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Published by profrenatogoveia, 2022-03-28 08:37:21

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um, viu outro e por fim lembrou-se da afilhada de Quaresma, e foi procurá-la
na Real Grandeza.

Chegou, narrou-lhe o fato e as suas sinistras apreensões. Ela estava
só, pois o marido cada vez mais trabalhava para aproveitar os despojos da
vitória; não perdia um minuto, andando atrás de um e de outro.

Olga lembrou-se bem do padrinho, do seu eterno sonhar, da sua ter-
nura, da tenacidade que punha em seguir as suas ideias, da sua candura de
donzela romântica...

Durante um instante uma grande pena tomou-a toda inteira e tirou-lhe
a vontade de agir. Pareceu-lhe que era bastante a sua piedade e ela ia de
algum modo dar lenitivo ao sofrimento do padrinho; mas bem cedo o viu
ensanguentado — ele, tão generoso, ele, tão bom, e pensou em salvá-lo.

— Mas que fazer, meu caro senhor Ricardo, que fazer? Eu não conheço
ninguém... Eu não tenho relações... Minhas amigas... A Alice, a mulher do
doutor Brandão, está fora... A Cassilda, a filha do Castrioto, não pode...
Não sei, meu Deus!

E acentuou estas últimas palavras com grande e lancinante desespero.
Os dois ficaram calados. A moça, que estava sentada, tomou a cabeça entre
as mãos e as suas unhas longas e aperoladas engastaram-se nos seus ca-
belos negros. Ricardo estava de pé e aparvalhado.

— Que hei de fazer, meu Deus? — repetiu ela.
Pela primeira vez, ela sentiu que a vida tinha coisas desesperadoras.
Possuía a mais forte disposição de salvar seu padrinho; faria sacrifício de
tudo, mas era impossível, impossível! Não havia um meio; não havia um
caminho. Ele tinha que ir para o posto de suplício, tinha que subir o seu
Calvário, sem esperança de ressurreição.
— Talvez seu marido — disse Ricardo.
Pensou um pouco, demorou-se mais no exame do caráter do esposo;
mas, em breve, viu bem que o seu egoísmo, a sua ambição e sua ferocidade
interesseira não permitiriam que ele desse o mínimo passo.
— Qual, esse...
Ricardo não sabia o que aconselhá-la e olhava sem pensamentos os
móveis e a montanha negra e alta que se avistava da sala onde estavam.
Queria encontrar um alvitre, um conselho; mas nada!

• 208 • TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

A moça continuava a cravar os dedos nos seus cabelos negros e a olhar
a mesa em que repousavam os seus cotovelos. O silêncio era augusto.

Num dado momento, Ricardo teve uma grande alegria no olhar e disse:
— Se a senhora fosse lá...
Ela levantou a cabeça; os seus olhos se dilataram de espanto e o rosto
lhe ficou rígido. Pensou um pouco, um nada, e falou com firmeza:
— Vou.
Ricardo ficou só e sentou-se. Olga foi vestir-se.
Ele então pensou com admiração naquela moça que por simples amizade
se dava a tão arriscado sacrifício, que tinha a alma tão ao alcance dela mesma
e a sentiu bem longe desse nosso mundo, deste nosso egoísmo, dessa nossa
baixeza e cobriu a sua imagem com um grande olhar de reconhecimento.
Não tardou que ela ficasse pronta e ainda abotoava as luvas, na sala de
jantar, quando o marido entrou. Vinha radiante, com os seus grandes bigodes
e o seu rosto redondo cheio de satisfação de si mesmo. Nem fez menção de
ter visto Ricardo e foi logo direto à mulher:
— Vais sair?
Ela, afogueada pela ânsia desesperada de salvar Quaresma, disse com
certa vivacidade:
— Vou.
Armando ficou admirado de vê-la falar daquele modo. Voltou-se um
instante para Ricardo, quis interrogá-lo, mas logo, dirigindo-se à mulher,
perguntou com autoridade:
— Onde vais?
A mulher não lhe respondeu logo e, por sua vez, o doutor interrogou o
trovador:
— Que faz o senhor aqui?
Coração dos Outros não teve ânimo de responder; adivinhava uma cena
violenta que ele teria querido evitar, mas Olga adiantou-se:
— Vai acompanhar-me ao Itamarati, para salvar da morte meu padrinho.
Já sabe?
O marido pareceu acalmar-se. Acreditou que, com meios suasórios, po-
deria evitar que a mulher desse passo tão perigoso para os seus interesses e
ambições. Falou docemente:
— Fazes mal.

LIMA BARRETO • 209 •

— Por quê? — perguntou ela com calor.
— Vais comprometer-se. Sabes que...
Ela não lhe respondeu logo e mirou-o um instante com os seus grandes
olhos cheios de escárnio; mirou-o um, dois minutos; depois, riu-se um pouco
e disse:
— É isto! “Eu”, porque “eu”, porque “eu”, é só “eu”, para aqui, “eu” para
ali... Não pensas noutra coisa... A vida é feita para ti, todos só devem viver
para ti... Muito engraçado! De forma que eu (agora digo “eu” também) não
tenho direito de me sacrificar, de provar a minha amizade, de ter na minha
vida um traço superior? É interessante! Não sou nada, nada! Sou alguma
coisa como um móvel, um adorno, não tenho relações, não tenho amizades,
não tenho caráter? Ora!...
Ela falava, ora vagarosa e irônica, ora rapidamente e apaixonada; e o
marido tinha diante de suas palavras um grande espanto. Ele vivera sempre
tão longe dela que não a julgara nunca capaz de tais assomos. Então aquela
menina? Então aquele bibelot? Quem lhe teria ensinado tais coisas? Quis
desarmá-la com uma ironia e disse risonho:
— Está no teatro?
Ela lhe respondeu logo:
— Se é só no teatro que há grandes coisas, estou.
E acrescentava com força:
— É o que te digo: vou e vou, porque devo, porque quero, porque é do
meu direito.
Apanhou a sombrinha, concertou o véu e saiu solene, firme, alta e nobre.
O marido não sabia o que fazer. Ficou assombrado e assombrado e silencioso
viu-a sair pela porta fora.
Em breve, estava no palácio da Rua Larga. Ricardo não entrou: deixou
que a moça o fizesse e foi esperá-la no Campo de Sant’Anna.
Ela subiu. Havia um imenso burburinho, uma agitação de entradas e
saídas. Toda a gente queria mostrar-se a Floriano, queria cumprimentá-lo,
queria dar mostras de sua dedicação, provar os seus serviços, mostrando-se
coparticipante na sua vitória. Lançavam mão de todos os meios, de todos
os planos, de todos os processos. O ditador tão acessível antes, agora se
esquivava. Havia quem lhe quisesse beijar as mãos, como ao papa ou a um

• 210 • TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

imperador; e ele já tinha nojo de tanta subserviência. O califa não se su-
punha sagrado e aborrecia-se.

Olga falou aos contínuos, pedindo ser recebida pelo marechal. Foi inútil.
A muito custo conseguiu falar a um secretário ou ajudante de ordens. Quando
ela lhe disse a que vinha, a fisionomia terrosa do homem tornou-se de oca e
sob as suas pálpebras correu um firme e rápido lampejo de espada:

— Quem, Quaresma? — disse ele. — Um traidor! Um bandido!
Depois, arrependeu-se da veemência, fez com certa delicadeza:
— Não é possível, minha senhora. O marechal não a atenderá.
Ela nem lhe esperou o fim da frase. Ergueu-se orgulhosamente, deu-lhe
as costas e teve vergonha de ter ido pedir, de ter descido do seu orgulho
e ter enxovalhado a grandeza moral do padrinho com o seu pedido. Com
tal gente, era melhor tê-lo deixado morrer só e heroicamente num ilhéu
qualquer, mas levando para o túmulo inteiramente intacto o seu orgulho, a
sua doçura, a sua personalidade moral, sem a mácula de um empenho que
diminuísse a injustiça de sua morte, que de algum modo fizesse crer aos seus
algozes que eles tinham direito de matá-lo.
Saiu e andou. Olhou o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, e se
lembrou que, por estas terras, já tinham errado tribos selvagens, das quais
um dos chefes se orgulhava de ter no sangue o sangue de dez mil inimigos.
Fora há quatro séculos. Olhou de novo o céu, os ares, as árvores de Santa
Teresa, as casas, as igrejas: viu os bondes passarem; uma locomotiva apitou;
um carro, puxado por uma linda parelha, atravessou-lhe na frente, quando já
a entrar do campo... Tinha havido grande e inúmeras modificações. Que fora
aquele parque? Talvez um charco. Tinha havido grandes modificações nos
aspectos, na fisionomia da terra, talvez no clima... Esperemos mais, pensou
ela; e seguiu serenamente ao encontro de Ricardo Coração dos Outros.

Todos os Santos (Rio de Janeiro), janeiro-março de 1911.

LIMA BARRETO • 211 •

Triste Fim de Policarpo Quaresma Afonso Henriques de Lima Barreto
(1911), romance publicado inicial- (1881-1922), funcionário público
mente em folhetim, é a obra-prima e jornalista, escreveu romances,
de Lima Barreto. O protagonista é contos, crônicas, sátiras e crítica
um personagem quixotesco cuja literária. É autor de obras como
trajetória de embates com a realidade Recordações do Escrivão Isaías Caminha
possibilita uma narrativa com riqueza (1909) e Os Bruzundangas (1923).
de observação e crítica profunda à
sociedade, atingindo a caricatura. Entusiasta da literatura realista e
social europeia do século XIX, foi
A ingenuidade e o idealismo de um dos raros leitores dos grandes
Quaresma realçam, em contraste, romancistas russos. Em 1918,
a malícia e os interesses ocultos impressionado pela Revolução de
que o circundam. Esse desencontro, Outubro, passou a militar na im-
persistente por todo o romance, prensa socialista, onde redigiu um
às vezes serve aos efeitos cômicos manifesto no mesmo ano.
da trama, mas noutras revela as
deformidades sociais denunciadas Opositor das oligarquias que
ostensivamente pelo autor. tomaram o poder no Brasil a partir
de 1889, foi um dos críticos da Re-
Escrevendo para as camadas popu- pública, na qual via apenas a queda
lares, o autor alcançou um estilo, do Partido Liberal e a investida da
embora parcial, bastante realista. parte mais retrógrada do Partido
Ao retratar os subúrbios cariocas, Conservador.
a narrativa expõe os processos de
dominação e desmascara os meca- Lima Barreto registrou em suas
nismos de controle social. obras as cenas cotidianas dos
ambientes urbanos, domésticos e
Policarpo Quaresma destaca-se burocráticos por meio de um estilo
na obra de Lima Barreto como um sempre próximo à crônica, com
personagem que não se contém no linguagem simples e discreta e com
rótulo de figura obsessivamente forte tônica social, prenunciando
nacionalista e que supera a simples o modernismo e o romance da
projeção de suas dores biográficas. geração de trinta.

edições câmara

CIDADANIA


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