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Universidade Pública e Formação em Serviço Social em tempos de contrarreforma

Quando lançamos o edital deste número entre 1º de outubro de 2018 e 15 de março de 2019, não estava em cena o atual governo do Brasil, nem as suas radicais medidas de ataque a direitos sociais e de desmonte da universidade pública em nosso país.
O Edital assim convocava:

artigos que, baseados em pesquisas teóricas e/ou empíricas, problematizem sobre a transformação do ensino superior, no âmbito do ensino de graduação e de pós-graduação, a partir de um duplo movimento articulado: a configuração atual do mercado privado da educação superior e as políticas públicas no campo da contrarreforma da educação. Nessa linha de intenção o edital visa também estimular a captação de artigos que analisem as transformações nas condições e relações de trabalho docente e os desafios atuais e futuros da universidade pública e da formação profissional em Serviço Social, a partir da transformação da universidade pública em uma “universidade operacional” (CHAUI,1999) e da expansão do ensino superior privado no Brasil, especialmente da modalidade não presencial.

Estavam ali colocadas as preocupações em trazer a público um debate em torno da formação profissional em Serviço Social, diante do crescimento dos cursos na modalidade de ensino à distância, assim como os processos de transformação na universidade pública, que já se faziam sentir, principalmente a partir do golpe de 2016.
No entanto, no fim de abril, o governo anunciou o congelamento de R$ 1,7 bi dos gastos das universidades, de um total de R$ 49,6 bi. “No total, considerando todas as universidades, o corte é de R$ 1,7 bilhão, o que representa 24,84% dos gastos não obrigatórios (chamados de discricionários) e 3,43% do orçamento total das federais”.
A esses cortes, a sociedade respondeu com dois grandes atos públicos, onde professores, estudantes e trabalhadores de diversas categorias protestaram em mais de 200 cidades do país, no dia 15/05/19, e em torno de 130 cidades, no dia 30/05/19.
Novo ataque por parte deste governo se dá em 17/07/19, quando anuncia o programa “Future-se”, que altera a estrutura financeira das universidades públicas federais para a captação de recursos privados.
Esses ataques radicais ao caráter público e democrático da universidade pública, somam-se às ameaças do governo anterior quando alterou a consulta pública para indicação de reitores, o que torna ainda mais instável o processo de escolha dos reitores nas universidades públicas.
É neste quadro de retrocesso de um projeto ainda em construção, o qual reivindica uma universidade pública, gratuita, democrática e socialmente referenciada, que trazemos a público mais um número da nossa Revista. Este número, em especial, revela também o impacto destas medidas sobre os docentes e pesquisadores que, entre alguns, atônitos, e outros sugados pela necessidade da luta em defesa da universidade pública, trazem em seus textos os desafios para se pensar a Universidade e a formação profissional. Este número da Revista Em Pauta expressa também, pela sua publicação com financiamento público, um ato de resistência ao atual desmonte da estrutura de pesquisa e inovação que tem se expressado no âmbito da pós-graduação das universidades públicas.
Assim, convidamos os nossos leitores à reflexão a partir dos oito artigos que formam o Eixo Temático, sendo quatro deles sobre as transformações que afetam a Universidade Pública no Brasil, desde os governos do Partido dos Trabalhadores, dois acerca de questões referentes ao ensino do Serviço Social no Brasil e dois sobre esta temática no Chile. Os artigos do eixo contemplam os processos desencadeados pela contrarreforma no ensino superior e os impactos sobre a Universidade Pública, inclusive sobre as repercussões sobre a saúde. Abordam as repercussões desse processo sobre a formação profissional, entre elas a intensificação do ensino a distância (EAD).
Na Sessão Tema Livre, temos um primeiro bloco de três artigos que abordam o debate sobre o papel das famílias na racionalidade que opera as políticas sociais de proteção social; um segundo bloco de três artigos sobre a temática do trabalho, envolvendo a relação entre geração e mercado de trabalho e, também, a precarização do trabalho dos assistentes sociais no âmbito das empresas; um terceiro bloco de dois artigos sobre Serviço Social na área da saúde e as demandas postas aos profissionais neste segmento. Por fim, dois últimos artigos em que um aborda o contexto político do Brasil nos últimos anos que redundaram no golpe de 2016, e o último sobre as relações de raça, gênero e classe que informam a política de proteção social na África do Sul.
Que as reflexões e debates aqui presentes possam suscitar novos diálogos acadêmicos, assim como afirmar a defesa da Universidade Pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada, enquanto elemento fundamental de afirmação da democracia em nossa sociedade.

Rio de Janeiro, setembro de 2019.

Comitê Editorial da Revista Em Pauta
Elaine Marlova Venzon Francisco - Editora-Chefe
Carla Cristina Lima de Almeida
Felipe Demier
Isabel Cristina da Costa Cardoso
Marilda Villela Iamamoto
Monica de Jesus Cesar
Mônica Maria Torres de Alencar

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Published by REVISTA EM PAUTA, 2019-10-18 13:32:43

REVISTA EM PAUTA Nº44

Universidade Pública e Formação em Serviço Social em tempos de contrarreforma

Quando lançamos o edital deste número entre 1º de outubro de 2018 e 15 de março de 2019, não estava em cena o atual governo do Brasil, nem as suas radicais medidas de ataque a direitos sociais e de desmonte da universidade pública em nosso país.
O Edital assim convocava:

artigos que, baseados em pesquisas teóricas e/ou empíricas, problematizem sobre a transformação do ensino superior, no âmbito do ensino de graduação e de pós-graduação, a partir de um duplo movimento articulado: a configuração atual do mercado privado da educação superior e as políticas públicas no campo da contrarreforma da educação. Nessa linha de intenção o edital visa também estimular a captação de artigos que analisem as transformações nas condições e relações de trabalho docente e os desafios atuais e futuros da universidade pública e da formação profissional em Serviço Social, a partir da transformação da universidade pública em uma “universidade operacional” (CHAUI,1999) e da expansão do ensino superior privado no Brasil, especialmente da modalidade não presencial.

Estavam ali colocadas as preocupações em trazer a público um debate em torno da formação profissional em Serviço Social, diante do crescimento dos cursos na modalidade de ensino à distância, assim como os processos de transformação na universidade pública, que já se faziam sentir, principalmente a partir do golpe de 2016.
No entanto, no fim de abril, o governo anunciou o congelamento de R$ 1,7 bi dos gastos das universidades, de um total de R$ 49,6 bi. “No total, considerando todas as universidades, o corte é de R$ 1,7 bilhão, o que representa 24,84% dos gastos não obrigatórios (chamados de discricionários) e 3,43% do orçamento total das federais”.
A esses cortes, a sociedade respondeu com dois grandes atos públicos, onde professores, estudantes e trabalhadores de diversas categorias protestaram em mais de 200 cidades do país, no dia 15/05/19, e em torno de 130 cidades, no dia 30/05/19.
Novo ataque por parte deste governo se dá em 17/07/19, quando anuncia o programa “Future-se”, que altera a estrutura financeira das universidades públicas federais para a captação de recursos privados.
Esses ataques radicais ao caráter público e democrático da universidade pública, somam-se às ameaças do governo anterior quando alterou a consulta pública para indicação de reitores, o que torna ainda mais instável o processo de escolha dos reitores nas universidades públicas.
É neste quadro de retrocesso de um projeto ainda em construção, o qual reivindica uma universidade pública, gratuita, democrática e socialmente referenciada, que trazemos a público mais um número da nossa Revista. Este número, em especial, revela também o impacto destas medidas sobre os docentes e pesquisadores que, entre alguns, atônitos, e outros sugados pela necessidade da luta em defesa da universidade pública, trazem em seus textos os desafios para se pensar a Universidade e a formação profissional. Este número da Revista Em Pauta expressa também, pela sua publicação com financiamento público, um ato de resistência ao atual desmonte da estrutura de pesquisa e inovação que tem se expressado no âmbito da pós-graduação das universidades públicas.
Assim, convidamos os nossos leitores à reflexão a partir dos oito artigos que formam o Eixo Temático, sendo quatro deles sobre as transformações que afetam a Universidade Pública no Brasil, desde os governos do Partido dos Trabalhadores, dois acerca de questões referentes ao ensino do Serviço Social no Brasil e dois sobre esta temática no Chile. Os artigos do eixo contemplam os processos desencadeados pela contrarreforma no ensino superior e os impactos sobre a Universidade Pública, inclusive sobre as repercussões sobre a saúde. Abordam as repercussões desse processo sobre a formação profissional, entre elas a intensificação do ensino a distância (EAD).
Na Sessão Tema Livre, temos um primeiro bloco de três artigos que abordam o debate sobre o papel das famílias na racionalidade que opera as políticas sociais de proteção social; um segundo bloco de três artigos sobre a temática do trabalho, envolvendo a relação entre geração e mercado de trabalho e, também, a precarização do trabalho dos assistentes sociais no âmbito das empresas; um terceiro bloco de dois artigos sobre Serviço Social na área da saúde e as demandas postas aos profissionais neste segmento. Por fim, dois últimos artigos em que um aborda o contexto político do Brasil nos últimos anos que redundaram no golpe de 2016, e o último sobre as relações de raça, gênero e classe que informam a política de proteção social na África do Sul.
Que as reflexões e debates aqui presentes possam suscitar novos diálogos acadêmicos, assim como afirmar a defesa da Universidade Pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada, enquanto elemento fundamental de afirmação da democracia em nossa sociedade.

Rio de Janeiro, setembro de 2019.

Comitê Editorial da Revista Em Pauta
Elaine Marlova Venzon Francisco - Editora-Chefe
Carla Cristina Lima de Almeida
Felipe Demier
Isabel Cristina da Costa Cardoso
Marilda Villela Iamamoto
Monica de Jesus Cesar
Mônica Maria Torres de Alencar

Keywords: Revista,Em Pauta,Teoria Social,Realidade Contemporânea,UERJ,Universidade Pública,Educação,Formação,Serviço Social,Contrarreforma

} FAMÍLIA, CONSERVADORISMO E POLÍTICAS SOCIAIS NO BRASIL – SOUZA, I. L.; LIMA, R. L. }
DOI: 10.12957/REP.2019.45219

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EM PAUTA, Rio de Janeiro _ 2o Semestre de 2019 - n. 44, v. 17, p. 149 - 164 163
Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

} FAMÍLIA, CONSERVADORISMO E POLÍTICAS SOCIAIS NO BRASIL – SOUZA, I. L.; LIMA, R. L. }
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DOI: 10.12957/rep.2019.45219
Recebido em 30 de junho de 2018.
Aprovado para publicação em 14 de novembro de 2018.

A Revista Em Pauta: Teoria Social e Realidade Contemporânea está licenciada com uma Licença Creative
Commons Atribuição 4.0 Internacional.

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Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Autonomia feminina
e concepções de direito
entre mulheres beneficiárias
do Programa Bolsa Família

Female autonomy and concepts of rights among women
beneficiaries of the Bolsa Família Program

Silvana Mariano*
Márcio Ferreira de Souza**

Resumo – O presente artigo trata do tema da autonomia feminina e objetiva
compreender a percepção de mulheres beneficiárias do Programa Bolsa
Família em torno das concepções políticas como direito e cidadania.
Para tanto, inferimos o modo como elas interpretam a relação com o Es-
tado, o acesso às políticas públicas e o seu agenciamento nesse processo.
Buscamos captar e dimensionar a autonomia dessas mulheres para a to-
mada de decisões no espaço doméstico e em aspectos relativos à indi-
vidualização feminina, tanto no contexto das relações familiares como
das relações sociais mais amplas. As análises foram calcadas em estudos
de caso realizados em Curitiba (Paraná) e Fortaleza (Ceará), no ano de
2013, por meio de uma amostragem constituída por cento e noventa en-
trevistas, sendo noventa e cinco em cada cidade.
Palavras-chave: autonomia feminina; cidadania; espaço doméstico; Pro-
grama Bolsa Família.

Abstract – This article deals with the theme of female autonomy and
aims to understand the perception of women beneficiaries of the Bolsa
Família Program on political concepts such as rights and citizenship. In
this way, we infer how they interpret the relationship with the state, access
to public policies, and their agency in this process. We seek to capture
and measure these women’s autonomy for decision making in the domestic
space and in aspects related to female individualization, both in the context
of family relationships as well as broader social relations. The analyzes
were based on case studies conducted in Curitiba (Paraná) and Fortaleza
(Ceará), in 2013, through a sample consisting of one hundred and ninety
interviews, ninety-five in each city.
Keywords: female autonomy; citizenship; domestic space; Bolsa Família
Program.

..............................................................................
* Doutora em Sociologia pela Universidade de Campinas (Unicamp). Professora do Departamento de Ciências
Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UEL. E-mail: [email protected]. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-5849-9460.
**Doutor em Sociologia pela UFMG. Professor do Instituto de Ciências Sociais da UFU. Docente do Programa
de Pós-Graduação em Sociologia da UEL. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3882-
1184.

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Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

} AUTONOMIA FEMININA E CONCEPÇÕES DE DIREITO – MARIANO, S.; SOUZA, M. F. }
DOI: 10.12957/REP.2019.45220

Introdução1

Os estudos sobre famílias e políticas sociais têm encontrado impor-
tantes contribuições advindas das pesquisas sobre as condições das mulheres
em situação de pobreza ou de desproteção social. Essas investigações se
apoiam em reflexões acerca da cidadania das mulheres e têm possibilitado
um importante acúmulo para os estudos sobre desigualdades, especialmente
desde a segunda metade do século XX, como também sobre os arranjos
adotados pelas políticas sociais e seus possíveis efeitos para a cidadania das
mulheres.

Essa vasta agenda de pesquisa, informada por perspectivas da
sociologia da família e dos estudos de gênero e feministas, motiva investi-
gações sobre a importância das mulheres para as políticas sociais e a impor-
tância das políticas sociais para as mulheres. Essas pesquisas exploram
também as ambiguidades desta relação e, no caso latino-americano e bra-
sileiro, problematizam em especial o caráter “familista” das políticas sociais
e as tendências de inclusão instrumental das mulheres. Aderindo a esta
agenda de pesquisas, nossa análise tem como ponto de partida duas noções
interconectadas “ cidadania e autonomia feminina “ como expressão do
empoderamento das mulheres, cujo pano de fundo é a relação entre gênero,
democracia e políticas públicas.

A pesquisa teve como objetivo geral compreender as condições
para a conquista de autonomia das mulheres pobres, por meio do Programa
Bolsa Família (PBF), a partir dos recortes de gênero, raça/etnia e geração.
Em um momento no qual o acesso ao consumo tende a concentrar os inte-
resses das pesquisas com populações atendidas por políticas sociais, especial-
mente quando se trata de transferência de renda, nosso interesse é, diferen-
temente, orientado por preocupações como a ampliação das liberdades, da
individualização e da politização dos direitos das mulheres.

As análises são desenvolvidas com base em estudos de caso rea-
lizados nos municípios de Curitiba (Paraná) e Fortaleza (Ceará), no ano de
2013. A amostragem completa da pesquisa é constituída por 190 entrevistas,
sendo 95 em cada cidade, e o instrumento de coleta de dados foi um roteiro
estruturado composto por perguntas fechadas e abertas. As perguntas abertas
foram codificadas com base na análise de conteúdo e o conjunto de in-
formações foi registrado em programa de análise estatística. As entrevistas
foram realizadas em sedes dos Centros de Referência de Assistência Social
(Cras).

As disparidades entre as duas capitais, observadas a partir dos
principais indicadores socioeconômicos adotados pelos órgãos de pesquisa

..............................................................................
1 Agradecemos ao CNPq, pelo financiamento do projeto de pesquisa intitulado Discriminação interseccional:
estudos sobre situações de pobreza e empoderamento feminino entre mulheres titulares do Programa Bolsa
Família no Paraná e no Ceará, e, também, à Maria Andrea Luz da Silva e à Maria Helena de Paula Frota, ambas
da UECE, pela colaboração no trabalho de campo realizado em Fortaleza (CE).

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no Brasil, justificam a escolha por essas duas cidades e a tentativa de apre-
ender as possíveis variações quanto às liberdades e capacidades – no sentido
adotado por Amartya Sen (2008) e Martha Nussbaum (2002) – dessas
mulheres em situação de pobreza. Essas capacidades são constituídas e
constitutivas do contexto material e social no qual essas mulheres se inserem.

Para este momento em particular, temos como objetivo, por um
lado, compreender as percepções dessas mulheres em torno de concepções
políticas como direito e cidadania, com o intuito de inferir o modo como
elas interpretam a relação com o Estado, o acesso às políticas públicas e o
seu agenciamento nesse processo. Por outro lado, objetivamos captar e
dimensionar a autonomia dessas mulheres para a tomada de decisões no
espaço doméstico e em aspectos relativos à individualização feminina, tanto
no contexto das relações familiares como das relações sociais mais amplas.

Proteção social e autonomia feminina

O campo das políticas públicas, e particularmente das políticas
sociais, apresenta-se como área estratégica para a compreensão da estra-
tificação e das desigualdades sociais. Conforme destaca Virginia Guzmán
(2000, p. 85), “o estudo das políticas públicas é um terreno privilegiado
para analisar as relações do Estado com os diversos atores sociais, entre
eles as mulheres e, consequentemente, um bom indicador do grau de demo-
cratização da sociedade”. Esta temática de investigação opera, portanto,
com as intersecções entre a politização das relações de gênero, democra-
tização social e redução das desigualdades sociais.

O tema da proteção social tem claro conteúdo político, o que en-
volve conflitos e contradições. Assim, o relativo consenso sobre a associação
entre direitos sociais e cidadania não elimina as divergências em relação às
formas de acesso e às responsabilidades que cabem ao Estado, à sociedade
e à família, tendo em vista a garantia de proteção aos indivíduos. Em con-
sequência, o conjunto das políticas representa diferentes níveis de conso-
lidação dos direitos sociais. Essa problemática é especialmente percebida
nas ações de combate à pobreza, para a qual o Programa Bolsa Família de-
sempenha papel especial, no caso brasileiro.

Estamos de acordo com Sonia Alvarez (1988, p. 318) ao identificar
que “a desigualdade com base em gênero está embutida na própria estrutura
do poder estatal no Brasil”, o que constitui um dos desafios para a democracia
no país. “O Estado moderno não (é) neutro com relação a questões de gê-
nero”, o que se verifica, por exemplo, na representação que faz sobre a
divisão entre as esferas “pública” ou política e a “privada” (ALVAREZ, 1988,
p. 318). “Ele também institucionaliza as relações de poder genérico ao res-
tringir o gênero feminino à última esfera, reforçando politicamente os limites
que têm confinado a mulher social e historicamente” (ALVAREZ, 1988, p.

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319). Por outro lado, ainda em concordância com a autora, o Estado não é
uma instância monolítica quanto ao gênero, o que torna relevantes as pes-
quisas sobre as correlações de força, bem como as brechas no interior das
instituições estatais.

Na outra ponta da problemática que nos interessa, os estudos so-
bre a pobreza, pelo menos desde as influências de Amartya Sen (2008), se
depararam com a exigência de se perceber que os pobres são diferentes
entre si, isto é, sendo a pobreza um fenômeno multidimensional, não é
possível que seja examinada em termos genéricos, sem tratar devidamente
sua diversidade e pluralidade. A questão fundamental abordada por Sen
(2008), de nosso ponto de vista, é a chamada “perspectiva da capacidade”,
cuja principal formulação é de avaliar a pobreza não apenas como insu-
ficiência de renda, mas por meio das capacidades individuais para realizar
alguns funcionamentos básicos. A perspectiva da capacidade conecta-se
diretamente com os temas do direito e da cidadania.

As concepções de direito e de cidadania são fundantes e funda-
doras de concepções de sujeitos e, por consequência, de sujeitos de direitos,
o que toma forma concreta na vida das pessoas, por exemplo, por meio dos
tipos de políticas públicas que são formuladas para diferentes agrupamentos
sociais (BONACCHI; GROPPI, 1995). Na esteira de concepções sexuadas
de cidadania, políticas públicas igualmente sexuadas são forjadas. Como
resultado, os referenciais sociopolíticos fundados em concepções de gênero
engendram os tipos e os objetivos das políticas promovidas pelo Estado.
Alimenta-se, assim, a necessidade de uma agenda de pesquisa feminista
que se interrogue sobre a forma como concepções sociais de gênero se
interconectam com enfoques de políticas, bem como se interroga sobre a
forma como as ações estatais (re)produzem ou alteram as relações sociais
de gênero, com possíveis impactos para a cidadania das mulheres, tendo em
vista modificações, ou não, no grau de autonomia vivenciado pelas mulheres.

Pesquisas empíricas realizadas em diferentes contextos nos países
ocidentais têm constatado a persistente associação entre, de um lado, direitos
associados ao trabalho como políticas dirigidas a homens, e, de outro, direitos
de assistência social como políticas dirigidas a mulheres (FRASER, 1999;
PATEMAN, 2000). Operando com o mesmo registro, esse sistema de gênero
embaraça as políticas dirigidas às mulheres com políticas dirigidas à família,
subsumindo, assim, os interesses das mulheres aos interesses da família.
Isso resulta, portanto, em políticas familistas (JELIN, 2004) ou políticas ma-
ternalistas (MOLYNEUX, 2007). Familismo e maternalismo têm como ponto
comum a subordinação dos temas relativos à autonomia das mulheres às
preocupações com o combate à pobreza, o bem-estar das famílias e o de-
senvolvimento. Nosso objeto se constitui, portanto, nas interconexões de
temas como desigualdade, pobreza, desenvolvimento e gênero.

Tendo em vista tais interconexões, a autonomia das mulheres e,
por conseguinte, os direitos e a cidadania das mulheres, devem ser tratados

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tendo-se em consideração os contextos particulares de experiência. Nesse
caso, mulheres em situação de pobreza que vivem em áreas urbanas de
grandes cidades brasileiras. Alijadas de modo mais pronunciado das esferas
da política, especialmente pelas condições de gênero, de classe e de raça/
cor, a situação de receptora de benefícios assistenciais tende a constituir
um canal de conexão entre essas mulheres pobres e o Estado, entendido
por nós como ator fundamental para o reconhecimento e ampliação da
cidadania das mulheres.

A reflexão sobre uma concepção teórica do Estado e sua impor-
tância para a cidadania das mulheres encontrou em algumas feministas con-
tribuições efetivas que desafiam o mundo da política no sentido de garantir
a cidadania plena às mulheres. Carole Pateman (2010), por exemplo, ainda
que reconhecendo que consideráveis avanços se efetivaram na posição eco-
nômica das mulheres e na sua situação política, jurídica e cívica ao longo
do século XX, questiona se podemos pensar em nossos dias nas mulheres
como cidadãs plenas de direito em todos os países do mundo.

Contudo, conforme argumenta a autora, cabe responder tal
questão à luz do que se entende por “cidadania plena”. Se, em nossos
tempos, a concepção de sufrágio universal não se presta mais a controvérsias,
outros obstáculos estão colocados, tais como o da baixa representação po-
lítica das mulheres e o da pobreza. Pateman (2010, p. 33) lembra que “a
pobreza constitui um problema para a cidadania tanto dos homens como
das mulheres, mas estas tendem a estar entre os mais pobres dos pobres”.

Nas reflexões de Sonia Alvarez (2004), encontramos uma leitura
acerca dos desafios enfrentados pelas feministas em relação ao Estado no
que diz respeito à promoção da igualdade de gênero e, consequentemente,
do exercício da cidadania plena. Neste sentido, Alvarez (2004) destaca três
ordens de desafios: (a) institucional, tendo em vista a construção de instru-
mentos de políticas públicas e organismos institucionais aptos a fortalecer a
cidadania das mulheres e, por conseguinte, a promoção e implementação
de políticas que promovam melhores condições de vida para as mulheres e
o enriquecimento de sua “cidadania empobrecida” (ALVAREZ, 2004, p.
104); (b) histórico-culturais, que dizem respeito aos aparentes impasses ins-
titucionais em nível local; e (c) político-culturais, relacionados às práticas,
políticas e estratégias discursivas que podem e poderiam superar alguns
dos impasses enfrentados pelas mulheres.

Do ponto de vista histórico, faz-se importante ressaltar que o sis-
tema de proteção social brasileiro se pautou pela tradição e conservadorismo
de caráter assistencialista, de bases filantrópicas e vínculos religiosos (MES-
TRINER, 2001). A efetivação de políticas públicas de assistência social, por
parte de iniciativas do Estado, torna-se um grande desafio para a formação
de um novo padrão cultural sobre a assistência social, tendo em vista planos
de ação para uma política de proteção social efetivada diretamente pelo

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Estado, apta a romper com o caráter fragmentado e mediador de organizações
da sociedade civil (MARIANO, 2010).

Ao analisar a família como fator de proteção social, Goldani (2002)
mostra a absorção por parte da família de maiores responsabilidades diante
da fragilidade das ações estatais, amortizando o impacto das políticas eco-
nômicas e da reestruturação capitalista sobre o mercado de trabalho. Para a
democratização da família, do nosso ponto de vista, é importante que as
políticas sociais tenham como objetivo a maior autonomia dos indivíduos e
não o objetivo de se beneficiar das funções protetoras da família, desem-
penhadas notadamente pelas mulheres, as quais reduzem as necessidades
de investimentos públicos. Conforme sintetiza Martha Nussbaum (2002),
essa mudança requer políticas de desenvolvimento que superem a lógica
de tomar as mulheres “com fim dos outros” em benefício da adoção do
princípio de que as mulheres são “um fim em si mesmas”.

Em artigo anterior (MARIANO; SOUZA, 2015), analisamos as con-
dições enfrentadas pelas mulheres titulares do PBF no que diz respeito à
conciliação entre trabalho remunerado e cuidados familiares. Chamamos
atenção para os obstáculos existentes a essa conciliação e os possíveis im-
pactos positivos e negativos para a situação dessas mulheres, com vistas à
redução das desigualdades de gênero. Apontamos para as dificuldades dessas
mulheres quanto ao compartilhamento de tarefas de cuidados domésticos
com outros membros familiares e o aumento das responsabilidades em
decorrência das condicionalidades do PBF, conforme suas percepções.

Como desdobramento dessas dificuldades, destacamos as tensões
vivenciadas por essas mulheres. Tensões essas que corroboram a crítica ao
enfoque do bem-estar na orientação das políticas públicas. Um ponto a se
destacar está centrado no fato de que a presença do cônjuge reduz as de-
cisões das mulheres no espaço doméstico e em aspectos de sua indivi-
dualização em quase todos os itens de respostas pesquisados. Os dados da
pesquisa demonstram, ainda, que a presença do cônjuge é uma variável
que interfere negativamente na participação das mulheres no trabalho remu-
nerado.

Pesa, na opinião dessas mulheres, o fato de que as condiciona-
lidades estabelecidas pelo PBF geram um trabalho adicional, aumentando
assim suas obrigações. As mulheres são as responsáveis pelo pleito do bene-
fício, por sua administração e pelo cumprimento das condicionalidades.
Seguindo a lógica da “naturalização de gênero”, é também sobre elas que
pesam as “obrigações de caráter afetivo relacionadas à superação de con-
dições de conflito, consideradas como ‘desajustadas’ ou ‘desestruturadas’”
(MARIANO, 2010, p. 43). Exige-se, portanto, trabalho material e subjetivo
da parte das mulheres, sem qualquer correspondente quanto às exigências
dirigidas aos homens, sendo que estas são quase nulas.

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Autonomia feminina nos contextos materiais e sociais pesquisados

Ao adotar as contribuições feministas, pensamos a autonomia das
mulheres em duas dimensões: social e política. Pesquisa realizada por
Inglehart e Norris (2003), com base em dados internacionais, aponta para
uma tendência global de crescimento dos valores associados à igualdade
de gênero, especialmente entre mulheres com mais anos de escolaridade e
menos religiosas. Tal processo está associado a mudanças culturais decor-
rentes da modernização, com destaque para as sociedades urbanas.

A despeito das críticas às teorias da modernização, estudos de In-
glehart e Norris (2003) atestam que os valores associados à maior igualdade
entre homens e mulheres estão mais presentes nas sociedades de maior de-
senvolvimento econômico e com melhores índices de desenvolvimento hu-
mano, e chegam, inclusive, a tomar o desenvolvimento humano como causa
para mudanças culturais de atitudes que colaboram para maior igualdade
de gênero. Se a questão do desenvolvimento humano pode parecer relati-
vamente abstrata, ela toma concretude na qualidade dos direitos disponíveis
a uma população e na percepção que essa população tem sobre esses
direitos. Neste trabalho, operacionalizamos a noção de cidadania tendo
como referência as percepções das mulheres sobre seus direitos e analisamos
os tipos de direitos considerados mais importantes pelas entrevistadas, suas
interpretações sobre o grau de respeito ou desrespeito a esses direitos, bem
como os fatores por elas associados à garantia de direitos.

O Gráfico 1 apresenta informações acerca da percepção das entre-
vistadas sobre direitos. A questão sobre “qual é o direito de maior impor-
tância”, conduzida às entrevistadas, nos possibilita captar as noções de direito
entre essas mulheres, independentemente de esse direito ser real ou fictício.
As beneficiárias, predominantemente, associam os direitos que consideram
mais importantes às políticas sociais: saúde e educação destacam-se nas
duas cidades pesquisadas. Fortaleza apresenta a vantagem de um índice
maior de resposta. Em Curitiba, mais de ¼ não respondeu à questão. Por
outro lado, das que responderam, o rol é mais variado, em comparação
com Fortaleza.

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No contexto de pobreza urbana no Brasil, as preocupações dessas
mulheres com direitos à saúde, à educação e à moradia, dizem respeito,
notadamente, às necessidades femininas em relação aos serviços disponíveis
para as filhas e filhos. Portanto, trata-se, preponderantemente, de interesses
formulados a partir da própria estruturação das relações de gênero, o que
indica dificuldades para a individualização das mulheres em situação de
pobreza. O reconhecimento das mulheres com o status de indivíduo é con-
dição necessária, ainda que não seja suficiente, para a autonomia feminina,
consideradas as relações políticas, familiares e de trabalho.

Essas percepções também expressam um tipo de queixa à insufi-
ciência dessas políticas sociais. O caso da sociedade brasileira é exemplar
para se refletir sobre os obstáculos que as desigualdades, incluídas aí as de
gênero, produzem para o desenvolvimento. Diante de um quadro histórico
persistente de profundas desigualdades, os benefícios do desenvolvimento
tendem a favorecer os grupos mais bem posicionados na hierarquia social,
muitas vezes detentores de privilégios sociais, econômicos e políticos.

E o que acontece quando, para além da afirmação abstrata da
igualdade de gênero na política, olhamos para outras dimensões constitutivas
das relações entre homens e mulheres? Com base em survey nacional, rea-
lizado em 2003, sobre gênero, trabalho e família no Brasil, Clara Araújo e
Celi Scalon (2006) constataram a presença de ambiguidades da esperada
modernização no Brasil. Por um lado, há a presença de valores indicativos
de relações de gênero mais igualitárias, como, por exemplo, a aceitação do
trabalho feminino e a concordância quanto à necessidade de maior par-
ticipação dos homens com os filhos e nas atividades domésticas. Por outro
lado, persiste o entendimento de que a casa e a maternidade são centrais
para a vida das mulheres, indicadores da “forte influência do tradicional
modelo dual ‘homem provedor’ e ‘mulher cuidadora’” (ARAÚJO; SCALON,
2006, p. 50).

Tais percepções compõem nosso quadro analítico e entendemos
que a autonomia das mulheres envolve tanto as percepções relativas à vida
pública como as relativas à vida privada. Cotejando-se os resultados encon-
trados por Araújo e Scalon (2006) e por Bohn (2008), constata-se que na
sociedade brasileira os valores associados à igualdade de gênero, logo, tam-
bém aos direitos, estão mais presentes nas percepções sobre a política formal
do que nas percepções sobre família e cuidado. As percepções sobre direitos,
entre as mulheres que participaram da nossa pesquisa, expressam parte desses
significados, quando questões relativas à família e ao cuidado transbordam
em suas preocupações.

Ao dar ênfase em saúde, educação e moradia, essas mulheres to-
mam uma necessidade como “direito”, o que é uma percepção distinta da
afirmação de que esses direitos sejam reais. Para não confundir “direito de
jure” com “direito de fato” (BAUMAN, 2001), buscamos identificar entre as
entrevistadas também suas percepções quanto ao grau de respeito aos direitos

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que elas consideram importantes (Gráficos 2 e 3). Predominantemente, nas
duas cidades as entrevistadas avaliam que há desrespeito ou respeito parcial
aos seus direitos. A saúde é o direito mais desrespeitado. Apesar do baixo
índice, a educação é um dos poucos direitos com algum grau de respeito,
ainda que seja de apenas 4% das respostas, também nas duas cidades.

Esta percepção sobre os direitos desrespeitados deve ser inter-
pretada positivamente, considerando sua potencialidade para a crítica ao
contexto material, social e político da experiência das mulheres em situação
de pobreza. Por outro lado, revela, paradoxalmente, os limites para a am-
pliação das oportunidades e das liberdades dessas mulheres. Essa ampliação
é o centro normativo da teoria que tomamos de empréstimo de Martha
Nussbaum (2002) para problematizar o empoderamento das mulheres em
termos feministas.

Nossos dados permitem o entendimento de que os direitos sociais
têm presença relevante nas percepções dessas mulheres, o que certamente
é um elemento positivo, especialmente considerando o grau de privação,
inclusive de natureza política, entre a população brasileira em situação de
pobreza (DEMO, 2003). Entretanto, chama atenção o silêncio delas em rela-
ção aos demais direitos, mesmo os clássicos, como civis e políticos.

Em Curitiba, esses direitos são algumas vezes mencionados: igual-
dade; direito de ir e vir; respeito e dignidade e direito de votar são relacio-
nados, mesmo com menor frequência. Entre o rol de respostas mais diversi-
ficadas em Curitiba, aparecem também “direitos da mulher”, “direitos das
crianças” e “creches”. Esses são fatores que indicam certa politização dos
direitos entre essas mulheres em ambas as cidades, com maior diversidade
em Curitiba.

A politização dos direitos é um importante fator para o empode-
ramento das mulheres, tomado em sua dimensão coletiva; contudo, são

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suscetíveis aos paradoxos fundados nas desigualdades políticas no Brasil.
Esses paradoxos estão expressos na percepção das entrevistadas sobre as
condições necessárias para a concretização dos direitos (Gráfico 4).

Desta vez são as entrevistadas de Fortaleza que apresentam um
alto índice sem respostas, com 22%. Nosso particular interesse com essa
pergunta é tratar da agência dessas mulheres juntamente com a politização
dessa agência, dimensões constitutivas do empoderamento. Conciliar agên-
cia e politização sobre os processos sociais é um modo de escapar do risco
de tratar a agência em uma dimensão individualizada ou atomizada.

Ao tratar da pergunta sobre o fator que consideram mais importante
para a garantia de seus direitos, as entrevistadas invocam tanto o acesso a
serviços e políticas públicas quanto as formas de ação para a satisfação de
suas necessidades. No primeiro caso, destaca-se, em Curitiba, a consciência
de que o acesso aos serviços de creche é um fator importante para que
essas mulheres assegurem seus direitos (26%). Em Fortaleza, essa percepção
é também expressiva (10%). Compreender essas percepções só é possível
levando-se em conta o contexto das políticas de educação infantil no Brasil,
que responsabilizam as mulheres pelos cuidados e naturalizam essa respon-
sabilidade, resultando em baixa cobertura do serviço mais diretamente afeito
às tarefas reprodutivas que impactam o cotidiano das mulheres, espe-
cialmente daquelas que vivem em situação de pobreza nos grandes centros
urbanos.

Quanto às formas de ação, o apoio da família e dos amigos, o es-
forço pessoal e o apoio das igrejas somam 40% das respostas em Curitiba e
29% em Fortaleza. O principal contraste ocorre entre “o esforço pessoal”
(16% em Curitiba e 8% em Fortaleza) e “políticas do governo” (4% em Cu-
ritiba e 15% em Fortaleza). A atuação do Estado tem maior peso para os
direitos das mulheres pobres em Fortaleza, enquanto o protagonismo indi-
vidual é mais presente nas percepções políticas em Curitiba. O apoio da fa-
mília e dos amigos tem peso semelhante nas percepções das entrevistadas

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e, em contraste, o ativismo político é praticamente intocado, com 1% em
Fortaleza e 3% em Curitiba.

O poder de tomar decisão é um dado sensível para a autonomia
das mulheres, especialmente em uma sociedade de estrutura patriarcal, como
é o caso brasileiro (SARDENBERG, 2009). Os dados referentes ao poder de
tomar decisão, por parte das entrevistadas, são apresentados no Gráfico 5,
a seguir.

Carloto e Mariano (2012), em pesquisa com a realização de grupos
focais com mulheres titulares do PBF em Londrina, Paraná, encontraram
frequentemente os relatos que associavam as mudanças de vida advindas
com o programa especialmente na esfera do consumo. Ao mesmo tempo,
nesses grupos focais as mulheres relataram, com certa padronização, as ex-
periências de restrições de suas liberdades individuais. Isso acontecia pela
imposição da autoridade de diferentes homens nas relações de parentesco,
sendo mais frequentemente a do cônjuge, pai e irmãos.

De início, tínhamos a estimativa de encontrar resultados seme-
lhantes na pesquisa que realizamos em Curitiba e Fortaleza. Entretanto, ao
adotar o método de entrevistas individuais, obtivemos altas taxas de de-
claração de tomada de decisões em variados campos das liberdades indi-
viduais femininas, como a liberdade de decidir sobre os lugares que frequen-
tam, o tipo de roupa que usam e o uso de recursos estéticos, como, por
exemplo, maquiagem. Por outro lado, é elucidativo que os direitos repro-
dutivos sejam o de menor índice, ainda que seja relativamente alto, 83%
nas duas cidades. No campo do consumo, o item apresentando com menor
capacidade de decisão das mulheres é a compra de bens duráveis, poder
para o qual concorrem as condições de classe social.

Para tentar depurar um pouco essas variações entre os resultados
encontrados por meio dos grupos focais e das entrevistas individuais, se-
lecionamos apenas as respondentes com cônjuge (Gráfico 6). Isso porque
os resultados dos grupos focais indicam que a presença do cônjuge é o

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principal fator inibidor da autonomia feminina no que se refere às decisões
assumidas por elas.

A presença do cônjuge reduz as decisões das mulheres no espaço
doméstico em quase todos os itens de respostas, com um peso negativo
mais acentuado em Fortaleza. Em Curitiba, 44% das entrevistadas têm
cônjuge e, em Fortaleza, são 40%.

De acordo com os dados, há maior valorização da individualidade
das mulheres entre as entrevistadas de Curitiba, o que, considerando a teoria
da modernização revisitada, pode ser decorrente de algumas vantagens do
contexto curitibano, em comparação com Fortaleza. Dentre essas,
destacamos: maior presença de jovens; anos de estudo mais elevados, apesar
da ainda baixa escolaridade entre essas mulheres em situação de pobreza
nas duas capitais; maior taxa de ocupação em atividades remuneradas; maior
acesso às vagas de creches para crianças; e menor presença de mulheres
negras.

Considerações finais

Neste trabalho, a noção de autonomia feminina, como expressão
do empoderamento das mulheres, é operacionalizada com base na capa-
cidade de decisão e meios de liberdade demonstrados pelas entrevistadas.
De modo sintético, destacamos os seguintes resultados:

1. As entrevistadas identificam a distância entre “direito de jure”
e “direito de fato”;

2. A ênfase das entrevistadas nos direitos associados às políticas
públicas, especialmente aos direitos sociais, assim como a crítica à qualidade
dessas políticas, indicam certa politização dos direitos entre essas mulheres,
em ambas as cidades, com maior diversidade em Curitiba, cidade em que o
rol de direitos citados é mais amplo;

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3. Os direitos mais valorizados pelas entrevistadas são predo-
minantemente formulados a partir da estruturação dos papéis de gênero e
são indicadores das dificuldades para a individualização das mulheres;

4. No que se refere às condições necessárias para a garantia dos
direitos que as entrevistadas consideram importantes, ocorre um contraste
entre “o esforço pessoal” (16% em Curitiba e 8% em Fortaleza) e “políticas
do governo” (4% em Curitiba e 15% em Fortaleza). A atuação do Estado
tem maior peso para os direitos das mulheres pobres em Fortaleza, enquanto
o protagonismo individual é mais presente nas percepções políticas em Cu-
ritiba. Nas duas cidades há pouquíssimas menções ao ativismo político.

As mulheres em situação de pobreza em Curitiba exibem mais
elementos de individualização, com o risco de que essa individualização
assuma também uma forma de atomização. Já em Fortaleza, as entrevistadas
vinculam mais claramente seus direitos à capacidade de ação do Estado e
circunscrevem a concepção de direitos especialmente às políticas sociais.
Portanto, os significados de empoderamento e, consequentemente, os pro-
cessos correspondentes, são variados nesses dois contextos, o que exige
maior inventividade por parte de políticas que eventualmente se coloquem
o objetivo de contribuir para o empoderamento das mulheres.

As pesquisas que levam em consideração as experiências sin-
gulares de determinados grupos de mulheres, como as mulheres em situação
de pobreza em grandes centros urbanos, podem contribuir para maior refi-
namento das teses sobre persistências ou mudanças nos padrões de gênero.
Como demonstrou Cynthia Sarti (2005a, 2005b), os valores morais entre fa-
mílias de trabalhadores urbanos (grande parte em situação de pobreza)
associam a “ética do provedor” às responsabilidades masculinas, e as tarefas
de dona de casa às responsabilidades femininas. Portanto, essa dualidade
moral referida aos papéis tradicionais de gênero está fortemente marcada
entre famílias das camadas populares.

Em termos gerais, as ambiguidades relativas às mudanças sociais
no tocante à igualdade de gênero são, ainda, as principais marcas dos pro-
cessos aqui refletidos. As mulheres em situação de pobreza exibem deter-
minadas faixas de autonomia ou agenciamento, entretanto, revelam também
a persistência de padrões tradicionais de gênero, como se constata, por
exemplo, com o efeito negativo da presença do cônjuge para a autonomia
individual dessas mulheres.

Desse modo, entendemos que os resultados gerados em nossa
pesquisa podem contribuir para construções de modelos de análises que
compreendam a pobreza em suas múltiplas dimensões. Isso significa que
existem níveis diferenciados de pobreza que não a reduzem tão somente à
desigualdade entre diferentes classes, mas também se expressam entre grupos
em situação de pobreza, a exemplo das mulheres que aqui estudamos. Arti-
cular a dimensão da pobreza com a proteção social e a noção de empo-
deramento é um modo de enfrentamento da própria pobreza.

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Empoderamento implica uma contínua dinâmica que exige apri-
moramentos constantes. Para tanto, é importante que haja, por parte das
políticas sociais, contínuas mobilizações de recursos como maneiras de
intensificar estratégias de autonomia, do individual ao coletivo. Tais estra-
tégias podem ser traduzidas em ações voltadas para (i) o envolvimento das
mulheres no planejamento e avaliação das atividades afeitas ao PBF; (ii) o
empreendimento de ações que tratem diretamente dos direitos das mulheres,
assim como aquelas que contribuam para seu empoderamento social e eco-
nômico; (iii) a promoção de capacitação e provimento de recurso para o
fortalecimento das aptidões sociais, políticas e econômicas das mulheres,
especialmente aquelas capacidades que não se enquadram na tradicional
divisão sexual do trabalho; (iv) a ampliação do acesso a políticas sociais
referentes aos cuidados, notadamente educação infantil em período integral;
(v) o incentivo ao retorno das mulheres adultas à escolarização; e (vi) o
incentivo da participação dos homens em atividades do programa, quando
apropriado.

Consequentemente, tais empreendimentos corroborarão para o
incremento da autoestima das mulheres, mediante expansão das suas capa-
cidades e estímulo ao acesso proativo de participação em movimentos da
sociedade civil, envolvendo também suas famílias e os próprios homens.

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