DIÁLOGO ENTRE OBRAS CONEXÕES
A ARTE E OS COSTUMES POPULARES IMAGEM
O retrato das tradições populares, com o objeti-
vo de valorizar e preservar a memória da cultura
nacional, está presente em várias obras literárias e
pictóricas brasileiras. No romance Memórias de um
Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida
(veja mais na pág. 58), o narrador descreve um antigo
costume religioso do Rio de Janeiro, desaparecido
ao longo do século XIX. Em um episódio do livro,
as personagens se reúnem em festejos populares
ligados ao culto do Espírito Santo.
Domingo do Espírito Santo COSTUMES ANTIGOS A fotografia traz a alegria e o colorido típico das
Era esse dia domingo do Espírito Santo. Como Assim como ocorre no festas juninas tradicionais em todo o país. As pessoas
romance Til, o narrador aparecem vestidas com roupas típicas do interior.
todos sabem, a festa do Espírito Santo é uma das de Memórias de um Balões sobrevoam o local enfeitado de bandeirolas
festas prediletas do povo fluminense. Hoje mes- Sargento de Milícias coloridas. Essa festa típica é uma releitura popular
mo que se vão perdendo certos hábitos, uns bons, se refere a uma das danças tradicionais da corte e mostram os festejos
outros maus, ainda essa festa é motivo de grande tradição do passado, religiosos e os costumes de gente simples. A literatura
agitação; longe porém está o que agora se passa já modificada ou perdida romântica foi fecunda em retratar essas festas e seu
daquilo que se passava nos tempos a que temos no momento em que a caráter nacional.
feito remontar os leitores. (...) O primeiro anúncio história é contada.
da festa eram as Folias. Aquele que escreve estas PRONOME PESSOAL SAIBA MAIS
Memórias ainda em sua infância teve ocasião de O narrador faz referência
ver as Folias, porém foi já no seu último grau de a si próprio empregando REGÊNCIA VERBAL
decadência, e tanto que só as crianças como ele um pronome de
davam-lhe atenção e achavam nelas prazer (...) 3ª pessoa, com o Verbos transitivos são aqueles que necessitam de com-
objetivo de aumentar plemento. Os chamados verbos transitivos indiretos são
O fogo no Campo o distanciamento acompanhados ou regidos por preposições, que antece-
À hora determinada vieram os dois, padrinho e em relação aos fatos dem os complementos. Em alguns casos, empregam-se
narrados (antes, ele havia também verbos transitivos diretos preposicionados.
afilhado, buscar d. Maria e sua família, segundo chamado a si próprio Observe alguns verbos empregados por José de Alencar
haviam tratado: era pouco depois da ave-maria, de “Aquele que escreve e as preposições que os regem:
e já se encontrava pelas ruas grande multidão de estas Memórias”).
famílias, de ranchos de pessoas que se dirigiam uns DADOS HISTÓRICOS Brincar (com) – Berta com todos brincava.
para o Campo e outros para a Lapa, onde, como E ESPACIAIS Querer (a alguém) – Berta a todos queria bem.
é sabido, também se festejava o Divino. Leonardo Assim como ocorre em Dar (a alguém) – Berta a cada um dava seu quinhão de
caminhava parecendo completamente alheio ao Til, há aqui a mescla de
que se passava em roda dele (...) Chegaram enfim marcadores espaciais agrado.
mais depressa do que supusera o barbeiro, porque ligados a lugares reais Desprender-se (de algo) – A ferocidade desprendia-se
o Leonardo parecia naquela noite ter asas nos pés, (neste caso, do Rio de
tão rapidamente caminhara e obrigara o padrinho Janeiro) e informações daquela fisionomia.
a caminhar com ele. histórico-culturais Escapar (a ou de algo) – O impulso foi escapar a essa visão.
relacionadas a festas
Penguin Companhia das Letras, 2013 populares. Exemplos de outros verbos que necessitam de comple-
mentos: gostar (de), confiar (em), aconselhar (a), agradecer
LINGUAGEM INFORMAL (a), ajudar (a), simpatizar (com), aspirar (a) – com o sentido
O tom coloquial é uma característica do romance de desejar, assistir (a) – com o sentido de ver, agradar (a),
Memórias de um Sargento de Milícias. Para aproximar preferir (alguma coisa a outra), obedecer (a), consistir (em).
o texto do universo do leitor, o narrador faz uso de
expressões populares ou idiomáticas, como asas
nos pés, que expressam a velocidade com que o
protagonista Leonardo corria.
DIVULGAÇÃO 53GE PORTUGUÊS 2018
3 ROMANTISMO SEGUNDA GERAÇÃO
Sofrimentos Noite na Taverna TIPOS TEXTUAIS
e exageros O narrador tenta manter
Álvares de Azevedo o suspense da história.
Ao se sentirem incompreendidos Combinadas, a descrição
pela sociedade, os escritores Quando dei acordo de mim estava num lugar e a narração promovem
ultrarromânticos se isolam e evocam escuro: as estrelas passavam seus raios brancos a visualização da cena
imagens ligadas à morte entre as vidraças de um templo. As luzes de qua- e criam expectativa
tro círios batiam num caixão entreaberto. Abri-o: sobre ela. O texto é fruto
Á lvares de Azevedo (1831-1852) é o princi- era o de uma moça. Aquele branco da mortalha, da memória do autor;
pal nome da segunda geração romântica as grinaldas da morte na fronte dela, naquela tez verbos no passado
brasileira, também chamada de ultrarro- lívida e embaçada, o vidrento dos olhos mal aperta- auxiliam a recuperação
mântica. Decepcionados com o mundo, os poetas dos... Era uma defunta! ... e aqueles traços todos me das lembranças. A junção
dessa geração, após o conhecimento dos pra- lembraram uma ideia perdida... – Era o anjo do ce- desses elementos acentua
zeres físicos, sentem-se incompreendidos pela mitério? Cerrei as portas da igreja, que, ignoro por a morbidez da narrativa,
sociedade e optam pelo isolamento na própria que, eu achara abertas. Tomei o cadáver nos meus em linha com a atmosfera
subjetividade. Textos melancólicos, nos quais braços para fora do caixão. Pesava como chumbo. soturna, típica da segunda
o sofrimento evoca imagens ligadas à noite e à geração romântica.
morte, abrem espaço para o fantasioso e o ma- (...) Nunca ouvistes falar da catalepsia? É um PRONOME POSSESSIVO
cabro. A obra Noite na Taverna, representativa pesadelo horrível aquele que gira ao acordado que Observe o uso enfático
da prosa de ficção gótica, apresenta os relatos emparedam num sepulcro; sonho gelado em que do pronome possessivo
mórbidos de um grupo de boêmios bêbados. sentem se os membros tolhidos, e as faces banhadas “meus”, uma vez que
de lágrimas alheias sem poder revelar a vida! (...) sua utilização seria
desnecessária (pois o
www.dominiopublico.gov.br mesmo entendimento
se teria com “tomei o
TRAÇOS MACABROS cadáver nos braços”,
Em uma atmosfera de pesadelo, o narrador Solfieri já indicando a ação da
encontra um espaço de contornos pouco definidos. Aos primeira pessoa, o “eu”).
poucos, a luz das estrelas revela um ambiente fúnebre. PRONOME
Uma jovem está adormecida em um templo (espaço DEMONSTRATIVO
que remete ao ideal de pureza virginal), após uma O pronome
crise de catalepsia. Os elementos descritos conferem demonstrativo “aquele”
traços macabros à cena. A moça revive após ser violada é empregado pelo
por Solfieri, o qual, até aquele momento, julgava se narrador para retomar o
relacionar com um cadáver – a necrofilia era exaltada termo “pesadelo” (veja
pelos ultrarromânticos. O tema da relação sexual com o no Saiba mais abaixo).
suposto cadáver constitui o centro da narrativa.
SAIBA MAIS
USO DOS PRONOMES DEMONSTRATIVOS
Em relação ao espaço: este (próximo de quem fala: Este livro que li é muito bom);
esse (próximo de quem recebe a mensagem: Esse livro que você leu é bom); aquele
(longe de ambos: Aquele livro que não lemos deve ser bom).
Quanto ao tempo: este (presente e futuro: Nesta semana, vou viajar); esse (passa-
do próximo: Nessa semana, viajei para Santos); aquele (passado remoto: Naquela
semana, viajei para o Rio).
• Esse(s), essa(s), isso(s) também retomam referentes anteriormente apresentados
no texto: O deputado foi acusado de corrupção. Esse político nunca me enganou.
• Este(s), esta(s), isto(s) também antecipam e anunciam um termo que será apresentado
posteriormente: Antes de viajar, verifique isto: a quantidade de malas que irá carregar.
54 GE PORTUGUÊS 2018
SAIU NA IMPRENSA DIÁLOGO ENTRE OBRAS
JOVENS NÃO PRECISAM DE 13 RAZÕES A MORTE
PARA SE MATAR
A morte foi um tema privilegiado pelos poetas da
O suicídio é o tema do momento. Mas em vez de falarmos segunda geração romântica, muitas vezes tratada de
sobre o problema estamos preferindo a saída fácil de maneira exagerada e sentimental. Representava uma
achar culpados. forma extrema de evasão do mundo ou da realidade
com a qual o sujeito estava em conflito. Como tema
Daniel Martins de Barros literário, contudo, é tratada de modos diversos,
conforme os autores e as épocas. Manuel Bandeira,
Muitas pessoas me pediram para falar sobre a série poeta brasileiro do século XX, falou da finitude da
13 Reasons Why, enorme sucesso do Netflix que conta a existência em diversos textos. Neste, ele mostra um
história de uma jovem que se mata depois de gravar fitas sujeito poético conformado e sereno com o fim da
dizendo as razões para seu ato. Coincidência ou não, nesse vida, à espera da chegada da morte.
mesmo período o tal desafio da Baleia Azul começou a ser
comentado (no Brasil, porque a notícia é velha), trazendo SENTIMENTALISMO E Consoada ADJETIVOS E
para o primeiro plano o tema do suicídio entre jovens. IMPULSIVIDADE CONJUNÇÃO
O texto caracteriza o Manuel Bandeira Dois adjetivos
(...) Em vez de aproveitarmos o gancho para discutir jovem como imaturo e opostos (“caroável”
seriamente o suicídio, criamos um pânico em torno de impulsivo, logo tomado Quando a Indesejada das é carinhosa)
um seriado, de um jogo, de uma moda qualquer, como se pelo sentimento e por gentes chegar possibilitam uma
elas fossem as culpadas pelo problema. Cacemos a baleia ações desprovidas (Não sei se dura ou caroável), reflexão sobre o
azul. Censuremos o seriado. Quebremos o termômetro de razão. Essas talvez eu tenha medo. caráter da morte:
para não ver a febre. Em que momento da vida o adulto características também Talvez sorria, ou diga: o fim da existência
fica tão distante do jovem a ponto de não ser mais capaz estão presentes nos – Alô, iniludível! pode vir de modo
de compreendê-lo? Todo mundo sabe que os adoles- poetas ultrarromânticos, O meu dia foi bom, pode cruel ou afável.
centes são impulsivos, imaturos etc. Mas acreditamos como Álvares de a noite descer. Repare no uso
mesmo que eles são tão estúpidos a ponto de se matar Azevedo e Casimiro de (A noite com os seus da conjunção
porque um jogo mandou? Ou porque viram na TV? (...) Abreu, que morreram sortilégios.) alternativa “ou”,
ainda muito jovens Encontrará lavrado o campo, que estabelece
O suicídio é um grave problema no mundo todo – a e cujos textos eram a casa limpa, uma relação de
cada 40 segundos alguém se mata no planeta. Entre os tomados por emoção e A mesa posta, alternância entre
jovens, é a segunda causa de morte. (...) sentimentalismo. Com cada coisa em seu lugar. duas ideias.
ANGÚSTIA E GOSTO RESIGNAÇÃO
Ou seja, pelos menos desde meados dos anos 80 a PELA MORTE EUFEMISMO O título faz
taxa de suicídio nessa população praticamente só faz O texto sugere A expressão sugere a tristeza com referência a uma
crescer. E vamos continuar achando que o problema é que depressões que o ser humano geralmente refeição breve,
um jogo? O jogo, o seriado, as notícias espetaculosas, negligenciadas e o lida com a morte e a perspectiva tomada em dias
tudo isso pode, sim, contribuir para a morte de jovens. preconceito com os do fim da vida. Trata-se de um de jejum. No fim
Desde que eles estejam doentes – estima-se que em transtornos mentais eufemismo que ameniza a dureza do poema, a morte
até 90% dos casos de suicídio um transtorno mental podem levar a atitudes da palavra “morte”, comumente encontra o sujeito
esteja presente – e não se tratem. extremas e trágicas, utilizada. com a vida em
como o suicídio. ordem, pronto para
Para um adolescente se matar, portanto, não existem Os textos românticos PROSOPOPEIA partir (a mesa posta
13 razões por quê. Existe praticamente só uma: nosso apresentavam esse viés, Por meio da figura de linguagem retoma a ideia da
preconceito com os transtornos mentais. Sim, pois não sobretudo na poesia também conhecida como refeição).
basta ter depressão para cortar os pulsos – é preciso que da segunda geração personificação, o autor atribui
essa dor seja negligenciada, estigmatizada. Isso aumenta romântica, que buscava traços humanos à morte,
a culpa de quem sofre, acrescentando mais camadas ao na morte a saída para tratando-a como uma entidade
sofrimento. E de quebra ainda reduz a chance de procurar a angústia de viver concreta e animada.
tratamento. Até que a angústia se torna insuportável. e de existir.
Aí, sim, ver um seriado, receber um desafio, o que for,
pode estimular a busca por uma saída trágica. (...)
Blogs Estadão, 19/4/2017
Neste artigo de opinião, o autor propõe discutir a 55GE PORTUGUÊS 2018
eventual relação da série 13 Reasons Why e de jogos
como da Baleia Azul nos casos de suicídio entre jovens.
A morte e o desinteresse pela vida são temas caros aos
poetas ultrarromânticos.
© TEREZA BETTINARDI
3 ROMANTISMO TERCEIRA GERAÇÃO
Engajamento Vozes d’África PROSOPOPEIA
e olhar crítico O poeta, por meio da
personificação, atribui
Os autores da terceira geração Castro Alves características humanas
romântica, como Castro Alves, (voz e sentimento) ao
voltam-se para as questões sociais Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? continente africano, que
Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes “fala” em 1ª pessoa.
Opoeta baiano Castro Alves (1847-1871) Embuçado nos céus? PRONOMES PESSOAIS
pertence à terceira geração poética do Há dois mil anos te mandei meu grito, Note a correspondência
Romantismo brasileiro, caracterizada Que embalde desde então corre o infinito... entre os pronomes reto
pelo engajamento em relação a questões sociais. Onde estás, Senhor Deus?... (...) (tu) e oblíquo (te). Veja no
O inconformismo do autor com a escravidão Saiba mais abaixo.
fez com que ele se filiasse ao movimento abo- Foi depois do dilúvio... um viandante, ONDE E AONDE
licionista. A fim de chamar atenção para os Negro, sombrio, pálido, arquejante, “Onde” é empregado
problemas e as injustiças da pátria, Castro Alves (...) com verbos que não
denuncia o sofrimento dos africanos trazidos indicam movimento
para o Brasil de modo forçado. E eu disse ao peregrino fulminado: (como “estar”), enquanto
“Cam... serás meu esposo bem-amado...” “aonde” é empregado
O poema Vozes d’África é considerado um dos (...) com verbos que indicam
textos fundadores, na segunda metade do século movimento (como “ir”).
XIX, da presença definitiva da figura do negro na Hoje em meu sangue a América se nutre CASTIGO MÍTICO
literatura brasileira. A realidade degradante dos Condor que transformara-se em abutre, O caráter de
escravos retrata uma sociedade problemática, Ave da escravidão,(...) ancestralidade da África
muito distante da representação idealizada dos po- sugere que o sofrimento
etas nacionalistas da primeira geração romântica. Há dois mil anos eu soluço um grito... do povo africano não é
escuta o brado meu lá no infinito, recente. Reza a lenda que
O uso de uma linguagem grandiloquente, car- Meu Deus! Senhor, meu Deus!!... a África fora vítima de
regada de hipérboles (ênfases expressivas, exage- uma maldição lançada
radas) rende a alguns autores da terceira geração, PRESENTE HISTÓRICO sobre Cam, filho de Noé.
como Castro Alves, o adjetivo de “condoreiro”, A conjugação verbal no presente – “eu soluço” – indica A escravidão dos negros
por almejar voos tão altos quanto os do condor. que os sofrimentos permanecem no tempo atual. africanos remontaria a
Repare que há ironia no apelo dirigido a Deus, na esse castigo.
O QUE ISSO TEM A VER COM A HISTÓRIA medida em que o Criador parece não se compadecer
No Brasil, a utilização da mão de obra escrava teve dos sofrimentos da África. CONDOREIRISMO
início com a produção de açúcar, nos engenhos, A visão aguçada da ave
atravessou todo o período colonial e foi oficialmente simboliza a ideia de que
extinta apenas em 1888, já no fim do Império, com os poetas viam o mundo
a assinatura da Lei Áurea. Inicialmente, foram de modo mais perspicaz.
escravizados os indígenas; depois, os africanos, que Cabia ao artista guiar a
logo se tornaram majoritários. Para saber mais, veja o sociedade rumo a dias
GUIA DO ESTUDANTE HISTÓRIA. melhores (os ideais
abolicionistas ilustram
a preocupação social do
poeta condoreiro).
SAIBA MAIS
PRONOMES PESSOAIS RETOS E OBLÍQUOS: USO DE ACORDO COM A NORMA CULTA
• Os pronomes pessoais retos (eu, tu, ele/ela, nós, vós, • Deve haver correspondência entre os pronomes retos
eles/elas) correspondem ao sujeito e são seguidos de e oblíquos: Ela está ficando louca: eu não a aguento
verbo: Esta torta é para eu comer. mais! Tu estás ficando louca: Eu não te aguento mais!
• Os pronomes pessoais oblíquos (átonos: me, te, se/o/a/ • É preciso saber o tipo de complemento (objeto direto
lhe, nos, vos, se/os/as/lhes; tônicos: mim/comigo, ti/ ou indireto) que cada verbo exige para que se possa
contigo, si/consigo, conosco, convosco, si/consigo) usar corretamente o pronome oblíquo:
correspondem ao objeto (complemento) e podem vir Ele não a ama mais. Alguém os visitou? (amar e visitar,
depois da preposição (geralmente encerram a frase): por exemplo, são verbos transitivos diretos e pedem
Esta torta é para mim. objeto direto – o, a, os, as)
• A preposição entre também pede o emprego do oblíquo Obedeceu-lhe apesar de não concordar com ele. (obe-
tônico (quanto às duas primeiras pessoas do singular): decer é verbo transitivo indireto e pede objeto indireto
Não há nada entre mim e ti. – lhe, lhes)
56 GE PORTUGUÊS 2018
CONEXÕES
TEXTO CIENTÍFICO PINTURA
A Permanência do Racismo ESTILO FORMAL [1]
na Sociedade Brasileira O texto foi publicado
em um site acadêmico A escravidão foi abordada literariamente pelos poetas
Erika Ferraz Teixeira / Josué de Campos / e apresenta linguagem brasileiros da terceira geração romântica, como Castro
formal e objetiva. Alves. A realidade dos escravos africanos também foi
Marlene Márcia Goelzer A argumentação se tema de pinturas, como Le Diner, do artista francês
desenvolve em torno Debret (1768-1848), que esteve no Brasil no século
Neste artigo pretende-se discorrer sobre o ra- de um tema polêmico XIX. Seus quadros retratam as relações cotidianas
cismo no Brasil e como esse preconceito está im- (o preconceito étnico) e entre senhores e escravos, tanto na vida privada
bricado na nossa sociedade. (...) procura analisar as suas das casas quanto no universo público das ruas, e a
consequências e mostrar a tensão presente na concepção de superioridade dos
Embora o racismo ainda não seja um assun- situação atual da questão. brancos em relação aos negros. Repare, na cena, na
to discutido abertamente entre os brasileiros, PRECONCEITO maneira como a mulher dá o alimento à criança negra,
percebe-se que o preconceito sobre os negros e os Dados históricos tratando-a como se fosse um animal doméstico.
seus descendentes encontra-se na história recen- são apresentados
te do Brasil, principalmente nos três séculos de para fundamentar as
escravidão, e pelas escassas políticas de inserção origens do problema
desses sujeitos na sociedade, especialmente após em realidades que
a Abolição da Escravatura em 13 de maio de 1888. remontam aos versos de
Desde o século XVI, quando os negros oriundos Castro Alves. O tráfico
das várias partes da África começaram a desem- de escravos marca o
barcar na América portuguesa de forma forçada início do preconceito
para trabalhar nas lavouras de cana-de-açúcar em relação aos negros.
e nas minas de ouro, começou um longo período Apesar da abolição da
de usurpação da sua liberdade, gerando graves escravatura, os autores
consequências para o seu status social. Vale des- destacam a permanência
tacar que alguns negros e mestiços trabalhavam de comportamentos
nos centros urbanos (...). Apesar de esses escra- discriminatórios.
vos não estarem nas fazendas ou nas minas e
desempenharem outras atividades, eles não esta- MARGINALIZAÇÃO
vam isentos do estigma de serem escravos e di- A cultura africana
ficilmente conseguiam ascender socialmente (...) contribuiu para a
formação da identidade
Outra pesquisa, realizada em 2013, destacou: brasileira. No entanto,
O negro é duplamente discriminado no Brasil, ainda que alguns
por sua situação socioeconômica e por sua cor de afirmem que vivemos em
pele. “Tais discriminações combinadas podem uma democracia racial,
explicar a maior prevalência de homicídios de os autores questionam e
negros vis-à-vis o resto da população”. (...) defendem a tese de que a
Depreende-se que a questão do preconceito de marginalização de negros
cor continua latente na sociedade brasileira. Car- e de afrodescendentes
neiro (2003, p.5) afirmou que: “o Brasil sempre ainda impera
procurou sustentar a imagem de um país cordial, no Brasil atual.
caracterizado pela presença de um povo pacífico,
sem preconceito de raça e religião [...]”. E a auto-
ra completou que “Sempre interessou ao homem
branco a preservação do mito de que o Brasil é um
paraíso racial, como forma de absorver as tensões
sociais e mascarar os mecanismos de exploração
e de subordinação do outro, do diferente [...]”
http://www.seduc.mt.gov.br/Paginas/A-perman%C3% [2]
AAncia-do-racismo-na-sociedade-brasileira.aspx
57GE PORTUGUÊS 2018
[1] DEBRET/REPRODUÇÃO [2] © TEREZA BETTINARDI
3 ROMANTISMO TERCEIRA GERAÇÃO
Manuel Antônio de Almeida Neste romance, surge, pela primeira vez na literatura ORDEM E DESORDEM
nacional, a figura do malandro, com episódios repletos O romance oscila entre
O escritor Manuel Antônio de Almeida (1830- de humor e aventura. dois polos: a conduta
1861) publica Memórias de um Sargento de Mi- oficial do major Vidigal
lícias em folhetim, entre 1852 e 1853. Apesar de Memórias de um e as malandragens
se situar em pleno Romantismo, essa obra foge Sargento de Milícias cometidas pelo povo – e
completamente ao ideário literário de sua época principalmente pelos
e assinala uma transição para o Realismo. Se há Manuel Antônio de Almeida Leonardos. Para o crítico
traços românticos no romance, eles estão no Antonio Candido, é como
tom irônico e satírico que assume o narrador. (...) Voltemos a saber o que foi feito do Leonardo, a se o Rio de Janeiro do
Os personagens utilizam a linguagem coloquial quem deixamos na ocasião em que fora arrancado tempo do rei estivesse
e vivem situações típicas do cotidiano da cidade pelo Vidigal dos braços do amor e da folia. dividido entre o mundo da
do Rio de Janeiro do século XIX. ordem e o da desordem.
O Vidigal tinha-o posto diante de si, ao lado de PRONOMES RELATIVOS
COSTUMES um granadeiro, e marchava poucos passos atrás. Eles são usados para
No decorrer do romance, são (...) substituir um referente,
descritos diversos costumes no processo de conexão de
comuns no Rio de Janeiro da Quem estivesse muito atento havia de notar que sentenças, para encadear
época de dom João VI, como algumas vezes o Leonardo parecia, ainda que muito os acontecimentos.
ligeiramente, apressar o passo, que outras vezes o Ex.: Leonardo apressava
festas populares e modos retardava, que seu olhar e sua cabeça voltavam-se o passo, que ora
de viver que se modificaram de vez em quando, quase imperceptivelmente, para desacelerava; neste caso,
a esquerda ou para a direita. O Vidigal, a quem nada “que” se refere a
com o passar do anos. disto escapava, achava em todas estas ocasiões “o passo”.
Muitas vezes, nota-se certo pretextos para dar sinais de si; tossia, pisava mais PRONOME
saudosismo nos comentários forte, arrastava no chão o chapéu-de-sol que sempre DEMONSTRATIVO
trazia na mão, como quem queria dizer ao Leonardo, “Aquilo” é utilizado para
do narrador. respondendo aos seus pensamentos íntimos: retomar o poder exercido
pelo Major Vidigal numa
POR QUE – Cuidado! eu aqui estou. – E o Leonardo enten- situação de imposição da
Há diferentes grafias dia tudo aquilo às mil maravilhas (...) Entretanto autoridade (assinala que
para “porque”. Neste caso, nem por isso abandonava a sua ideia: queria fugir. Leonardo compreendia
a utilização de por que (...) as atitudes de poder e
expressa dúvida (veja no comando do Major).
Saiba mais da pág. ao lado). O pobre rapaz (...) suava mais do que no dia em A FIGURA DO MALANDRO
que fez a primeira declaração de amor a Luisinha. Leonardo Pataca e
JEITINHO BRASILEIRO Só havia na sua vida um transe a que assemelhava, seu filho são típicos
Os personagens de Memórias de aquele em que então se achava, era o que se havia malandros brasileiros.
passado, quando criança, naquele meio segundo No romance, transgridem
um Sargento de Milícias estão que levara a percorrer o espaço nas asas do tre- com frequência as
sempre tentando se dar bem mendo pontapé que lhe dera seu pai. normas sociais de
na vida, mesmo que, para isso, conduta. O romance não
precisem recorrer a meios pouco Repentinamente uma circunstância veio fa- tem intenção moralizante
vorecê-lo. Não sabemos por que causa ouviu-se e os malandros nem
lícitos ou convencionais. um grande alarido na rua: gritos, assovios e car- sempre sentem culpa
É o mundo brasileiro dos arranjos reiras. O Leonardo teve uma espécie de vertigem: por seus atos.
zuniram-lhe os ouvidos, escureceram-se-lhe os PRONOME PESSOAL
e do jeitinho. olhos, e… dando um encontrão no granadeiro que Nos exemplos ao lado,
estava perto dele, desatou a correr. O Vidigal deu o pronome pessoal
um salto, e estendeu o braço para o agarrar; mas oblíquo “lhe” funciona
apenas roçou-lhe com a ponta dos dedos pelas como pronome
costas. O rapaz tinha calculado bem: o Vidigal possessivo (zuniram
distraiu-se com o ruído que se fizera na rua, e os seus ouvidos,
aproveitou a ocasião. O Vidigal e os granadei- escureceram-se os
ros soltaram-se imediatamente em seu alcance: seus olhos etc.). Já em
o Leonardo embarafustou pelo primeiro corredor “que lhe dera seu pai”,
que achou aberto; os seus perseguidores entraram ele é objeto indireto
incontinenti atrás dele, e subiram em tropel o pri- (designando o pontapé
meiro lance da escada. (...) que o pai dera em
Leonardinho).
58 GE PORTUGUÊS 2018
SAIU NA IMPRENSA CONEXÕES
MULTA PARA QUEM ESTACIONAR EM CANÇÃO
VAGA DE DEFICIENTE AUMENTA MAIS
QUE 100% Rapaz folgado IMPERATIVO
AFIRMATIVO
A multa para o motorista que estaciona em vaga de Noel Rosa A canção propõe um
idoso ou de pessoas com deficiência física vai mais conselho a um possível
que dobrar. Deixa de arrastar interlocutor para que
o teu tamanco ele abandone a vida de
É para ver se inibe aquelas desculpas esfarrapadas malandro. O emprego do
já conhecidas. Se o motorista não respeita por consci- Pois tamanco nunca imperativo afirmativo
ência, cidadania e educação, agora vai ter que pensar foi sandália na segunda pessoa do
que isso vai pesar mais no bolso e também resultar em singular reforça esse
mais pontos na habilitação. (...) E tira do pescoço o caráter de conselho
lenço branco e de diálogo presente
Seu Valdir, que mora em Belém, ouve toda hora aquela na canção.
desculpa esfarrapada: “Ah é só um minutinho”... Compra sapato e gravata VARIAÇÃO LINGUÍSTICA
Joga fora esta navalha A expressão “deste rata”
“O velho jeitinho brasileiro, a pessoa estaciona e fala: e a forma verbal no
‘não, eu vou aqui rapidinho, um minutinho’, embora que te atrapalha imperativo (“arranja”)
exista a legislação, embora exista a lei, mas assim, a Com chapéu do lado configuram elementos
população não respeita”. (...) da variante popular.
deste rata Isso dá ao conselho um
A partir de agora, o desrespeito às vagas de deficiente Da polícia quero que escapes tom coloquial, como se
físico e idosos é infração grave com cinco pontos na Fazendo um samba-canção viesse de uma pessoa
carteira de habilitação. E também a multa que era de Já te dei papel e lápis querida que quer cuidar
R$ 53,20 passa para R$ 127,69. (...) Arranja um amor do amigo.
MUDANÇA NA
Site G1, 5/1/2016 e um violão INTERLOCUÇÃO
Malandro é palavra O eu lírico deixa de
A malandragem, uma das principais características do falar com seu primeiro
protagonista de Memórias de um Sargento de Milícias, derrotista interlocutor – o suposto
ainda faz parte do estereótipo do povo brasileiro. Que só serve pra tirar malandro – e passa a
A reportagem mostra que muitos motoristas insistem Todo o valor do sambista dialogar com o povo
em infringir a lei que garante vagas de estacionamento Proponho ao povo civilizado civilizado (inserido na
para idosos e pessoas com deficiência. Essa prática Não te chamar de malandro ordem) para que aceite o
ilegal, de parar o carro nessas vagas especiais, é E sim de rapaz folgado novo rótulo social (rapaz
reveladora do que chamamos de “jeitinho brasileiro” folgado) do ex-malandro.
– o hábito de burlar regras sem se sentir culpado. Esse A figura do malandro foi bastante
comportamento, que era visível na sociedade carioca trabalhada na música popular
retratada por Manuel Antônio de Almeida, infelizmente brasileira (MPB), principalmente
ainda é bastante comum no Brasil de hoje. nas décadas de 1920 e 1930.
Esta canção de Noel Rosa
SAIBA MAIS promove interessante diálogo
com Memórias de um Sargento de
EMPREGO DE PORQUE, POR QUE, Milícias em relação à integração
POR QUÊ E PORQUÊ do malandro ao universo da
ordem social. No romance,
Há diferentes grafias para “porque” conforme o sentido: essa integração ocorre com o
• Porque: É empregado para indicar causa ou explicação: casamento de Leonardinho e a
sua nomeação para sargento;
Não fui à escola ontem porque estava doente. na canção, com a adesão do
• Por que: Serve, em geral, para expressar dúvida e é personagem ao universo musical.
empregado em frases interrogativas diretas ou indiretas: PARA IR ALÉM
Por que você não foi à escola ontem?
• Porquê: Funciona como substantivo e se refere ao mo- Alguns vídeos disponíveis no YouTube – como o do
tivo pelo qual determinado fato ocorre: Eu gostaria de programa Direito & Literatura, da TV e Rádio Unisinos
saber o porquê de tanto choro. – são bem didáticos para explicar a obra Memórias de
• Por quê: É usado como indicativo de dúvida no fim de um Sargento de Milícias. Confira!
sentenças interrogativas: Você não foi à escola por quê?
59GE PORTUGUÊS 2018
3 COMO CAI NA PROVA
1. (PUC- SP 2016) a) o modo como a democracia surge no Brasil por interferência do
Memórias de um Sargento de Milícias cronologicamente faz parte Imperador.
da literatura romântica brasileira; no entanto, torna-se uma obra atí-
pica em relação ao momento em que foi escrita. b) a maneira despótica como os republicanos trataram os símbolos
nacionais.
Das alternativas abaixo, indique a que não valida essa afirmação
porque c) a postura inconsequente que sempre caracterizou os governantes
a) seu enredo é marcado por intenso e trágico sofrimento amoroso do Brasil.
cujo desfecho concretiza um final feliz, com a união conjugal e d) a forma astuciosa como ocorreram os movimentos políticos no
ascensão social dos personagens. Brasil.
b) sua linguagem é marcada pela oralidade e coloquialidade, em
tom de crônica jornalística, ilustrando a prática de que se deve RESOLUÇÃO
escrever como se fala. Além da ironia, o texto se vale também da intertextualidade. Ela ocorre
c) obra caracterizada pela ausência do tom açucarado e idealizador quando um enunciado recupera outro, criando um novo texto. No caso
da literatura romântica, visto que as relações sentimentais não se do poema, José Paulo Paes recupera a cantiga infantil Vamos Passear na
dão nem pela grandeza no sofrimento, nem pela redenção pela dor. Floresta Enquanto Seu Lobo Não Vem. Seu lobo, no caso, é dom Pedro.
d) a caracterização dos personagens ou fere a descrição sempre Durante todo o poema, o autor narra ironicamente a adoção da repú-
idealizada do perfil feminino ou configura traços de um herói pelo blica no Brasil, fazendo uma crítica aos movimentos políticos do país.
avesso mais marcado por defeitos que por virtudes. Resposta: D
RESOLUÇÃO 3. (FUVEST 2015)
Em Memórias de um Sargento de Milícias, não há “intenso e trágico sen-
timento amoroso”. Como explicado na alternativa C, o livro se afasta da Fernando Gonsales, Níquel Náusea: Cadê o ratinho do titio? São Paulo: Devir. 2011.
idealização romântica. O personagem principal da obra, Leonardo, é o
primeiro anti-herói da literatura, o famoso malandro. Por isso, apesar a) De acordo com o contexto, o que explica o modo de falar das
de ter sido escrita no Romantismo, ela também apresenta traços do Re- personagens representadas pelas duas traças?
alismo, antecedendo a escola posterior.
Resposta: A b) Mantendo o contexto em que se dá o diálogo, reescreva as duas
falas do primeiro quadrinho, empregando o português usual e
2. (UNICAMP 2016) gramaticalmente correto.
Cem anos depois RESOLUÇÃO
Vamos passear na floresta a) Na última tira, o rato atribui a nova linguagem das traças, cheia de
Enquanto D. Pedro não vem. pronomes oblíquos (como o “vos” e o “me”) e conjugações na segunda
D. Pedro é um rei filósofo pessoa, duas marcações de norma culta, ao fato de estarem roendo a
Que não faz mal a ninguém. Bíblia, que é toda escrita dessa maneira. A comicidade se dá pelo em-
prego dessa linguagem de forma equivocada e em conversas usuais.
Vamos sair a cavalo, b) Reescrevendo-se as falas e respeitando a norma culta, elas ficariam
Pacíficos, desarmados: da seguinte maneira:
A ordem acima de tudo, – Como foi o seu dia?
Como convém a um soldado. – Queria que tivesse sido melhor.
Vamos fazer a República, 4. (INSPER 2015)
Sem barulho, sem litígio,
Sem nenhuma guilhotina, 2015: o ano em que chegamos ao futuro
Sem qualquer barrete frígio. Quem assistiu a trilogia De Volta Para o Futuro não esquece. E como
Vamos, com farda de gala, poderia? No segundo filme, o protagonista Marty McFly viaja no tempo,
Proclamar os tempos novos, deixando 1985 para ir a 2015. Entre as tantas situações apresentadas
Mas cautelosos, furtivos, no futuro hipotético, as mais marcantes são o skate voador e o tênis
Para não acordar o povo. autoajustável usados pelo personagem. E a Nike confirmou: esse ano
o calçado vai ser lançado. Em evento realizado em Long Beach, Califór-
José Paulo Paes, O Melhor Poeta da Minha Rua, em Fernando Paixão (sel. e org.), nia, nos EUA, o designer e diretor de inovação da empresa norte-ame-
Para gostar de ler. São Paulo: Ática, 2008
O tom irônico do poema em relação à história do Brasil põe em
evidência
60 GE PORTUGUÊS 2018
RESUMO
ricana Tinker Hatfield prometeu que o produto chega ao mercado com Literatura do Romantismo
os Power Laces (os cadarços que se arrumam sozinho).
ROMANTISMO (1836-1881) O movimento surge no contexto
http://www.jornaljr.com.br/2015/01/19/2015-o-ano-em-que-chegamos-ao-futuro/ da ascensão da burguesia. Valores como o individualismo, o
sentimentalismo, a subjetividade e a liberdade formal são
No texto acima, há uma construção sintática em desacordo com a seus elementos centrais.
prescrição da norma culta. Assinale a alternativa na qual esse des-
lize está corretamente identificado. • Primeira geração Em busca da exaltação dos valores
nacionais, escritores como José de Alencar (Iracema) e Gon-
a) No título, a preposição “em”, que antecede o pronome relativo çalves Dias (Canção do Exílio) veem nos índios os legítimos
“que”, está incorreta, pois está associada ao verbo “chegar”, que é heróis das narrativas. Alencar também é autor de romances
regido pela preposição “a”. regionalistas, como Til.
b) No primeiro período, faltou o acento indicador de crase, uma vez • Segunda geração O sentimento amoroso se exacerba,
que o verbo “assistir”, no sentido de “ver”, exige preposição “a” como na poesia de Álvares de Azevedo (Noite na Taverna),
o principal nome do Ultrarromantismo.
c) No primeiro período, há um erro associado ao emprego do verbo
“esquecer”, que é pronominal e deve ser acompanhado pela • Terceira geração Caracteriza-se pelo engajamento social.
preposição “de” Nos poemas de Castro Alves, a linguagem grandiloquente,
carregada de hipérboles (exageros), é posta a favor de sua
d) No quarto período do primeiro parágrafo, ocorre uma falha luta contra a escravidão.
associada ao emprego da voz passiva, já que o verbo “usar”
rejeita essa construção. • Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio
de Almeida, diferencia-se da estética da época por seu tom
e) No último parágrafo, há uma falha na correlação verbal, pois o satírico e por introduzir a figura do malandro.
verbo “chegar”, ao se relacionar à ideia de “prometer”, não pode
ficar no presente. GRAMÁTICA E INTERPRETAÇÃO
• Intertextualidade Trata-se do diálogo entre dois textos
RESOLUÇÃO – acontece quando um autor deseja referir-se a outro texto,
O verbo assistir pode ser tanto transitivo direto quanto transitivo in- produzido em outro momento. Uma das maneiras de se
direto. Quando ele significa dar assistência, é transitivo direito e não estabelecer uma relação intertextual entre dois escritos é
pede preposição. Já quando seu significado é o mesmo de ver, ele é por meio da paródia.
transitivo indireto e por isso rege a preposição “a”. Por isso, a forma
correta que deveria ter sido utilizada no texto é “assistiu à trilogia”. • Regência verbal Determinados verbos são acompanhados
Na primeira alternativa, a preposição “a” regida pelo verbo chegar es- por complementos com funções específicas. Ex.: gostar (de),
tá presente no “ao futuro”; o “em que” é uma marcação temporal. Na confiar (em), aconselhar (a), simpatizar (com), ajudar (a).
terceira alternativa, a regra está correta, porém o “esquecer” utiliza-
do no texto não é pronominal, por isso não pede preposição. A quar- • Pronomes demonstrativos No contexto em que estão
ta alternativa está incorreta, pois o verbo “usar” pode ser emprega- associados a espaço, este é próximo de quem fala (este
do na voz passiva. E, na última, o emprego do presente do indicativo livro que li é muito bom); esse é próximo de quem recebe a
está relacionado a um futuro iminente pontual, situação na qual es- mensagem (esse livro que você leu é muito bom); e aquele
se tempo verbal pode ser utilizado. é longe de ambos (aquele livro que não lemos deve ser
Resposta: B muito bom).
5. (FGV 2016 ADAPTADA) • Pronomes pessoais retos e oblíquos Os pronomes pesso-
As ideias de especialização e progresso, inseparáveis da ciência, são ais retos correspondem ao sujeito da oração e são seguidos
inválidas para as letras e as artes, o que não quer dizer, evidentemente, de verbo. Ex.: É para eu fazer o jantar? Os pronomes pessoais
que a literatura, a pintura e a música não mudem nem evoluam. Mas, oblíquos correspondem ao objeto da oração e podem suceder
diferentemente do que se diz sobre a química e a alquimia, nelas não preposições. Ex.: Esta comida é para mim?
se pode dizer que aquela abole e supera esta. (...)
• Porque A palavra apresenta diferentes grafias, cada uma
Mario V. Llosa, Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. delas com um significado diferente: porque (causa ou ex-
plicação), por que (dúvida), porquê (substantivo) e por quê
Identifique o referente de cada um dos seguintes pronomes: “ne- (no fim de sentença).
las”, “aquela”, “esta”.
61GE PORTUGUÊS 2018
RESOLUÇÃO
Os referentes dos pronomes demonstrativos pedidos são os seguintes:
Nelas – Literatura, pintura e música (o conjunto dito no período anterior).
Aquela – Química (palavra mais distante na frase).
Esta – Alquimia (a palavra mais próxima).
4 LITERATURA DO REALISMO/NATURALISMO
CONTEÚDO DESTE CAPÍTULO
Interpretando: ironia .....................................................................................64
Realismo .............................................................................................................66
Naturalismo....................................................................................................... 72
Como cai na prova + Resumo.......................................................................74
Favelas em chamas
O elevado número de incêndios em habitações precárias
no país é resultado não apenas das condições inadequadas
dessas moradias, mas também do descaso do poder público
N o início de março de 2017, os morado- de mais alta renda é um fenômeno conhecido
res da favela de Paraisópolis, uma das
maiores da cidade de São Paulo, foram como gentrificação. O documentário Limpam
vítimas de um incêndio de grandes proporções
que destruiu cerca de 300 barracos. O fogo con- com Fogo (2015), do jornalista Conrado Ferrato,
sumiu rapidamente as moradias, deixando 1.200
desabrigados. Não houve registro de mortes. mostra exatamente essa relação entre os incên-
Menos de dez dias depois, um novo caso de in-
cêndio atingiria a mesma comunidade, desta vez dios e a especulação imobiliária. O filme também
afetando dezenas de moradias. Segundo o Corpo
de Bombeiros, foram mais de cem ocorrências do denuncia que o poder público faz pouco para
tipo no estado de São Paulo nos primeiros dois
meses de 2017. No ano anterior, a corporação reduzir a vulnerabilidade dessas comunidades.
registrou 325 chamados de incêndio em favelas
paulistas, 230 deles só na Grande São Paulo. Favelas, como a de Paraisópolis, são o retrato
A precariedade das favelas brasileiras, onde de um antigo e grave problema social brasileiro:
prevalecem barracos feitos de madeira e papelão,
ligações clandestinas de energia elétrica e botijões a falta de moradias. Segundo o mais recente
de gás mal instalados, explica a elevada frequência
com que incêndios atingem essas comunidades. censo demográfico do Instituto Brasileiro de
Essa situação acaba indo ao encontro dos Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, as 6.329
interesses de grandes construtoras e incorpora-
doras, que, assim, adquirem os terrenos ocupados favelas existentes no país abrigavam cerca de
por favelas por um preço mais baixo e erguem
nesses locais condomínios, edifícios comerciais 11,4 milhões de pessoas.
e shopping centers. A remoção de populações
carentes para bairros mais periféricos com a Um misterioso incêndio também acontece em
consequente reocupação do lugar por pessoas
O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo, o prin-
cipal romance naturalista brasileiro. Na obra,
o português João Romão, dono do cortiço, o
reconstrói, dando-lhe
nova feição, já que
dias antes do ocorri- VIDAS DESTRUÍDAS
do ele havia feito um Morador da comunidade
seguro. Vemos, então, de Paraisópolis, em São
uma semelhança entre Paulo, tenta controlar o
incêndios e empreen- incêndio que atingiu cerca
dimentos lucrativos de 300 moradias, em março
que aparecem logo de 2017. Favela é uma das
após a tragédia. maiores da cidade
62 GE PORTUGUÊS 2018
EDUARDO KNAPP/FOLHAPRESS 63GE PORTUGUÊS 2018
4 REALISMO/NATURALISMO INTERPRETANDO
A subversão do sentido
A ironia é a figura A ssim como Aluísio Azevedo se destacou no “golpista”. Sua intenção é mostrar que essa crítica
de linguagem Naturalismo, no Realismo temos também exagerada não tem sentido – pois, segundo ela, ser
que afirma o um expoente máximo: Machado de Assis, chamado de “golpista” ultrapassou seu sentido
contrário do que um dos principais nomes da literatura brasileira original (aqueles que apoiaram o afastamento da
parece dizer. e mundial. O autor tem, entre suas principais presidente Dilma Rousseff, considerado um golpe
Ela também características, o uso da ironia. Embora chegue por seus críticos), para se estender a todos os que
pode se mostrar ao humor em certas ocasiões, sua ironia possui vivem e compartilham de algum valor da sociedade
de modo mais uma sutileza e um refinamento que só a fazem capitalista – trabalhar numa grande empresa e
sutil, no contexto, perceptível a leitores de sensibilidade já treinada. comprar bens de consumo considerados caros, por
como no exemplo exemplo. Com muita ironia, ela desqualifica esse
abaixo O artigo abaixo, da escritora e roteirista Tati Ber- discurso extremado e conclui que, sendo assim,
nardi, publicado no jornal Folha de S.Paulo, em 3 de toda a classe média é “golpista”. Ao captar a
março de 2017, é um exemplo desse tipo de recurso. ironia de cada passagem do texto, conseguimos
A colunista elabora um texto extremamente irô- perceber seu sentido e intenção.
nico para se defender daqueles que a consideram
IRONIA E POLARIZAÇÃO Desabafar num jornal IRONIA E REFERÊNCIA
A autora sinaliza, de considerado golpista não é A cronista faz uma
coisa de escritor sério referência provocativa e
forma irônica, as opiniões irônica à Rede Globo, já
que recebeu. “Nem Tati Bernardi que parte de seus colegas
a chamam de “golpista”
pintada de vermelho” Ganhei o prêmio Bertha Lutz do Senado Federal por trabalhar lá. A defesa
alude aos simpatizantes e dividi a opinião de amigos. Alguns disseram dela consiste em ironizar
“vai lá buscar, claro, Senado é do povo” e muitos o fato de que toda e
de esquerda. Já a frase outros me alertaram “nem pintada de vermelho, qualquer grande empresa
“Senado é do povo”, dos são todos uns golpistas, recuse o prêmio”. Fui será considerada por
simpatizantes da direita, salva por uma reunião da Globo, emissora na qual parte de seus amigos e
trabalho, na exata data e horário da cerimônia. leitores de golpista, como
é uma clássica ironia podemos confirmar ao
(pois são conhecidos por Sim, a Globo. Outra questão sempre muito tensa longo da crônica.
não aderirem a questões nas mesas de bar (não que eu vá a muitas mesas IRONIA E
de bar, na real não vou a nenhuma, mas me refiro METALINGUAGEM
populares). à galera mais festiva-opinativa-intelectual que Ao citar o próprio jornal
me cerca). Para eles eu jamais deveria trabalhar onde suas crônicas são
IRONIA E VOCABULÁRIO para uma empresa golpista cheia de golpistas publicadas, a cronista
A autora ironiza os colegas que só disseminam pelo mundo o ódio a todos faz uso irônico da
que não são golpistas. metalinguagem (veja
que frequentam bares definição na pág. 15), pois,
e discutem ali temas da Mas escrever sobre isso aqui neste jornal, con- para se defender e dizer
agenda nacional. Busca siderado golpista por tantos amigos, não é um que não está alinhada a
desqualificá-los com o desabafo digno de um escritor sério. E escrever golpistas, escreve em um
termo “festiva-opinativa- de um Macintosh novo, com tanto PC velho jornal que seus colegas
intelectual”, sugerindo precisando de uma família, deveria encerrar consideram golpista.
que discutem de forma de uma vez por todas a minha carreira. Sim,
tenho ar-condicionado: julguem-me.
pouco séria.
IRONIA E ALUSÃO !
A colunista ironiza sua
condição social (possui
um Macintosh novo e
ar-condicionado) com
algum sarcasmo, uma
vez que há quem defenda
que, por isso, ela poderia
ser considerada golpista.
64 GE PORTUGUÊS 2018
Moro num bairro que, pela quantidade de gente CRÍTICA E IRONIA SAIBA MAIS
batendo panela na época que ainda se batia pane- A cronista enumera
la, pode ser considerado golpista. Olho da minha símbolos estereotipados OS CAMINHOS DA IRONIA
janela a faculdade PUC, povoada de garotos atrelados à ideia de
golpistas, filhos de pais e mães que trabalham golpismo. Ironiza tanto A ironia nega aquilo que foi afirmado, propondo o
em bancos golpistas, firmas golpistas, hospitais a direita (que seriam os oposto do que na realidade se pensa ou se escreve.
golpistas, escolas golpistas, multinacionais pra lá “verdadeiros” golpistas) Um exemplo bem simples seria: Ana adora a sua sogra!
de golpistas, e me pergunto se hoje vai ter barulho quanto a esquerda (por (quando, na verdade, Ana a detesta). No texto em que
infernal de batuque carnavalesco. Mas pensar isso considerá-la golpista). predomina a ironia, o leitor deve abandonar o plano
é ser golpista, querer sossego individualista em um CRÍTICA E ENUMERAÇÃO referencial concreto e real para entrar em um outro
ambiente público chamado cidade é ser golpista. Observe que a plano de sentido, que subverte o primeiro.
enumeração mais
Enfim, aceitei o prêmio, mas não estarei pre- uma vez critica a visão Há, no entanto, ironias mais finas, em que o discurso
sente. Muitos amigos acharam que eu não deveria abrangente e imprecisa não trabalha nesse plano tão óbvio de contraste. Ocor-
nem aceitar, uma vez que apenas feministas são demais para definir re nas relações intertextuais, nas referências, ou ainda
agraciadas e eu sou apenas uma garota formada golpistas. Sendo assim, nas escolhas de palavras, como você pode conferir no
em marketing (aff, golpista!), que escreve filmes todos, de alguma forma, texto ao lado.
de grande bilheteria (virge, golpista!), livros fa- são golpistas.
lando de si mesma (nuuussa, golpista!) e vendeu VARIANTE LINGUÍSTICA A ironia está presente em textos diversos. Para se
sua alma a toda uma mídia diabólica. Mas eu me Expressões típicas da observar a ironia é preciso prestar bastante atenção na
recusei a recusar. linguagem oral (“aff”, construção do discurso – a intenção do texto, o tipo de
“virge” e “nuuussa”) palavra escolhida, o humor etc. – e no repertório cultural
Primeiro eu pergunto a vocês, pessoas tão são usadas de forma e social que aparece ao longo do texto. O contexto é
maravilhosamente isentas de qualquer contato gradativa para ironizar fundamental para a compreensão da ironia.
com golpistas: como pagam as contas? Onde quem a desqualifica.
guardam dinheiro? Leem notícias? Nunca se É como se ela estivesse
divertem com a TV ou um filme comercial? antecipando o que eles
Respiram? Ou estão nuas em uma praia deserta poderiam falar.
no Uruguai vivendo de ideais? Depois, desafio IRONIA E RETÓRICA
você, tão pleno de certezas protegidas pela dis- A autora lança perguntas
crição, a aturar todo santo dia a opinião do amigo retóricas (em que a
internauta te xingando de velha, histérica, vaca, resposta está embutida
“alguém engravida essa mulher que ela para na questão). Desta
de falar” e mesmo assim continuar escrevendo forma, desafia seus
todo santo dia. Eu só acredito em militante que opositores a viverem de
trabalha. forma diferente da sua.
Note que a pergunta final
Eu admiro você, jamais vendido, jamais gol- “Respiram?” é a síntese
pista, concentrado em seu quinto mestrado em de que todos, então,
pau-brasil e há 11 anos escrevendo um roteiro seriam golpistas.
sem nenhuma verba ou incentivo ou produtor IRONIA E SARCASMO
ou distribuidor ou emissora ou patrocínio (ou “Eu admiro você” é a
história). Roteiro esse que vai viajar o mundo, formulação mais clássica
mas também as comunidades ribeirinhas e vai da ironia – nega o que
arrebatar as únicas 47 pessoas que vão tomar afirma. A cronista diz que
conhecimento da sua existência. Me empresta aqueles que a atacam
esse avô rico aí e seremos melhores amigos. ocupam-se de projetos
irrelevantes.
IRONIA E REFERÊNCIA
A autora toma o Uruguai, de forma irônica (viver IRONIA E SUGESTÃO
de ideais), como exemplo de país progressista e A cronista sugere que
antigolpista, uma vez que foi governado por Mujica, essas pessoas podem se
célebre expoente da esquerda, e legalizou a maconha. dedicar a projetos que
não rendem dinheiro
PRONOMES PESSOAIS porque são sustentadas
A autora faz uso da linguagem coloquial e emprega dois por avôs ricos. E pede
pronomes pessoais distintos quanto à uniformidade de emprestado (no sentido
tratamento (“você”, da 3ª pessoa do singular; e “te”, financeiro) um avô rico
da 2ª pessoa do singular). para que ela também
possa se dedicar a
projetos pouco rentáveis.
© TEREZA BETTINARDI 65GE PORTUGUÊS 2018
4 REALISMO/NATURALISMO REALISMO
A vida como ela é Publicado em 1881, Memórias Póstumas de Brás Cubas
é um romance revolucionário em vários aspectos.
No Realismo (1881-1922), A quebra do enredo convencional, a estratégica
as idealizações dão lugar à observação utilização de um narrador-defunto que se anuncia
objetiva e rigorosa da sociedade autor da obra e a negação de toda e qualquer redenção
de personagens em toda a narrativa tornam esse
E m contraste com o Romantismo, os es- romance a maior ruptura realista feita no Brasil.
critores realistas concebem a realidade
segundo uma visão objetiva e materialis- Memórias Póstumas
ta. Defendem a produção de obras que retratem de Brás Cubas
o real de modo documental, sem distorção nem
idealização, e muitas vezes com uma linguagem Machado de Assis
próxima do rigor científico. Em geral, os textos
servem como instrumentos de denúncia das CAPÍTULO 1: ÓBITO DO AUTOR NARRADOR-DEFUNTO
desigualdades sociais. A burguesia é criticada (TRECHO INICIAL) Brás Cubas narra, depois
por transformar as relações sociais e os próprios de morrer, as lembranças
indivíduos em simples mercadorias. Ocorrem Algum tempo hesitei se devia abrir estas me- da vida. O lugar do qual o
também ataques ao clero e à Igreja Católica. mórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria narrador fala é estratégico:
em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morto, sua voz alcança
O movimento se desenvolve durante a segunda morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo maior distanciamento em
fase da Revolução Industrial (a partir de 1870), nascimento, duas considerações me levaram a relação aos fatos e aos
e o capitalismo torna-se um dos alvos centrais adotar diferente método: a primeira é que eu não seres humanos.
das obras do período. Os personagens ganham sou propriamente um autor defunto, mas um de- ANTI-HERÓI ROMANESCO
personalidades mais complexas, se comparadas funto autor, para quem a campa foi outro berço; a Ao contrário dos heróis
aos românticos. Em um mundo marcado por segunda é que o escrito ficaria assim mais galante românticos idealizados,
divisões econômicas, as fronteiras entre o social e mais novo. (...) Brás Cubas é um indivíduo
e o psicológico muitas vezes remetem ao jogo repleto de defeitos,
realista de “aparência versus essência”. CAPÍTULO 75: COMIGO egoísmos e ambiguidades.
Podendo acontecer que algum dos meus leitores O romance moderno,
Machado de Assis gênero representativo do
tenha pulado o capítulo anterior, observo que é mundo burguês, privilegia
O maior ficcionista de sua época e um dos preciso lê-lo para entender o que eu disse comigo, protagonistas que não são
grandes escritores da literatura mundial, Ma- logo depois que Dona Plácida saiu da sala. O que modelos exemplares de
chado de Assis (1839-1908) tornou-se famoso eu disse foi isto: conduta nem apresentam
pelos contos e romances que publicou. Sua uma trajetória comum,
produção realista é marcada pela consciência – Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia, aju- com todos os problemas
das contradições de um Brasil dividido entre dando à missa, viu entrar a dama, que devia ser humanos. Nesse sentido,
o desejo de modernização (segundo modelos sua colaboradora na vida de Dona Plácida. Viu-a ele se aproxima do
capitalistas da burguesia liberal europeia) e a outros dias, durante semanas inteiras, gostou, personagem Leonardo, de
manutenção das estruturas conservadoras de disse-lhe alguma graça, pisou-lhe o pé, ao acen- Memórias de um Sargento
poder (o sistema patriarcal e escravocrata que der os altares, nos dias de festa. Ela gostou dele, de Milícias.
ainda vigorava no país). O olhar crítico e aguçado acercaram-se, amaram-se. Dessa conjuncção de
do Machado ficcionista explorará ao máximo luxúrias vadias brotou Dona Plácida. E de crer
essas oposições, desmascarando-as aos olhos que Dona Plácida não falasse ainda quando nas-
do leitor. Para além das questões brasileiras, ceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus
Machado de Assis utiliza a matéria histórica dias: – Aqui estou. Para que me chamastes? E o
nacional para tratar de problemas e sentimentos sacristão e a sacristã naturalmente lhe responde-
comuns a todos os seres humanos, em qualquer riam: – Chamamos-te para queimar os dedos nos
parte do mundo. tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não co-
PARA IR ALÉM DOMÉSTICA E AGREGADA !
Utilizando os recursos oferecidos pelas HQs, Dona Plácida foi abandonada pela filha – também
pelo menos três editoras criaram um novo jeito de bastarda – e sustentou a mãe, até que esta morresse. Após
conhecer o clássico Memórias Póstumas de Brás ouvir a história da agregada, a ironia e o rancor saltam aos
Cubas: Ática, Desiderata e Escala Educacional. olhos de Brás Cubas: Dona Plácida serve de álibi para que
ele e Virgília concretizem o amor adúltero. Os amores dos
dois são conjunções de luxúrias vazias, origem de Dona
Plácida, cujo destino é viver trabalhando, adoecendo e se
curando, até que morra decrépita.
66 GE PORTUGUÊS 2018
DIÁLOGO ENTRE OBRAS
mer, andar de um lado para outro, na faina, ado- FRUSTRAÇÃO CIÚME E ADULTÉRIO
ecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer O projeto do emplasto
e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, Brás Cubas, medicamento A traição é tema recorrente nos romances realistas.
amanhã resignada, mas sempre com as mãos no revolucionário por meio Após trair o marido, a sonhadora Luisa, de O Primo
tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na do qual o narrador- Basílio, é acometida pela culpa, que a leva à morte.
lama ou no hospital; foi para isso que te chama- personagem sonhava Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o narrador
mos, num momento de simpatia. alcançar a glória é o amante do triângulo amoroso, completado por
pessoal, acabou por Virgília e seu marido. Ao contrário de Luisa, Virgília é
CAPÍTULO 160: DAS NEGATIVAS levar indiretamente seu prática, tipicamente realista, e mantém um caso sem
Entre a morte do Quincas Borba e a minha, me- idealizador à morte. dramas com Brás Cubas. Nas duas obras, o adultério
ADVÉRBIO é incontestável. Já em Dom Casmurro, como a nar-
diram os sucessos narrados na primeira parte do O título do capítulo, Das ração é em primeira pessoa, não há como dizer que
livro. O principal deles foi a invenção do emplasto negativas, repercute na Capitu traiu Bentinho. O suposto adultério pode ter
Brás Cubas, que morreu comigo, por causa da mo- série de frases declarativas sido invenção do ciumento narrador. Dúvida parecida
léstia que apanhei. Divino emplasto, tu me darias negativas presentes no paira no livro modernista São Bernardo, de Graciliano
o primeiro lugar entre os homens, acima da ciên- texto, nas quais o advérbio Ramos. A infidelidade de Madalena seria uma fantasia
cia e da riqueza, porque eras a genuína e direta não acentua o caráter de do narrador, seu marido, Paulo Honório?
inspiração do Céu. O caso determinou o contrário; negatividade e frustração
e aí vos ficais eternamente hipocondríacos. do narrador-protagonista. O Primo Basílio
Este último capítulo é todo de negativas. Não IRONIA Eça de Queirós
alcancei a celebridade do emplasto, não fui mi- Brás Cubas se refere
nistro, não fui califa, não conheci o casamento. ironicamente às sucessivas “Sentia então como um alívio doloroso, em ver
Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a ações fracassadas de o fim do seu longo martírio! Havia meses que ele
boa fortuna de não comprar o pão com o suor do sua vida, resultantes da durava. E pensando em tudo o que tinha feito e
meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, fraqueza e da leviandade. que tinha sofrido, as infâmias em que chafurdara e
nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas A ironia é o recurso textual as humilhações a que descera, vinha-lhe um tédio
umas cousas e outras, qualquer pessoa imaginará frequentemente usado de si mesma, um nojo imenso da vida. Parecia-lhe
que não houve míngua nem sobra, e conseguinte- pelo autor para tratar das que a tinham sujado e espezinhado; que nela nem
mente que saí quite com a vida. E imaginará mal; questões humanas. havia orgulho intacto, nem sentimento limpo; que
porque ao chegar a este outro lado do mistério, PESSIMISMO tudo em si, no seu corpo e na sua alma, estava en-
achei-me com um pequeno saldo, que é a derra- O desiludido narrador xovalhado, como um trapo que foi pisado por uma
deira negativa deste capítulo de negativas: – Não apresenta uma multidão, sobre a lama. Não valia a pena lutar por
tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o perspectiva pessimista uma vida tão vil. O convento seria já uma purifi-
legado da nossa miséria. da existência. Ele declara cação, a morte uma purificação maior... – E onde
não haver deixado estava ele, o homem que a desgraçara? Em Paris,
Record, 1998 descendentes em vida retorcendo a guia dos bigodes, chalaceando, go-
e, portanto, não tem vernando os seus cavalos, dormindo com outras!
PRONOME POSSESSIVO a quem transmitir o E ela morreria ali, estupidamente! E quando lhe
O uso do pronome possessivo “nossa” tem o efeito de legado da existência escrevera a pedir-lhe que a salvasse, nem uma
criar cumplicidade e ironia: a miséria não seria só de humana (ironicamente palavra de resposta; nem a julgara digna do meio
Brás Cubas, mas de toda a humanidade. constituído de misérias). tostão da estampilha! (...) Oh, que estúpida que é a
vida! Ainda bem que a deixava!”
Editora Ática, São Paulo, 1998
HIPÉRBOLE E DISCURSO INDIRETO LIVRE
Por meio do discurso indireto livre, o narrador recupera
os pensamentos de Luisa: a personagem, em seu
sofrimento, exagera a percepção da realidade e carrega
suas reflexões de contornos trágicos. A imagem da alma
humilhada e pisada é construída de modo hiperbólico.
A hipérbole é a figura dos exageros e da intensificação
das ideias. Ela funciona também como um advérbio,
um recurso de intensificação.
© TEREZA BETTINARDI 67GE PORTUGUÊS 2018
4 REALISMO/NATURALISMO REALISMO
PARA IR ALÉM Os capítulos iniciais de Dom Casmurro (1899) mostram
o estilo solitário de vida do narrador Bentinho. A obra
Na minissérie Capitu, guarda um dos mais célebres enigmas da literatura
exibida pela TV Globo brasileira: a incerteza sobre a traição de Capitu. Destaca-se
em 2009 e dirigida por o jogo complexo narrativo e a desconfiança nas palavras
Luiz Fernando Carvalho, de Bentinho – tornadas duvidosas pela parcialidade do
a adaptação combina narrador-personagem, envolvido nos fatos.
elementos da ópera,
do teatro e da cultura Dom Casmurro
pop, o que resulta em
figurinos, cenários e Machado de Assis
trilha sonora originais.
Disponível em DVD e, MARCADORES ESPACIAIS CAPÍTULO 2: DO LIVRO PRESENTE E PRETÉRITO
alguns capítulos, pela E TEMPORAIS Vivo só, com um criado. A casa em que moro é O autor usa no início
internet. verbos no presente, que
O ponto de partida da própria; fi-la construir de propósito, levado de um destacam as condições
68 GE PORTUGUÊS 2018 narração é a compra desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, de vida do narrador. Em
da residência atual, mas vá lá. Um dia, há bastantes anos, lembrou- seguida, os fatos são
reformada para me reproduzir no Engenho Novo a casa em que narrados no pretérito,
tornar-se igual à casa me criei na antiga Rua de Matacavalos, dando- a fim de evocar as
onde ele vivera na lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, lembranças do narrador.
que desapareceu. Construtor e pintor entenderam DESCRIÇÃO
infância. A passagem do bem as indicações que lhes fiz: é o mesmo prédio O método descritivo é
tempo é representada assobradado, três janelas de frente, varanda ao usado com frequência
pela alteração do fundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal pelos realistas: para
espaço físico, recurso destas, a pintura do teto e das paredes é mais ou representar a realidade,
menos igual, umas grinaldas de flores miúdas detalham os traços
estilístico importante na e grandes pássaros que as tomam nos bicos, de constitutivos de espaços
composição da narrativa. espaço a espaço. Nos quatro cantos do teto as e pessoas. Mas não se
figuras das estações, e ao centro das paredes os trata mais de descrições
COMPARAÇÕES medalhões de César, Augusto, Nero e Massinissa, idealizadas, como no
O narrador faz duas com os nomes por baixo... Não alcanço a razão período romântico: a
comparações: entre de tais personagens. Quando fomos para a casa de realidade é retratada de
os tempos passado e Matacavalos, já ela estava assim decorada; vinha modo objetivo e fiel.
presente (mostrando que, do decênio anterior. Naturalmente era gosto do ORAÇÃO SUBORDINADA
para lidar com a passagem tempo meter sabor clássico e figuras antigas em ADJETIVA
dos anos, quis reconstruir pinturas americanas. O mais é também análogo e O pronome relativo
a casa em que vivia na parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma “que” é empregado
infância) e entre as vidas casuarina, um poço e lavadouro. (...) Enfim, agora, para construir orações
no interior da residência e como outrora, há aqui o mesmo contraste da vida subordinadas adjetivas
no mundo exterior (uma, interior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa. explicativas (responsáveis
pacata; outra, ruidosa). por acrescentar uma
O meu fim evidente era atar as duas pontas da informação complementar
PERSONAGENS vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, se- sobre os referentes – no
COMPLEXOS nhor, não consegui recompor o que foi nem o que caso, a vida interior e
fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é dife- a vida exterior à casa
O desejo do narrador rente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem de Bentinho). Mais
é articular o início e consola-se mais ou menos das pessoas que perde; acima, a construção
o fim da existência. mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui “em que” foi empregada
está é, mal comparando, semelhante à pintura que para construir orações
A construção da casa se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conser- subordinadas adjetivas
busca conectar épocas va o hábito externo, como se diz nas autópsias; o restritivas (responsáveis
diferentes. No entanto, a interno não aguenta tinta. Uma certidão que me por especificar que, entre
aparente recuperação da desse vinte anos de idade poderia enganar os estra- todas as casas existentes,
infância por meio da casa nhos, como todos os documentos falsos, mas não a o narrador se refere à
não foi bem-sucedida: a própria residência).
essência da juventude !
não pode ser recuperada.
Na estética realista, os
personagens são mais
complexos do que os do
período romântico.
DIÁLOGO ENTRE OBRAS
mim. Os amigos que me restam são de data recente; EUFEMISMO DE CRIANÇA A MULHER
todos os antigos foram estudar a geologia dos cam- O narrador usa um
pos-santos. Quanto às amigas, algumas datam de eufemismo para fazer Em Minha Vida de Menina (1942), livro diário que com-
quinze anos, outras de menos, e quase todas creem referência à morte dos preende o período de janeiro de 1893 a dezembro de
na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos ou- amigos (“foram estudar 1895, Helena Morley faz um retrato da sua vida na Dia-
tros, mas a língua que falam obriga muita vez a con- a geologia dos campos- mantina do século XIX. No livro, como sugere o crítico
sultar os dicionários, e tal frequência é cansativa. santos”). literário Roberto Schwarz, “assistimos à transformação
SENTIDO DA EXISTÊNCIA da criança observadora e crítica na mocinha espertíssi-
Entretanto, vida diferente não quer dizer vida Para tentar atribuir ma”. A força sedutora dos modos despachados e poucos
pior; é outra coisa. A certos respeitos, aquela vida an- sentido à existência, o convencionais de Helena e um erotismo ambíguo (me-
tiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe narrador opta por escrever nina/mulher) a aproximam de Capitu, a protagonista
achei; mas é também exato que perdeu muito espi- uma obra autobiográfica de Dom Casmurro.
nho que a fez molesta (...) Quis variar, e lembrou-me e retomar passagens da
escrever um livro. própria vida. Minha Vida de Menina
CAPÍTULO 32: OLHOS DE RESSACA METÁFORA Helena Morley
Tinha-me lembrado a definição que José Dias A bela e estonteante
metáfora dos “olhos de [12 de novembro de 1894]
dera deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. ressaca”, presente no título
Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada deste capítulo, ressalta o Joviano, que já é normalista, veio contratar
sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu poder sedutor de Capitu, com meu pai lições de inglês. Tem vindo todas
deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que que traga Bentinho como as tardes das cinco às seis, e tem me atrapalhado
era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; areia movediça. muito no estudo e também na vida em casa.
a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demo- METONÍMIA
ra da contemplação creio que lhe deu outra ideia do Os olhos dão também a Nossa casa é pequena e todo rebuliço se escuta
meu intento; imaginou que era um pretexto para ideia metonímica (a parte na sala. Eu e Luisinha temos uma infelicidade
mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, substituindo o todo) do conosco; meu pai não gosta de nos ver rir muito.
constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que en- que Capitu vai representar Mas parece até pirraça e juro que não é: quando
trassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com para o narrador: o poder meu pai está na lavra, só rimos quando há motivo;
tal expressão que... avassalador que ela terá mas se ele está em casa, uma não pode olhar para
sobre ele. a outra que disparamos no riso.
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação
exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos Depois que Joviano está vindo, meu pai re-
de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, comendou que não ríssemos nem falássemos
sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram cá dentro, pois o rapaz ficava de ouvido alerta
e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o para escutar o que falávamos e não prestava
que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não atenção à aula.
sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que
arrastava para dentro, como a vaga que se retira da Nós não fazemos barulho; mas deixar de rir,
praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, sendo proibido, é impossível. Meu pai chega a
agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos gritar da sala para acabarmos com isso.
braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas
tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía Hoje, conversando com Maricas, irmã dele (Jo-
delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando viano), eu lhe contei o caso e o nosso sofrimento
envolver-me, puxar-me e tragar-me. de rirmos à toa, principalmente depois que o
irmão está vindo dar lições. Ela disse: “É porque
L&PM editores, 1997 Seu Alexandre ainda não desconfiou que ele gosta
mais de ouvir você rir do que das lições. Ele disse
lá em casa que gostava de ver você rir e falar
perto dele o dia inteiro. Não se lembra daquela
bobagem que você fez no dia que a levamos para
a casa com aquela chuva? Você estava com umas
botinas de elásticos arrebentados e encharcadas e
da porta da rua foi sacudindo as pernas e atirando
as botinas no corredor. Viano falou na mesa que
sabe que vai ficar solteirão, porque só se casará
com uma moça que faça aquele gesto perto dele
e sabe que não encontrará”.
© TEREZA BETTINARDI 69GE PORTUGUÊS 2018
4 REALISMO/NATURALISMO REALISMO
Eça de Queirós Neste último livro de Eça de Queirós (1901), publicado ARTIGO
um ano após sua morte, a temática do campo O artigo “a” define
Um dos marcos do movimento realista em versus cidade é o cerne da história. O autor mostra civilização: trata-se
Portugal é a publicação, em 1874, do primeiro a futilidade reinante na cidade e satiriza as ideias desta civilização, e não
conto ligado à nova estética escrito em língua por- positivistas que predominavam na época. de outra. Veja outros
tuguesa: Singularidades de uma Rapariga Loura, significados que os
de Eça de Queirós (1845-1900). O autor, um dos A Cidade e as Serras artigos podem exprimir
principais nomes da literatura de Portugal, fixa no Saiba mais da página
importantes referências estéticas para o período. Eça de Queirós ao lado.
DESCRIÇÃO
O romance A Cidade e as Serras, uma de suas Eu murmurei, das profundidades do meu assom- O procedimento
principais obras, trata da onda de cientificismo brado ser: descritivo, muito
e modernização que influenciou a cultura euro- empregado pelos realistas,
peia na segunda metade do século XIX. No caso – Eis a civilização! é usado para evidenciar a
específico de Portugal, havia uma expectativa Jacinto empurrou uma porta, penetramos numa ânsia de modernidade de
de equiparação do país em relação ao desen- nave cheia de majestade e sombra, onde reconheci a Jacinto (representativa
volvimento tecnológico observado nas demais biblioteca por tropeçar numa pilha monstruosa de de boa parte da elite
nações do continente europeu. livros novos. O meu amigo roçou de leve o dedo na portuguesa da época).
parede; e uma coroa de lumes elétricos, refulgindo Por meio da apresentação
Eça de Queirós, por meio dos projetos ino- entre os lavores do teto, alumiou as estantes monu- da casa do protagonista,
vadores do protagonista, Jacinto (defensor da mentais, todas de ébano. (...) Eça realiza uma sátira dos
civilização), e das intervenções do narrador-per- Ele erguera uma tapeçaria – entramos no seu costumes burgueses.
sonagem, José Fernandes (oriundo do campo), gabinete de trabalho, que me inquietou. [...] Sedas SUBSTANTIVOS
explicita o contraste entre o progresso urbano verdes envolviam as luzes elétricas, dispersas em Após enumerar uma série
e a tradição rural. lâmpadas tão baixas que lembravam estrelas ca- de componentes dos
ídas por cima das mesas, acabando de arrefecer aparelhos (designados por
As Cidades e as Serras apresenta também e morrer (...) E entre aqueles verdes reluzia, por substantivos concretos),
traços do romance de tese, aquele que, por meio sobre peanhas e pedestais, toda uma mecânica o narrador explicita, por
da história narrada, defende uma ideia. Neste suntuosa, aparelhos, lâminas, rodas, tubos, en- meio de substantivos
caso, a narrativa concretiza as oposições entre grenagens, hastes, friezas, rigidez de metais... abstratos (“frieza” e
campo e cidade, simplicidade e tecnologia. (...) “rigidez”), o caráter
– E acumulaste civilização, Jacinto! Santo Deus... impessoal e artificial
Está tremendo, o 202! das máquinas. Em todo
Ele espalhou em torno um olhar onde já não fais- o romance, ocorre a
cava a antiga vivacidade: decepção de Jacinto com
– Sim, há confortos... Mas falta muito! A huma- o “mundo moderno”.
nidade ainda está mal apetrechada, Zé Fernandes... DISCURSO DIRETO
E a vida conserva resistências. As exclamações de Zé
Subitamente, a um canto, repicou a campainha Fernandes, reproduzidas
do telefone. (...) Jacinto acudiu, com a face no te- por meio de discurso
lefone: direto, visam a quebrar o
– Vê aí o telégrafo!... Ao pé do divã. Uma tira de longo trecho descritivo e
papel que deve estar a correr. inserem no texto aspectos
– E, com efeito, duma redoma de vidro posta ligados ao dinamismo
numa coluna, e contendo um aparelho esperto e di- e à ação. O leitor tem
ligente, escorria para o tapete como uma tênia, (...) a impressão de ver os
personagens conversando
! no gabinete de Jacinto.
[1] ANSIEDADE E CONSUMISMO
Jacinto encarna a ansiedade do indivíduo moderno,
sedento de velocidade e simultaneidade. Ao mesmo
tempo que fala ao telefone, pede a Jacinto que verifique
a chegada de uma nova mensagem no telégrafo. Na
prosperidade material e nas posses de Jacinto, nota-se
o apego ao consumismo, estimulado pelo capitalismo
burguês e industrial.
70 GE PORTUGUÊS 2018
Neste outro trecho do mesmo livro, Zé Fernandes, CONEXÕES
preocupado, consulta seu fiel criado Grilo sobre o
desânimo de Jacinto. Ele diz que o patrão (Jacinto) ANÚNCIO PUBLICITÁRIO
sofria de “fartura”. Esse fastio vai desencadear no
personagem mudança de rumo e de ares. Trocará o
tédio da cidade por uma vida nova no campo.
Uma noite no meu quarto, descalçando as bo- NARRADOR EXCÊNTRICO [2]
tas, consultei o Grilo: Zé Fernandes não é
somente um típico Os contrastes entre o progresso urbano e o sossego
– Jacinto anda tão murcho, tão corcunda... narrador. É um do campo, apontados em A Cidade e as Serras,
Que será, Grilo? observador da trajetória mantêm-se nos dias de hoje. No romance, a mudança
do protagonista. O tédio de Jacinto, da agitada Paris para o agrário Portugal,
O venerando preto declarou com uma certeza proporcionado pela mostra, primeiramente, a superioridade da vida rural
imensa: “fartura” aborrecera e, no fim da obra, uma síntese dos dois ambientes. O
o “Príncipe”– nome anúncio acima é um exemplo de como a sociedade
– Sua Excelência sofre de fartura. carinhoso e irônico moderna também tem buscado unir o melhor dos
Era fartura! O meu Príncipe sentia abafada- usado para designar dois: a praticidade das cidades e a tranquilidade do
mente a fartura de Paris; e na Cidade, na simbó- o mimado Jacinto. campo. Essa tendência é expressa na multiplicação de
lica Cidade, fora de cuja vida culta e forte (como condomínios residenciais, cuja publicidade emprega
ele outrora gritava, iluminado) o homem do sé- ARTIGO ENFÁTICO termos bucólicos, como “natureza” e “área verde”.
culo XIX nunca poderia saborear plenamente O artigo definido Delineia-se a promessa de viver num espaço ao mesmo
a “delícia de viver”, ele não encontrava agora (o, a) empregado em tempo verde e urbano, atraente para quem acredita ser
forma de vida, espiritual ou social, que o inte- conjunto com o pronome possível ter a calmaria de um refúgio rural sem perder
ressasse (...) Pobre Jacinto! Um jornal velho (...) possessivo assume valor o conforto da cidade.
não enfastiaria mais o solitário, que só possuísse semântico de ênfase, uma
na sua solidão esse alimento intelectual, do que o vez que a particularidade SAIBA MAIS
parisianismo enfastiava o meu doce camarada! expressa pelo possessivo
Se eu nesse verão capciosamente o arrastava a dispensaria o artigo. Seu O ARTIGO
um café-concerto (...), o meu bom Jacinto, cola- emprego, porém, torna
do pesadamente à cadeira, com um maravilhoso mais clara a ideia de que É a palavra que costuma preceder o substantivo, indi-
ramo de orquídeas na casaca, as finas mãos aba- o protagonista é descrito cando-lhe o gênero (masculino ou feminino) e o número
tidas sobre o castão da bengala, conservava toda aos olhos do narrador. (singular ou plural). Pode ser definido (o, a, os, as) ou
a noite uma gravidade tão estafada, que eu, com- PERSONAGEM indefinido (um, uma, uns, umas). Do ponto de vista da
padecido, me erguia, o libertava, gozando a sua ENFASTIADA semântica, os artigos podem expressar diversos signi-
pressa em abalar, a sua fuga de ave solta... (...) Eça descreve Jacinto ficados, como:
Não se ocupara mais das suas sociedades e com- como um típico burguês
panhias, nem dos telefones de Constantinopla, enfastiado com a • Adjetivo: Fernanda Montenegro é a atriz! (= excelente)
nem das religiões esotéricas, nem do bazar espi- vida social. O autor • Ideia de aproximação: Sharon Stone tem uns 60 anos.
ritualista, cujas cartas fechadas se amontoavam busca caracterizar no
sobre a mesa de ébano, de onde o Grilo as varria personagem um arquétipo (= aproximadamente)
tristemente como o lixo de uma vida finda. Tam- da elite portuguesa, • Ênfase: Estou com uma fome! (= muito intensa)
bém lentamente se despegava de todas as suas a qual criticava. • Generalização: O homem é um animal racional...
convivências. As páginas da agenda cor-de-rosa PONTUAÇÃO
murcha andavam desafogadas e brancas. E se O ponto de exclamação (= todos os homens)
ainda cediam a um passeio de mail-coach, ou a enfatiza o retrato de tédio • Indicação de posse: Roberto Carlos rapou a cabeça
um convite para algum castelo amigos dos arre- que o narrador busca
dores de Paris, era tão arrastadamente, com um fazer de Jacinto. Dessa novamente. (= dele)
esforço saturado (...) forma, ele ironiza o que
Jazer, jazer em casa, na segurança das portas o protagonista outrora
bem cerradas e bem fendidas contra toda a in- chamava de civilização.
trusão do mundo, seria uma doçura para o meu
Príncipe se o seu próprio 202, com todo aquele
tremendo recheio de Civilização, não lhe desse
uma sensação dolorosa de abafamento, de atu-
lhamento!
(...)
Nobel, 2009
[1] © TEREZA BETTINARDI [2] REPRODUÇÃO 71GE PORTUGUÊS 2018
4 REALISMO/NATURALISMO NATURALISMO
Relatos quase Publicado em 1890, O Cortiço traça o perfil da sociedade DERIVAÇÃO IMPRÓPRIA
científicos brasileira no fim do século XIX. Pela janela, um narrador O adjetivo “bela” é
assiste à formação de um cortiço ao lado de seu sobrado. empregado como um
Os autores do Naturalismo O autor registra a ascensão de uma classe social que pronome indefinido
(1881-1922) se colocam como não medirá esforços para enriquecer e atingir o poder (“uma noite qualquer”).
observadores imparciais diante de seu político. Portugueses, negros e mulatos experimentam A escolha da palavra
objeto de estudo – os personagens a pobreza e a desigualdade social em leituras “bela” cria uma
animalizadas do ser humano. anteposição à noção de
Considerada por muitos especialistas a grotesco presente na
radicalização do Realismo, a estética O Cortiço relação do casal, na qual
naturalista se estabelece na Europa e não há nenhuma indicação
no Brasil na segunda metade do século XIX, Aluísio Azevedo de amor e de belo.
impulsionada por uma série de avanços cien- COISIFICAÇÃO
tíficos, principalmente nos campos da biologia Uma bela noite, porém, o Miranda, que era Com o objetivo de
e da sociologia. homem de sangue esperto e orçava então pelos criticar os valores
seus trinta e cinco anos, sentiu-se em insupor- civilizatórios burgueses
Além de observarem a realidade, os autores tável estado de lubricidade. Era tarde já e não e a descaracterização da
naturalistas procuram explicar os acontecimen- havia em casa alguma criada que lhe pudesse “humanidade” do homem,
tos com base em teorias científicas. O romance valer. Lembrou-se da mulher, mas repeliu logo esta alguns personagens se
se converte numa espécie de laboratório, no ideia com escrupulosa repugnância. Continuava tornam coisas ou objetos.
qual temas considerados polêmicos pela so- a odiá-la. Entretanto este mesmo fato de obriga- O texto deixa transparecer
ciedade do período são expostos sem ideali- ção em que ele se colocou de não servir-se dela, a o papel da criadagem nesse
zação nem contornos atenuantes. A influência responsabilidade de desprezá-la, como que ainda processo de coisificação do
do meio sobre o indivíduo (determinismo) e mais lhe assanhava o desejo da carne, fazendo da ser humano.
a evolução dos seres vivos (darwinismo) são esposa infiel um fruto proibido. Afinal, coisa singu-
algumas das ideias incorporadas por escritores lar, posto que moralmente nada diminuísse a sua PARA IR ALÉM
para explicar o comportamento dos personagens repugnância pela perjura, foi ter ao quarto dela.
(e, desse modo, interpretar a própria realidade). O Cortiço foi adaptado
No Brasil, Aluísio Azevedo (1857-1913) retratou (...) Ah! ela contava como certo que o esposo, para os quadrinhos
o modo de vida das classes populares e também desde que não teve coragem de separar-se de casa, pela Editora Ática, por
o comportamento animalesco que pode estar havia, mais cedo ou mais tarde, de procurá-la de Rodrigo Rosa e Ivan Jaf,
por trás das aparências de civilidade. É autor, novo. Conhecia-lhe o temperamento, forte para que fizeram intensa
entre outros, de O Mulato (1881), que marca o desejar e fraco para resistir ao desejo. pesquisa para reconstituir
início do Naturalismo no Brasil, e de O Cortiço a paisagem carioca com
(veja ao lado), considerado o principal romance ! seus cortiços no século
naturalista brasileiro. XIX. Essa versão traz uma
VOCABULÁRIO nova linguagem, sem
O QUE ISSO TEM A VER COM A BIOLOGIA A escolha da forma verbal “orçava” revela o caráter deixar de lado o humor e
O inglês Charles Darwin desenvolveu a teoria da ambicioso de Miranda, que resumia tudo a dinheiro a acidez da crítica social
evolução das espécies pela seleção natural. Segundo a e a benefício próprio. A seleção vocabular é um presentes na obra original.
teoria, os indivíduos nascem com pequenas diferenças, procedimento essencial para a construção de um texto.
e algumas delas facilitam sua sobrevivência. Elas são
transmitidas aos descendentes, e o meio ambiente APARÊNCIA VERSUS ESSÊNCIA
funcionaria como filtro para selecionar os organismos Após verificar a traição de Estela, Miranda toma
mais adaptados. Para saber mais, veja o GUIA DO providências. No entanto, tais medidas só se estendem
ESTUDANTE BIOLOGIA. à vida privada. Na vida pública, mantinham a aparência
de casal unido. Interesses financeiros e reputação
social estão em jogo. Lobo Neves, marido de Virgília,
toma uma atitude semelhante à de Miranda; no
entanto, quando percebe que o adultério da mulher
pode prejudicar sua vida pública, afasta os amantes.
SEXUALIDADE
Há uma visão não espiritualizada dos afetos humanos.
O retrato da sexualidade aflorada, muitas vezes
por meio de hipérboles e adjetivos, é tipicamente
naturalista.
72 GE PORTUGUÊS 2018
SAIU NA IMPRENSA
Consumado o delito, o honrado negociante sen- NATURALISMO MACACOS TÊM AVERSÃO À INJUSTIÇA
tiu-se tolhido de vergonha e arrependimento. Não A descrição física ligada ao
teve ânimo de dar palavra, e retirou-se tristonho e corpo é muito explorada Fernando Reinach
murcho para o seu quarto de desquitado. pelos naturalistas para (...)
representar os aspectos Em 2003, Frans de Waal publicou um experimento
Oh! como lhe doía agora o que acabava de pra- instintivos e naturais do clássico. Colocou dois macacos em jaulas vizinhas e
ticar na cegueira da sua sensualidade. ser humano. As descrições os treinou para que devolvessem pedras colocadas
apelam para o grotesco e no interior da gaiola. Para cada pedra entregue eles
(...) o animalesco. O homem, recebiam uma fatia de pepino (...) Mas algo espantoso
No dia seguinte, os dois viram-se e evitaram-se que passa a ser objeto de acontecia quando um dos macacos era recompensado
em silêncio, como se nada de extraordinário hou- investigação científica, é com uma uva em vez de uma fatia de pepino. (...) o ou-
vera entre eles acontecido na véspera. descrito com precisão e tro, que podia observar o pagamento superior recebido
(...) detalhamento. pelo vizinho (a uva) se revoltava. Parava de entregar a
Mas, daí a um mês, o pobre homem, acometido DINAMISMO pedra ou atirava o pepino no cientista.
de um novo acesso de luxúria, voltou ao quarto A repetição da forma (...)
da mulher. verbal “gozou” Recentemente, um novo tipo de comportamento foi de-
(...) reforça o caráter de tectado, mas agora somente em chimpanzés e crianças
Miranda nunca a tivera, nem nunca a vira, assim dinamismo conferido humanas. É a chamada aversão secundária à injustiça.
tão violenta no prazer. Estranhou-a. Afigurou-se-lhe à narrativa e insere o Nesses experimentos, foi demonstrado que em certas
estar nos braços de uma amante apaixonada: leitor ao momento de situações o chimpanzé ao qual é oferecido o pagamento
descobriu nela o capitoso encanto com que nos delírio vivido pelos mais valioso (uva) se recusa a receber o pagamento, a
embebedam as cortesãs amestradas na ciência do personagens. não ser que seu par receba o mesmo pagamento ou
gozo venéreo. Descobriu-lhe no cheiro da pele e no ANIMALIZAÇÃO um semelhante. (...) Nada mal para um macaco, algo
cheiro dos cabelos perfumes que nunca lhe sentira; O desejo ligado ao muito difícil de observar entre seres humanos adultos,
notou-lhe outro hálito, outro som nos gemidos e nos cio é frequente na mas quase automático entre crianças de até 4 anos.
suspiros. E gozou-a, gozou-a loucamente, com delí- literatura naturalista. (...)
rio, com verdadeira satisfação de animal no cio. Os personagens Talvez devêssemos investigar melhor nosso lado
E ela também, ela também gozou, estimulada sofrem um processo de animal. Será que encontraremos outras características
por aquela circunstância picante do ressentimento animalização conhecido hereditárias, hoje inibidas pela educação, capazes de
que os desunia; gozou a desonestidade daquele ato por zoomorfismo. nos tornar animais melhores?
que a ambos acanalhava aos olhos um do outro;
estorceu-se toda, rangendo os dentes, grunhindo, O Estado de S. Paulo, 18/10/2014
debaixo daquele seu inimigo odiado, achando-o
também agora, como homem, melhor que nunca, Este artigo, redigido por um biólogo, relata pesquisas
sufocando-o nos seus braços nus, metendo-lhe pela sobre o senso de justiça entre os macacos. O texto
boca a língua úmida e em brasa. realiza uma característica inversa à executada pelos
autores naturalistas. Estes usavam a zoomorfização,
L&PM editores, 1998. ou seja, por trás da aparente civilidade, mostravam o
comportamento animalesco e os aspectos instintivos
DESEJO inerentes às ações dos personagens. Já os estudos
Estela é movida pelo desejo físico (evidenciado pelas apontam para o caminho contrário. Humanizam os
descrições naturalistas), ao contrário de Virgília, de animais e revelam que muitas das características
Memórias Póstumas de Brás Cubas (motivada pelo desejo geralmente atribuídas a humanos, como a capacidade
de alcançar status, aspecto assinalado com a ironia de se incomodar com injustiças ou de solidarizar-se com
machadiana voltada para as relações sociais), e de Luisa, de o próximo, não são exclusividade da nossa espécie.
O Primo Basílio (que deseja viver uma aventura romântica).
© TEREZA BETTINARDI 73GE PORTUGUÊS 2018
4 COMO CAI NA PROVA
1. (FUVEST 2016 ADAPTADA) a) recorre à tradição bíblica como fonte de inspiração para a
humanidade.
Texto para a questão.
– Pois, Grilo, agora realmente bem podemos dizer que o sr. D. Jacinto b) desconstrói o discurso da filosofia a fim de questionar o conceito
está firme. O Grilo arredou os óculos para a testa, e levantando para de dever.
o ar os cinco dedos em curva como pétalas de uma tulipa: – Sua
Excelência brotou! Profundo sempre e digno preto! Sim! Aquele c) resgata a metodologia da história para denunciar as atitudes
ressequido galho da Cidade, plantado na Serra, pegara, chupara o irracionais.
húmus do torrão herdado, criara seiva, afundara raízes, engrossara
de tronco, atirara ramos, rebentara em flores, forte, sereno, ditoso, d) transita entre o humor e a ironia para celebrar o caos da vida cotidiana.
benéfico, nobre, dando frutos, derramando sombra. E abrigados pela e) satiriza a matemática e a medicina para desmistificar o saber
grande árvore, e por ela nutridos, cem casais* em redor o bendiziam.
científico.
Eça de Queirós, A Cidade e as Serras
RESOLUÇÃO
*casal: pequena propriedade rústica; pequeno povoado. O autor do texto constrói uma visão da história tomada pelo humor e
pela ironia. Essa figura de linguagem consiste em dizer o oposto do que
Tal como se encontra caracterizado no excerto, o destino alcançado se quer expressar, mas pode se manifestar de outras formas também.
pelo personagem Jacinto contrasta de modo mais completo com a Aqui, ela se expressa por meio da visão ácida dos aspectos negativos
maneira pela qual culmina a trajetória de vida do personagem da vida e da história, que são narrados de forma leve e bem-humorada.
a) Leonardo (filho), de Memórias de um Sargento de Milícias. Resposta: D
b) Jão Fera, de Til.
c) Brás Cubas, de Memórias Póstumas de Brás Cubas. 3. (ENEM 2014)
d) Jerônimo, de O Cortiço.
e) Pedro Bala, de Capitães da Areia.
RESOLUÇÃO A publicidade, de uma forma geral, alia elementos verbais e imagé-
Jacinto, aristocrata e membro da elite, contrasta com Brás Cubas, uma ticos na constituição de seus textos. Nessa peça publicitária, cujo
vez que este fracassou em todos os projetos em que se envolveu, en- tema é a sustentabilidade, o autor procura convencer o leitor a
quanto Jacinto rejuvenesce indo para Tormes. As classes sociais, a ori- a) assumir uma atitude reflexiva diante dos fenômenos naturais.
gem de cada um deles e as circunstâncias não permitem confundir es- b) evitar o consumo excessivo de produtos reutilizáveis.
ses personagens, mas há pontos de contato que podem levar à confusão. c) aderir à onda sustentável, evitando o consumo excessivo.
Em relação às outras alternativas: a) ainda que Leonardo, persona- d) abraçar a campanha, desenvolvendo projetos sustentáveis.
gem simples de gente do povo, tenha se casado com Luisinha e se tor- e) consumir produtos de modo responsável e ecológico.
nado sargento de milícias, sua trajetória não mostra nenhum mérito
seu, uma vez que foi ajudado em todas as circunstâncias de sua vida, RESOLUÇÃO
enquanto Jacinto ajudava aos necessitados. Sobre b e e) Jão Fera, É papel de um texto publicitário convencer alguém de algo. No caso desta
bugre e capataz, e Pedro Bala, garoto delinquente e depois líder gre- peça publicitária, ela solicita não só a adesão do leitor para a campanha
vista, não se assemelham ao nobre e aristocrata Jacinto. No que diz “garanta sua sacola retornável”, mas também o invoca a ter ações susten-
respeito à d) a trajetória de Jerônimo incluiu um processo de degra- táveis. Em relação às alternativas incorretas, vale destacar que a inten-
dação, o que não o faz semelhante a Jacinto, que não passa por es- ção de um texto publicitário é modificar o comportamento do leitor e não
ses percalços e tampouco é influenciado pelo meio como Jerônimo. apenas sugerir a ele reflexão (a). As ideias contidas nas outras alternativas
Resposta: C também aparecem, mas não é o que prevalece. Perceba que os elemen-
tos verbais e não verbais solicitam o uso específico da sacola retornável.
2. (ENEM 2015) Resposta: D
Primeiro surgiu o homem nu de cabeça baixa. Deus veio num raio.
Então apareceram os bichos que comiam os homens. E se fez o fogo,
as especiarias, a roupa, a espada e o dever. Em seguida se criou a fi-
losofia, que explicava como não fazer o que não devia ser feito. Então
surgiram os números racionais e a História, organizando os eventos
sem sentido. A fome desde sempre, das coisas e das pessoas. Foram
inventados o calmante e o estimulante. E alguém apagou a luz. E cada
um se vira como pode, arrancando as cascas das feridas que alcança.
BONASSI, F. 15 cenas do descobrimento de Brasis. In: MORICONI, Í. (Org.). Os Cem Melhores Contos do Século.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
A narrativa enxuta e dinâmica de Fernando Bonassi configura um
painel evolutivo da história da humanidade. Nele, a projeção do
olhar contemporâneo manifesta uma percepção que
74 GE PORTUGUÊS 2018
RESUMO
4. (FGV ECONOMIA 2014) Literatura do Realismo/Naturalismo
Identifique e explique o tipo de discurso presente nos trechos REALISMO (1881-1922) No fim do século XIX, em oposição à
transcritos. subjetividade romântica, os escritores realistas concebem a
realidade segundo uma visão materialista e objetiva. A obser-
a) — Neste momento, Tupã não é contigo! replicou o chefe. O Pajé riu; vação atenta de paisagens, pessoas e fenômenos é feita com
e seu riso sinistro reboou pelo espaço como o regougo da ariranha. precisão rigorosa. Em lugar de heróis, os personagens são
— Ouve seu trovão e treme em teu seio, guerreiro, como a terra em pessoas comuns, cheias de problemas e limitações, geralmente
sua profundeza. Araquém, proferindo essa palavra terrível, avançou vivendo em ambientes urbanos.
até o meio da cabana; ali ergueu a grande pedra e calcou o pé com
força no chão; súbito, abriu-se a terra. • Principais autores Em Portugal, destacam-se Eça de Quei-
José de Alencar, Iracema rós (A Cidade e as Serras) e Antero de Quental. No Brasil,
Machado de Assis torna-se precursor do novo movimento
b) Rubião interrompeu as reflexões para ler ainda a notícia. Que era com Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1881.
bem escrita, era. Trechos havia que releu com muita satisfação. O
diabo do homem parecia haver assistido à cena. Que narração! Que NATURALISMO (1881-1922) O surgimento do Naturalismo,
viveza de estilo! Alguns pontos estavam acrescentados – confusão assim como do próprio Realismo, está condicionado ao amplo
de memória – mas o acréscimo não ficava mal. desenvolvimento científico ocorrido na segunda metade do século
Machado de Assis, Quincas Borba XIX. A primeira obra naturalista brasileira é O Mulato (1881), de
Aluísio Azevedo, autor também de O Cortiço.
RESOLUÇÃO
a) O primeiro trecho apresenta discurso direto. As falas são • Características Os escritores retratam cenas e personagens
com rigor quase científico. São enfatizados os aspectos mais
transcritas literalmente, sem a intermediação do narrador. primitivos do ser humano, muitas vezes comparado aos animais.
O uso do travessão e de verbos declaratórios que introduzem as
falas, como replicar e proferir, são marcas desse tipo de discurso. GRAMÁTICA E INTERPRETAÇÃO
• Ironia Uma das figuras de linguagem mais frequentes nos
b) O segundo trecho é um exemplo de discurso indireto livre, pois textos literários, a ironia consiste no uso de palavra ou frase
as palavras e pensamentos da personagem são incorporados de sentido diverso ou oposto ao que deveria ser empregado,
ao discurso do narrador. O discurso indireto livre não apresenta ressaltando, dessa forma, a verdadeira intenção do autor.
verbos declarativos.
• Oração subordinada adjetiva Esse tipo de oração apresen-
SAIBA MAIS ta informações sobre um referente. Pode ser de dois tipos:
Restritiva É a oração subordinada adjetiva que especifica os
TIPOS DE DISCURSO componentes de um conjunto (“As mães preferiam aquelas
que aceitavam as ordens...”, ou seja, de todas as babás, as
Durante o processo de elaboração de um texto, um autor escolhe o mães preferiam as que tinham tal atitude).
modo de reprodução de palavras enunciadas por outras pessoas. Explicativa É aquela que, introduzida pelo pronome relativo,
Reconhecer esses mecanismos é importante para identificar quem insere uma informação complementar (“Só aos 34 anos tirou
está falando no texto. férias, após descobrir o sindicato, do qual hoje é presidente.”).
Discurso Direto Reproduz exatamente as palavras de outra pessoa,
separando-as da fala do narrador por dois pontos, travessão ou • Artigo Além de indicar o gênero (o, um – masculino; a,
aspas. Ex: O pai estava inconsolável: “Não sei onde está meu filho”, uma – feminino) e o número (a – singular; as – plural),
disse. Há um verbo para introduzir a fala de alguém, como anunciar, também expressa diferentes significados, como a ideia de
afirmar, comentar, declarar (-se), dizer, exclamar, falar, murmurar, aproximação (ex.: o universo tem uns 14 bilhões de anos) e
perguntar, responder etc. de ênfase (ex.: estou com um sono!).
Discurso Indireto A fala da personagem é mediada pela fala
do narrador e se subordina a ela. O leitor fica sabendo o que a • Partícula “que” Pode ocupar diferentes classes grama-
personagem disse indiretamente, por meio do discurso do narrador. ticais, como pronome relativo (Apressava o passo, que ora
Ex: O pai, inconsolável, disse que não sabia onde estava seu filho. desacelerava), advérbio de intensidade (Que malandro!),
Discurso Indireto Livre O narrador conhece a interioridade da interjeição (Quê! Seu marido foi preso?), substantivo (Ele
personagem e, ao discurso de quem narra, são incorporados tem um quê malandro) e preposição (usada para ligar o
os pensamentos e sensações de outra pessoa. Ex: O pai ficou verbo ter, com sentido de “dever”, a um verbo auxiliar.
preocupado e sentia culpa por não saber o paradeiro do filho (veja Ex.: Ele teve que fugir), entre outras.
mais um exemplo na pág. 67, em Diálogo entre obras).
75GE PORTUGUÊS 2018
5 LITERATURA DO PRÉ-MODERNISMO
CONTEÚDO DESTE CAPÍTULO
Interpretando: tipos de texto ......................................................................78
Pré-Modernismo ...............................................................................................80
Parnasianismo.................................................................................................. 84
Simbolismo ........................................................................................................86
Como cai na prova + Resumo.......................................................................88
O drama da seca
Região Nordeste sofre com a mais severa estiagem dos
últimos cem anos, mas transposição das águas do Rio
São Francisco pode minimizar seus efeitos
U ma seca severa castiga o Nordeste brasi- Paraíba e Pernambuco. O projeto prevê a cons-
leiro. Dados do Ministério da Integração trução de um segundo trecho, que levará água ao
Nacional apontam que 835 municípios sertão do Ceará e do Rio Grande do Norte. Sua
da região encontravam-se em estado de emer- inauguração está programada para o fim de 2017.
gência em março de 2017. A estiagem, que teve
início em 2012, já é a mais longa dos últimos cem Iniciada em 2007, a transposição já custou
anos, conforme dados da Fundação Cearense de 9,6 bilhões de reais aos cofres públicos e divide
Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme). opiniões. Se os nordestinos beneficiados com a
chegada da água a consideram positiva, entre
Com a ausência de chuvas, o nível dos re- aqueles que moram nas margens do rio o clima
servatórios no sertão nordestino caiu a níveis é de apreensão. O maior temor é que a retirada
drásticos e atingiu 13,8% de sua capacidade. Dos de água prejudique o manancial, reduzindo
533 açudes monitorados pela Agência Nacional seu nível de água e prejudicando a irrigação e
de Águas (ANA), 152 estavam sem água. No o abastecimento das comunidades.
Ceará, um dos estados mais atingidos, o volume
armazenado nos reservatórios era de apenas O tema da seca é bastante presente em Os Ser-
10% do total. A situação é mais grave na região tões, de Euclides da Cunha, um dos principais
do semiárido, zona do agreste que compreende nomes do Pré-Modernismo brasileiro. Na obra,
53% do território nordestino e onde vivem 23 há uma forte crítica ao abandono, ao isolamento
milhões de pessoas. A falta de água prejudica e às dificulades vividas pelos sertanejos devido
os pequenos agricultores, que perdem suas às condições adversas
plantações e não conseguem manter o rebanho. ligadas à natureza (cli-
ma) e à terra (sistema NA POEIRA DO SERTÃO
Para tentar solucionar a situação e amenizar latifundiário). Segundo Morador de Baraúna (PB),
os efeitos da seca, o governo federal inaugurou Euclides da Cunha, a município que tem um
em março de 2017 o primeiro trecho da obra de seca é uma maldição dos menores índices de
transposição do Rio São Francisco. Por meio de imposta ao sertanejo, água encanada do país.
217 quilômetros de túneis, canais artificiais e bar- e o torna adaptado e O abastecimento depende
ragens, as águas do “Velho Chico” agora chegam integrado miseravel- da retirada de água de poços
a 4,5 milhões de moradores de 168 municípios da mente a essa condição. ou de caminhões-pipa
76 GE PORTUGUÊS 2018
DANIEL MARENCO/FOHAPRESS 77GE PORTUGUÊS 2018
5 PRÉ-MODERNISMO INTERPRETANDO
Qual é a sua forma?
A narração, Osite de notícias do jornal O Povo, do nós, no dia a dia: a narração e a descrição de
a dissertação e Ceará, trouxe, em 9 de janeiro de 2017, situações vividas, presenciadas e sabidas.
a descrição são uma reportagem sobre a seca que assola
os principais o Nordeste brasileiro, considerada a maior dos O texto dessa reportagem se caracteriza, ainda,
tipos de textos. últimos cem anos. A matéria mostra a situação pela linguagem coloquial e pelo uso do discurso
Cada modelo de diversos moradores das regiões atingidas e as direto (as declarações, entre aspas, que repro-
está ligado à saídas que eles têm encontrado para sobreviver duzem diretamente a fala dos entrevistados).
intenção e ao frente às perdas que sofreram na atividade agrí- Observe também que os marcadores temporais
conteúdo que se cola e na pecuária devido à estiagem. e o uso de diferentes tempos verbais são funda-
quer transmitir mentais na construção de sentido do texto, pois
Para narrar e descrever a história de cada mo- eles pontuam a sequência dos fatos e mostram
rador entrevistado, o autor do texto reconstrói a a articulação das ações. Além, disso, há ocor-
sucessão de acontecimentos e o ponto de vista das rência de recurso típico de texto dissertativo,
pessoas envolvidas. Note que esse tipo de texto se como a apresentação de opinião por meio do
assemelha bastante com o que ocorre com todos discurso direto.
Nordeste enfrenta maior APONTE O CELULAR PARA AS
seca em 100 anos PÁGINAS E VEJA UMA VIDEOAULA
SOBRE TIPOS E GÊNEROS DE TEXTO
(MAIS INFORMAÇÕES NA PÁG. 6)
NARRAÇÃO, ESPAÇO E Com voz desanimada, Valdecir João da Silva, DESCRIÇÃO OBJETIVA
PERSONAGEM de 53 anos, conta os cadáveres do seu pequeno Visa reforçar as
rebanho que não resistiu à fome, à falta de água características reais do
Em um relato ou e às doenças causadas pela desnutrição. Em uma ser ou do objeto descrito
narrativa ocorre área afastada da pequena casa onde vive com a sem juízo de valor. Os
a identificação do família, ele juntou 12 animais mortos ao longo dos substantivos e adjetivos
personagem, do espaço 2 últimos meses. De alguns, restam os ossos. empregados (“ossos” e
e da trama para que o De outros, mais recentes, os corpos inchados. “inchados”) ou as cenas
leitor seja inserido na “Morreram de fome”, resume ele, que prefere descritas tendem a ser
história relatada. deixá-los aos urubus a enterrá-los. Ele tenta sal- reais e objetivos.
var os 20 animais que restam com mandacaru, a
NARRAÇÃO E VERBOS planta símbolo do Nordeste. “Ração não dá para MARCADORES
A sequência de verbos comprar, pois está muito cara. O saco de milho que TEMPORAIS
em tempos diferentes custava R$ 18 há dois anos hoje sai por R$ 65.” Inserem o leitor no tempo
(“custava”, no passado; (11 meses, meados de
No sertão de Petrolina, quinta maior cidade dezembro) e, às vezes,
e “sai”, no presente) de Pernambuco, não choveu por 11 meses. Em também no espaço (no
garante a progressão e a meados de dezembro, caiu uma chuva forte, mas sertão de Petrolina - PE)
logo parou. O receio dos sertanejos do semiárido PRETÉRITO PERFEITO
articulações das ações, é de que se repita o ocorrido em janeiro passado, É o tempo verbal
sinalizando a passagem quando a chuva veio forte, “sangrou” açudes, escolhido para a
mas durou só duas semanas. (...) narração, uma vez que
do tempo. indica um fato ocorrido
HIPÉRBOLE E ASPAS “Vou vender a qualquer preço porque não quero e encerrado (“caiu” e
Hipérbole é a figura de voltar com eles”, afirma Francisco Agostinho “parou”).
linguagem que intensifica Rodrigues, de 64 anos, que levou à feira 23 de DISCURSO DIRETO
seus 60 animais. “A gente vende algumas para É comum o uso da
uma ideia. dar de comer às outras.” A feira semanal de Dor- linguagem coloquial
As aspas foram mentes reúne, em média, 3,6 mil animais e atrai para reproduzir a fala
empregadas para mostrar compradores da região e de outros estados. Em fiel de uma pessoa ou
o sentido conotativo tempos bons, tudo é vendido. Agora, em razão personagem. Repare na
e exagerado do termo da crise e da seca, o número de animais expostos expressão popular “dar
“sangrou” (que, aqui, caiu à metade (...). de comer” (alimentar).
indica transbordamento).
A expressão reforça o !
caráter descritivo do
texto.
78 GE PORTUGUÊS 2018
Após cinco anos seguidos de volume de chuvas DESCRIÇÃO SUBJETIVA SAIBA MAIS
abaixo da média histórica, a seca do semiárido Adjetivos associados a
já é considerada a maior do século. A região in- advérbios (“tão severa” AS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS
clui Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, e “o mais quente” – DOS TIPOS TEXTUAIS
Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe e o norte de veja no antepenúltimo
Minas Gerais (...) parágrafo) expressam o • Narração: Apresenta os seguintes elementos: per-
estado de ânimo ou juízo sonagens, tempo (momento ou duração no qual os
Segundo Raul Fritz, da Fundação Cearense de de valor e acentuam o fatos se desenrolam), espaço (lugar onde a história
Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme), modo como se deseja acontece) e narrador (voz que conta os fatos ocorri-
“Não se via seca tão severa para um período retratar um determinado dos). Os textos têm, muitas vezes, um percurso que
consecutivo desde 1910”, quando dados sobre as personagem ou situação. parte de uma situação inicial de equilíbrio que é aba-
chuvas passaram a ser coletados. O Ceará é o lada por um problema. O desfecho só é alcançado
estado em pior situação. (...) FUNÇÃO REFERENCIAL depois que o conflito, intensificado até atingir um
Predomina em textos clímax, é resolvido.
Vários rios e açudes também secaram. Muitos que exigem neutralidade Alguns aspectos de um texto narrativo:
moradores, inclusive em grandes cidades, só têm e objetividade, como • Linguagem coloquial: confere mais vivacidade e
acesso à água fornecida por caminhões-pipa (...) textos jornalísticos, proximidade na interlocução com o leitor.
informativos e • Articulação: pronomes, verbos e conectivos são em-
Em Pernambuco, onde boa parte dos 185 municí- dissertativos. Nesta pregados para garantir o encadeamento das ações.
pios está em situação de emergência, a perda chega passagem, informa sobre • Locuções e modos verbais e marcadores tempo-
a R$ 1,5 bilhão só na pecuária. O rebanho bovino, os estragos provocados rais: garantem a sequência das ações e a unidade
formado por 2,5 milhões de cabeças em 2011, di- pela seca com base progressiva.
minuiu em 554 mil cabeças no ano passado. (...) em dados e valores
monetários. • Descrição: É usada para caracterizar ações, pensamen-
Na região rural de Acauã (PI), primeira cidade tos e traços físicos de seres e ambientes. Tem como
a ser beneficiada pelo programa Fome Zero junto DIMINUTIVO objetivo fazer com que o leitor visualize os elementos
com Guaribas, em 2003, Hortêncio Francisco Note que o uso do apresentados. É frequente o emprego de adjetivos.
Rodrigues, de 78 anos, conta que, até 2012, tinha diminutivo também
20 cabeças de gado, mas hoje tem quatro: “Pra- revela juízo de valor. • Dissertação: Tem o objetivo de defender uma tese
ticamente mandei colocar no caminhão e levar; Neste caso, indica (ponto de vista) sobre um determinado tema. Par-
vendi baratinho, pois ninguém queria”. (...) menosprezo à chuva tindo da apresentação do assunto, o autor procura
pequena ou fraca. convencer o leitor a aderir à ideia defendida (veja
Rodrigues ficou contente com a chuva de de- NARRAÇÃO, DESCRIÇÃO nas págs. 92 e 93).
zembro, mas ressalta que “ chuvinha pouca não E FUNÇÃO POÉTICA
conta”. Desde então, o sol voltou a ser “o mais O trecho selecionado Atenção: Não confunda gêneros e tipos de texto. Não
quente da vida”, como define ele. além de representar há uma lista completa e fechada de gêneros textuais,
ações indica também pois novos gêneros vão sendo criados de acordo com
De sorriso fácil, Rodrigues afirma que o valor descrições. O emprego as necessidades de comunicação. Exemplos de gêneros
recebido da aposentadoria é que tem ajudado a de termos em linguagem textuais: bilhete, notícia, poema, romance, receita etc.
manter parte das despesas da casa, principalmen- figurada (“secas mais
te com os remédios da esposa, Luzia, de 79 anos. duras” e “envelopado”) 79GE PORTUGUÊS 2018
Com seis filhos (dos quais dois já morreram), um indica o uso da função
número de netos que perdeu a conta e 31 bisnetos, poética da linguagem.
ele diz que parte da família deixou o sertão. Alguns DISCURSO DIRETO E
migraram para São Paulo, “à caça de emprego”. ARGUMENTAÇÃO
Apesar das secas constantes, umas mais duras, Narrativas não
outras menos, não pensa em ir embora. “Nasci dispensam opiniões,
aqui e só saio envelopado”, brinca. elementos típicos de
textos dissertativos.
O vizinho José Teixeira de Macedo, de 64 anos, Normalmente, isso
já viveu da plantação de algodão nos anos 80, mas aparece no discurso
perdeu tudo por causa da praga de bicudos. Parti- direto e indireto livre
cipou de frentes de trabalho na grande seca de 1983 ou na voz do narrador.
e agora cria ovinos e planta milho e feijão quando Nas falas dos moradores
chove. (...) Ele e um dos filhos cuidam da roça e das regiões, podemos
também não pensam em abandonar o sertão. Já perceber suas opiniões
a neta, Samara, de 16 anos, pretende mudar-se ou questionamentos a
para uma cidade maior e estudar Administração. respeito da situação em
“Não vou morar aqui; vejo o sofrimento dos avós que vivem.
e dos pais e não quero isso.” (...)
© TEREZA BETTINARDI
5 PRÉ-MODERNISMO PRÉ-MODERNISMO
Brasil redescoberto A discussão dos problemas nacionais parte, TEORIAS CIENTÍFICAS
no Pré-Modernismo, da falta de melhorias no cenário Ao descrever os grupos
No Pré-Modernismo (1902-1922), social e econômico após a Proclamação da República sociais brasileiros,
os autores lançam seu olhar para os (1889). No fim do século XIX, a Guerra de Canudos serve o autor ainda está
problemas do país e tentam revelar de matéria-prima para Euclides da Cunha escrever imbuído das teorias
sua verdadeira identidade Os Sertões, em 1902. científicas – darwinismo
e determinismo
T radicionalmente, denomina-se “pré- Os Sertões – do século XIX.
modernista” a literatura produzida no O MESTIÇO
Brasil nos primeiros anos do século XX. Euclides da Cunha Para exaltar o homem
À primeira vista, o olhar crítico sobre os proble- sertanejo, Euclides da
mas sociais do país funciona como eixo comum De sorte que o mestiço – traço de união entre as Cunha constrói uma
capaz de unir obras muito diversas. Alguns crí- raças, breve existência individual em que se com- argumentação que
ticos consideram que os autores desse período primem esforços seculares – é quase sempre um desvaloriza os demais
tenham sido precursores das inovações estéticas desequilibrado. (...) E o mestiço – mulato, mame- grupos miscigenados
apresentadas pelos escritores modernistas com luco ou cafuzo – menos que um intermediário, é que compõem a
a Semana de Arte Moderna de 1922. Outros, um decaído, sem a energia física dos ascendentes sociedade brasileira.
observando limitações nas obras do período selvagens, sem a altitude intelectual dos ances-
pré-modernista, preferem relacioná-las ao mo- trais superiores. PRESENTE HISTÓRICO
vimento realista/naturalista. (...) As qualidades do
O fator étnico preeminente transmitindo-lhes as ten- sertanejo são descritas
Um dos principais nomes do Pré-Modernismo dências civilizadoras não lhes impôs a civilização. no presente do indicativo,
brasileiro é o escritor e jornalista fluminense Este fato destaca fundamentalmente a mestiçagem o chamado presente
Euclides da Cunha. Sua obra-prima, Os Sertões, dos sertões da do litoral. São formações distintas, histórico, para dar a
é considerada o marco do movimento. O livro senão pelos elementos, pelas condições do meio. O ideia de permanência.
situa-se na fronteira entre história e literatura e contraste entre ambas ressalta ao paralelo mais Já para ressaltar a força
nasce de uma viagem feita pelo autor a Canudos, simples. O sertanejo tomando em larga escala, do do sertanejo foi usado o
como correspondente do jornal O Estado de S. selvagem, a intimidade com o meio físico, que ao pretérito perfeito na forma
Paulo. Outro autor igualmente importante é invés de deprimir enrija o seu organismo potente, negativa (não lhe impôs)
Lima Barreto (1881-1922). Dono de um estilo de reflete, na índole e nos costumes, das outras raças para descaracterizar o
escrever inovador, ele retrata em Triste Fim de formadoras apenas aqueles atributos mais ajus- papel da civilização.
Policarpo Quaresma (1915) o cotidiano da po- táveis à sua fase social incipiente.
pulação marginalizada dos subúrbios cariocas. É um retrógado; não é um degenerado. ASPECTOS FÍSICOS
(...) O discurso científico
O QUE ISSO TEM A VER COM A HISTÓRIA O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o faz uso frequente de
Sob liderança do pregador Antonio Conselheiro, raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos descrições objetivas.
milhares de pessoas juntaram-se no Arraial de do litoral. A sua aparência, entretanto, ao pri- Os aspectos físicos
Canudos, no sertão da Bahia, em 1896. Conselheiro meiro lance de vista revela o contrário. Falta-lhe que caracterizam os
convocava os fiéis a combater a República e fazia a plástica impecável, o desempeno, a estrutura sertanejos nordestinos
duras críticas à Igreja Católica, além de se recusar a corretíssima das organizações atléticas. É desgra- parecem se opor à ideia
pagar impostos. Em 1897, o povoado foi destruído por cioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, de força, defendida pelo
tropas federais, deixando milhares de mortos. Para reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O autor. Nesse sentido,
saber mais, veja o GUIA DO ESTUDANTE HISTÓRIA. andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante os aspectos físicos
e sinuoso, aparenta a translação de membros de- seriam antagonistas.
PARA IR ALÉM sarticulados. Agrava-o a postura normalmente ADJETIVOS
abatida, num manifestar de displicência que lhe Os adjetivos que
A principal obra de Euclides da Cunha foi adaptada dá um caráter de humildade deprimente. descrevem o sertanejo não
para uma versão em graphic novel da Editora são positivos. Ainda assim,
Desiderata. O texto é de Carlos Ferreira e as Lacerda, 2005 não se opõem à resistência
ilustrações, de Rodrigo Rosa. O trabalho é mais interior (a principal forma
centrado na terceira parte da obra original: A luta. FORÇA E FRAQUEZA de força) defendida pelo
Para recontar a história da Guerra de Canudos, Para estabelecer a relação paradoxal entre força e autor no decorrer do texto.
os autores recorreram ao diário pessoal de Euclides fraqueza, o autor evoca a imagem de dois personagens
da Cunha, entre outras fontes históricas. representativos da mitologia e da literatura: o herói
grego Hércules (forte e sublime) e o corcunda de Notre
Dame (fraco e grotesco).
80 GE PORTUGUÊS 2018
DIÁLOGO ENTRE TEXTOS DIÁLOGO ENTRE OBRAS
DOIS OLHARES SOBRE CANUDOS REQUERIMENTO EM FOCO, OS MARGINALIZADOS
Repare na estrutura
O conflito de Canudos ganhou espaço no jornal Os Sertões e Triste Fim de Policarpo Quaresma
O Estado de S. Paulo com visões bem díspares. O poeta rígida do texto de revelam a realidade do país: personagens margina-
parnasiano Olavo Bilac, emsua crônicaVossa Insolência, Quaresma, adequada ao lizados, os sertanejos e a população dos subúrbios
publicada em 9/10/1897, reproduz o discurso oficial do caráter oficial do gênero cariocas, respectivamente. Outro ponto de contato
governo brasileiro, para quem os seguidores do beato é a revisão da posição política de Policarpo, que
eram fanáticos religiosos dispostos a destruir a ordem requerimento. passa de ufanista a crítico do governo. Também
nacional instaurada pelo governo republicano. Para o HERANÇA ROMÂNTICA Euclides reexamina suas visões. Ele vai a Canudos a
poeta, a morte de Conselheiro e de todos os insurgentes A língua é considerada fim de registrar a insurgência monarquista e acaba
é o símbolo da integridade pública reconquistada. expressão do espírito do retratando a má sorte dos sertanejos, esquecidos
pelo governo republicano.
Euclides da Cunha, que cobriu o conflito como cor- povo, como faziam os
respondente do mesmo jornal, opõe-se a Bilac e chama românticos. A primeira PTorilisctaerFpiomQduearesma
atenção para o desequilíbrio injusto entre o poder de
fogo do governo e o dos seguidores de Antônio Con- fase do Modernismo Lima Barreto
selheiro. No final de Os Sertões, o autor compreende retoma essa discussão.
que a Guerra de Canudos não fora um conflito entre a IV – Desastrosas consequências de um re-
monarquia e a República, como as elites defendiam, NACIONALISMO querimento (trecho incial)
mas uma dolorosa, sangrenta e injusta guerra civil. O requerimento em favor
da adoção do tupi sintetiza “Policarpo Quaresma, cidadão brasileiro, fun-
Vossa Insolência cionário público, certo de que a língua portuguesa
a defesa ufanista dos é emprestada ao Brasil; (...); sabendo, além, que,
Olavo Bilac valores pátrios. Quaresma dentro do nosso país, os autores e os escritores (...)
defende a independência não se entendem no tocante à correção gramatical,
Enfim, arrasada a cidadela maldita! Enfim, (...) vem pedir que o Congresso Nacional decrete o
dominado o antro negro, cavado no centro do em relação a referências tupi-guarani como língua oficial e nacional do povo
adusto sertão, onde o Profeta das longas barbas estrangeiras e evita brasileiro.
sujas concentrava sua força diabólica, feita de fé
e de patifaria, alimentada pela superstição e pela produtos e costumes O suplicante, deixando de parte os argumen-
rapinagem! Cinco horas da madrugada, hoje. desvinculados das raízes tos históricos que militam em favor de sua ideia,
Num sobressalto, acordo, ouvindo um clamor de pede vênia para lembrar que a língua é a mais alta
clarins e um rufo acelerado de caixas de guerra. brasileiras. manifestação da inteligência de um povo, é a sua
Corro à janela, que defronta o palácio do gover- FUTURO criação mais viva e original; e, portanto, a eman-
no. Uma escura massa de gente, na escuridão da cipação política do país requer como complemen-
antemanhã, está agrupada na rua. Calam-se os Quaresma, num to e consequência a sua emancipação idiomática.
clarins e as caixas de guerra. Há um curto silên- convincente recurso
cio e, logo, dos instrumentos de metal, estropam, retórico, usa o futuro do Demais, Senhores Congressistas, o tupi-guarani,
e dos tambores que esfalfam rufando, como co- presente do indicativo, língua originalíssima, aglutinante, é a única capaz
rações atacados de hipercinesia, rompe, alto e que indica fato certo, a de traduzir as nossas belezas, de pôr-nos em relação
vibrante, o Hino Nacional. fim de persuadir seus com a nossa natureza e adaptar-se perfeitamente
aos nossos órgãos vocais e cerebrais (...).
Os Sertões interlocutores.
Seguro de que a sabedoria dos legisladores sabe-
Euclides da Cunha rá encontrar meios para realizar semelhante medi-
da e cônscio de que a Câmara e o Senado pesarão o
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda seu alcance e utilidade
a história, resistiu até ao esgotamento completo.
Expugnado palmo a palmo, na precisão integral P. e E. deferimento.”
do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caí-
ram os seus últimos defensores, que todos morre- Nobel, 2010
ram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens
feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam
raivosamente cinco mil soldados.
81GE PORTUGUÊS 2018
5 PRÉ-MODERNISMO PRÉ-MODERNISMO
Monteiro Lobato Negrinha MISCIGENAÇÃO
A personagem é nomeada
Monteiro Lobato (1882-1948) é geralmente Monteiro Lobato por conta da cor da pele,
conhecido como autor de livros infantojuvenis, e o narrador enfatiza
sobretudo aqueles que contam as aventuras dos Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Pre- a violência por trás do
moradores do Sítio do Pica-Pau Amarelo. No ta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos processo de miscigenação
entanto, o escritor também produziu obras para ruços e olhos assustados. étnica no Brasil, fruto das
o público adulto e, no período pré-modernista, interações entre brancos,
alguns de seus contos tornaram-se famosos por Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus negros e índios.
retratar temas relacionados com as camadas mais primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros ESCRAVIDÃO
pobres da sociedade. É o caso, por exemplo, da da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. A escravidão fora abolida
denúncia dos problemas de saúde de moradores Sempre escondida, que a patroa não gostava de em 1888, mas ecos desse
do interior, como o personagem Jeca Tatu. Outro crianças. sistema permanecem nas
retrato das desigualdades sociais pode ser veri- desigualdades sociais. O
ficado no conto Negrinha, publicado em 1920, Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona autor demonstra isso ao
em que fica explícita a condenação do racismo do mundo, amimada dos padres, com lugar certo retratar o preconceito em
e dos preconceitos ainda existentes no Brasil. na igreja e camarote de luxo reservado no céu. (...) relação a Negrinha.
Recentemente, Monteiro Lobato tem sido alvo Ótima, a dona Inácia. IRONIA
de polêmicas devido a alguns trechos de sua Mas não admitia choro de criança. (...) Um texto por vezes afirma
obra, em particular relativos à personagem Tia Assim cresceu Negrinha (...) Batiam-lhe sem- o contrário do que parece
Nastácia, do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Algumas pre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mes- dizer. Ao qualificar dona
colocações da personagem Emília têm sido con- mo ato, a mesma palavra provocava ora risadas, Inácia como “ótima”, após
sideradas racistas, e os textos do escritor passa- ora castigos. (...) descrever sua crueldade,
ram a ser criticados. Vale considerar o contexto Certo dezembro vieram passar as férias com o narrador denuncia as
em que o escritor viveu e produziu sua obra, Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas, hipocrisias sociais.
na primeira metade do século XX. Apesar de a lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas DESCRIÇÃO
escravidão ter sido abolida em 1888, permanece em ninho de plumas. (...) O autor usa diferentes
uma forte mentalidade escravocrata na sociedade. Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira adjetivos para contrastar
uma boneca e nem sequer sabia o nome desse a aparência física e o
IGUALDADE brinquedo. Mas compreendeu que era uma crian- comportamento das
Monteiro Lobato ça artificial. (...) personagens, chamando
Varia a pele, a condição, mas a alma da criança atenção para as diferentes
condena aqui a é a mesma – na princesinha e na mendiga. E para condições sociais.
discriminação racial e ambas é a boneca o supremo enlevo. (...) PARADOXO E IRONIA
afirma a igualdade das Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia Lobato, ao juntar o
crianças, espantadas da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão! substantivo “coisa” ao
diante do brinquedo, Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si adjetivo “humana”, cria
independentemente da e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor um paradoxo irônico.
de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente huma- Porém, o desfaz ao dar
cor da pele. no. Cessara de ser coisa – e doravante ser-lhe-ia a condição humana a
impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Negrinha.
PRETÉRITO MAIS- Se sentia! Se vibrava! CONJUNÇÃO ADITIVA
QUE-PERFEITO Assim foi – e essa consciência a matou. O conectivo “e” articula
Terminadas as férias, partiram as meninas le- ideias e informações
O dia em que Negrinha vando consigo a boneca, e a casa voltou ao ra- (veja o Saiba mais ao lado)
brincou com a boneca merrão habitual. Só não voltou a si Negrinha.
já está muito distante. Sentia-se outra, inteiramente transformada.
Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava
As formas verbais tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de co-
empregadas para indicar ração, amenizava-lhe a vida.(...)
Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Aca-
um tempo anterior aos lentara, dias seguidos, a linda boneca loura, tão
fatos narrados estão boa, tão quieta, a dizer “mamã”, a cerrar os olhos
para dormir. Vivera realizando sonhos da imagi-
no pretérito mais-que- nação. Desabrochara-se de alma.
perfeito.
Contos Completos. São Paulo: Biblioteca Azul, 2014.
82 GE PORTUGUÊS 2018
DIÁLOGO ENTRE OBRAS CONEXÕES
PRECONCEITO RACIAL ADJETIVAÇÃO PINTURA
NA LITERATURA BRASILEIRA O narrador-personagem
descreve a si próprio e A obra Palmatória, do francês Jean Baptiste Debret, que
Brás Cubas, narrador-personagem do romance Me- emprega adjetivos para esteve no Brasil entre 1816 e 1831, mostra escravos em
mórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis destacar suas próprias um ambiente de trabalho fora das senzalas. Observe que
(veja mais na pág. 66), ao relatar lembranças da infân- características quando era entre eles há um que está sendo disciplinado com base
cia, oferece um retrato cruel e irônico do tratamento criança. Os defeitos são em castigo físico, com o uso da palmatória. Era comum a
conferido aos negros escravizados no Brasil. No início vistos como qualidades, existência de relações hostis entre brancos, senhores de
do livro, Brás Cubas conta como, antes da abolição o que evidencia o caráter escravos, e negros, tanto no ambiente familiar, como na
da escravatura, ele maltratava os empregados de duvidoso de Brás Cubas. passagem de Memórias Póstumas de Brás Cubas, quanto
casa, incluindo um garoto negro chamado Prudêncio, DISCRIMINAÇÃO no profissional, conforme retrata a pintura.
tratado como cavalinho pelo pequeno patrão. Mais Brás Cubas reproduz a
adiante, no romance, Prudêncio, já adulto, reproduz as hierarquia entre senhor SAIBA MAIS
relações hierárquicas injustas entre senhor e escravo e escravo ao submeter
ao castigar fisicamente um homem negro. Prudêncio aos seus ORAÇÕES COORDENADAS
caprichos. Negrinha
Memórias Póstumas também é explorada Algumas orações, apesar de independentes sintatica-
de Brás Cubas pelos desmandos dos mente, apresentam relações de sentido, evidenciadas
senhores brancos. pelas conjunções que as articulam. Trata-se das orações
Machado de Assis ASPAS coordenadas, classificadas em cinco tipos:
São usadas para marcar
Capítulo XI – O menino é pai do homem a diferença entre a voz Aditivas: Adicionam ideias e informações. Ex.: A criança
Cresci; e nisso é que a família não interveio; do narrador e a fala das nascera na senzala e fora criada pela dona da casa.
cresci naturalmente, como crescem as magnólias personagens. Prudêncio Adversativas: Estabelecem oposição entre ideias e
e os gatos. Talvez os gatos são menos matreiros, é retratado como alguém informações. Ex.: Dona Inácia aparentava bondade,
e, com certeza, as magnólias são menos inquietas que não tem direito de mas não admitia choro de criança.
do que eu era na minha infância. Um poeta dizia expressão; já a fala de Alternativas: Apresentam alternância de ideias e infor-
que o menino é pai do homem. Se isso é verdade, Brás Cubas revela a tirania mações. Ex.: A mesma palavra ora provocava risadas,
vejamos alguns lineamentos do menino. do protagonista. ora provocava castigos.
Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de Explicativas: Apresentam uma explicação para um
“menino-diabo”; e verdadeiramente não era ou- fato. Ex.: A menina se escondia porque a patroa não
tra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, gostava de crianças.
arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por Conclusivas: Explicitam a conclusão de um raciocí-
exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma es- nio. Ex.: Dona Inácia era preconceituosa, portanto não
crava, porque me negara uma colher de doce de gostava da menina.
coco que estava fazendo, e, não contente com o
malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho,
e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha
mãe que a escrava é que estragara o doce “por
pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio,
um moleque de casa, era o meu cavalo de todos
os dias; punha as mãos no chão, recebia um cor-
del nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe
ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o,
dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia
– algumas vezes gemendo –, mas obedecia sem
dizer palavra, ou, quando muito, um “ai, nho-
nhô!”, ao que eu retorquia: “Cala a boca, besta!”
Editora Moderna, 2012.
DEBRET/REPRODUÇÃO 83GE PORTUGUÊS 2018
5 PRÉ-MODERNISMO PARNASIANISMO
A arte pela arte Os poemas abaixo têm características marcantes “SE” COMO REALCE
do Parnasianismo, como a objetividade, questões O uso de “vai-se...”, além
Os poetas do Parnasianismo estéticas e o uso de vocabulário rebuscado. de permitir a obtenção
(1882-1922) comparam seus poemas a do verso decassílabo
joias e trabalham minuciosamente as As Pombas (12 sílabas) e evitar a
palavras e as frases para atingir o belo cacofonia (“vai a ...”), tem
e a forma perfeita Raimundo Correia a função apenas de um
reforço de expressão.
N o Brasil, a poesia parnasiana (durante Vai-se a primeira pomba despertada ... VERBOS
um período contemporânea do Pré-Mo- Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas Note a refinada construção
dernismo) representou uma oposição à De pombas vão-se dos pombais, apenas sintática: o sujeito “elas”
sentimentalidade romântica. A racionalidade e Raia sanguínea e fresca a madrugada ... (relativo às pombas) liga-
o tratamento objetivo dos temas tinham bases se aos verbos seguintes
clássicas e buscavam alcançar a perfeição for- E à tarde, quando a rígida nortada (tanto os que estão no
mal. O ideal estético é a principal questão para Sopra, aos pombais de novo elas, serenas, gerúndio, indicando
os parnasianos: os autores não demonstram Ruflando as asas, sacudindo as penas, ação em curso, quanto o
preocupação com os problemas sociais e valo- Voltam todas em bando e em revoada... que está no presente do
rizam o princípio da “arte pela arte” (segundo indicativo, sugerindo uma
o qual a poesia é válida pela beleza expressa). Também dos corações onde abotoam, ação habitual).
O soneto e a métrica regular são privilegiados. Os sonhos, um por um, céleres voam, COMPARAÇÃO
São frequentes as alusões a temas mitológicos Como voam as pombas dos pombais; O poema estabelece uma
clássicos e a informações eruditas. A linguagem comparação entre o voo
rebuscada e a adoção de um vocabulário pouco No azul da adolescência as asas soltam, das pombas e o percurso
usual exigem a atenção do leitor. Olavo Bilac é Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam, dos sonhos humanos.
o maior nome do Parnasianismo no Brasil (veja E eles aos corações não voltam mais... DIFERENÇA
mais sobre o autor na pág. 23). Forma a “tríade Uma diferença é
parnasiana” ao lado de Alberto de Oliveira e Melhores Poemas, Global Editora, 2001 estabelecida: enquanto as
Raimundo Correia. MARCADOR TEMPORAL pombas retornam à tarde
O trecho remete à manhã (quando as pombas partem) aos pombais, os sonhos
e se refere aos sonhos da juventude. juvenis não são retomados
e, geralmente, não voltam
aos corações humanos.
METALINGUAGEM Vaso Chinês PERFEIÇÃO FORMAL
A metalinguagem é um O eu lírico descreve o
Alberto de Oliveira momento de contemplação
recurso frequente em de um refinado vaso chinês.
poesias que falam de Estranho mimo aquele vaso! Vi-o, A perfeição das peças
procedimentos artísticos. Casualmente, uma vez, de um perfumado decorativas inspira
No Parnasianismo, é Contador sobre o mármore luzidio, a perfeição formal
comum uma obra de Entre um leque e o começo de um bordado. que se procura alcançar
arte tratar de outra e dos nos poemas.
mecanismos do fazer Fino artista chinês, enamorado,
poético. Aqui, o eu lírico Nele pusera o coração doentio PRETÉRITO
Em rubras flores de um sutil lavrado, MAIS-QUE-PERFEITO
exalta o detalhismo Na tinta ardente, de um calor sombrio. O poeta diz que viu
perfeccionista do (pretérito perfeito) o vaso,
inspirado artesão. Mas, talvez por contraste à desventura, no qual o artista antes já
DESCRIÇÃO DE Quem o sabe?... de um velho mandarim tinha colocado o “coração
DETALHES Também lá estava a singular figura. doentio”. “Pusera” é
uma ação anterior a “vi”,
O poema realiza um Que arte em pintá-la! A gente acaso vendo-a, portanto, pretérito mais-
procedimento de análise Sentia um não sei quê com aquele chim que-perfeito.
De olhos cortados à feição de amêndoa.
da obra de arte: para SENSIBILIDADE
compreender o todo Melhores Poemas, Global Editora, 2007 O eu lírico mostra como o
(no caso, a obra de arte artista chinês conseguiu
chinesa), o autor se estimular a sensibilidade
concentra na observação do espectador da obra
dos detalhes constitutivos de arte.
das partes do objeto.
84 GE PORTUGUÊS 2018
CONEXÕES DIÁLOGO ENTRE OBRAS
ESCULTURA SÁTIRA À FORMA
O poema Os Sapos, de Manuel Bandeira, foi lido
por Ronald de Carvalho na noite de 14 de fevereiro,
no segundo dia da Semana de Arte Moderna, no
Teatro Municipal de São Paulo. Trata-se de uma
feroz sátira aos versos formais e retrógrados das
estéticas literárias atreladas ao passado – entre elas
o parnasianismo.
O século XVI testemunhou inúmeras modificações SUPERIORIDADE Os Sapos
no modo de ver o mundo. O teocentrismo medieval A referência ao suposto
cedeu lugar à visão antropocêntrica, e o ser humano Manuel Bandeira
passou a ser valorizado. A perfeição formal, buscada ar de superioridade
pelos poetas da estética clássica – tanto no Classicismo parnasiano aparece Enfunando os papos,
quanto no Parnasianismo –, constituía também o ideal Saem da penumbra,
dos demais artistas do Renascimento. Michelangelo, como escárnio. Aos pulos, os sapos.
um dos grandes mestres renascentistas, introduz TRADIÇÃO A luz os deslumbra.
profundas mudanças artísticas ao valorizar a figura
humana. Uma de suas principais obras, Davi, é uma A alusão aos títulos de Em ronco que aterra,
gigantesca escultura que retrata o herói bíblico antes nobreza e ao parentesco Berra o sapo-boi:
da batalha com Golias. Essa luta, da qual Davi saiu – “Meu pai foi à guerra!”
vitorioso, era considerada impossível de ser vencida é uma crítica ao – “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”.
– a escultura, exaltando a força do herói, revela a tradicionalismo das
confiança depositada nos poderes humanos.
estéticas literárias
SAIBA MAIS do passado.
PRINCIPAIS FUNÇÕES DO “SE” O sapo-tanoeiro, FORMALISMO
Parnasiano aguado, A crítica ao formalismo
A palavra “se” desempenha diversas funções em português: Diz: – “Meu cancioneiro parnasiano é reforçada
• Pronome reflexivo: Indica que o sujeito pratica a É bem martelado. ao classificá-lo como
“aguado”, sujeito
ação sobre si mesmo: A pomba se machucou. Vede como primo desagradável e chato.
• Conjunção subordinativa condicional: Para cons- Em comer os hiatos! BUSCA DA PERFEIÇÃO
Que arte! E nunca rimo Nova provocação é feita
truir orações subordinadas adverbiais condicionais: Os termos cognatos. ao ridicularizar o gosto
Se as pombas voarem, poderão partir dos pombais. parnasiano pelo
• Conjunção subordinativa integrante: Introduz O meu verso é bom poema perfeito.
orações subordinadas substantivas: Preciso ver se Frumento sem joio.
as pombas voaram. Faço rimas com
• Construção de sujeito indeterminado: Precisa-se Consoantes de apoio.
de um novo pombal.
• Construção de voz passiva: Compôs-se um novo (...)
poema parnasiano (= Um novo poema parnasiano Clame a saparia
foi composto). Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
MICHELANGELO/ACADEMIA DE BELAS ARTES DE FLORENÇA Mas há artes poéticas...”
SONORIDADE Urra o sapo-boi:
A sonoridade para imitar – “Meu pai foi rei!”– “Foi!”
– “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”.
o coaxar dos sapos é (...)
puro deboche. O eu lírico
Carnaval. Poesia Completa e Prosa.
compara a classe dos Rio de Janeiro: Aguilar, 1974, p.158 (fragmento).
poetas aos sapos.
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5 PRÉ-MODERNISMO SIMBOLISMO
A exploração A liberação sensorial e a exploração das emoções são
dos sentidos duas características marcantes da literatura simbolista.
Repare nos poemas abaixo a preponderância de
emoções e sentimentos intensos sobre a racionalidade.
No Simbolismo (1893-1922), A dança da psique ALITERAÇÃO
a produção poética evoca sentimentos Repare na aliteração
e sensações por meio da sugestão Augusto dos Anjos (repetição de
consoantes). Os sons
Aestética simbolista (durante um período A dança dos encéfalos acesos sibilantes (representados
contemporânea do Pré-Modernismo) se Começa. A carne é fogo. A alma arde. A espaços pelos fonemas /s/ e /z/),
opõe aos avanços da industrialização e As cabeças, as mãos, os pés e os braços sugerem um movimento
do progresso tecnológico próprios do século Tombam, cedendo à ação de ignotos pesos! sutil e sinuoso.
XIX. É comum que os textos simbolistas mani-
festem uma visão decadente sobre a realidade, É então que a vaga dos instintos presos INTENCIONALIDADE
bem como uma oposição ao comportamento – Mãe de esterilidades e cansaços – A intenção do texto é
racional. O Simbolismo valoriza os sentidos, Atira os pensamentos mais devassos descrever um instante
as sugestões evocadas pelas palavras, a musi- Contra os ossos cranianos indefesos. específico durante
calidade e o ritmo dos poemas. O misticismo, o qual o eu lírico
a subjetividade e a sinestesia (combinação de Subitamente a cerebral coreia experimenta várias
sensações) são aspectos altamente explorados Para. O cosmos sintético da Ideia sensações intensas.
pelos poetas do movimento. Surge. Emoções extraordinárias sinto... CONSTRUÇÕES ATÍPICAS
O autor usa um
João da Cruz e Sousa (1861-1898), autor de Bro- Arranco do meu crânio as nebulosas. vocabulário inusitado e
quéis e Missal (1893), é um dos principais nomes E acho um feixe de forças prodigiosas construções sintáticas
do período (veja mais na pág. 125). Na produ- Sustentando dois monstros: a alma e o instinto! não convencionais para
ção poética também destacam-se Alphonsus de expressar emoções.
Guimaraens (1870-1921), que escreveu Câmara Obra Completa, Nova Aguilar, 1994 Note o emprego da
Ardente (1899), e Augusto dos Anjos (1884-1914). ordem inversa: o
Este último foi um poeta inclassificável. Sua IRRACIONALIDADE objeto “emoções
poesia flertou com as estéticas diversas de seu As impressões do sujeito poético são valorizadas. A alma e extraordinárias” precede
tempo – há em seus poemas influências parna- o instinto, elementos não racionais, predominam sobre o verbo “sinto”, em uma
sianas (na forma), naturalistas (na linguagem a razão, ao final do poema. construção com sujeito
e na ambientação), simbolistas (na temática) e oculto (“eu”).
pré-modernas (na ousadia linguística).
PRONOME REFLEXIVO Ismália SONHOS
A palavra “se” explicita As questões oníricas
uma ação reflexiva, ou Alphonsus de Guimaraens (relativas ao sonho) são
seja, a ação verbal recai privilegiadas, em detrimento
Quando Ismália da razão e da objetividade.
sobre o sujeito. enlouqueceu,
ANTÍTESES Pôs-se na torre a sonhar... PAPEL DA LUA
Viu uma lua no céu, A lua é um símbolo
O uso das antíteses Viu outra lua no mar. frequentemente associado
“queria subir” e “queria ao universo feminino. A
No sonho em que se perdeu, loucura de Ismália subverte
descer” assinala a Banhou-se toda em luar... a percepção da realidade e
inconstância dos desejos Queria subir ao céu, ela imagina ver dois astros
de Ismália e a inquietação Queria descer ao mar... distintos (e não apenas o
reflexo da lua no mar).
que a arrebata ao E, no desvario seu,
contemplar a lua. Na torre pôs-se a cantar... ADVÉRBIO DE LUGAR
MUSICALIDADE Estava perto do céu, Os advérbios de lugar
A torre simboliza a Estava longe do mar... (...) “perto” e “longe”
concentração do sujeito revelam a ambiguidade
na própria interioridade. Cosac Naify, 2006 do estado em que
A musicalidade, traço do Ismália se encontrava.
período, está presente no Os extremos do céu e do
canto de Ismália. mar reforçam a antítese
e acentuam a agitação
interior da personagem.
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CONEXÕES PINTURA
CANÇÃO
Bandalhismo ESCATOLOGIA [1]
Expressões que escapam
João Bosco e Aldir Blanc ao ambiente lírico O Simbolismo tratou das diversas sensações
(escarro, vomitei) experimentadas pelo ser humano. Em grau extremo,
Meu coração tem butiquins imundos, surgem em abundância as emoções de Ismália, personagem de Alphonsus de
Antros de ronda, vinte e um, purrinha, e conferem à canção Guimaraens, conduzem ao suicídio. No poema, a união
Onde trêmulas mãos de vagabundo atmosfera decrépita. da figura feminina com as águas do mar simboliza o
Batucam samba-enredo na caixinha. HUMOR CORROSIVO reencontro do sujeito com a natureza. A integração
A imagem construída do ser humano com a realidade objetiva, com base na
Perdigoto, cascata, tosse, escarro, com “quebrei o vídeo exaltação dos sentimentos, foi abordada por inúmeros
um choro soluçante que não para, da televisão” aponta artistas plásticos do século XIX. Na tela acima, o pintor
piada suja, bofetão na cara para a sátira ao apego inglês John Everett Millais retrata a morte de Ofélia para
e essa vontade de soltar um barro... ao mundo onírico ou exprimir essa integração. O suicídio da personagem de
distante da realidade. Hamlet, de William Shakespeare, serviu de inspiração
Como os pobres otários da Central para a articulação entre realidade subjetiva e realidade
já vomitei sem lenço e sonrisal objetiva. Ao decompor-se, o cadáver de Ofélia entra
o P.F. de rabada com agrião... novamente em harmonia com o mundo natural e
restaura a unidade entre sujeito e mundo.
Mais amarelo do que arroz de forno,
voltei pro lar, e em plena dor de corno
quebrei o vídeo da televisão.
A parceria de João Bosco com Aldir Blanc rendeu
inúmeros clássicos à música popular brasileira.
A canção Bandalhismo é um exemplo do vigor
da dupla. A intertextualidade com o decadentismo
(visão decadente sobre a realidade) e com a poética de
Augusto dos Anjos se dá nos planos formal (emprego
do soneto), temático (exploração da melancolia) e
linguístico (uso de expressões que fogem do lirismo).
O poeta pré-moderno não costumava ousar na forma,
mantendo o padrão clássico vigente no fim do século
XIX, mas inovou com versos repletos de termos
escatológicos e de atmosfera sombria.
[1] JOHN EVERETT MILLAIS/TATE [2] © TEREZA BETTINARDI [2]
87GE PORTUGUÊS 2018
5 COMO CAI NA PROVA
1. (UNIFESP 2015) teiro Lobato no conto Negrinha. Ele classifica dona Inácia como ex-
É preciso ler esse livro singular sem a obsessão de enquadrá-lo em um celente senhora, por exemplo, ironizando justamente seu caráter ra-
determinado gênero literário, o que implicaria em prejuízo paralisante. cista e sua maldade, que são apresentados ao longo da história. Em
Ao contrário, a abertura a mais de uma perspectiva é o modo próprio de outra passagem, após descrever as atrocidades que a patroa faz com
enfrentá-lo. A descrição minuciosa da terra, do homem e da luta situa-o Negrinha, ele a caracteriza como virtuosa dama.
no nível da cultura científica e histórica. Seu autor fez geografia humana Resposta: C
e sociologia como um espírito atilado poderia fazê-las no começo do sé-
culo, em nosso meio intelectual, então avesso à observação demorada e 3. (ENEM 2014)
à pesquisa pura. Situando a obra na evolução do pensamento brasileiro,
diz lucidamente o crítico Antonio Candido: “Livro posto entre a literatura e Tarefa
a sociologia naturalista, esta obra assinala um fim e um começo: o fim do Morder o fruto amargo e não cuspir
imperialismo literário, o começo da análise científica aplicada aos aspec- Mas avisar aos outros quanto é amargo
tos mais importantes da sociedade brasileira (no caso, as contradições Cumprir o trato injusto e não falhar
contidas na diferença de cultura entre as regiões litorâneas e o interior).” Mas avisar aos outros quanto é injusto
Sofrer o esquema falso e não ceder
Alfredo Bosi. História Concisa da Literatura Brasileira, 1994. Adaptado. Mas avisar aos outros quanto é falso
Dizer também que são coisas mutáveis...
O excerto trata da obra E quando em muitos a não pulsar
a) Capitães da Areia, de Jorge Amado. – do amargo e injusto e falso por mudar –
b) O Cortiço, de Aluísio de Azevedo. então confiar à gente exausta o plano
c) Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. de um mundo novo e muito mais humano.
d) Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
e) Os Sertões, de Euclides da Cunha. CAMPOS, G. Tarefa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.
RESOLUÇÃO Na organização do poema, os empregos da conjunção “mas” arti-
O clássico livro brasileiro com sua divisão tripartite entre a terra, o culam, para além de sua função sintática,
homem e a luta, e que trouxe registros jornalísticos minuciosos pa- a) a ligação entre verbos semanticamente semelhantes.
ra o jornal O Estado de S. Paulo é o célebre Os Sertões, de Euclides da b) a oposição entre ações aparentemente inconciliáveis.
Cunha. Justamente por ser uma obra de não ficção, baseada em uma c) a introdução do argumento mais forte de uma sequência.
investigação jornalística, o livro apresenta caráter sociológico, que, d) o reforço da causa apresentada no enunciado introdutório.
mesclado a uma obra literária, gerou esse texto singular e incapaz de e) a intensidade dos problemas sociais presentes no mundo.
ser classificado em um gênero. Por fim, Euclides se valeu do pensa-
mento científico para analisar Canudos, o sertão e o sertanejo. Ainda RESOLUÇÃO
que haja presença de textos jornalísticos em Capitães da Areia, não é A alternativa C é a correta, pois a conjunção “mas”, neste caso, intro-
possível afirmar que ocorra mistura de gêneros. Os demais livros não duz o argumento mais forte na sequencia de três proposições. Quan-
apresentam essa possibilidade. to às alternativas incorretas: a) a função da conjunção “mas” no tex-
Resposta: E to é adversativa, sendo assim ela não liga ideias semelhantes; b) por
ser adversativa, ela faz a ligação entre ideias contrárias, mas que não
2. (UNICAMP 2016) são, necessariamente, inconciliáveis. Assim, as duas primeiras alterna-
tivas implicam a aceitação da situação negativa, enquanto a terceira
Quanto ao conto Negrinha, de Monteiro Lobato, é correto afirmar que: propõe uma ação contrária ao que aceitou. A alternativa D está incor-
a) O narrador adere à perspectiva de dona Inácia, fazendo com que reta, pois não há enunciado introdutório no poema. E, por fim, o erro
da alternativa E está no fato da conjunção não exprimir intensidade.
o leitor enxergue a história guiado pela ótica dessa personagem e Resposta: C
se torne cúmplice dos valores éticos apresentados no conto.
b) O modo como o narrador caracteriza o contexto histórico no 4. (UERJ 2016)
conto permite concluir que Negrinha é escrava de dona Inácia e,
portanto, está fadada a uma vida de humilhações. A EDUCAÇÃO PELA SEDA
c) A maneira como o narrador comenta as características atribuídas Vestidos muito justos são vulgares. Revelar formas é vulgar. Toda re-
às personagens contrasta com as falas e as ações realizadas por
elas, o que caracteriza um modo irônico de apresentação. velação é de uma vulgaridade abominável.
d) O narrador apresenta as falas e pensamentos das personagens Os conceitos a vestiram como uma segunda pele, e pode-se adivi-
de modo objetivo; assim, o leitor fica dispensado de elaborar um
juízo crítico sobre as relações de poder entre as personagens. nhar a norma que lhe rege a vida ao primeiro olhar.
Rosa Amanda Strausz. Mínimo Múltiplo Comum: Contos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.
RESOLUÇÃO O conto contrasta dois tipos de texto em sua estrutura. Enquanto
A ironia é a figura de linguagem que consiste em dizer o contrário do o segundo parágrafo se configura como narrativo, o primeiro pa-
rágrafo se aproxima da seguinte tipologia:
que se quer dar a entender. Esse recurso é muito utilizado por Mon-
88 GE PORTUGUÊS 2018
RESUMO
a) injuntivo Literatura do Pré-Modernismo
b) descritivo
c) dramático PRÉ-MODERNISMO (1902-1922) Situa-se em um momento
d) argumentativo histórico de transição do regime monárquico ao republicano.
Muitas obras debatem os problemas do país e alimentam um
RESOLUÇÃO sentimento nacionalista. Destacam-se personagens e situações
Enquanto o modo narrativo se estrutura na enunciação de fatos (tra- afastadas da realidade das classes sociais economicamente
zendo personagem, ações e temporalidade típicos das histórias), o privilegiadas, como Os Sertões (1902), marco do movimento,
modo argumentativo se pauta no encadeamento de ideias. Na primei- de Euclides da Cunha, e Triste Fim de Policarpo Quaresma
ra parte do texto, a autora dispõe essas ideias de forma a construir um (1915), de Lima Barreto.
argumento final, o de que toda revelação é vulgar.
Resposta: D • Monteiro Lobato Mais conhecido por seus livros dirigidos a
crianças e jovens, o autor também escreveu para o público
5. (ENEM 2015) adulto. Alguns de seus contos pré-modernistas retratam
temas relacionados às camadas mais pobres da sociedade.
Carta ao Tom 74
Rua Nascimento Silva, cento e sete PARNASIANISMO (1882-1922) Os poetas parnasianos traba-
Você ensinando pra Elizete lham o verso e o poema em busca da perfeição estética. Para
As canções de canção do amor demais atingir a harmonia das formas, usam construções gramaticais
Lembra que tempo feliz sofisticadas e herméticas e vocabulário rebuscado. Objetos
Ah, que saudade, raros e preciosos, como vasos, estátuas e joias, compõem a
Ipanema era só felicidade temática. Olavo Bilac é considerado o maior poeta parnasiano
Era como se o amor doesse em paz do Brasil. Ao lado de Alberto de Oliveira e Raimundo Correia,
Nossa famosa garota nem sabia formam a “tríade parnasiana”.
A que ponto a cidade turvaria
Esse Rio de amor que se perdeu SIMBOLISMO (1893-1922) Ao escolherem um vocabulário com
Mesmo a tristeza da gente era mais bela múltiplas possibilidades semânticas, os poetas simbolistas
E além disso se via da janela buscam a transcendência. As construções poéticas conferem
Um cantinho de céu e o Redentor ritmo e musicalidade e evocam sentimentos e emoções por
É, meu amigo, só resta uma certeza, meio da sugestão. Destacam-se Cruz e Sousa e Alphonsus de
É preciso acabar com essa tristeza Guimaraens.
É preciso inventar de novo o amor
GRAMÁTICA E INTERPRETAÇÃO
MORAES, V.; TOQUINHO. Bossa Nova, Sua História, Sua Gente. São Paulo: Universal; Philips,1975 (fragmento). • Tipos de texto Os principais tipos textuais são:
Narração Presente em diversos gêneros literários, apresenta os
O trecho da canção de Toquinho e Vinícius de Moraes apresenta seguintes elementos: personagens, tempo, espaço e narrador.
marcas do gênero textual carta, possibilitando que o eu poético Descrição É usada para caracterizar ações, pensamentos e
e o interlocutor traços físicos de seres e ambientes presentes nos textos – fa-
a) compartilhem uma visão realista sobre o amor em sintonia com o zendo com que o leitor visualize os elementos apresentados.
Dissertação Tem o objetivo de defender uma tese (ponto de
meio urbano. vista) sobre certo tema. Partindo da apresentação do assunto,
b) troquem notícias em tom nostálgico sobre as mudanças o autor procura convencer o leitor a aderir à ideia defendida.
ocorridas na cidade. • Orações coordenadas Podem ser assindéticas (aquelas que
c) façam confidências, uma vez que não se encontram mais no Rio não possuem conectivos, sendo ligadas por vírgulas) ou sin-
déticas (que possuem uma conjunção coordenativa fazendo
de Janeiro. a ligação entre elas). As conjuções coordenativas estabelecem
d) tratem pragmaticamente sobre os destinos do amor e da vida relações de adição (e), oposição (mas), explicação (porque),
conclusão (portanto) e alternância (ou).
citadina.
e) aceitem as transformações ocorridas em pontos turísticos • Funções do “se” A palavra “se” pode desempenhar diversas
funções nas frases, como pronome reflexivo (vestiu-se); con-
específicos. junção subordinativa condicional (Se ela for embora, eu vou
também); índice de indeterminação do sujeito (Precisa-se de
RESOLUÇÃO ajudante); e partícula apassivadora (Fez-se uma grande festa).
Na letra da canção, os autores recordam tempos passados e expres-
sam a saudade dos momentos em que viviam num Rio diferente e pra- 89GE PORTUGUÊS 2018
zeroso. Em tom nostálgico, sugerem a Tom Jobim que a única coisa
que resta a fazer é acabar com a tristeza e reinventar o amor.
Resposta: B
6 LITERATURA DO MODERNISMO – PROSA
CONTEÚDO DESTE CAPÍTULO
Interpretando: argumentação e persuasão............................................92
Modernismo 1ª fase.........................................................................................94
Modernismo 2ª fase.......................................................................................100
Modernismo 3ª fase.......................................................................................104
Como cai na prova + Resumo.....................................................................112
100 anos de arte
moderna no Brasil
Exposição em homenagem à pintora Anita Malfaltti
comemora o centenário da primeira mostra da artista,
considerada o estopim do Modernismo no país
O Museu de Arte Moderna de São Paulo O escritor qualificou o trabalho da artista como
(MAM) promoveu, entre fevereiro e
abril de 2017, uma grande exposição em “arte degenerada” em seu famoso artigo Pa-
homenagem à pintora Anita Malfatti (1889-1964),
uma das mais importantes artistas brasileiras do ranoia ou mistificação? (veja mais na pág. 95).
século 20. Intitulada Anita Malfatti: 100 anos de
Arte Moderna, a exibição comemorou o centená- A mostra comemorativa no MAM resgatou
rio de uma polêmica exposição individual feita
pela artista em 1917, que é considerada a primeira esse importante momento da história da arte
mostra modernista realizada no país e o evento
precursor da Semana de Arte Moderna de 1922. brasileira. Dividida em três partes, ela debru-
O impacto da Exposição de Pintura Moderna çou-se sobre a trajetória da artista, desde os
realizada por Malfatti há um século na capital
paulista foi provocado pelo aspecto expressionista primeiros anos no exterior, que deram forma
das 53 obras expostas, uma novidade para os pa-
drões da arte brasileira daquele período. A pintora ao Modernismo brasileiro, até chegar aos tra-
havia estudado na Alemanha e nos Estados Unidos
e incorporara em seu trabalho traços básicos da balhos realizados nos anos 1930 e 1940, focado
arte moderna, como a liberdade de composição,
a pincelada livre, os tons fortes usados de forma em temas populares e nos retratos de amigos,
não convencional e a iluminação que fugia da
dicotomia do claro-escuro tradicional. familiares e pessoas da elite.
Na ocasião, a mostra foi recebida com es- Anita Malfatti contribuiu imensamente para que
panto e curiosidade. Nomes que mais tarde se
consagrariam como expoentes do Modernismo as vanguardas europeias se instalassem no Brasil e
– entre eles o artista plástico Di Cavalcanti – a
elogiaram. Por outro lado, recebeu críticas im- fossem digeridas num processo antropofágico bem
piedosas, como as feitas por Monteiro Lobato.
ao estilo dos artistas modernistas – a antropofagia
seria a deglutição dos elementos culturais estran-
geiros de modo que fossem recriados para dar
origem a manifestações
tipicamente brasileiras.
O cotidiano recriado CONTEMPLAÇÃO
como arte foi o mote Visitante observa obras
de sua pintura e tam- de Anita Malfatti em
bém da literatura dos exposição no Museu de
autores modernistas Arte Moderna (MAM) de
da primeira fase, como São Paulo, em março de
Oswald de Andrade e 2017. Artista foi uma das
Mário de Andrade. pioneiras do Modernismo
90 GE PORTUGUÊS 2018
RICHARD CALLIS/FOTOARENA 91GE PORTUGUÊS 2018
6 MODERNISMO – PROSA INTERPRETANDO
Argumentação eficaz
Todo texto Uma das propostas da literatura modernista 2 de abril de 2017. Nele, o colunista também trata
opinativo era buscar redefinir a identidade brasilei- de um símbolo nacional – o futebol – e defende
apresenta ra por meio de manifestos que defendiam que a mudança significativa no desempenho da
estratégias para símbolos nacionais e populares (veja Manifesto seleção brasileira e o resgate de nossa confiança
convencer o da Poesia Pau-Brasil e Manifesto Antropófago no esporte se devem à relação que o técnico Tite
leitor a aderir nas págs. 98 e 99). Manifestos são textos argu- estabeleceu com os jogadores e a torcida.
a determinado mentativos, que têm o objetivo de persuadir
ponto de vista o leitor a favor de determinado ponto de vista. Apesar de este artigo não constituir um exemplo
de texto dissertativo com divisão rígida entre tese,
Outros exemplos desse tipo de texto são os argumentação e conclusão, percebemos a presença
artigos de opinião, como este do cineasta Ugo Gior- de todos esses elementos na exposição das ideias
getti, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em do autor e na progressão textual e persuasiva.
OPINIÃO Tite e a diferença INTRODUÇÃO E
Antes de apresentar EXPLICAÇÃO
sua tese, o colunista Confiança vem do sentimento que se difunde Apresenta as questões
entre os jogadores de que esse é “o cara” centrais, que serão
assegura que não desenvolvidas ao longo
vê absolutamente Ugo Giorgetti do texto: os métodos já
nada de novo ou de conhecidos do treinador
inovador no trabalho do Procuro ver o que há de novo na seleção e sua vantagem em
técnico que justifique brasileira de Tite e não consigo ver nada. relação aos demais
sua popularidade e Sou informado que Tite gosta e aplica o 4-1-4-1, técnicos (a relação
informação que agradeço quase comovido. Para pessoal que estabelece
desempenho. mim é o mesmo método e a mesma tática do com os jogadores).
ENUMERAÇÃO velho Tite do Corinthians e de sempre. É assim
A enumeração das que reconheço a seleção. Muita troca de passes, ARTIGO E
técnicas que Tite compactação defensiva, aproveitamento do INTENSIFICAÇÃO
desenvolve em seu atleta no lugar perfeito para suas caracte- O artigo definido não
trabalho com a equipe rísticas e, sobretudo, confiança mútua entre funciona apenas como
contribui para mostrar elenco e técnico. um agente especificador
ao leitor que os aspectos do substantivo. Ele pode
técnicos são tão Talvez devesse dar mais destaque para a con- desempenhar também
importantes quanto fiança. Sou tentado até a dar todo o destaque para papel intensificador,
os interpessoais (entre essa relação pessoal de Tite e seus comandados. como o grau aumentativo
técnico e jogadores). dos adjetivos. Repare
CONTRA-ARGUMENTO Não confundir com união. União é uma coisa que o artigo “o” torna
Aqui o colunista trabalha que vem de fora, algo combinado. Pode se con- o substantivo “cara” o
a oposição entre as seguir unir a despeito das desconfianças, num maior de todos.
noções de união e de momento de particular necessidade, por exemplo. ARGUMENTO E COESÃO
confiança. Mostra que Mas geralmente não dá certo. O pronome
o técnico não trabalha demonstrativo “esse”
apenas a união, mas a A confiança vem de outra coisa. Ela vem de um retoma a afirmação
confiança – daí seu êxito. sentimento que se difunde entre os jogadores, às do período anterior
vezes velozmente, de que esse é “o cara”. Esse é (“o cara”) e reforça o
o responsável que vai conduzir o time em rumo argumento sobre a força
certo. Em momentos ruins, de crise, “o cara” é carismática de Tite, por
sempre esperado. Não só no esporte, é claro. Na encarnar essa figura.
política também. O desespero, às vezes silencioso,
de que alguma coisa precisa ser feita desencadeia
a esperança pelo “cara”.
!
92 GE PORTUGUÊS 2018
A seleção brasileira, principalmente depois PROGRESSÃO SAIBA MAIS
dos 7 a 1, tinha chegado no fundo do poço. Pior PERSUASIVA
impossível. Ninguém sabia direito o que fazer, As expressões “fundo COMO UM TEXTO ARGUMENTATIVO
falava-se em técnico estrangeiro, procurava-se do poço” e “mal a pior” É CONSTRUÍDO
por toda parte e nada. De repente, quando tudo contribuem para criar
ia de mal a pior, ele chegou. E veio a modificação o cenário típico para a Todo texto que manifesta uma opinião ou defende
rápida, quase milagrosa sem que se perceba qual- figura do “salvador”. um ponto de vista parte da apresentação da ideia
quer mudança fundamental, tática ou estratégica. Note que o autor reforça que será discutida (tese). As linhas iniciais dos textos
a ideia de que não são as argumentativos costumam trazer uma introdução
Mas não há nada de milagroso nisso. É um sen- qualidades técnicas que ao assunto, na qual se explicita também o posicio-
timento, primeiro do elenco de jogadores, depois, definirão o papel de “o namento do sujeito enunciador.
à medida que o time ganhava, da torcida, de que cara” para Tite.
tinha chegado alguém. Falo “sentimento”, que é TESE E ÊNFASE • Persuasão: É o processo de levar o interlocutor
quando grupos, e depois multidões, identificam O autor apresenta duas (aquele com quem se fala) a aderir à ideia e à ação
numa pessoa, só através de meios emocionais, não teses: Tite restabeleceu a propostas pelo enunciador (aquele que articula
racionais, qualidades que apenas vislumbram, confiança dos jogadores e envia uma mensagem).
adivinham, mas que “sentem” que pode tirá-los (veja no 2º parágrafo) e é • Argumentos: São todos os elementos – afirma-
da situação desesperada. Estamos, então, em um técnico carismático ções, comparações, exemplos – apresentados
presença do carisma. É isso o carismático. Alguém (ao lado). Para isso, para reforçar a tese do autor.
sobre o qual se depositam esperanças por quali- emprega expressões • Contra-argumentos: O texto argumentativo pode
dade apenas adivinhadas e suspeitadas. Só com contundentes, como prever algumas reações contrárias ao ponto de
esses indícios nos convencemos de que a salvação “sem dúvida”. vista defendido e, na tentativa de reforçar a ideia
chegou. Tite é, sem dúvida, alguém com carisma. VARIANTE LINGUÍSTICA em questão, rebate antecipadamente esses pos-
O autor usa a expressão síveis argumentos.
Embora a palavra seja agora usada a torto popular “a torto e a • Conclusões: Ainda que diversas questões polê-
e a direito para classificar qualquer rostinho direito” com o objetivo micas não cheguem a uma conclusão categórica,
agradável, ou qualquer pessoa que se pretende de desqualificar o sentido todo texto argumentativo tem um acabamento
“diferente”, carisma é muito mais e prevê quali- de carisma atribuído pelo final. O fechamento de um texto deve ser coerente
dades especiais, a principal delas fé em si mesmo senso comum. Segundo com as ideias apresentadas nos parágrafos ante-
e nos demais em quem confia totalmente. Tite ele, “carisma é muito riores e deve reforçar o ponto de vista defendido.
não inventou um só jogador, não tirou da cartola mais e prevê qualidades As últimas linhas recuperam a tese inicial e, a
ninguém, só mostrou que confia em quem está com especiais”. partir dos argumentos apresentados, reafirmam
ele. O carismático exige, para que surja, primeiro PROGRESSÃO TEXTUAL E a proposta central.
uma situação desesperada, depois um pequeno PERSUASÃO
número de fiéis, de preferência que já tivessem O autor retoma o conceito 93GE PORTUGUÊS 2018
vivido com o carismático outras experiências. de carisma e reforça a
Desse grupo de fiéis, se o “cara” tiver mesmo ca- ideia de que o técnico não
risma, a coisa se espalha e ganha cada vez mais mostrou necessariamente
corpo. E finalmente, num movimento irresistível, nenhuma novidade
domina multidões. técnica para seu
excepcional desempenho.
Quem hoje grita ‘Tite!’ não são apenas corin-
tianos, são brasileiros que não sabem explicar PERGUNTA RETÓRICA E
bem por que o Brasil mudou tanto nos últimos FUNÇÃO APELATIVA
jogos, mas sabem que foi por causa dele. Já vimos A pergunta induz o
isso em política muitas vezes, não é mesmo? É interlocutor (leitor) a
evidente que Tite é um carismático querido e dar a resposta esperada
benéfico. Porque, às vezes, a multidão se enga- pelo emissor (o autor).
na e o carismático tem muitos problemas para Pretende-se fazê-lo aderir
manter o cargo e, muito frequentemente, a pele. ao que foi proposto.
Carisma, portanto, é bênção e maldição ao mesmo
tempo. Mas, de qualquer maneira, é animador ver CONCLUSÃO
alguém sobre o qual se deposita tanta confiança O autor reafirma sua tese
num país onde, com toda a razão, o povo não inicial e diz que em um
consegue enxergar qualquer espécie de carisma país sem muita confiança
nos que o representam. em seus representantes
é bom ter um homem
confiável e carismático à
frente da seleção.
© TEREZA BETTINARDI
6 MODERNISMO – PROSA PRIMEIRA FASE
Inovação e ruptura No processo de ruptura com a arte acadêmica e ADJETIVO SUPERLATIVO
tradicional, os artistas do Modernismo, como o escritor O prefácio de Pauliceia
Na primeira fase do Modernismo e poeta Mário de Andrade, compuseram inúmeros Desvairada (1922)
(1922-1930), uma nova estética manifestos e textos críticos, nos quais apresentavam explicita seu processo
reafirma a identidade nacional propostas estéticas inovadoras e inauguravam composicional. O adjetivo
correntes artísticas de vanguarda. usado no grau superlativo
Na primeira metade do século XX, no objetiva intensificar o
contexto dos avanços tecnológicos e da Prefácio Interessantíssimo interesse sobre o texto.
I Guerra Mundial, a arte moderna ins- SINTAXE FRAGMENTADA
taura uma série de rupturas com os fundamentos Mário de Andrade As frases nominais
artísticos defendidos pelos movimentos ante- (curtas e sem verbos)
riores, criando uma atmosfera de radicalidade. Leitor: são típicas da dicção
Revoltados com a arte acadêmica e tradicional, Está fundado o Desvairismo. do autor. A síntese e a
os modernistas desejam libertar-se dos anti- Este prefácio, apesar de interessante, inútil. concisão estão presentes
gos modelos de composição. Movimentos de Alguns dados. Nem todos. Sem conclusões. na sintaxe fragmentada e
vanguarda, como o Surrealismo (que explorou Para quem me aceita são inúteis ambos. Os direta de Andrade.
muito o sonho e a criação de novas realidades), o curiosos terão o prazer em descobrir minhas con- LEITOR PARTICIPATIVO
Cubismo (que trabalhou com formas geométricas clusões, confrontando obra e dados. Para quem O autor se dirige
de modo pouco usual), o Expressionismo (que me rejeita trabalho perdido explicar o que, antes diretamente ao público
valorizou a percepção do sujeito sobre o obje- de ler, já não aceitou. e estimula a curiosidade
to), o Dadaísmo (que rompeu com os limites do Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem do leitor, que auxiliará no
sentido) e o Futurismo (que exaltou o progresso pensar tudo que meu inconsciente me grita. Pen- processo de atribuição de
e a inovação), legitimaram o tratamento de rea- so depois: não só para corrigir, como para jus- sentido à obra.
lidades fragmentárias, incompletas e irracionais. tificar o que escrevi. Daí a razão deste Prefácio HUMOR E SERIEDADE
Interessantíssimo. O inacabamento e a
Os valores defendidos pelos modernistas estão Aliás muito difícil nesta prosa saber onde ter- perda de contornos
associados ao histórico de destruição e caos pro- mina a blague, onde principia a seriedade. Nem rigidamente definidos
vocados pela guerra e exploram o inconsciente eu sei. entre o humor e a
humano, à luz das modernas teorias psicanalí- (...) seriedade são traços da
ticas, criadas por Sigmund Freud. Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repi- arte moderna.
to-o. Tenho pontos de contacto com o futurismo. FUTURISMO
Semana de Arte Moderna Oswald de Andrade, chamando-me de futurista, Apesar da semelhança
errou. A culpa é minha. Sabia da existência do dos poemas de Mário de
O marco do Modernismo brasileiro é, conven- artigo e deixei que saísse. Tal foi o escândalo, que Andrade com os textos
cionalmente, a Semana de Arte Moderna, ocor- desejei a morte do mundo. Era vaidoso. Quis sair futuristas (verificável na
rida em fevereiro de 1922, no Teatro Municipal da obscuridade. adoção do verso livre,
de São Paulo. No decorrer de toda a década de (...) no apelo à tecnologia
1910, porém, os artistas brasileiros já propunham Um pouco de teoria? nas metrópoles), o autor
mudanças nos padrões estéticos e expunham Acredito que o lirismo, nascido no subcons- inicialmente não se
criações que desafiavam o gosto tradicional. ciente, acrisolado num pensamento claro ou considera filiado a uma
confuso, cria frases que são versos inteiros, sem corrente específica.
Um dos eventos mais conturbados desse pe- prejuízo de medir tantas sílabas, com acentuação PSICANÁLISE
ríodo foi a exposição de obras da pintora Anita determinada. As teorias psicanalíticas
Malfatti (veja na pág. ao lado), que provocou A inspiração é fugaz, violenta. Qualquer em- fundamentaram
severas reações da crítica conservadora – a pecilho a perturba e mesmo emudece. (...) as criações da arte
exemplo do artigo Paranoia ou Mistificação?, moderna. A noção de
publicado pelo pré-modernista Monteiro Lo- RODRIGUES, A. Medina (et al). Antologia da inconsciente permitiu
bato (1882-1948). Literatura Brasileira: Textos Comentados. a defesa de princípios
São Paulo: Marco, 1979. vol. 2, p. 28-32 como a escrita
automática (praticada
COMPOSIÇÃO ESPONTÂNEA pelos surrealistas) e a
Para o autor, a racionalidade é um obstáculo à afirmação da liberdade
expressão poética genuína. Este prefácio se legitima composicional.
por abrir espaço para as reflexões racionais após a
composição espontânea dos poemas.
94 GE PORTUGUÊS 2018
CONEXÕES PINTURA
ARTIGO
Paranoia ou mistificação?
Monteiro Lobato
Há duas espécies de artistas. Uma composta DOIS GRUPOS [1]
dos que veem as coisas e em consequência fazem O autor divide os
arte pura, guardados os eternos ritmos da vida, e artistas em dois grupos. No quadro Caipira Picando Fumo, de 1893, Almeida
adotados, para a concretização das emoções esté- Um formado pelos Júnior retrata a simplicidade de um homem do campo.
ticas, os processos clássicos dos grandes mestres. acadêmicos, fiéis aos Todo o contexto reflete a realidade singela da pessoa,
modelos clássicos de desde suas roupas até a casa de pau a pique.
(...) composição, e o outro A desolação do local e a passividade do homem
A outra espécie é formada dos que veem anor- pelos modernistas. Ele lembram Jeca Tatu, caipira imortalizado por Monteiro
malmente a natureza e a interpretam à luz das os desqualifica, usando Lobato. Ao contrário de Abaporu (abaixo), esta pintura
teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de es- os adjetivos “efêmeras”, está de acordo com os padrões acadêmicos de arte
colas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos “estrábica” e “rebeldes”. defendidos por Lobato.
da cultura excessiva. ARTE DEGENERADA
(...) O texto liga a arte [2]
Embora se deem como novos, como precurso- moderna a um suposto
res de uma arte a vir, nada é mais velho do que processo de decadência Em Abaporu, de 1928, Tarsila do Amaral usa cores
a arte anormal ou teratológica: nasceu como a dos valores ocidentais. associadas ao Brasil e subverte as proporções
paranoia e a mistificação. Lobato qualifica as convencionais. Uma figura humana é representada com
(...) produções como “arte os membros em tamanho deformado – algo impensável
Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impres- degenerada”, fruto de para as estéticas clássicas. No Modernismo, temas
sionismo e tutti quanti não passam de outros perturbações mentais. ligados ao país (como a natureza tropical) recebem
ramos da arte caricatural. É a extensão da cari- PROGRESSÃO TEXTUAL um olhar crítico – não são mais idealizados, como no
catura a regiões onde não havia até agora pene- A cada argumento, Lobato contexto romântico. O pé gigante que toca o chão
trado. Caricatura da cor, caricatura da forma – retoma a tese inicial. busca provocar uma reflexão sobre a ordem aparente
mas caricatura que não visa, como a verdadeira, Note os mecanismos do mundo real.
ressaltar uma ideia, mas sim desnortear, aparva- de progressão textual,
lhar, atordoar a ingenuidade do espectador. ligados à alternância
(...) entre informações novas
A pintura da sra. Malfatti não é futurista, de e antigas.
modo que estas palavras não se lhe endereçam ANITA MALFATTI
em linha reta; mas como agregou à sua exposição Lobato volta-se ao alvo
uma cubice, queremos crer que tende para isso de seu texto: os quadros
como para um ideal supremo. de Malfatti. O autor se
(...) coloca como exceção
diante da receptividade
http://www.pitoresco.com.br/brasil/anita/lobato.html com que parte dos
críticos acolheu a pintura
Neste artigo, Monteiro Lobato faz uma ácida crítica ao da artista. Para além das
trabalho da pintora Anita Malfatti e ao dos modernistas críticas à exposição de
em geral. Malfatti, ele tomou o fato
concreto como pretexto
para vociferar contra os
ideais estéticos
do Modernismo.
[1] JOSÉ FERRAZ DE ALMEIDA JÚNIOR/PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO [2] TARSILA DO AMARAL/MALBA 95GE PORTUGUÊS 2018
6 MODERNISMO – PROSA PRIMEIRA FASE
Mário de Andrade Macunaíma (1928) incorpora elementos folclóricos para PARÓDIA
traçar um perfil do brasileiro, criando o “herói sem O início da obra faz
A arte moderna valoriza as diferenças e as nenhum caráter”. O personagem pertence ao rol de uma paródia de textos
especificidades do mundo, em detrimento da malandros nacionais, como Leonardinho, de Memórias indianistas (como
harmonia e do reconhecimento familiar da de um Sargento de Milícias, e Brás Cubas, de Memórias Iracema, de José de
arte acadêmica. Em literatura, a produção mo- Póstumas de Brás Cubas. Alencar). O nascimento
dernista da primeira fase (1922-1930) também de Macunaíma ocorre na
prioriza elementos capazes de chocar o público Macunaíma mata, no contato com
e promover certo estranhamento diante de uma elementos naturais.
nova realidade, questionando e rompendo com Mário de Andrade Em todo o texto, porém,
a identificação do público diante da obra. Passa não há a idealização
a predominar uma preocupação com os proces- No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, positiva do herói.
sos artísticos de composição das obras, e não herói da nossa gente. Era preto retinto e filho do JEITINHO BRASILEIRO
importa mais a representação fiel da realidade. medo da noite. Houve um momento em que si- No bordão de
Os escritores da primeira fase estavam preocu- lêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Macunaíma, bocejando
pados em descobrir a identidade do país e do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma de preguiça, ocorre
brasileiro. A reflexão crítica sobre a realidade criança feia. Essa criança é que chamaram de uma inversão dos
brasileira é uma das preocupações centrais do Macunaíma. valores habitualmente
escritor Mário de Andrade (1893-1945). considerados positivos.
Já na meninice fez coisas de sarapantar. De Macunaíma é um herói
PARA IR ALÉM primeiro passou mais de seis anos não falando. preguiçoso e malandro,
Si o incitavam a falar exclamava: representante típico do
A editora Peirópolis lançou, em 2016, uma adaptação “jeitinho” brasileiro. Ele
de Macunaíma para HQ. O “herói sem nenhum caráter” – Ai que preguiça!... e não dizia mais nada. não gosta de trabalhar
aparece nos traços de cores fortes da dupla mineira Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de e não cultiva valores
Angelo Abu e Dan X, que preservou a irreverência da paxiúba, espiando o trabalho dos outros e prin- heroicos nem guerreiros.
obra original. Além da história principal, a edição cipalmente os dois manos que tinha, Maanape
traz os bastidores da elaboração da HQ – também já velhinho e Jiguê na força do homem. O diver- LIBIDO
numa divertida história em quadrinhos – usando a timento dele era decepar cabeça de saúva. Vivia Desde pequeno,
linguagem adotada no livro de Mário de Andrade. deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Ma- Macunaíma tinha a
cunaíma dandava pra ganhar vintém. E também sexualidade aflorada. Ao
espertava quando a família ia tomar banho no perturbar as índias no rio
rio, todos juntos e nus. Passava o tempo do ba- ou assediar as mulheres
nho dando mergulho, e as mulheres soltavam na tribo, o garoto já
gritos gozados por causa dos guaiamuns diz que revelava a licenciosidade
habitando a água-doce por lá. No mucambo si que o caracterizaria
alguns cunhatã se aproximava dele pra fazer durante a vida.
festinha, Macunaíma punha a mão nas graças PONTUAÇÃO
dela, cunhatã se afastava. Nos machos guspia na O autor trabalha com
cara. Porém respeitava os velhos e frequentava os elementos da cultura
com aplicação a murua a poracê o torê o baco- indígena, subvertendo
rocô a cucuicogue, todas essas danças religiosas as regras convencionais
da tribo. de escrita. Repare na
ausência de pontuação,
Belo Horizonte/Rio de Janeiro: quando são enumeradas
Garnier, 2004. as danças típicas
praticadas pelos índios.
CRIANÇA FEIA
O adjetivo usado para caracterizar Macunaíma é
essencial para a configuração da personagem: era uma
criança “feia”, por oposição aos retratos idealizados
dos românticos.
ORALIDADE E LINGUAGEM COLOQUIAL
Note a oralidade da escrita. A palavra “se” é grafada com
o som da fala “si” do português brasileiro. A referência à
linguagem oral é típica da primeira fase modernista.
96 GE PORTUGUÊS 2018
DIÁLOGO ENTRE OBRAS CONEXÕES
HERÓI E ANTI-HERÓI PERSONAGEM CANÇÃO
O super-herói enfrenta
Macunaíma resulta do anseio da primeira fase problemas cotidianos e Homem-aranha
modernista pela criação de uma identidade nacional.
O epíteto “herói sem nenhum caráter” designa a ausên- torna-se vulnerável Jorge Vercilo
cia de um caráter brasileiro definido, pois este ainda à rotina diária.
estaria em formação. Macunaíma simboliza aspectos Eu adoro andar no abismo
relevantes da história do Brasil, como a miscigenação. RECUSA DO TRABALHO Numa noite viril de perseguição
A identidade nacional também preocupou os românti- Assim como Macunaíma, saltando entre os edifícios
cos. Contudo, para eles a expressão máxima do nacio- o anti-herói da canção se vi você
nalismo estava na figura do índio anterior à coloniza- Em poder de um fugitivo
ção. Peri, personagem de O Guarani, de José de Alencar nega a desempenhar o Que cercado pela polícia, te fez refém
(1829-1877), reúne as características desejáveis ao papel heroico e privilegia lá nos precipícios
melhor europeu: católico, forte, destemido e honrado. Foi paixão à primeira vista
Contrariando o ideal romântico do herói nacional, a relação amorosa. me joguei de onde o céu arranha
Macunaíma, assim como Leonardinho e Brás Cubas, VISÃO CRÍTICA te salvando com a minha teia
são covardes e não têm grandes aspirações na vida. Prazer, me chamam de Homem-Aranha
Nota-se um olhar Seu herói
O Guarani questionador acerca
da sociedade, em um Hoje o herói aguenta o peso
José de Alencar processo de reflexão das compras do mês
sobre a realidade já No telhado, ajeitando a antena da tevê
De repente, entre o dossel de verdura que cobria Acordado a noite inteira pra ninar bebê
esta cena, ouviu-se um grito vibrante e uma pa- desenvolvido pelos
lavra de língua estranha: autores modernistas. Chega de bandido pra prender,
— Iara! A violência combatida de bala perdida pra deter
É um vocábulo guarani: significa a senhora. pelo herói é equiparada à Eu tenho uma ideia:
(...) corrupção que ocorre no Você na minha teia
De pé, fortemente apoiado sobre a base estreita Chega de assalto pra impedir,
que formava a rocha, um selvagem (...) metia o plano político. Seja em Brasília ou aqui
ombro a uma lasca de pedra que se desencravara Eu tive a grande ideia:
do seu alvéolo e ia rolar pela encosta. Você na minha teia
O índio fazia um esforço supremo para suster o Hoje eu estou nas suas mãos
peso da laje prestes a esmagá-lo; e com o bra- Nessa sua ingênua sedução
ço estendido de encontro a um galho de árvore que me pegou na veia
mantinha por uma tensão violenta dos músculos Eu tô na tua teia
o equilíbrio do corpo.
A árvore tremia; por momentos parecia que pedra http://www.vagalume.com.br/jorge-vercilo/
e homem se enrolavam numa mesma volta, e preci- homem-aranha-letra-sem-erros.
pitavam sobre a menina sentada na aba da colina. html#ixzz3aDwM4cKw
(...).
Uma larga esteira que descia da eminência até o Nesta canção, de Jorge Vercilo, aparece também
lugar onde Cecília estivera recostada, mostrava a figura de um anti-herói: um personagem cujo
a linha que descrevera a pedra na passagem, ar- comportamento não serve como exemplo ou modelo
rancando a relva e ferindo o chão. (...) de conduta. Surge um super-herói problemático,
O fidalgo não sabia o que mais admirar, se a força às voltas com os problemas do nosso tempo.
e heroísmo com que ele salvara sua filha, se o mi-
lagre de agilidade com que se livrara a si próprio
da morte.
(...)
— Como te chamas?
— Peri, filho de Ararê, primeiro de sua tribo.
Editora Ática, 2010
© TEREZA BETTINARDI 97GE PORTUGUÊS 2018
6 MODERNISMO – PROSA PRIMEIRA FASE
Oswald de Andrade Publicado em 1924 no Correio da Manhã, Oswald de
Andrade defende, em tom paródico e festivo, uma
Em países colonizados por outras nações, poesia que não siga modelos ou regras preestabelecidos
como é o caso do Brasil, os escritores moder- de composição.
nistas rompem com a tradição e propõem uma
afirmação da identidade nacional, bem como Manifesto da
a libertação definitiva da herança dos coloni- Poesia Pau-Brasil
zadores. Trata-se da defesa de uma literatura
autêntica e pessoal, visando à afirmação da Oswald de Andrade
nacionalidade de modo crítico, sem a idealiza-
ção característica dos românticos. Oswald de A poesia existe nos fatos. Os casebres de aça-
Andrade (1890-1954) viaja para a Europa e, ao frão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul
retornar, traz consigo o repertório das vanguar- cabralino, são fatos estéticos.
das artísticas do continente. Ao lado de outros
intelectuais, participa da Semana de 22. No O Carnaval no Rio é o acontecimento religio-
Manifesto da Poesia Pau-Brasil, mostra o desejo so da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante
de que a cultura brasileira seja exportada, assim os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A for-
como ocorreu com a árvore pau-brasil, e passe mação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério.
a influenciar a própria cultura europeia. No A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.
Manifesto Antropófago, lançado em 1928, pro-
põe que o Brasil “devore” a cultura estrangeira. (...)
A poesia Pau-Brasil, ágil e cândida. Como uma
criança.
(...)
Contra o gabinetismo, a prática culta da vida.
(...)
A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natu-
ral e neológica. A contribuição milionária de to-
dos os erros. Como falamos. Como somos.
Não há luta na terra de vocações acadêmicas.
Há só fardas. Os futuristas e os outros.
Uma única luta – a luta pelo caminho. Divi-
damos: poesia de importação. E a Poesia Pau-
-Brasil, de exportação. (...)
Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leito-
res de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O
Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança.
A vegetação. Pau-Brasil.
SAIBA MAIS
MANIFESTOS
O gênero manifesto é caracterizado pela linguagem
direta e exaltada, em caráter provocador, com que se
defende um tema. Na primeira geração do Modernismo
brasileiro, os manifestos de Oswald de Andrade explici-
tam os objetivos principais do movimento. A crítica e o
humor aparecem combinados, a exemplo dos manifestos
vanguardistas europeus, em textos que mesclam a lin-
guagem artística e o registro popular, com a finalidade
de difundir as ideias para o grande público.
Outra característica é o uso de conclamações, com o
[1] emprego de vocativos e de verbos no imperativo, como na
famosa frase do Manifesto Comunista (1848), de Karl Marx
e Friedrich Engels: “Proletários de todo o mundo, uni-vos.”
98 GE PORTUGUÊS 2018
O conceito de antropofagia (ingestão de carne humana), MOVIMENTO CONEXÕES
associado à cultura indígena e, portanto, ligado ao ANTROPÓFAGO
passado pré-colonial do Brasil, é usado por Oswald de O manifesto defende o PERSONAGENS
Andrade em referência à estética do Modernismo. nacionalismo e propõe
a deglutição canibal [2]
Manifesto Antropófago dos elementos culturais
estrangeiros, para que [3]
Oswald de Andrade estes possam, depois, ser
recriados artisticamente Os elementos brasileiros foram representados de
Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Eco- no país, dando origem maneiras diferentes pelas histórias em quadrinhos,
nomicamente. Filosoficamente. a manifestações no decorrer do século XX. Após a II Guerra Mundial,
tipicamente brasileiras. os estúdios de Walt Disney desenvolveram uma visão
Única lei do mundo. Expressão mascarada de PARÓDIA estereotipada do brasileiro, encarnada pelo malandro
todos os individualismos, de todos os coletivismos. O autor parodia o verso Zé Carioca (no alto), um papagaio brasileiro, amante
De todas as religiões. De todos os tratados de paz. de Shakespeare (“To be dos prazeres e da vida fácil. Já o brasileiro Ziraldo
or not to be, that’s the utilizou personagens e temas do folclore nacional
Tupi, or not tupi that is the question. question”) e “deglute” para criar A Turma do Pererê (acima), encabeçada
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos o repertório estrangeiro pela figura do saci e de um índio (representativos da
Gracos. adaptando-o à cultura cultura brasileira). Oswald de Andrade era favorável
Só me interessa o que não é meu. Lei do ho- nacional. A paródia é uma à representação crítica da realidade brasileira por
mem. Lei do antropófago. forma de se estabelecer autores nacionais.
(...) intertextualidade. Ao
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carna- mudar o sentido do texto
val. O índio vestido de senador do Império. Fin- original, costuma provocar
gindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar um efeito de humor.
cheio de bons sentimentos portugueses. IDENTIDADE NACIONAL
Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a lín- Nosso passado colonial
gua surrealista. A idade de ouro. [...] é atacado pela sátira
Contra as sublimações antagônicas. Trazidas mordaz; por outro lado,
nas caravelas. os elementos da cultura
Contra a verdade dos povos missionários, de- indígena ressurgem como
finida pela sagacidade de um antropófago, o Vis- parâmetros definidores
conde de Cairu: – É mentira muitas vezes repe- da nacionalidade e da
tida. identidade cultural.
(...) JOGO TEMPORAL
Se Deus é a consciênda do Universo Incriado, Dois fatos passados
Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos relacionam-se entre
vegetais. si – o período anterior
(...) (assinalado por “tinha
O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. descoberto”) e o posterior
Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso? à descoberta do Brasil.
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o O passado mais antigo é
Brasil tinha descoberto a felicidade. valorizado, em detrimento
Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Ma- dos tempos coloniais.
ria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D.
Antônio de Mariz. A FIGURA DO ÍNDIO
(...) Oswald se opõe à
Contra Anchieta cantando as onze mil virgens representação romântica
do céu, na terra de Iracema, – o patriarca João e idealizada dos
Ramalho fundador de São Paulo. indígenas, no molde
dos cavaleiros europeus
Revista de Antropofagia, Ano 1, nº 1, maio 1928 e impregnada de
elementos estrangeiros.
INTERTEXTUALIDADE Note a referência a Peri,
A oposição à cultura trazida pelos europeus retoma protagonista
a figura da índia Iracema e estabelece um diálogo de O Guarani, de José
intertextual com o romance indianista de José de Alencar. de Alencar.
[1] © TEREZA BETTINARDI [2] REPRODUÇÃO [3] © TURMA DO PERERÊ/ZIRALDO 99GE PORTUGUÊS 2018
6 MODERNISMO – PROSA SEGUNDA FASE
Um novo olhar Publicado em 1937, Capitães da Areia retrata o cotidiano
para o país de um grupo de meninos de rua, mostrando suas
ações violentas, mas, também, as aspirações e os
pensamentos ingênuos comuns a qualquer criança.
Questões sociais e políticas denunciam Capitães da Areia PEDRO BALA
os problemas nacionais na segunda Líder dos Capitães da
fase do Modernismo (1930-1945) Jorge Amado Areia, ele possui uma
cicatriz de navalha no
Os romances regionalistas da segunda Quando o levaram para aquela sala Pedro rosto, fruto da luta em
fase do Modernismo brasileiro procu- Bala calculava o que o esperava. Não veio que venceu o antigo
ram apresentar faces do Brasil que não nenhum guarda. Vieram dois soldados de polícia, chefe do bando. Seu pai
costumavam figurar no conjunto dos romances um investigador, o diretor do reformatório. era estivador e liderara
brasileiros tradicionais – estes últimos marca- Fecharam a sala. O investigador disse numa voz uma greve no porto, onde
dos, geralmente, por uma ambientação urbana. risonha: foi assassinado.
Afastando-se dos grandes centros da Região LINGUAGEM COLOQUIAL
Sudeste do país, os autores regionalistas prio- – Agora os jornalistas já foram, moleque. Tu Os diálogos literários
rizam o tratamento de realidades diversas e se agora vai dizer o que sabe queira ou não queira. do Modernismo
voltam para os problemas sociais do país. regionalista tentam
O diretor do reformatório riu: reproduzir a comunicação
Jorge Amado – Ora, se diz... informal e, por meio da
O investigador perguntou: linguagem, reforçam
Um dos escritores brasileiros mais populares, – Onde é que vocês dormem? as caracterizações dos
Jorge Amado (1912-2001) retratou o cotidiano Pedro Bala o olhou com ódio: membros de certos grupos
da população baiana – os marinheiros, as mães – Se tá pensando que eu vou dizer... sociais (veja no Saiba mais
de santo, os menores abandonados das ruas de – Se vai... da pág. ao lado).
Salvador. O romance Capitães da Areia (1937) – Pode esperar deitado. CONFLITOS
narra as aventuras de um grupo de garotos mar- Virou as costas. O investigador fez um sinal O conflito entre grupos
ginalizados, moradores de um velho trapiche e para os soldados. Pedro Bala sentiu duas oprimidos e autoridades
estigmatizados por sua condição social. A repre- chicotadas de uma vez. E o pé do investigador é frequente na literatura
sentação de tipos comuns e o heroísmo presente na sua cara. Rolou no chão, xingando. regionalista. Em Vidas
em episódios simples do dia a dia são marcas da – Ainda não vai dizer? – perguntou o diretor do Secas, por exemplo,
literatura regionalista do Modernismo brasileiro. reformatório. – Isso é só o começo. esse aspecto surge na
– Não – foi tudo o que Pedro Bala disse. oposição entre Fabiano e
Agora davam-lhe de todos os lados. o Soldado Amarelo.
Chibatadas, socos e pontapés. O diretor do INJUSTIÇA
reformatório levantou-se, sentou-lhe o pé, Pedro E CRÍTICA SOCIAL
Bala caiu do outro lado da sala. Nem se levantou. A mando do diretor
Os soldados vibraram os chicotes. Ele via João do reformatório e do
Grande, Professor, Volta Seca, Sem-Pernas, o investigador de polícia,
Gato. Todos dependiam dele. A segurança de Pedro Bala é espancado. O
todos dependia da coragem dele. Ele era o chefe, autor descreve nesta cena
não podia trair. Lembrou-se da cena da tarde. uma relação de abuso. Um
Conseguira dar fuga aos outros, apesar de estar menor preso e torturado
preso também. O orgulho encheu seu peito. Não por aqueles que devem
falaria, fugiria do reformatório, libertaria Dora. manter a ordem moral,
E se vingaria... Se vingaria... a educação e a justiça.
Grita de dor. Mas não sai uma palavra dos ORAÇÕES
seus lábios. Vai te fazendo noite para ele. Agora COORDENADAS
já não sente dores, já não sente nada. No entanto, ASSINDÉTICAS
os soldados ainda o surram, o investigador o Note como a sequência
soqueia. Mas ele não sente mais nada. de períodos simples e
orações coordenadas
! assindéticas (que não
possuem conectivos,
LEALDADE sendo ligadas por
Pedro Bala aguenta as pancadas e não revela o local vírgulas) confere
onde vive o grupo porque sabe que é o líder do bando e agilidade ao texto.
deve manter lealdade a ele.
100 GE PORTUGUÊS 2018
DIÁLOGO ENTRE OBRAS
– Desmaiou – diz o investigador. ESPELHO DA INOCÊNCIA À MATURIDADE
– Deixe ele por minha conta – explica o O colégio interno espelha
diretor do reformatório. – Eu levo ele pro O Ateneu (1888) relata a vida de um pré-adolescente
reformatório, lá ele abre a boca. Garanto. E eu o mundo exterior e a em um internato para garotos. Esta obra de Raul
dou o aviso a vocês. incerteza diante Pompeia e Capitães da Areia, de Jorge Amado, retra-
(...) tam meninos que são vítimas da exposição precoce
O bedel Ranulfo (...) o levou à presença do do desconhecido. à vida adulta, embora em contextos e classes sociais
diretor. Pedro Bala sentia o corpo todo doer METÁFORA diferentes. Sérgio, estudante de classe média alta,
das pancadas do dia anterior. Mas ia satisfeito, descobre o mundo no colégio interno; o menor Pedro
porque nada tinha dito, porque não revelara O narrador utiliza Bala, nas ruas de Salvador.
o lugar onde os Capitães da Areia viviam. diversas imagens
Lembram-se da canção que os presos cantavam metafóricas (figura de O Ateneu
na madrugada que nascia. Dizia que a liberdade linguagem que aproxima
é o bem maior do mundo. Que nas ruas havia sol objetos pertencentes Raul Pompeia
e luz e nas células havia uma eterna escuridão a universos diferentes,
porque ali a liberdade era desconhecida. (...) que apresentam “Vais encontrar o mundo, disse-me meu
pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta.”
Companhia das Letras, 2009. características
semelhantes) para fazer Bastante experimentei depois a verdade deste
SAIBA MAIS referência ao aconchego aviso, que me despia, num gesto, das ilusões
de criança educada exoticamente na estufa de
VARIAÇÃO LINGUÍSTICA da vida doméstica. carinho que é o regímen do amor doméstico;
MEMÓRIA diferente do que se encontra fora, tão diferente,
A língua não é uniforme ou homogênea. Ela apresenta que parece o poema dos cuidados maternos um
variações condicionadas por diferentes fatores, como: Depois dessas idas e artifício sentimental, com a vantagem única
• Variação histórica: ocorre ao longo do tempo e pode vindas temporais, o de fazer mais sensível a criatura à impressão
ser verificada por meio da comparação entre textos de narrador adulto centra-se rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca
diferentes épocas ou pelo contato entre pessoas de dife- no pretérito imperfeito da vitalidade na influência de um novo clima
rentes gerações (por exemplo, o pronome você, corres- e no presente para rigoroso. Lembramo-nos, entretanto, com
pondente à antiga forma de tratamento vossa mercê). repassar, na memória, saudade hipócrita dos felizes tempos; como se a
• Variação geográfica ou regional: relacionada às pala- os maus bocados de mesma incerteza de hoje, sob outro aspecto, não
vras e construções específicas dos diferentes territórios sua estada no colégio. nos houvesse perseguido outrora, e não viesse de
em que uma mesma língua é falada (por exemplo, o Esse efeito só é possível longe a enfiada das decepções que nos ultrajam.
vegetal mandioca é conhecido como aipim ou maca- graças à intersecção
xeira, conforme a região do Brasil). entre tempo cronológico (...)
• Variação sociocultural: influenciada por fatores como Eu tinha onze anos.
idade, sexo, profissão ou nível de escolaridade do falan- e psicológico. (...)
te (como as gírias de determinados grupos ou os jargões Um dia, meu pai tomou-me pela mão, minha
empregados por profissionais de diferentes áreas). mãe beijou-me a testa, molhando-me de
• Variação individual: presente na adequação realiza- lágrimas os cabelos e eu parti.
da por um mesmo falante, de acordo com o grau de
formalidade da situação em que se encontra (contex- Ateliê, 1999.
tos formais exigem o uso da norma padrão da língua,
enquanto contextos informais permitem a adoção de PRIMEIRA PESSOA
um estilo mais coloquial). Ainda que o livro possua vários aspectos naturalistas,
como a descrição rica em detalhes e quase científica
do colégio, a obra afasta-se do modelo clássico do
movimento, já que o foco em primeira pessoa subverte
os preceitos naturalistas de isenção e distanciamento.
PARA IR ALÉM
O filme Capitães da Areia (2011) é dirigido por Cecília
Amado, neta de Jorge Amado. Ela buscou o mesmo
olhar crítico do livro. O elenco é todo formado por não
atores, a fim de se criar uma Bahia verossímil e atual.
© TEREZA BETTINARDI 101GE PORTUGUÊS 2018
6 MODERNISMO – PROSA SEGUNDA FASE
Graciliano Ramos Em Vidas Secas, o drama da família de retirantes
obrigada a se mudar constantemente por causa da seca
A obra do autor alagoano apresenta cenários é narrado em um estilo com economia de adjetivos,
e personagens pertencentes à Região Nordeste característico de Graciliano Ramos. Dessa forma, o autor
do Brasil. Em Vidas Secas (1938), por exemplo, consegue transmitir a seus leitores a aridez do ambiente.
Graciliano Ramos (1892-1953) narra a trajetó-
ria de uma família de retirantes que procura Vidas Secas ANTAGONISTA
sobreviver às condições adversas impostas pelo O espaço desempenha
meio natural, como a seca e a caatinga, e pela Graciliano Ramos um papel fundamental
realidade social, como o latifúndio e o drama dos na configuração do
retirantes. Como o título do livro indica, a seca Entrava dia e saía dia. As noites cobriam romance. O sertão é
que assola o sertão nordestino é responsável por apresentado como o
enfraquecer as perspectivas de vida e submeter a terra de chofre. A tampa anilada baixava, antagonista central, na
a existência humana à escassez de recursos, à medida em que dele
fome e à miséria. escurecia, quebrada apenas pelas vermelhidões provém o sofrimento dos
personagens.
Segundo críticos literários, a primeira fase do poente PERSONAGENS
modernista se concentrou na “revolução na Refletem uma situação
literatura”, ao defender a liberdade de compo- Miudinhos, perdidos no deserto queimado, social que os escritores
sição e o verso livre; já a segunda fase, voltada regionalistas procuraram
para o regionalismo e para a denúncia de pro- os fugitivos agarraram-se, somaram as suas explicitar: o sentimento de
blemas sociais, teria incorporado “a literatura desamparo dos segmentos
na revolução”. desgraças e os seus pavores. O coração de marginalizados da
sociedade (no caso,
O QUE ISSO TEM A VER COM A GEOGRAFIA Fabiano bateu junto do coração de Sinhá Vitória, a família de retirantes
A caatinga é um bioma exclusivamente brasileiro. capitaneada por Fabiano).
Apesar do clima semiárido, possui “ilhas de um abraço cansado aproximou os farrapos que
umidade”, de solo extremamente fértil. A vegetação DESUMANIZAÇÃO
é adaptada ao clima seco e à pouca quantidade de os cobriam. Resistiram à fraqueza, afastaram-se O solo árido e o rio
água. Além da caatinga, os outros biomas brasileiros seco não oferecem
são a Amazônia, o cerrado, a Mata Atlântica, envergonhados, sem ânimo de afrontar de novo possibilidades de
o pampa e o Pantanal. Para saber mais, veja o sustento nem de
GUIA DO ESTUDANTE GEOGRAFIA. a luz dura, receosos de perder a esperança que os sobrevivência, fazendo
com que a família sinta
PARA IR ALÉM alentava. fome e sede em meio
ao cenário de natureza
Em 2008, o romance Vidas Secas, de Graciliano Iam-se amodorrando e foram despertados morta. A dureza da
Ramos, completou 70 anos do seu lançamento e vida vai aos poucos
ganhou uma edição especial da Editora Record. por Baleia, que trazia nos dentes um preá. realizando um processo
A famosa obra que narra a seca do sertão nordestino de desumanização dos
e a peregrinação do protagonista Fabiano e sua Levantaram-se todos gritando. O menino personagens.
família foi relançada com seu texto integral,
acrescida de fotografias produzidas especialmente mais velho esfregou as pálpebras, afastando
para o livro, por Evandro Teixeira. O fotógrafo refez
os caminhos percorridos pelos personagens e pelo pedaços de sonho. Sinhá Vitória beijava o
próprio Graciliano Ramos no Nordeste.
focinho de Baleia, e como o focinho estava
ensanguentado, lambia o sangue e tirava
proveito do beijo.
Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria
a morte do grupo. E Fabiano queria viver. Olhou
o céu com resolução. A nuvem tinha crescido,
agora cobria o morro inteiro. Fabiano pisou com
segurança, esquecendo as rachaduras que lhe
estragavam os dedos e os calcanhares. !
FRAQUEZAS E CONFLITOS
Os personagens não são descritos de modo idealizado.
A força e a resistência advêm da superação dos
obstáculos, mas as fraquezas e os conflitos são
apresentados de modo cru e direto.
PROSOPOPEIA
A prosopopeia, figura de linguagem que realiza a
personificação de animais e seres inanimados, é
empregada para atribuir gestos e emoções à cachorra
Baleia. Por outro lado, a família de retirantes apresenta
comportamentos que se aproximam da animalização.
O mesmo pode ser observado em O Cortiço, de Aluísio
Azevedo (veja na pág. 72). Já em Iracema, de José de
Alencar (veja na pág. 48), a prosopopeia tem a função
de idealizar a índia.
102 GE PORTUGUÊS 2018