ideológicos do Estado. Para atender os aparelhos privados do Estado, ler Gransci(2001).

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iguais e sociedade de desiguais não é menos clássica do que a distinção entre
esfera privada e esfera pública, na qual na primeira se encontra a família, o
Estado, a sociedade entre Deus e os homens enquanto na segunda diz
respeito à sociedade entre irmãos, parentes, amigos, cidadãos, hóspedes e
inimigos.

Neste sentido, Bilac (2006) alerta para a análise das mediações que se
estabelecem entre os processos de reprodução de grupos e segmentos sociais
que se articulam e interferem na reprodução humana. Segundo a autora, “as
cadeias de mediações entre o processo de reprodução das classes e o
processo de reprodução nas classes não seriam necessariamente as mesmas
nem se estabeleceriam do mesmo modo em todos os grupos e segmentos
sociais (BILAC, 2004).” Contudo, há de se afirmar que o Estado dissemina as
relações de poder de forma diferenciada sobre diferentes grupos e camadas
sociais, percebendo-se portanto, a preocupação em mediar e/ou controlar as
formas de reproduzir a vida social pelas famílias subalternizadas. Neste
sentido, a moral, o racismo, a culpabilização do indivíduo são mediações que
interferem na forma de ser e estar no mundo e, no entanto, dão suporte às
necessidades ideológicas donde compreende-se as intencionalidades do
capital.

À vista disso, Bilac (2004) afirma que o conceito de família vai além da
ideia de reprodução da força de trabalho. Segundo a autora, a importância da
família na constituição de um modo de vida próprio nas camadas populares
revela as possibilidades de resistência à opressão e à dominação inscritas no
cotidiano. Logo, “da perspectiva da reprodução da força de trabalho, caminhou-
se assim, para a perspectiva da reprodução social” (BILAC, 2004).

Segundo Bilac(2004), a reprodução não se desloca da economia e da
política para uma existência autônoma, mas para estabelecer novas relações
com a economia, com a política e com Estado. Isto implica afirmar que as
condições de dominação das famílias não implicam num fim em si mesmo, uma
vez que a possibilidade de transformação no interior desses aparelhos
autônomos não pode ser descartada.

Para tais razões, torna-se então necessário avançar na compreensão da
realidade e não mais de forma imediata, pragmática, superficial e acrítica,
baseada apenas no senso comum. Embora a vida cotidiana seja um campo de


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