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Published by TODAVOZ EDITORA, 2021-10-18 09:03:58

REVISTA MULHERES EM LETRAS 17

REVISTA MULHERES EM LETRAS 17

Keywords: mulher,violência,literatura,todavoz editora

REVISTA

Grupo de Pesquisa Mulheres em Letras - BH (MG) - Ano 11 - 2021 - Nº 17 - ISSN: 2319-0094

VIOLÊNCIA
e

AUTORIA
FEMININA

Discutir a relação entre
violência e autoria feminina é,

em certa medida, ir na
contramão de um silenciamento

sobre o tema na escrita de
mulheres, evidenciando, em

alguns casos, mais que um
projeto literário de cunho
estético, uma posição

político-social de resistência.
A revista ML traz, neste

número, resenha, diversos
textos, entrevista e um
belíssimo poema de

Conceição Evaristo sobre
o tema.

Publicações do Grupo ML

ADQUIRA JÁ O SEU EXEMPLAR
Valor: R$ 40,00 (remessa inclusa)
Contato: [email protected]

ÍNDICE EDITORIAL

COM A PALAVRA Violência e autoria feminina

Da menina, a pipa p. 04 Cada vez mais frequente, a temática da vio-
Conceição Evaristo lência ganha páginas de romances, contos, crônicas e
poemas em uma espécie de espelhamento, na ficção,
ACADEMIA de uma realidade assustadora que se inscreve todos os
dias nos noticiários.
A primeira lei: “Não matarás” - uma releitura de O Grupo de Pesquisa Mulheres em Letras,
“Mineirinho”, de Clarice Lispector nesta edição, dá enfoque à temática “Percursos da vio-
Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira p. 05 lência na literatura de autoria feminina”. Ao abordar a
violência, essa produção literária, que atravessa tempos
A escrita negra e crua de Mel Duarte p. 07 distintos, leva o leitor a pensar sobre questões sociais
Deivide de Almeida Ávila da realidade que o cerca.
Ozana Aparecida do Sacramento Nesse convite à reflexão, apresentam-se escri-
toras como Clarice Lispector, Maria José de Queiroz, Pa-
Jamais o Fogo Nunca: uma narrativa da violência trícia Melo, Conceição Evaristo, Mel Duarte, Miriam Al-
contra as mulheres ves, Maria Valéria Rezende, Beth Fleury, evocadas para
Elisa Cândida Alcântara de Sales, Maria Fernanda p. 09 discutirmos a relação entre violência e autoria feminina
no contexto brasileiro. A temática também se apresenta
Melgaço e Rafael de Azevedo nas vozes das portuguesas Maria Tereza Horta, Lídia Jor-
ge, da inglesa Virgínia Wolf, da russa Marina Tsvetáieva,
Apontamentos sobre a violência em narrativas de das chilenas Diamela Eltit e Andrea Jeftanovic, amplian-
Maria José de Queiroz do o debate para além das fronteiras nacionais. Textos
p. 12 literários que abordam a multiplicidade de tipos de vio-
Jaciane Muniz de Aguiar e Rita de Cássia Silva Dionísio lência no que se referem às questões de gênero e etnia,
Santos às lutas feministas, aos grupos sociais marginalizados, à
repressão política em contextos de regimes ditatoriais.
Violência e silenciamento dos sujeitos femininos Discutir a relação entre violência e autoria
no conto “Marido”, de Lígia Jorge feminina é, em certa medida, ir na contramão de um
Jardel Pereira Fernandes p. 14 silenciamento sobre o tema na escrita de mulheres, evi-
denciando, em alguns casos, mais que um projeto lite-
Caminhos do corpo feminino p. 16 rário de cunho estético, mas uma posição político-social
Jessica Ziegler de Andrade de resistência.

Patrícia Melo: arquivo do feminicídio p. 18 Grupo de Pesquisa Mulheres em Letras
Kelen Benfenatti Paiva
EXPEDIENTE
Não aceite caramelos de estranhos ou os labirintos
e redemoinhos da violência na escrita de Andrea (ISSN 2319-0094)
Jeftanovic Revista Mulheres em Letras, publicação do Grupo de
Luciana Pimenta p. 20 Pesquisa Mulheres em Letras, cadastrado no CNPq e
FALE/UFMG.
De Mulher para Mulher: Epístola da desobediente Coordenadora: Constância Lima Duarte.
para a Louca Editora responsável:
p. 22 Maria de Fátima Moreira Peres (Reg. MG 03731JP).
Ozana Aparecida do Sacramento e Valéria Carvalho dos Conselho Editorial: Constância Lima Duarte, Imaculada
Passos Toledo Nascimento, Kelen Benfenatti Paiva, Luciana Pimenta
Revisão: Imaculada Nascimento, Maria do Socorro Vieira
Vamos meter a colher sim: o problema da violência Coelho.
consentida representado no romance Outros Capa: Alex Coelho.
Cantos, de Maria Valéria Rezende Site: www.mulheresletras.com
Renata Cristina Sant’Ana p. 24 e-mail: [email protected]
Facebook: www.facebook.com/mulheresemletras
Ponciá Vicêncio: entre a apatia e a violência p. 27 Produção editorial: Todavoz Editora
Rilza Rodrigues Toledo e-mail: [email protected]

ENTREVISTA

Literatura e violência em movimento p. 30
Maria de Fátima Moreira Peres

RESENHA

Vidas ressignificadas p. 33
Imaculada Nascimento

Mulheres em Letras - n.17 - Set. 2021 3

COM A PALAVRA

Da menina, a pipa

Conceição Evaristo

Foto: Fátima Peres
MJ. Jin-Pixabay

Da menina a pipa Conceição Evaristo. Poemas da recordação e outros
e a bola da vez movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.
e quando a sua íntima
pele, macia seda, brincava
no céu descoberto da rua
um barbante áspero,
másculo cerol, cruel
rompeu a tênue linha
da pipa-borboleta da menina.

E quando o papel
seda esgarçada
da menina
estilhaçou-se entre
as pedras da calçada
a menina rolou
entre a dor
e o abandono.

E depois, sempre dilacerada,
a menina expulsou de si
uma boneca ensangüentada
que afundou num banheiro
público qualquer.

4 Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021

ACADEMIA

A primeira lei: “Não matarás” - uma releitura
de “Mineirinho”, de Clarice Lispector

Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira1

“Mineirinho”: a predileção pela ca. “Mineirinho foi encontrado morto no Sítio da
narrativa e a questão social Serra, “[...] com três tiros nas costas, cinco no pes-
coço, dois no peito, um no braço esquerdo, outro
A escritora Clarice Lispector (1920-1977), na axila esquerda e o último na perna esquerda,
em entrevista a Júlio Lerner, na TV Cultura, em [...] dados à queima-roupa [...]” (WEGUELIN apud
1977, destacou que “Mineirinho” e “O ovo e a gali- DIÁRIO CARIOCA, 1º de maio de 1962).
nha” eram os seus trabalhos mais significativos. So- Como se vê no recorte da reportagem,
bre “Mineirinho”, afirmou: “uma coisa que escrevi Mineirinho foi alvejado com muitas balas, o que
sobre um bandido, um
criminoso, chamado configura o intento de
Mineirinho que mor- execução. Esse assas-
reu com treze balas, sinato brutal chamará
quando uma só basta- a atenção da narrado-
va [...]” (TV CULTURA, ra do conto. “No en-
1977). tanto a primeira lei, a
Como assinala que protege o corpo e
Rosenbaum (2010), a vida insubstituíveis, é
respeito da recepção a de que não matarás”
da pungente narrativa (LISPECTOR, 2016,
de Lispector: “Como p.386).
enfrentar, então, um Na entrevista já
texto como “Mineiri- citada, a escritora
nho”, recolhido como Foto: pixabay afirma: “Eu me trans-
crônica em 1969, mas que pode ser lido como formei no Mineirinho
conto e que tensiona, a partir de uma ocorrência massacrado pela polícia. Qualquer que tivesse sido
policial verídica, o sentido da justiça e as polarida- o crime dele, uma bala bastava. O resto era vonta-
des irredutíveis do eu e do outro?” (ROSENBAUM, de de matar. Era prepotência” (TV CULTURA, 1977).
2010, p.170). Assim, a narradora afirma que, dian- Diante dessa perspectiva do preceito bá-
te dessa atrocidade, a humanidade que há não só sico da convivência humana “Não matarás” e do
nela, mas também em todos, reaviva-se: “[...] dor- forte apelo coletivo, destaca-se a divergência de
mimos e falsamente nos salvamos, até que treze Borelli (1981), com relação ao fato de Clarice não
tiros nos acordam, e com horror digo mais tarde escrever sobre questões sociais. A escritora reve-
– vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – lou sua forte hesitação no que diz respeito a essa
que ao homem acuado que a esse não nos matem” temática na crônica intitulada “Literatura e justiça”:
(LISPECTOR, 2016, p. 387). “Em Recife os mocambos foram a primeira verdade
“Mineirinho”, publicado em 1969, apre- para mim. [...] antes de sentir ‘arte’, senti a beleza
senta a história do fugitivo José Miranda Rosa, cuja profunda da luta [...]tenho um modo simplório de
alcunha dá título à narrativa e que é fuzilado com me aproximar do fato social: eu queria era ‘fazer’
treze tiros pela polícia, episódio que se tornou alvo alguma coisa, como se escrever não fosse fazer”
de ampla divulgação por parte da imprensa da épo- (LISPECTOR, 2015, p. 42). Como assinala Borelli
(1981), Clarice nunca conseguiu realmente “apagar

¹ Doutora em Estudos de Literatura-UFF/CNPq. Pesquisadora independente, com foco, sobretudo nas temáticas: memória,
autobiografia, testemunho. [email protected]

Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021 5

da memória a imagem da miséria nordestina, ou dora constrói um elo entre o “eu” e todos os seres
melhor, a pobreza do Recife [...] os problemas da humanos, a humanidade, ou seja, uma “espécie de
justiça social despertariam nela um sentimento tão ponte lançada entre mim e os outros” (BAKHTIN,
básico, [...] que não conseguia escrever sobre eles” 2006, p. 113). O discurso traz em seu bojo um teor
(BORELLI, 1981, p. 53). ideológico que é elaborado, tendo em vista um
contexto social específico. Portanto, seja qual for
Dessa forma, a escritora era profunda co- a forma da “expressão-enunciação considerada,
nhecedora do fenômeno da desigualdade social ele [o discurso] será determinado pelas condições
tão presente no Brasil, cujas origens alicerçam-se reais da enunciação em questão, isto é, antes de
na herança colonial e escravista, resultando num tudo pela situação social mais imediata” (BAKHTIN,
país marcado pelo capitalismo periférico com polí- 2006, p. 114).
ticas elitistas e racistas.
Em “Mineirinho”, os preceitos da justiça
“Mineirinho” e o discurso da subjetividade são questionados pela narradora que se sente pro-
fundamente tocada pelo modo como o jovem foi
A narrativa envereda para a temática da fuzilado pela polícia. “O décimo terceiro [tiro] me
questão social, porém, além disso, “as reflexões do assassina, porque eu sou o outro”, ou seja, o que
narrador extrapolam as contingências sociológicas atinge o outro também nos atinge como seres hu-
e caminham, de forma errante e digressiva, pelos manos que somos e cuja empatia não deveria “dor-
âmbitos mais recônditos da subjetividade” (RO- mir” nunca: “Como não amá-lo, se ele viveu até o
SENBAUM, 2010, p. 169), ou seja, o conto apresen- décimo terceiro tiro o que eu dormia?” [...] “em-
ta uma narradora que sente imensa empatia pelo baixo da casa está o terreno [...] O que eu quero é
outro, pelo incógnito, que foi covardemente fuzi- muito mais áspero e difícil: quero o terreno” (LIS-
lado, segundo a sua visão. Por essa razão, afirma: PECTOR, 2016, p. 387-390). A metáfora do terreno
“[...] devo procurar por que está doendo em mim a representa o ápice da expressão da subjetividade
morte de um facínora” (LISPECTOR, 2016, p. 386). da narradora que manifesta o desejo de fazer parte
Nessa perspectiva, a dimensão humana da escri- da luta para reconstruir uma sociedade mais justa
tora emerge, de forma concreta e extrapola o epi- (reedificar a casa, a partir do terreno pedregoso,
sódio ocorrido com Mineirinho. Há um profundo ou seja, as raízes primeiras da injustiça e da desi-
diálogo travado com a realidade da sociedade bra- gualdade), que não se alimenta apenas da sensa-
sileira, que é profundamente desigual. Esse diálo- ção ilusória da paz trazida pela acomodação, des-
go não parte de um “eu”, mas de um “nós”, o cole- pertando, assim, uma nova visão de mundo, uma
tivo, ou um “como um dos representantes de nós” nova consciência.
(LISPECTOR, 2016, p. 386). Desse modo, a narra-

Referências:

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem – problemas fundamentais do Método sociológico na Ciência da
Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 11ª ed. São Paulo: Hucitec, 2004.

BORELLI, Olga. Clarice Lispector. Esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

TV CULTURA. 1977. 1 vídeo (28 min). Panorama com Clarice Lispector. Entrevista a Júlio Lerner. Publicado no canal
TV Cultura. Disponível em: h�ps://www.youtube.com/watch?v=ohHP1l2EVnU&t=139s Acesso em: 02 abr 2021.

LISPECTOR, Clarice. “Literatura e justiça”. In: LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro, Rocco, 2015.

LISPECTOR, Clarice. “Mineirinho” In: LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector -Todos os contos. Org. Benjamin Moser.
1ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.

ROSENBAUM, Yudith. A ética na literatura: leitura de “Mineirinho”, de Clarice Lispector. (2010) Estudos Avançados,
24(69), 169-182. Recuperado h�ps://www.revistas.usp.br/eav/article/view/10519. Acesso em: 12 jan. 2021.

WEGUELIN. J. M. O Rio de Janeiro através dos jornais. S. d. Disponível em: h�p://www1.uol.com.br/rionosjornais/
rj45.htm. Acesso em: 12 jan. 2021.

6 Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021

A escrita negra e crua de Mel Duarte

Deivide de Almeida Ávila¹
Ozana Aparecida do Sacramento2

Mel Duarte (1988), nome artístico de Mel Lorde (2019, p.49), para as mulheres, a poesia é

Amaro Duarte, paulistana, formada em comunica- vital, pois nela se baseia a esperança, a mudança

ção, escritora, poeta, slammer, produtora cultural plasmada em linguagem, depois em ideias e em

e integrante da coletiva Slam das Minas SP, foi a ação.

primeira mulher a vencer o Rio Poetry Slam (cam- Em sua poética, seja ela escrita ou cantada,

peonato de poesia falada). Publicou os livros Frag- Mel Duarte pensa a escritura feminina como um

mentos dispersos (2013), Ne- movimento, em um ato de

gra nua crua (2016), que foi resistência contra os horrores

traduzido para o espanhol; As da submissão, da servidão, da

bonecas da vó Maria (livro in- humilhação, da subserviência

fantil), em 2018. Em 2019, foi e da escravidão da mulher

a organizadora do livro Que- negra brasileira em todos os

rem nos calar, poemas para tempos.

serem lidos em voz alta: uma No século XX, mais preci-

antologia, que reúne escritos samente a partir da década

de mulheres de todo o país: de 1960, o Brasil presenciou

negras, brancas, periféricas, movimentos sociais que abri-

representantes do movimen- garam lutas de classes como

to LGBT, artistas de rua e fe- a dos trabalhadores, das fe-

ministas. Nesse mesmo ano ministas, dos negros, entre

lançou um disco de poesia Foto reprodução: Helen salomão outros, que ganharam forças

falada Mormaço – Entre outras formas de calor e conceitos capazes de influenciar nossa sociedade

disponível nas plataformas de música. Publicou e nossa literatura, que acomoda o direito à palavra

ainda A descoberta de Ariel (livro infantil) em 2020 a favor de cada alteridade. Mas, particularmente, a

e, nesse ano, 2021, Colmeia: Poemas reunidos. escrita afro-feminina é a mais comum a dois movi-

A escritora usa a palavra como ferramenta mentos, pois tem a questão do negro e do femini-

de transformação social. Em particular, sua poesia no, uma vez que aborda a questão étnica/racial e a

nos revela a mulher negra de hoje que carrega e questão de gênero.

sofre a dor de um passado recente, marcado pelos Assim, podemos entender o trabalho ár-

“ismos” estruturais, como o racismo e o machismo, duo da mulher negra, pois tem que lutar contra

entre outros comuns no país. dois estereótipos de sociedade excludente que fa-

Com uma obra engajada, como o livro vorece a dominação masculina e o homem branco.

Querem nos calar: poemas para serem lidos em Para vencer essas barreiras, de gênero e da cor que

voz alta, antologizada por Mel Duarte, várias são fragilizam a mulher afro-brasileira, como aqui, Mel

as outras vozes femininas e negras que reivindicam Duarte, usa a escrita para traduzir as subjetividades

seu espaço de fala numa sociedade excludente que desse segmento social. Sobre a escrita de mulheres

não dialoga com a mulher afrodescendente. Para negras, Miriam Alves diz que a uma mulher negra

enfrentar a subtração da voz e outras violências, escreve de um lugar de alteridade, assumindo-se,

essas mulheres fazem poesia. Como disse Audre inscrevendo-se para ter existência e dar significado

¹ Mestrando em Letras na linha de pesquisa Literatura e Memória Cultural pela UFSJ (Universidade Federal de São João del
Rei). E-mail: [email protected].
² Doutora em Literatura Comparada (UFMG). Professora do IFSudesteMG - Campus São João del Rei. E-mail: ozana.sacra-
[email protected]

Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021 7

a ela. A partir de seu lugar, apropria-se da escrita escrita e, especialmente, aquela que nasce da pe-
e, por meio dela, desnuda os conflitos da socieda- riferia, dos corpos negros, das mulheres é arma
de brasileira sempre a partir de seu olhar. (ALVES, para luta cotidiana por espaço, por uma arte que é
2010, p.185) resistência, sapiência e ato político de (re)tomada
do lugar para o povo periférico: “Por mais espaços
Como exemplo das circunstâncias descri- públicos para o povo periférico/Que nossa dança
tas por Alves, podemos citar um excerto (9ª e 10ª ressoe em corpos presos por pré conceitos /Que
estrofes) do poema “Líderes”, do livro Negra Nua nossa palavra atravesse barreiras e no peito cause
Crua: “Mulher sim, / Negra sou, / Punhos serra- efeito” (DUARTE, s/n).
dos até o fim [...] E é preciso brigar por uma nova
aurora! [...] Eu fico com a que cresceu interessada A poeta peleja em vários campos da arte, a
em sua história, /Respeitando e aprendendo com poesia slam, a música, performances, ativismo cul-
Carolina, Malcon, / Dandara, Zumbi e Mandela.” tural e na literatura infantil, pois é desde cedo que
(DUARTE, 2016, p. 23). se educa para convivência com a diversidade. Isso
fica patente, entre outros, no livro infantil A des-
Vários são os exemplos de luta negra fe- coberta de Adriel. O enredo apresenta o menino
minista nesta obra como “Verdade seja dita”, um negro Adriel que, apaixonado pela leitura, cria um
poema cujo sujeito lírico luta por ideários políticos, site para incentivar a leitura e sofre ataques racis-
entre outros. Também, outros temas são preciosos tas, mas descobre um superpoder: “meu superpo-
na obra da poeta, como a mulher negra exaltada der é o conhecimento, e os livros são o remédio
no poema “Menina melanina”, a mulher negra em- para curar qualquer tipo de preconceito!” (DUAR-
poderada no poema “Sobre empoderar” e a mu- TE, 2020, s/p).
lher negra convicta de sua etnia e de seu gênero no
poema que nomeia sua obra – “Negra Nua Crua”. Essa parece ser a tônica da produção de
Mel Duarte, ou seja, fazer emergir em sua poesia
Na referida obra, Mel Duarte abarca su- as questões da mulher negra, dos povos da peri-
jeitos líricos afrodescendentes que lutam contra feria. As demandas e arte da mulher negra, das
a complexidade dos problemas que as envolvem pessoas da periferia, que ainda não têm seu valor
numa sociedade brasileira perpetuadora de um devidamente reconhecido, têm vez e voz na escrita
imaginário que subalterniza o gênero feminino e a de Mel Duarte.
raça negra.
E num país que insiste é perenizar um dis-
Com uma escrita que denuncia tais atroci- curso colonial no qual o homem branco hétero é
dades, Mel Duarte luta e vai ocupando um espaço aquele tem o privilégio de publicar livros, o fato de
e quebrando barreiras na literatura, traçando ca- se dar visibilidade a outras escritas é uma proeza.
minhos de inserção nesta com uma voz alta contra Esse movimento do qual a poeta Mel Duarte é uma
o silenciamento ao qual a mulher e, em especial, das batalhadoras mais aguerridas e seu trabalho
a negra, vem sendo submetida ao longo de nossa como poeta, slamer, produtora cultural subverte
História. esse discurso e possibilita novas significações.

No poema “Deslocamento – poema ma-
nifesto”, como anuncia o título, a experiência da

Referências:

ALVES, Miriam. A literatura negra feminina no Brasil – pensando a existência. Revista da ABPN, n.3, vol 1, nov.
2010-fev.2011, p.181-189.

DUARTE, Mel. Negra Nua Crua. 2ª ed. Ijumaa Editora, 2016.

_____________. A descoberta de Adriel. Livro digital disponível em: A Descoberta do Adriel - Leia para uma crian-
ça - Itaú (euleioparaumacrianca.com.br) Acesso em 05/04/2021

_____________. Deslocamento – Poema manifesto. Disponível em Slam das Minas RJ: Mell Duarte - Instituto
Moreira Salles (ims.com.br) Acesso em 05/04/2021

LORDE, Audre. Irmã outsider. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

8 Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021

Jamais o Fogo Nunca: uma narrativa da violência contra as mulheres

Elisa Cândida Alcântara de Sales1
Maria Fernanda Melgaço2
Rafael de Azevedo3

No campo claustrofóbico de Jamais o grupos rebeldes. Mesmo que as mulheres tenham
Fogo Nunca, a escritora chilena Diamela Eltit traz sido algumas das primeiras a se levantarem contra
diferentes substratos temporais, cruzados e co- os abusos ditatoriais, as propostas feministas eram
nectados, das memórias e lutas contra a Ditadura rechaçadas, pois eram vistas como “inoportunas,
de Pinochet. Por meio de duas personagens não inconvenientes e divisionistas” (BARSTED, 1991, p.
nomeadas, adentramos em um espaço minúscu- 107-109). Ou seja, havia, dentro dos partidos, um
lo, um quarto, no qual as subjetividades das per- medo de que, caso as pautas feministas fossem
sonagens interagem com essas dimensões espa- ouvidas, os grupos se rompessem (GONÇALVES;
ço-temporais. Nesse espaço comprimido, as duas HOLL, 2019).
personagens, as quais denominamos como “Ela” e Outra forma de violência se faz presente
“Ele”, habitam o quarto que contém em si relações na experiência daqueles contrários ao governo que
temporais, de poderes, de gêneros e de memórias sobrevivem aos porões da ditadura: é, de fato, uma
que se sobrepõem em uma constelação tempestu- sobrevida. A narradora do livro mora clandestina-
osa. Esse complexo tabuleiro de poderes, junto aos mente, saindo apenas para comprar comida, está
saberes, dita, disciplina e organiza os corpos das sempre com medo, dividindo um quarto em que
personagens, trabalhando de uma forma capilari- mal cabe duas pessoas. Logo, o preço da clandes-
zada e operacionalizada, além de criar poder-sabe- tinidade é alto. Além da perda de liberdade, a vida
res que modelam estruturas psicológicas e práticas do filho é tomada. Foi a realidade de muitos mili-
individuais (FOUCAULT, 1998). Podemos, então, tantes sobreviventes dos porões, e o Brasil não é
afirmar que a obra aborda temas extremamente uma exceção. Não só no livro, mas também na vida
pertinentes para a atualidade, em especial no que real, pais são separados dos filhos, seja pela morte,
diz espeito à violência contra as mulheres. seja pela necessidade de protegê-los (GONÇALVES;
Nesse sentido, podemos afirmar que a vio- HOLL, 2019).
lência é uma das temáticas base do livro, ligando- Com isso, vemos que, mesmo havendo
-se às estruturas de gênero e de poder, pois o po- uma constelação infinita no interior de uma única
der também é o tempo todo operacionalizado por cama, um único quarto e uma única célula, há um
Ele (e por outros) sobre Ela, em especial, marcando espectro que não desaparece e mantém a resigna-
uma performance que Ela precisa incorporar a todo ção revolucionária ainda muito viva: a onipresença
tempo e conformando diferentes formas de vio- do regime ditatorial. As atrocidades e violências da
lência. Uma dessas formas é a constante vigília de ditadura seguem vivas nas personagens e estagna-
uns sobre outros dentro da célula guerrilheira para das no tempo interminável e estanque do quarto.
manter a disciplina e o comportamento esperados Para que o poder desse espectro não seja derru-
de um militante austero (ELTIT, 2017). Entretanto, a bado, ele cria mecanismos e cicatrizes que os in-
vigília da célula não é simétrica. Ao longo da narra- divíduos levam sempre consigo. Ao analisar essas
tiva, fica clara uma repressão de seus companhei- cicatrizes percebemos que, mesmo que algumas
ros homens militantes exercida sobre Ela, justifi- formas de violência e tortura sejam iguais para ho-
cada por Ela ser mulher. Essa assimetria também mens e mulheres em regimes ditatoriais, as con-
se fez presente durante a ditadura brasileira, nos sequências sociais e os danos subsequentes, para

¹ Graduanda em História pela UFMG.
² Graduanda em História pela UFMG. Integra o grupo História Intelectual: narrativas, práticas e circulação de ideias, vincula-
do ao CNPq.
³ Graduando em História pela UFMG.

Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021 9

elas, são diferentes (GONÇALVES; HOLL, 2019). presente, haverá uma dívida com o passado, logo,
Historicamente, uma mulher “aleijada” não é uma as tentativas de apagar a memória com violência
moça para se casar; o próprio ato de a mulher ser não fazem com que, aos poucos, haja esquecimen-
ativa politicamente já a torna menos desejada para to. Destrói-se esta célula, este corpo, este arquivo,
o casamento. Ademais, as mulheres são sujeitadas mas ainda restam questões. Ainda haverá uma ge-
a formas de violência e tortura específicas. Elas ração futura que há de questionar essa memória
são punidas duplamente: uma vez por terem de- que tentaram esquecer, seja essa uma memória
safiado o governo, outra por terem se colocado no dos crimes das ditaduras, seja essa uma memória
domínio público, exclusivamente masculino. Ame- sobre a violência sistêmica que as mulheres so-
aças contra os filhos, nascidos ou por nascer, são frem. Questionamentos esses que Eltit brilhante-
comuns. Em adição, o estupro é o mais famigerado mente faz por meio de sua narrativa claustrofóbica
dos métodos de tortura (GONÇALVES; HOLL, 2019). e sobreposta.
No livro, fica subentendido que Ela tenha sido es-
tuprada: “De quem é? De quem é?”, Ele pergunta.
“De qualquer um, de todos, que importa.”, Ela res-
ponde (ELTIT, 2017, p. 166-167).

Essa especificidade da violência contra as
mulheres pode ser explicada pelos papeis sociais
atribuídos a elas. Elas são muito mais associadas à
reprodução do que os homens, considera-se que
elas têm um amor incondicional pelos filhos e uma
inclinação maior para o cuidado, por isso, a mater-
nidade é recorrentemente abordada (GONÇALVES;
HOLL, 2019). Esse tema também é comum fora dos
porões: Ela é uma cuidadora de idosos e do pró-
prio parceiro; Ela parece ser a única que se importa
com o filho perdido; a imagem da mulher grávida é
sempre evocada por Ela. Às mulheres, é relegado o
papel de guardiãs das memórias, mas das memó-
rias de outrem, normalmente, de algum homem.
Todavia, elas mesmas nunca são lembradas, con-
forme se observa no livro, já que a narradora, den-
tro da célula, era uma guardiã do passado: sua ta-
refa era copiar e guardar documentos. Não poderia
fazer outra coisa: era mulher. Ao mesmo tempo,
algo que sempre se apresenta em contraste à me-
mória é o esquecimento. Ele propõe um esqueci-
mento sistemático, uma tentativa de se apaziguar,
mas, se a memória está em campo de disputa, se
é da sua natureza ser aberta, a paz custa o silên-
cio. Quando se busca esse silêncio, como Menem
tenta na Argentina ou como Ele tenta, as vozes da
memória (seja as Mães da Plaza de Mayo ou Ela) se
resignam de maneira tática às reivindicações por
justiça (JELIN, 2017).

A narradora vive a morte um pouco mais a
cada dia, em vida, até que um feminicídio torna a
experiência concreta. Esse assassinato tenta apa-
gar aquela que busca rememorar, porém, Ela mes-
ma acaba se tornando uma memória. Assim, tor-
na-se impossível de ser apagada. Enquanto houver

10 Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021

Imagem: Pixbay

Referências:
BARSTED, Leila de Andrade Linhares. Legalização e descriminalização do aborto no Brasil: 10 anos de luta feminista.
Estudos feministas, n. 0/92, p. 104-130, 1991.
ELTIT, Diamela. Jamais o fogo nunca. Belo Horizonte: Relicário edições, 2017. Primeira edição. Tradução e prólogo
de Julián Fuks.
FOUCAULT, Michel. A microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1998.
GONÇALVES, Raquel Cristina Possolo; HOLL, Jéssica. “Já Não Estamos Exatamente Vivos” – pareceres da CA/MJ e
possíveis aproximações de Jamais o Fogo Nunca. Revista Sul-Americana de Ciência Política, v. 5, n. 1, 47-66, 2019.
JELIN, Elizabeth. La lucha por el pasado. Cómo construimos la memoria social. 1a ed. Buenos Aires: Siglo Veintiuno
Editores, 2017.

Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021 11

Apontamentos sobre a violência em
narrativas de Maria José de Queiroz

Jaciane Muniz de Aguiar1
Rita de Cássia Silva Dionísio Santos2

Maria José de Queiroz é uma escritora mi- buscam, a partir da memória, a descrição dos per-
neira que, em meio a um contexto e circunstâncias sonagens que, ao longo dos contos, vivenciam um
de opressão, propõe a elaboração de personagens emaranhado de angústias, de tristezas, de amor,
e eventos que resistem ao silenciamento e ao me- de vingança, chegando à morte. Percebe-se uma
moricídio. interferência dos narradores nos enredos e o res-
Queiroz nasceu em 29 de maio de 1936, gate do passado alternando os relatos das histórias
em Belo Horizonte. Começou a publicar ainda e desafiando a uma compreensão totalizadora do
como estudante. Doutorou-se em Letras Neola- narrado.
tinas pela Universidade Federal de Minas Gerais Nos cinco contos, as mulheres desempe-
(UFMG), ingressando como professora de Literatu- nham diversos papéis sociais, como, por exemplo,
ra Hispano-Americana, Brasileira e Comparada na em “O Juramento”, em que Queiroz mostra um cri-
UFMG. me ocorrido contra Irene Carvalho de Guimarães,
No livro Amor Cruel, Amor Vingador esposa de Cândido Mota Guimarães, circunstância
(1996), a escritora reúne cinco contos que podem em que o detetive Pedroso e o delegado Montal-
ser lidos de forma independente, sem que haja vão são os responsáveis pelas investigações do
uma sequência entre eles. Nas narrativas “O Ju- assassinato. Neste enredo de amor e morte, os
ramento”, “Velho com mulher moça”, “Iniciação possíveis suspeitos comparecem à delegacia, a
ao tratado do desespero”, “Ritinha-Chiquê”, ou “A seu tempo e vez, como réus ou como vítimas, para
hora do carvoeiro”, e “A morte ao pé da letra”, o que o interrogatório aconteça e os culpados sejam
amor e a morte impõem uma forma de vida, a par- encontrados. Várias mulheres estão presentes no
tir de uma lógica entre o bem e o mal. São histórias enredo (D. Irene Guimarães, Maria das Dores, Ildi-
enigmáticas que entram na esfera da trama policial nha, D. Marta Guimarães, dentre outras), algumas
ou criam, com sutileza, uma atmosfera de crime, ainda presas ao preconceito vigente na sociedade
de suspense, tecendo enredos de culpa e inocên- patriarcal, e outras mulheres/presenças femininas
cia, de castigo e condenação. que, aos poucos, vão tentando buscar seu protago-
“O Juramento”, uma nivola (podendo ser nismo no espaço social.
apresentado como conto ou como novela), é o en- O conto “Velho com mulher moça” relata
redo mais longo do livro de Maria José de Queiroz. a história de D. Elza de Moura, personagem femi-
Por sua vez, os contos “Velho com mulher moça”, nina marcante no conto, é uma jovem casada com
“Iniciação ao Tratamento do desespero”, “Ritinha- Sr. Raimundo. Modelo de mulher do lar oitocentis-
-Chiquê”, ou A hora do carvoeiro” e a “A morte ao ta, a personagem não tinha voz e era submissa ao
pé da letra” são narrativas curtas, breves. marido, cuidava da casa e do esposo. No final da
O livro Amor Cruel, Amor Vingador desafia narrativa, a moça juntamente com o amante Eleu-
a classificação de gênero, pois possui uma novela e tério, mata o marido. Percebe-se que, ao mesmo
quatro contos. Com focos narrativos variando en- tempo em que esta mulher se apresenta submissa
tre primeira e terceira pessoa, as cinco narrativas ao marido, os paradigmas patriarcais são minados,

¹ Mestranda em Letras/Estudos Literários – PPGL/Unimontes, da Universidade Estadual de Montes Claros-Unimontes. e-mail:
([email protected]).
² Professora doutora pela Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes, E-mail: ([email protected]).
12 Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021

quando D. Elza comete dois adultérios. A escritora casamento. Ritinha-Chiquê torna-se assassina do
descreve uma personagem que se sente cansada homem que poderia tornar-se seu esposo.
das regras e dos preconceitos o que provoca, en-
tão, uma reviravolta na narrativa. “A morte ao pé da letra” – conto narrado
em primeira pessoa, de evidente caráter metalin-
Em “Iniciação ao tratado do desespero”, a guístico – apresenta a trajetória de pesquisa de
autora apresenta três amigos que se conheceram Pierre Mouzon na universidade. A narrativa des-
no auditório do Departamento de Filosofia, no pri- creve uma professora universitária em suas longas
meiro ano de universidade. Aluísio frequentava o pesquisas literárias. Trata-se de uma mulher que
curso de Física; Cláudio Sampaio e Ruth Ferreira de foge dos preconceitos e da opressão do sexo mas-
Souza eram alunos de Ciências Sociais. culino. Esta personagem ficcional caracterizaria os
avanços conquistados pelas mulheres ao longo da
A D. Ruth Ferreira de Souza é uma mulher história.
empoderada que busca o direito igualitário entre
os sexos – o que, aliás, nos remete à declaração Em relação aos cincos contos, observa-se
de Tedeschi: “o empoderamento deve capacitar certo avanço gradativo em relação às mulheres:
as mulheres para assumir
o poder, levando em con- são do lar, solteiras, casa-
ta as relações de poder das, trabalham, pesquisa-
entre homem e mulher, doras. Nesse sentido, es-
hierarquicamente cons- sas narrativas bem podem
truídas” (TEDESCHI, 2016, ser entendidas como uma
p. 162). Queiroz apresen- metáfora da ascensão fe-
ta as mulheres em suas minina na história geral e,
conquistas, como pessoas de forma mais específica,
capazes de estar inseridas na historiografia literária.
em qualquer ambiente ou
área. Tedeschi (2016)
Fecham a coletânea “Riti- assevera que a história
nha-Chiquê ou A hora do carvoeiro” e “A morte ao das mulheres narra/reve-
pé da letra”. Em “Ritinha-Chiquê”, retrata-se uma Foto: https://pt.wikipedia.org/ la uma história do silên-
mulher de família tradicional, rica, que oscila entre cio uma história do confinamento, mais do que do
o ser ora uma mulher bem educada, que sabia la- esquecimento. Fica evidente em Amor cruel, Amor
tim e grego, ora uma simples beata, desmazelada vingador (1996) o tom denunciativo, irônico e críti-
no vestir, com os dentes, e que comia o que as pes- co, com que a autora expõe as práticas do machis-
soas lhe davam e vivia da caridade dos padres. mo e da violência, afirma Barbosa (2018).
Portanto, a escrita de Queiroz é articula-
Uma mulher que buscava e tinha como da por meio de acontecimentos que permeiam a
necessidade humana premente e aflitiva um casa- realidade social e que descreve personagens que
mento. Consegue, ao final, simplesmente satisfa- amam e cometem atos violentos (chegando aos
zer os prazeres carnais, mas sem a realização do homicídios), pelo dinheiro e pelo status social.

Referências:
BARBOSA, Maria Lúcia. História e Memória na ficção de Maria José de Queiroz. Belo Horizonte. 2018.
QUEIROZ, Maria José. Amor Cruel, Amor Vingador. Rio de Janeiro: Record, 1996.
TEDESCHI, Losandro Antonio. Os desafios da escrita feminina na história das mulheres. Universidade Federal da
Grande Dourados. Raído, Dourados, MS, v.10, n.21, jan./jun. 2016.

Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021 13

Violência e silenciamento dos sujeitos femininos
no conto “Marido”, de Lígia Jorge

Jardel Pereira Fernandes1

O conto ”Marido”, escrito por Lídia Jorge, Em sua obra Pode o subalterno falar a pes-
permite pensar as representações da violência físi- quisadora Gayatri Chakravorty Spivak reflete acer-
ca e simbólica que marcam a vida da personagem. ca do papel subalternizante da mulher no cenário
É possível refletir, também, no silenciamento dos histórico. A autora afirma que: “se, no contexto da
sujeitos femininos subalternizados. As nuances produção colonial, o sujeito subalterno não tem
que configuram formas de vio-
lência e silenciamento do femini- história e não pode falar, o sujei-
no são estruturadas na narrativa to subalterno feminino está ainda
como formas de representação de mais profundamente na obscurida-
um sistema patriarcal opressor. de”. (SPIVAK, 2010, p. 85).
O conto “Marido” publica- A violência física marca
do em 2014 encena os processos a vida da personagem Lúcia. En-
de violência e silenciamento a que tretanto, não se pode restringir
a personagem Lúcia está subme- as agressões aos atos praticados
tida. A personagem experencia o contra o corpo de Lúcia, porquan-
medo das agressões por parte do to são, sobretudo, formas de vio-
marido. As experiências de Lúcia lência simbólica. O filósofo Pierre
desvelam o histórico de opressão Bourdieu deslinda as figurações
e marginalização a que as mulhe- da violência simbólica ao mencio-
res estão sujeitas. O mundo Oci- nar que “a dominação masculina
dental perpetua as condições que encontra, assim, reunidas todas as
tornam os corpos femininos obje- condições de seu pleno exercício”.
tos a serviço do homem. Dentro (BOURDIEU, 2012, p. 45).
dessa perspectiva, o conto “Marido” traz à baila Foto: facsímile da capa O sujeito subalterno feminino per-
a personagem em situação de vulnerabilidade. Os manece em estado de obscuridade na narrativa.
extratos de violência estão imbricados no tecido A personagem Lúcia, cujo nome poderia indicar o
cultural universal da sociedade. De fato, a violência caminho da luz, mantem-se presa ao domínio do
para com a mulher transcende as fronteiras geo- marido. Ela convoca forças divinas para lhe auxiliar
gráficas. através do difícil e obscuro caminho pelo qual atra-
Reifica-se na narrativa a estruturação da vessa. São trilhas que a levam à morte.
violência e do silenciamento feminino, os quais No momento em que se elege a palavra
não se restringem ao mundo ocidentalizado. Pode- obscuridade para se referir ao papel da mulher em
-se pensar no tecido cultural lusitano marcado por uma estrutura social, remete-se às considerações
profundas cicatrizes dos processos de subalterniza- de Gayatri Spivak e Pierre Bourdieu para se pen-
ção e violência que condicionam os sujeitos femini- sar o espaço marginal ocupado pela personagem.
nos. Avançando em uma possível interpretação, Lúcia
A personagem Lúcia metaforiza os apri- não encontra meios de fugir, ainda que seja, uma
sionamentos sociais e culturais cujos sentidos são bruxuleante fonte de luz, para escapar do mundo
constituídos sob a égide histórica da dominação de escuridão em que se encontra. Seguindo nessa
masculina. esteira, o narrador recorre a entidades divinas em
busca de ajuda para a personagem: “Salve, Regina,

¹ Doutorando em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas. Pesquisador do Grupo de Pesquisa África e Brasil:
repertórios literários e culturais.

14 Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021

mater misericordiae, vita, dulcedo spes, imensa do décimo para o quinto andar. O narrador segue
doçura, salva e vem [...]. / Protege-a bem. / Prote- dizendo:
ge-a a ela e ao marido dela. (JORGE, 2014, p. 17).
A chama da porteira sai pela porta de serviço abai-
Nos meandros do relato percebe-se que a xo, correndo sem ruído até ao oitavo, ao sétimo,
voz do narrador entra em simbiose com a voz da ao sexto. Só no quinto a chama da porteira para.
personagem. São vozes polifônicas que clamam Crepita. É a porta do advogado do quinto. Sem ba-
por ajuda para Lúcia. A personagem, ludibriada rulho, fica à porta do advogado, das testemunhas
pela falsa ilusão de que o casamento precisa ser e da lei. A Regina assim quer que fique. Regina
preservado apesar da ameaça de morte, pede aos acocorada sobre ela assim no quinto, de asas aber-
seres divinos que protejam o marido agressor. O tas sobre o quinto, e o marido no décimo. (JORGE,
narrador segue contando a vida de Lúcia dentro 2014. p. 26).
de uma perspectiva que encerra o apagamento da
subjetividade e da voz da personagem: “é com voz O título do conto “Marido” remete o lei-
muito doce que a porteira ao cair da noite se põe tor ao fato de que o narrador não nomeia a pessoa
a chamar à janela pela Regina [...]. Mas não canta que possa se responsabilizar pelo crime cometido.
alto [...]. Pelo contrário, ela canta baixo, às vezes O anonimato do algoz, talvez, permita pensar no
só move os lábios à janela para não atrair a ira dos quadro generalizante e universal dos mecanismos
inquilinos. (JORGE, 2014, p. 19-20)”. e estruturas sociais que protegem e escondem os
sujeitos masculinos opressores.
A voz da personagem é ouvida aos sussur-
ros. O sociólogo Michael Pollak em suas considera- Os gritos do algoz em busca da esposa re-
ções acerca da memória, esquecimento e silêncio verberam nas considerações da obra Pele Negra,
considera os impactos e impossibilidades de seguir Máscaras Brancas do filósofo Frantz Fanon, o qual
o percurso normal da vida diante dos traumas en- considera a faculdade dos usos da linguagem como
frentados por diferentes indivíduos. Dentro dessa necessária para o estabelecimento das relações
perspectiva, o autor pondera: “pode-se imaginar, humanas. Ele afirma que “falar é existir absolu-
para aqueles e aquelas cuja vida foi marcada por tamente para o outro.” (FANON, 2008, p. 33). As
múltiplas rupturas e traumatismos, a dificuldade considerações deste autor permitem pensar que a
colocada por esse trabalho de construção de uma língua e a faculdade da linguagem são estratégias
coerência e de uma continuidade de sua própria de uso do dominador para conquistar. Nesse caso,
história.” (POLLAK, 2018, p. 11). a conquista se dá através do apagamento e silen-
ciamento da voz da personagem.
O protagonismo de Lúcia pode ser enten-
dido como representação perversa do sujeito que Ao ler o conto “Marido” é possível cami-
sofre as vicissitudes da dominação masculina. Não nhar pelos meandros dos modos de se exercer a
se pode conceber a palavra protagonista na narra- violência física, bem como, na inculcação da vio-
tiva como referência ao indivíduo que se apodera lência simbólica. E, sobretudo, nos processos de
de seu destino. De forma que, Lúcia se apresenta subjugação a que as mulheres estão sujeitas. De
na base de uma pirâmide social, cujo intuito é es- fato, a personagem Lúcia é subjugada pelo marido.
magar sujeitos que mantêm a base de sua susten-
tação. Avançando em outra possível interpretação, É possível pensar em sujeitos femininos
é possível pensar no ápice da pirâmide composto subalternizados de modo individual e coletivo. O
pelos opressores. corpo coletivo social coloca sobre os corpos femi-
ninos o peso da herança patriarcal histórica. São a
Seguindo nessa esteira, é permitido pen- violência física e psicológica as molas propulsoras
sar no desfecho do relato, no qual, Lúcia, por fim, capazes de silenciar o feminino. E é a naturalização
ocupa a base da pirâmide. Pois, no momento em desses processos de violência que tentam eviden-
que o marido ateia fogo em seu corpo, ela desce ciar a suposta e decantada, mas falsa, superiorida-
de do homem em relação à mulher.

Referências:
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 11º. ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2012.
FANON, Frantz. Pele negra máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
JORGE, Lídia. Marido. In: Antologia de contos. São Paulo: LeYa, 2014. p. 17-26.
MARQUES, Helena. A mulher sem rugas. In: Doze histórias de mulheres. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999. p. 37-47
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Disponível em: h�p: //bibliotecadigital.fgv.br/ojs/índex.php/reh/arti-
cle/view/2278/1417. Acesso em: 25 mar. 2018.
SPIVAK, Gayatri C. Pode o subalterno falar? Tradução de: Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André
Pereira Feitosa. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021 15

Caminhos do corpo feminino

Jessica Ziegler de Andrade1

A vida humana pode ser entendida como nós mesmos e uns pelos outros” (BUTLER, 2019,
uma rede composta por corpos interagindo a partir p.48). O movimento é, mais ou menos, o de al-
de seus desejos. Assim, por meio de um contínuo guém abrindo a cortina: se quero ampliar a visão,
entrelaçamento de impulsos, ritmos e vozes, bus- preciso conviver com o risco da exposição. Quanto
camos encontrar sentido para nossas existências. mais me movo para conhecer, mais revelo de mim
No entanto, a vida é o que nos extrapola, ou nas ao mundo.
palavras de Clarice Lispector, “inclusive muitas ve- Nos versos da poeta portuguesa Maria Te-
zes é o próprio apesar de que nos empurra para resa Horta, observamos o movimento: “Regresso
frente.” (LISPECTOR, 1998, p.26) para mim/ e de mim falo/ e desdigo de mim/ em
Contudo, compreender que há uma par- reencontro”. Impulsionados pela poesia de Horta,
cela considerável de imprevisibilidade em nossas podemos nos entender enquanto caminhantes
existências, não nos lança abismo abaixo. Se por pelo sol, braços, boca, sabor, ombros. Caminha-
um lado, não controlamos tudo e somos surpreen- mos a fim de revelarmos o ainda desconhecido, o
didos pelo outro, assumimos algumas responsabi- mistério do sonho que nos vive. “Trago para fora/
lidades. Interagimos nessa rede; há laços invisíveis o que é secreto/ vantagem de saudade/ o que é
que nos conectam uns aos outros, mas, nem por segredo/ Retorno para mim/ e em mim toda/ de-
isso devemos nos abster de criar certos limites. “É sencontro já o meu regresso” (HORTA, 1983, p.55).
importante afirmar que nossos corpos são, em cer- O corpo feminino enquanto caminho(s),
to sentido, nossos, e que temos o direito de reivin- revela. “Revela o quê?”, alguém pode se questio-
dicar direitos de autonomia sobre eles.” (BUTLER, nar. A resposta está longe de ser única e pontual.
2019, p.45). Muito acontece por meio do corpo feminino... Tal-
Trata-se de uma dialética entre o imprevi- vez, a arte surja como possibilidade de esclarecer
sível da vida e a forma por meio da qual compre- o tema, resplandecendo aspectos até então enco-
endemos o entorno. Nossos corpos e, neste texto bertos. Por ora, basta-nos a consciência de que o
falamos, sobretudo, dos femininos, são elos com o corpo feminino precisa deixar o anonimato e reve-
passado, laços com o momento presente e poten- lar, não importando o quê. Para tanto, a arte expõe
cialidade para o futuro. e, a partir disso, elabora e ressignifica. Por meio
Por conta do outro, eu consigo ser. Apesar dela a cortina se abre e a visão se amplia. Assim, o
do outro, eu também sou. artista é o veículo através do qual o corpo expressa
É com grande estupefação que nos pergun- seus mais genuínos desejos.
tamos, então: mas quem sou eu? “Quem sou eu? Em Cambridge, no ano de 1928, Virginia
Mas, não; a pergunta certa, já disse Hélène Cixous, Woolf questionou à plateia: “quem pode medir
seria: “quem são eu, quem me sonha?” (PINHO, o fogo e a violência do coração do poeta quando
2015, p.20). Somos vários, múltiplos, precários e capturado e enredado num corpo de mulher?”. Na
desconhecidos. O sonho enquanto representação ocasião desta palestra, Woolf concluiu que a expo-
máxima do desejo é a vida pulsando e nos condu- sição de uma escritora na época de Shakespeare
zindo. E, aí, talvez, a próxima pergunta seja: mas seria fatal: “teria sido impossível, completa e intei-
para onde? Arriscaríamos dizer: cada vez mais para ramente, a qualquer mulher ter escrito as peças de
a consciência de nossos próprios corpos. Shakespeare na época de Shakespeare” (WOOLF,
Nesse sentido, o que nos relaciona tam- 2019, p.47-49).
bém nos expõe. Como pontuou Judith Butler: “a Isso, pois, um artista, por mais deslocado
violência é, sempre, uma exploração desse laço que pareça, depende da rede que o cerca. Nesse
primário no qual estamos, como corpos, fora de diapasão, a imaginária e talentosa irmã de Shakes-

¹ Poeta, escritora e advogada. Sua primeira publicação foi aos 13 anos, com o texto “Súplicas na escuridão”, premiado e
publicado em coletânea pela Biblioteca Nacional e Folha Dirigida.

16 Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021

peare, Judith, estaria conde- Foto: Stefan Keller
nada a se matar aos dezesse-
te anos: grávida, desolada, isso, ele abre todos. Por isso, abrindo todos logo,
desnorteada pelo peso de não consegue abrir duas vezes o mesmo cadeado.
sua genialidade. Em outras Por não ser proprietário, mas apenas passante do
palavras, revelar a potencia- segredo.” (TSVETÁEVA, 2017, p.174).
lidade do corpo numa socie-
dade sem consciência, é o O corpo feminino demonstra, a poeta des-
mesmo que atirá-lo ao abis- tranca os cadeados, abre as cortinas para o imenso
mo. que desponta. E o abismo? É o tempo agindo con-
tra o espectador, atirando-o por medo e incompre-
Marina Tsvetáeva, ensão. Lançando-o com brutal violência. É a rede
ao pensar a relação entre o buscando eliminar quem ousa sair dela para pen-
poeta e o tempo, asseverou sar o próprio lugar.
que “o poeta é um indivíduo
multiplicado por mil”, ou ain- Mas que ninguém se engane. Não! O artis-
da, “é alguém que saiu dos ta não cria para seu próprio tempo; o artista abre
limites da alma na palavra.” as cortinas do futuro! Os versos de Tsvetáeva es-
(TSVETÁEVA, 2017, p.36). critos em Koktebel (Crimeia) no ano de 1913 ensi-
Talvez por isso, Woolf tenha nam com singular maestria: “Para meus versos de
aventado como incomensu- juventude e morte/ – Para meus versos não lidos!
ráveis o fogo e a violência do – / Atirados em sebos poeirentos,/(Onde ninguém
coração do poeta quando envolvido no corpo de os pega ou pegará!)/ Para meus versos, como os
uma mulher. É possível ir um pouco além e indagar: vinhos raros/ Chegará seu tempo” (TSVETÁIEVA,
quantos sonham no corpo de uma única poeta? 2006, p.3). Apesar de – ainda rara – consciência;
apesar de tamanho risco de violência... É tempo! É
O artista, e aqui tomemos como base a po- sempre tempo de se abrir caminhos para os corpos
eta, é alguém que está na rede, ao mesmo tempo femininos.
em que ousa sair dela. É um “indivíduo multiplica-
do por mil”, comunicando seus sentidos através da
palavra, rasgando todos os possíveis limites da lin-
guagem, desnudando-se. No coração de uma mu-
lher, a poesia é o absurdo escancarado e revelado
ao mundo. Destarte, a poeta está sempre tentan-
do encontrar meios de dizer o que ninguém está
pronto para ouvir. “Enfim, perdoem-me, pelo amor
de Deus, por eu ser poeta, pois se eu escrevesse
de um jeito que vocês pudessem se reconhecer,
eu não seria o que sou: poeta.” (TSVETÁEVA, 2017,
p.91).

Logo, a poeta precisa revelar o que sente
no corpo, ainda que o sistema insista em refreá-la.
Sua linguagem comunica os desejos de outras mil
mulheres. É pelo corpo da poeta que o segredo será
passado adiante, afinal, sem a surpresa da arte, a
vida não se revela. “Mas o poeta não é dono de
nenhum cadeado. Nenhum deles lhe pertence. Por

Referências: 17
BUTLER, Judith. Vida precária: Os poderes do luto e da violência. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
HORTA, Maria Teresa. Poesia Completa II. Portugal: Litexa, 1983.
LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
PINHO, Davi. Imagens do Feminino na Obra e Vida de Virginia Woolf. 1ª ed. Curitiba: Appris, 2015.
TSVETÁEVA, Marina. O Poeta e o Tempo. Belo Horizonte: Âyiné, 2017.
TSVETÁIEVA, Marina. Indícios flutuantes (Poemas). 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. 2ª.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.

Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021

Patrícia Melo: arquivo do feminicídio

Kelen Benfenatti Paiva¹

Trazer para a ficção a relação entre litera- da mãe, apavorada diante da agressão que, para
tura e sociedade não é marca exclusiva da escrita li- ela, era a fase 1 do que culminaria em sua possível
terária contemporânea, assim como também não o morte, aceita o desafio de partir para o município
é abordar a questão da violência. Contudo, diante de Cruzeiro do Sul, no Acre, para acompanhar de
de um cenário em que o feminicídio é destaque na perto uma série de julgamentos de assassinos de
mídia televisiva e impressa e nos tristes números mulheres da comunidade local.
de uma estatística que insiste em aumentar assus- A narrativa se desdobra com a sobreposi-
tadoramente, Patrícia Melo, em seu romance Mu- ção da violência que atinge diferentes mulheres de
lheres empilhadas (2019), toca o âmago da ques- diferentes idades, etnias, biotipos e classes sociais.
tão ao usar a narrativa para estabelecer, de forma A morte de Txupira, uma menina índia com ape-
inquietante e incômoda, a relação entre ficção e nas 14 anos, estuprada e assassinada com absur-
realidade. do requinte de crueldade por homens de famílias
A autora cria um romance em que o prota- ricas e de influência na cidade, sustenta a narra-
gonismo feminino se impõe não apenas pela ação tiva que se entrelaça a outras mortes como a de
e reação de uma jovem advogada paulista que vai Carla, a promotora, Rita, a jornalista que denuncia
para o Acre com o intuito de coletar informações os assassinos, e também com as inquietações da
sobre crimes contra mulheres para o escritório em protagonista, sua imersão na cultura indígena, os
que trabalhava em São Paulo, mas, sobretudo, por rituais na floresta, a busca de si mesma e de acesso
uma abordagem feminista que constrói essa narra- a uma memória perdida, cercada por “um arame
tiva sob a perspectiva das mulheres. farpado”, memória que talvez ela própria tenha in-
A morte de mulheres é mais que uma te- conscientemente feito questão de apagar.
mática nesse romance, ganha a cena literária e se Ao colocar em cena várias histórias de vio-
constrói a partir de pesquisas e referências reais, lência contra mulheres, a autora acaba por eviden-
números reais, mulheres reais. Ficção e realidade ciar e enfatizar a questão da memória individual
se fundem e confundem para levar o leitor a refle- e a da coletiva. A história de violência de uma se
tir sobre a urgência do assunto. projeta na história de muitas. Nas cenas se repe-
Na criação do texto ficcional, a autora se tem os agressores, o marido, o namorado, o pai, o
vale do que neste texto chamamos de “Arquivo conhecido... E elas esfaqueadas, queimadas, tor-
do feminicídio”, acontecimentos reais que vão se turadas, estupradas, mortas... A justiça “movida a
somando a uma história de violência e morte de carvão”, como afirma a narradora-personagem, é
mulheres em diferentes espaços e tempos, um ar- lenta, ineficaz e não se propõe à escuta dessas vo-
quivo que vai se constituindo a partir de relatos, zes silenciadas pela violência.
depoimentos, processos jurídicos, estatísticas, im- Em um espaço de delírio, no meio da flo-
prensa periódica e televisiva, redes sociais, estu- resta, entre as índias, com o uso de uma bebida
dos, entrevistas, pesquisas. alucinógena, a narradora-personagem vivencia a
Após sofrer um ato de agressão, uma bo- irmandade feminina, participa do corpo guerreiro
fetada dada por seu namorado em uma festa, a das icamiabas, integra-se à tribo de mulheres guer-
protagonista, que tem em sua trajetória familiar a reiras que se constitui de mulheres assassinadas.
marca da violência, o assassinato da mãe cometido Esse encontro e convívio aparecem intercalados
por seu pai, tem no episódio do bofetão o gatilho de forma fragmentar com letras em negrito no ro-
para uma série de questões que envolvem o trau- mance. Como subtítulos, estampam-se as letras
ma. Com lapsos da memória traumática pela perda do alfabeto grego, criando o efeito de uma história

¹ Doutora em Literatura brasileira pela UFMG. Professora do Curso de Letras do IF Sudeste MG, em São João del-Rei.

18 Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021

Imagem: Pixbay

dentro da história, e, ao mesmo tempo, evocando os nomes das mulheres assassinadas. É como se,
o mito grego das Amazonas. Intercalados ainda são ao escrever ali, estivesse materializando a história
os breves relatos da morte de mulheres reais nu- dessas mulheres. Esse arquivamento é também
merados no romance. Talvez se possa afirmar que uma forma de lhes dar sobrevida, não permitin-
com essa estratégia de escrita a autora também do que a sociedade as esqueça. A escrita se apre-
chame a atenção do leitor para as tantas histórias senta como um antídoto ao esquecimento, uma
individuais de mulheres que se inserem dentro de tentativa de não se repetir o apagamento do que
uma macronarrativa de violência contra a mulher, ocorrera com sua mãe. Essa tentativa de preservar
do âmbito doméstico às mais externas e escanca- essa memória coletiva se repete no que se refere
radas formas de violação. à memória individual da personagem, e em sua in-
cessante luta entre lembrança e esquecimento, ela
Será ainda nesse espaço e tempo da flores- vai, pouco a pouco, desvendando em sua memória
ta que elementos do sobrenatural irão compor a traumática a história do assassinato de sua mãe.
narrativa, uma realidade imaginada em que o ato
e a fala são exclusivamente femininos. É longe da Nesse processo de pensar o fazer ficcional,
cidade, de volta ao primitivismo, na relação com as categorias de personagem e autora se aproxi-
a natureza, os cheiros da floresta, o toque da água mam e coincidem, quando pensamos em como
do rio, entre mulheres, que a memória da prota- o romance de Patrícia Melo também se propõe a
gonista, em um momento de epifania, se revela, e arquivar a história de violência contra essas mu-
que aquilo que estava oculto, o apagamento sobre lheres por meio da escrita literária, assim como
a morte de sua mãe, vem à tona. É também nes- ela própria faz do romance seu caderno de mu-
se espaço de comunhão feminina que as vozes das lheres empilhadas. Ao não nomear a protagonis-
mulheres fazem coro em um discurso coletivo de ta, a autora a aproxima também de tantas outras
guerra contra homens assassinos de mulheres, em mulheres que se inserem no coro de vozes que, de
uma vingança declarada. alguma maneira, denunciam essa violência, regis-
trando para o presente e para o futuro mais que
Em um gesto metaficcional, a autora inse- números, histórias de vidas que compõem o que
re na narrativa o caderno de mulheres empilhadas. aqui chamamos de Arquivo do feminicídio.
A narradora personagem escreve nesse caderno

Referências:
MELO, Patrícia. Mulheres empilhadas. São Paulo: Editora Leya 2019.

Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021 19

Não aceite caramelos de estranhos ou os labirintos e
redemoinhos da violência na escrita de Andrea Jeftanovic

Luciana Pimenta1

Ao juntar os rastros/restos que sobram da vida e da história oficiais,
poetas, artistas e mesmo historiadores, na visão de Benjamim,
não efetuam somente um ritual de protesto.

Também cumprem a tarefa silenciosa, anônima, mas imprescindível,
do narrador autêntico. (GAGNEBIN, 2009. p. 118)

O difícil de falar da violência talvez esteja no-americanas, pode ser inserido neste lugar que
em começar por reconhecer que a violência seja, se deixa sentir de maneira in-familiar. O livro foi
de alguma e tantas formas, não apenas algo “lá”, traduzido no Brasil por Luis Reyes Gil e integra a
de que damos testemunho, como terceiros, mas coleção ¡Nosotros!, que tem como proposta divul-
algo “aqui”, em nossos corpos, uma imensa parte gar escritores latino-americanos: “Cada autor que
constitutiva do mundo e de nós. A palavra tem ori- escolhemos dá, a seu modo, um rico testemunho
gem latina, no prefixo vios, que significa força, o deste Novo Mundo: daquilo que fomos forçados a
que significa que a violência se refere a uma ener- ser, daquilo que acabamos por ser e, se for o caso,
gia vital que, na psicanálise, foi nomeada como daquilo que desejamos e podemos ser”. Há uma
pulsão de morte (FREUD, 2017). De modo que a força, pois, tanto naquilo que fomos forçados a ser
violência não se dá a sentir apenas nos fatos, mas quanto na fatalidade do que acabamos por ser e
nas elaborações simbólicas que resultam em cria- naquilo que desejamos e podemos ser. Uma força
ção e invenção, provenientes dessa força. Há, por- que está na escrita, no corpo que escreve e no cor-
tanto, uma força criativa advinda dos redemoinhos po da escrita, no ato de narrar e nisso que se pode
da violência, dentro de nós, como registrou Jean chamar, não sem a violência de uma instituição, de
Genet, que testemunhou os horrores do abando- literatura.
no e da violência das ruas: “Dou nome de violên-
cia a uma audácia em repouso apaixonada pelo O livro contém onze contos, todos visce-
perigo. Pode ser percebida num olhar, num andar rais, circundando e atravessando relações e senti-
apaixonado, num sorriso, e é dentro de nós que ela mentos perturbadores em torno do vazio e da in-
produz redemoinhos. Ela nos desmonta.” (GENET, compreensão nas muitas formas do existir, restar
2015, p. 15). Dito de outro modo, o difícil talvez e dar testemunho. Um elemento comum a todos
seja reconhecer que estamos diante de algo estra- os contos, além da força que os permeia, como
nhamente perturbador e estranhamente familiar, fio condutor das narrativas, é a presença de uma
o que pode ser lido no conto O homem de Areia, epígrafe. Neles a epígrafe funciona em seu senti-
de Hoffmann, que remete ao termo Unheimliche, do mais radical. Do grego antigo, epígrafe significa
desenvolvido por Freud, traduzido como “O Infa- “escrever acima de”, sendo originalmente uma ins-
miliar” (FREUD, 2019). crição em prosa ou em verso, talhada em bronze
ou mármore, que se colocava sobre tumbas para
Não aceite caramelos de estranhos, de An- lembrar a memória dos mortos. Nesse lugar, a epí-
drea Jeftanovic (2020), escritora chilena, uma das grafe se co-funde ao epitáfio. Assim, talhadas no
representantes da atual geração de escritoras lati- branco mármore do papel, cada epígrafe pode ser

1 Doutora em Direito (PUC-MG); Mestre em Filosofia (UFMG); Professora da PUC-MG; Colíder do GP Legentes (PUC/CNPq);
Membro do GP Mulheres em Letras (FALE-UFMG/CNPq); Membro da Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL). Pesquisa em
Direito, Literatura, Filosofia e Psicanálise. Poeta e mãe.

20 Mulheres em Letras - n.17 - Set. 2021

lida, também, de alguma e muitas formas, como sempre, a entonação de costume, tudo igual, mi-
um epitáfio que se inscreve sobre as muitas es- nhas pernas cruzadas, o cigarro na mão, só que em
pécies de morte envol-vidas na escrita de Andrea vez de alô pergunto angustiada: Alguma notícia?”.
Jeftanovic. E não se pode desprezar o gesto da epí- A filha, “uma menina ainda com cheiro de animal-
grafe, esse colocar uma escrita acima por cima de zinho, uma mistura doce e salgado que azedava na
outra, em camadas labirínticas e de rasuras, é o boca. Um odor selvático, mesclado com xampu e
que constitui a própria literatura, em seu segredo e sabonete de lavanda”. É impossível não sentir, ao
sua própria condição de ser. longo de cada linha, a dor da pergunta que vai aflo-
rando o desespero da mãe, uma pergunta inscrita
No conto Não aceite caramelos de estra- literatura de testemunho, por Primo Levi, a indagar
nhos a epígrafe é assinada por Milan Kundera, “No o que fizemos de nós: “É isto um homem?” (LEVI,
dia em que mamãe saiu à rua com os sapatos in- 1988). O cheiro de “animalzinho” vai exalando das
vertidos, eu soube o que era a dor”. No conto, des- folhas do livro e o odor sentido contrasta com bo-
de a epígrafe, tudo dói. A voz é de uma mãe que lor do conceito de Humanismo e O Mal-estar da
dá voz a milhares e milhares de mães de crianças civilização (FREUD, 1997).
desaparecidas no Chile e no mundo. Uma voz que
se perde em um mar sem fundo de dor. “Deve exis- “Uma menina alta de onze anos, mas que
tir um corredor de crianças andando em sentidos parece mais velha, uma menina cada vez mais alta,
insuspeitos por La Alameda, que corre paralela ao onze, doze, e nesse doze um silêncio perturbador
Rio Mapocho, de oriente a poente ou de poente a (...). Não há celebração para o seu aniversário de
oriente. As vozes se amontoam, a campainha, as número doze, porque você ficou parada nesse arco
batidas do coração, abram, socorro, não me aban- de meses”. E assim caminha o conto, recolhendo os
donem.” – e escorre pelas ruas de Santiago, pelas rastros e os restos de Antônia, uma entre milhares
praças, pelos mercados. Tudo em nossos corpos se e milhares de filhas e filhos desaparecidos no mun-
dobra e dói. “Desde que você se foi, sinto tão inti- do. “Uma menina entre a infância e a adolescência
mamente a vibração da ponte quando cruzo o rio. sai com uma laranja separando os gomos, deixan-
Retomo sua pergunta e penso que você investiga o do um aroma cítrico como rastro. Como ninguém
lugar geométrico de onde emergem as pulsações a viu? Como ninguém sentiu um raio de ar impreg-
do órgão vital dessa urbe. Procura a janela que de- nado pelo aroma de flor de laranjeira?” A pergunta
volverá sua imagem...” que dói é essa: como ninguém a viu? Como pode
ser concebível que ninguém a tenha visto? O per-
Enquanto narra, atravessando a cidade, curso é doloroso como a própria escrita que sobre-
debruçada sobre o parapeito donde vê e contem- vive ao vazio. “Vou tecendo a tira de lã, esse fio
pla o incessante fluxo do rio, uma repetição (como secreto. Você desenha um labirinto com fios colo-
eco da dor) vai alinhavando os parágrafos, sempre ridos desde nossa casa até a rua, ida e volta. Antes
seguidos de dois pontos (essa inscrição do outro de cair no sono, deixo as botinhas ao lado da cama.
no discurso), “Eu lhe disse tantas vezes: “Não acei- (...) Por que toda noite me dói tanto desamarrar as
te caramelos de estranhos””. Todas as noites a mãe botinhas?”
faz mais de um chamado à polícia “com a voz de

Referências:

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago Ed.,
1997.
FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos. Tradução Pedro Heliodoro Tavares. Belo Horizonte: Autêntica Edito-
ra, 2017.
FREUD, Sigmund. O Infamiliar; seguido de O homem de Areia, de E.T.A Hofmann. Tradução Ernani Chaves. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2009.
GENET, Jean. Diário de um ladrão. Tradução Jacqueline Laurence, Roberto Lacerda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2015.
JEFTANOVIC, Andrea. Não aceite caramelos de estranhos. Tradução Luis Reys Gil. São Paulo: Mundaréu, 2020.
LEVI, Primo. É isto um homem? Tradução Luigi Del Re. Rio de Janeiro, Rocco, 1988.

Mulheres em Letras - n.17 - Set. 2021 21

De Mulher para Mulher:
Epístola da desobediente para a Louca

Ozana Aparecida do Sacramento1
Valéria Carvalho dos Passos Toledo2

Abordaremos brevemente as desventuras mento fez-se a serviço do processo de colonização”
das personagens Isabel das Santas Virgens e Blan- (DEL PRIORE, 1993, p.27).
dina de Castro e Freitas, na obra Carta à Rainha As mulheres nesse período só vislumbra-
Louca. As protagonistas, como veremos, não se vam dois horizontes: o casamento ou o convento,
adequavam aos padrões sociais da época, ousavam ambos enclausurantes. Então suas trajetórias são
desafiar as regras impostas e sofriam as brutais moldadas por desejos insatisfeitos, medos, dores
consequências dessa intrepidez. e abandonos. Perscrutar a realidade das persona-
Carta à Rainha Louca foi escrito por Maria gens muito revela do universo feminino da época
Valéria Rezende, freira da Congregação de Nossa marcado pelo patriarcalismo e, não raro, pela vio-
Senhora Cônegas de Santo Agostinho e educadora lência contra as mulheres de todas as classes so-
no Brasil e no exterior. Além desse trabalho, a au- ciais.
tora também luta pela igualdade de gênero e por Apesar de não ter uma boa condição so-
uma literatura inclusiva. Rezende ingressou na li- cial, Isabel teve a oportunidade de aprender a ler e
teratura tardiamente, lançando seu primeiro livro a escrever, o que a levou a ter um novo olhar sobre
de ficção, Vasto Mundo, em 2000, escreve também sua condição e buscar perspectivas para reagir e
contos, crônicas e literatura infanto-juvenil. Sua meios para sobreviver, o que lhe trouxe muitos in-
obra já foi reconhecida com os prêmios Jabuti, São fortúnios: maus tratos, prisões, violência, castigos,
Paulo de Literatura e Casa de Las Américas. entre outros.
O romance Carta à Rainha Louca (2019) A partir desta realidade, Isabel percebe
apresenta o formato epistolar, uma longa carta em que há algo de errado em relação a sua própria
que Isabel está construindo sua história e reorga- condição de mulher. Supostamente “empoderada”
nizando seus pensamentos, na medida em que vai para os dias atuais e perante esta condição, ela tem
contando sua triste e longa história e, por meio da o ímpeto e a prepotência de escrever à rainha que,
missiva, passa a existir perante a rainha, pois escre- como ela, também é nomeada como louca. A re-
ve e, de certa forma, é pela escrita que existe. metente denuncia à rainha, os “podres” da coroa
Isabel das Santas Virgens é tachada como portuguesa no Brasil, em especial, a situação da
“louca”, pois não se permite ficar presa ao seu re- mulher. A rainha era uma mulher de atitude forte,
pertório de conhecimentos e experiências, pro- com visão humanista com a qual Isabel se identi-
curando tornar-se cada vez mais preparada e ficava e partilhava da mesma condição feminina,
conectada com as mudanças, sendo capaz de se embora ocupasse uma posição social muito infe-
reestruturar e se reinventar com coerência diante rior.
das adversidades. Isabel e Blandina viviam no perí- A trajetória das vidas de Isabel e Blandina
odo colonial brasileiro o qual foi marcado por uma evidencia as situações em que optaram por lutar
sociedade patriarcal, na qual a mulher ocupava ou não, assim como as escolhas e as decisões que
uma posição de subalternidade, sofrendo um pro- tomaram em momentos de grandes atribulações e
cesso de adestramento de seus corpos e mentes. incertezas. Observar essas trajetórias revelam que
Para Mary del Priori “Adestrar a mulher fazia parte o mais determinante e transformador, ou seja, o
do processo civilizatório e, no Brasil, este adestra- maior diferencial entre as duas jovens foi a pode-

1 Doutora em Literatura Comparada (UFMG). Professora do IFSudesteMG - Campus São João del Rei. E-mail: ozana.sacra-
[email protected].
² Graduada em Letras pelo IFSudesteMG. E-mail: [email protected].

22 Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021

rosa aquisição do saber e ler e escrever, Foto: Susanne Jutzeler
pois, a partir desse momento, Isabel ad-
quire conhecimentos e domínio sobre si outra instância predominantemente masculina, a
mesma e sobre o meio no qual está in- Igreja.
serida. Dama de companhia de Blandi-
na, Isabel nem imaginava ter acesso às Devido à sua desobediência às normas ci-
valiosíssimas leitura e escrita, mas ao ver vis e religiosas, Isabel é enviada para a prisão e sua
surgir a oportunidade, percebe que talvez última chance é o perdão real. Eis a razão de sua
ali estivesse a única chance de mudar seu longa missiva à mulher mais poderosa do reino, D.
destino. Maria. Esta também afligida por sua condição de
saúde e, principalmente, pelo poder patriarcal que
Blandina, filha de rico proprietá- não via com bons olhos uma mulher arrojada no
rio de terras e destinada ao casamento poder.
arranjado, vê seus anseios românticos
encerrados pelo poder paterno. Já Isabel, A carta de Isabel parece ser sua última pro-
filha de um capataz, vivia num limbo so- va de resistência, a chance de buscar ajuda e de
cial, como muitas mulheres brancas que ser ouvida por uma mulher solidária à sua história,
“não servem para o trabalho [...] nem para parir pois sabe que é inútil recorrer a um homem, po-
crias cativas, sem dotes para casar-se [...], ainda rém ela percebe que nada vai mudar sua condição,
menos se algum homem as desonrar à força, cousa uma vez que seu destino já está selado e perante
tão fácil de acontecer nesta terra sem lei onde eles sua condição ela protesta dizendo: “Esta serva que
tudo podem” (REZENDE, 2019, p.12). lê e escreve mesmo contra todas as regras deste
mundo e contra todos os ditames da Fortuna” (RE-
O mundo patriarcal sempre apontou o si- ZENDE, 2019, p.14).
lêncio, a obediência e o recato como qualidades
desejáveis para as mulheres. Assim, a sua fala, sob A escrita de Maria Valéria Resende nos in-
qualquer forma, incomodava muito aos interes- cita a rever esses lugares de silêncio aos quais as
ses políticos, sociais e religiosos. Todos esses in- mulheres foram confinadas. Embora situado no
teresses eram traços do poder masculino, mesmo período específico do Brasil Colônia, a carta de Isa-
quando havia mulheres em posição de mando, a bel nos faz pensar que, guardadas as diferenças,
forma de exercê-lo era patriarcal, como se observa muitas mulheres ainda são abusadas e encarcera-
no convento para o qual Blandina é enviada após a das de várias formas e que há ainda muito a fazer
gravidez indesejada. para que todas a mulheres tenham o direito de se-
rem ouvidas. A missiva enviada pela humilde e co-
O único caminho possível para uma mu- rajosa súdita Isabel das Santas Virgens à soberana
lher de posses e desonrada, como Blandina, era D. Maria, “a louca”, traça ficcionalmente um retra-
o convento. Aí, as mulheres eram submetidas ao to das adversidades e posição social da mulher do
poder das superioras e no caso da personagem, ao período.
abandono material do pai. A situação da jovem re-
ligiosa só não era mais trágica graças à diligência de
Isabel. Esta usava de suas habilidades para ganhar
a vida fazendo os relatórios no lugar da madre car-
torária.

Após a morte de Blandina, Isabel come-
ça uma aventura carregada atrocidades. Sem seu
ganha-pão, Isabel, disfarçada de homem, passa
a vender cartas e poemas para fins diversos. Per-
seguida, foge para Minas Gerais, escondendo sua
identidade, pois mulheres não eram donas de si.
Em Minas, Isabel funda uma casa de recolhimen-
to, acolhe desafortunadas como ela e atrai a ira de

Referências
DEL PRIORI, MARY. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil colônia. Rio de
Janeiro: José Olympio e Brasília: Edunb, 1993.
REZENDE, Maria Valéria. Carta à rainha louca. 1ª ed. – Rio de Janeiro: Alfaguara,2019.

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Vamos meter a colher sim: o problema da violência
consentida representado no romance

Outros Cantos, de Maria Valéria Rezende

Renata Cristina Sant’Ana¹

Para discutir a violência de gênero repre- Frente a essa situação, interessa analisar o
sentada na literatura, apresento uma leitura do perigo que o isolamento e a blindagem da vida pri-
romance Outros Cantos, de Maria Valéria Rezende vada podem significar, sobretudo quando se tem
(2016). A narrativa trata do retorno da narradora uma cultura que impede interferências externas
e personagem Maria ao povoado fictício de Olho que auxiliem na defesa da integridade física das
d’Água, localizado no sertão do Nordeste brasileiro, mulheres vítimas de agressão. É importante cha-
para realizar uma palestra em um sindicato rural. mar atenção para o fato de que o isolamento da es-
Ao longo desta viagem, a personagem vai revisitan- fera da vida privada, sob o pretexto da preservação
do as memórias de um tempo longínquo e difícil, da intimidade e da privacidade da entidade fami-
vivido naquela região para onde havia sido envia- liar, significa também o isolamento da política que
da para trabalhar como professora do MOBRAL, o governa as relações de poder na vida cotidiana, o
programa de alfabetização de adultos, implantado que acaba por afastar o caráter político e confliti-
pelo governo em meio ao período da ditadura mili- vo existente nas relações familiares. Vale ressaltar
tar no Brasil. Porém, na verdade, a ida da persona- que, no universo particular das relações afetivas
gem Maria para o povoado fazia parte de um plano vivenciadas cotidianamente entre as paredes de
de ações de conscientização política, articulado uma casa, ocorrem violências de naturezas diver-
junto às organizações revolucionárias e aos movi- sas, e, de acordo com Biroli (2014) é no mundo dos
mentos de resistência ao regime de ditadura. afetos que muitos abusos são cometidos em nome
Mergulhada no interior sertanejo, em um da privacidade e da autonomia da entidade fami-
lugarejo sobre o qual nada sabia, Maria foi se de- liar. Frente a esta condição, a privacidade adquire
parando com as dificuldades existentes no coti- sentidos diferentes, a depender da posição que
diano de uma gente pobre, habitante de um lugar cada indivíduo ocupa nas relações de poder.
esquecido e abandonado, vivendo, à sua maneira, De acordo com Biroli, “a compreensão
costumes arcaicos e tradições locais, tão necessá- de que o que se passa dentro da esfera domésti-
rios à sobrevivência naquele local. ca compete apenas aos indivíduos que dela fazem
Com o olhar de distanciamento próprio de parte serviu para bloquear a proteção àqueles
quem vem de fora, Maria enxergava com espanto mais vulneráveis nas relações de poder correntes”
algumas situações que para ela eram inconcebí- (BIROLI, 2014, p. 32), como ilustra o trecho do ro-
veis, ao passo que para os moradores não passa- mance Outros Cantos, em que a personagem Maria
vam de costumes habituais presentes na cultura ouve os gritos desesperados de uma mulher que
local. Tal fato é ilustrado pela passagem do roman- estava sendo espancada pelo marido: “Para, pelo
ce em que Maria presencia uma cena de violência amor de Deus, não me machuque, não me mate
contra a mulher, um problema que, para além do que eu não fiz nada”, acompanhados pelo som de
espaço sertanejo, se faz presente, ainda hoje, em pancadas e outros gemidos em tom mais grave.
praticamente todas as sociedades, não tendo, ain- (REZENDE, 2016, p. 124). O fragmento ilustra uma
da, demonstrado sinais de superação. situação de violência doméstica em que a reprodu-

1 Doutora em Letras – Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Integrante do grupo de pesquisa GENI –
Gênero e Interdisciplinaridade (UFJF/CNPQ).
24 Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021

Foto: facsímile da capa

Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021 25

ção de um padrão de autoridade masculina produz foi se meter nisso, menina? É doida? Nunca ouviu
a subordinação da mulher ao seu marido, de modo dizer: em briga de marido e mulher, ninguém mete
a permitir que ela se torne o alvo de suas agres- a colher? Quis protestar, mas Fátima insistiu, É cos-
sões. tume, ninguém morre disso não” (REZENDE, 2016,
p. 125).
Diante do susto e da gravidade da situação,
Maria, sem pestanejar, decidiu invadir os limites O que se percebe nesta passagem do ro-
da vida privada a fim de evitar danos maiores, ou mance é que os modelos de masculinidade e femi-
até mesmo um atentado contra a vida de uma mu- nilidade oriundos de uma organização social que
lher. O problema maior detectado na leitura dessa privilegia o masculino em detrimento do feminino,
passagem do romance, é que, no sertão arcaico, atribuindo ao primeiro, valores relacionados ao po-
essa violência se dava de maneira consentida, o der e à dominação, acabam instituindo valores no
que para Maria era considerado algo inconcebível, imaginário da sociedade patriarcal, que, perversa-
levando-a a intervir na cena de espancamento di- mente, admite a violência como um dado natural
zendo: “Para, para seu covarde!” (REZENDE, 2016, nas relações de gênero. Nesta perspectiva, a obedi-
p. 124-125) e fazendo com que o homem soltas- ência e a submissão da mulher, assim como a inse-
se a mulher. Porém, enquanto se refazia do susto, gurança e o medo que a acompanham tornam-se
Maria foi repreendida pela mulher, que apareceu elementos essenciais para sustentar relações em
dizendo para ela: “Não se meta, sua enxerida, fora que a violência é tida como algo permitido. Tra-
daqui. É meu marido, eu sou a mulher dele, ele me ta-se de uma forma de naturalização da violência,
bate quando quiser, e você não se meta nisso” (RE- que adquire o caráter de comportamento aceito
ZENDE, 2016, p. 124-125). devido à eficácia dos modos de ação das estruturas
de poder, através das quais, segundo Bourdieu, “os
Esta passagem do romance ilustra um dominados aplicam categorias construídas do pon-
exemplo evidente e preocupante do modo como to de vista dos dominantes às relações de domi-
a naturalização das relações hierárquicas entre nação, fazendo-as assim ser vistas como naturais
homens e mulheres foi incorporada no comporta- (BOURDIEU, 2012, p. 46).
mento da própria mulher que é vítima de violência.
Trata-se da ação do poder simbólico (BOURDIEU, Por fim, observa-se que dentre as muitas
1989) fazendo com que uma prática violenta grave lições aprendidas naquele pedaço pequeno e pro-
seja admitida como comportamento comum e so- fundo do sertão, destaca-se a revelação de que
cialmente aceito, envolvendo vítima e agressor em “tudo era muito mais misturado e complicado”
uma ambígua relação de cumplicidade. (REZENDE, 2016, p. 125) do que Maria pensava.
Entretanto, torna-se necessário enfatizar que a
Seguindo em direção ao desfecho desta antiga noção de garantia da privacidade no espa-
história, Maria, em estado de perplexidade e es- ço doméstico não encontra mais respaldo na vida
panto, sentindo-se impotente diante da violência contemporânea após alguns avanços e conquistas
que acabara de presenciar, foi, ao encontro de sua alcançados pelas mulheres ao longo de muitas jor-
amiga Fátima, que era moradora do povoado e, ao nadas de luta por justiça e igualdade de direitos.
relatar o ocorrido, ouviu a amiga dizer: “Ixe! E você

Referências:

BIROLI, Flávia. O público e o privado. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. Feminismo e política: uma introdução.
São Paulo: Boitempo, 2014. p. 31-46.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução: Maria Helena Kühner. 11ª ed – Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2012.

REZENDE, Maria Valéria. Outros cantos. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016.

26 Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021

Ponciá Vicêncio: entre a apatia e a violência

Rilza Rodrigues Toledo¹

A violência contra as mulheres talvez seja fragmentação cultural e econômica que caracteriza
a mais vergonhosa entre todas as violações dos di- os povos da diáspora africana. A obra narra situ-
reitos humanos. A Convenção de Belém do Pará ações do cotidiano das mulheres afro-descenden-
(1994) define-se como “violência contra a mulher” tes, evidenciando a figura essencialmente feminina
qualquer conduta, de ação ou omissão, baseada e negra.
no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento
físico, sexual ou psicológico à mulher no âmbito A mulher negra é fio condutor da história,
público ou privado”. Verifica-se que essa violência um depositário de conflitos, ambivalências, mar-
contra a mulher é tema pre- cas de opressão da trajetória individual e coletiva.
sente na obra de Conceição
Evaristo. Segundo Santos e A personagem Ponciá mora
Queiroz (2019) “Evaristo tra- com a mãe, Maria, na Vila Vi-
balha com uma autoria femi- cêncio e concentra, no inte-
nina negra sendo, perceptível, rior do Brasil, uma população
a cada capítulo, a recuperação de descendentes de escravos,
da ancestralidade da perso- cuja família - pai e irmão - tra-
nagem exposta através de balharam na lavoura para a
sua memória”. Observa-se na família Vicêncio, proprietários
história da família de Ponciá, daquelas terras e também do
cujo nome da personagem in- sobrenome.
titula a obra, a história da di-
áspora africana marcada por Narrada em flashback,
exclusões, ausências, separa- mostra “a infância da meni-
ções sucessivas, loucura, atos na na vila junto da mãe e do
brutais de violência, além de artesanato com o barro que
perdas e mutilações identitárias em que a presen- as duas fabricam” (ARRUDA,
ça da figura feminina negra permite uma reflexão Foto: facsímile da capa 2008). Ainda que fragmenta-
sobre gênero, raça e identidade. da, nota-se a presença de um
narrador observador que conduz o leitor ao âma-
Ponciá Vicêncio é símbolo da trajetória dos go das personagens e à introspecção das mesmas,
afro-brasileiros, ex-escravos e de seus descenden- permeando a narrativa com o discurso indireto li-
tes que saem em busca de seus familiares, de sua vre, para demonstrar a alegria da menina Ponciá
cultura, de sua identidade – uma trajetória mar- que, acreditando de forma veemente nos rituais
cada por um círculo formado de lacunas e perdas, do folclore, brincava de passar por debaixo do ar-
misturadas à violência sofrida e ao profundo vazio co-íris temendo mudar de sexo. Depois de perder
da alma e do ser. Na obra, encontram-se temas em o pai, Ponciá decide ir para a cidade grande em
que questões de raça e gênero se entrelaçam, mar- busca de uma vida melhor. Na vila Vicêncio, o ir-
cando a construção da protagonista em suas expe- mão Luandi também decide migrar, o que acentua
riências e investigações identitárias. A protagonista a dor e a tristeza de sua mãe que decide viajar para
percorre caminhos sinuosos, entrecortados pela reencontrar os filhos. Tempos depois, Ponciá retor-
na à vila, porém não encontra os seus. De volta à
cidade, ela se junta a um homem que conhece na

1 Mestre em Letras pelo CES/JF- [email protected]

Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021 27

PDPics por pixabay

favela. Inicialmente se vê apaixonada, depois sofre res, penetramos em suas emoções e conhecemos
agressões físicas, causadas, principalmente, pela a história de cada um” (2003, p. 6). Percebe-se um
apatia em que ela se encontra com reflexos da au- vínculo entre as experiências passadas da protago-
sência dos familiares e os sete abortos que sofreu. nista e a experiência coletiva representada, princi-
Além da violência física e psicológica, muitas foram palmente, pela figura de seu avô, Vicêncio, escravo
as perdas. que enlouqueceu após matar a esposa, mutilou-se
Segundo Barbosa, “se a memória é a via de e tentou matar os filhos diante da ameaça de vê-
acesso de Ponciá ao seu autoconhecimento, é atra- -los escravizados para o resto da vida.
vés do que a voz narrativa constrói, que nós, leito- Evocando a fase mulher de Ponciá, perce-

28 Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021

be-se seu olhar distante e sua indiferença diante presente na narrativa.
da realidade, uma forma de aflorar as recordações, Mergulhada em sua memória, ela despre-
muitas delas doloridas, marcadas, principalmente,
pela sua mudança para a cidade. za a rotina diária, a convivência embrutecida com
o marido e as notícias de jornal que costumava ler
Embora a esperança e os sonhos fossem e colecionar quando chegara à cidade (EVARISTO,
perseguidos pela protagonista, a dureza foi ainda 2003, p. 91).
maior em seu caminho. Os sonhos de Ponciá vão se
esvaindo à medida que a vida vai sendo martelada Em outro momento, a violência supera o
com os obstáculos. “O amanhã de Ponciá era feito plano simbólico e se estabelece na qualidade de
de esquecimentos. Ela ignora seu nome, sentia-se violência física, como uma das situações mais do-
ninguém” (EVARISTO, 2003, p.19). lorosas, que é a ação agressiva contra Ponciá, em
que o marido direciona sua raiva e frustração da
O vazio de Ponciá toma configurações di- vida sobre o seu corpo: “começou a agredi-la. Ba-
versas. O “sentir-se ninguém” é o sentimento de tia-lhe, chutava-a, puxava-lhe os cabelos. Ela não
quem foi desprovido de sua própria história, como tinha um gesto de defesa” (EVARISTO, 2003, p. 96).
afirma Memmi, ao discutir o processo de desuma- A violência emocional e física vivida por Ponciá de-
nização a que é submetido o colonizado (1977, p. nuncia a inépcia do marido de solucionar uma si-
80). Ponciá deseja romper o paradigma da opres- tuação visivelmente intolerável. Ela cessa “os pen-
são que lhe imprime uma marca até mesmo no samentos-lembranças”, posteriormente ao soco
nome: ela deseja um nome que traduza quem ela efetuado pelo marido, vagarosamente prepara o
é. A personagem questiona sua história, prosse- alimento. Ponciá se encontra novamente “desgos-
guindo com sua trajetória de reconstruir, ou des- tosa da vida”, já que “o que ela estava fazendo ao
construir a própria identidade. lado daquele homem? Nem prazer os dois tinham
mais” (EVARISTO, 2003, p. 21).
Ponciá representa uma possibilidade de
homem moderno e seus sonhos nos grandes cen- O desfecho da história de Ponciá é cíclico,
tros, o que gera novo conflito para uma mulher ne- retorna ao início pela paisagem do rio sobre o qual
gra. Na trajetória da protagonista há uma ruptura. se dilui vagarosamente o arco-íris, retratando o ci-
Saíra de casa em busca de um caminho mais feliz: a clo da personagem (EVARISTO, 2003, p. 132): “Lá
primeira noite retrata a insensibilidade e desprote- fora, no céu cor de íris, um enorme angorô multi-
ção da cidade. Um emprego de doméstica, reforça colorido se diluía lentamente, enquanto Ponciá Vi-
o padrão imposto para uma mulher negra e pobre cêncio, elo e herança de uma memória reencontra-
no contexto citadino; e um tempo depois vai morar da pelos seus, não se perderia jamais, se guardaria
em barraco de favela, tendo como companheiro nas águas do rio”.
inseparável o sentimento da apartação que se faz

Referências:

ARRUDA, Aline Alves. Aspectos da memória em Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo.Tessituras, Interações, Con-
vergências. XI Congresso Internacional da ABRALIC.USP – São Paulo, Brasil, 2008.

BARBOSA, Maria J.S. Prefácio. Conceição Evaristo. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza. 2003.

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2003.

MEMMI, A, Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador, Tradução de Roland Corbisier e Mariza P.
Coelho. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

SANTOS, Tatiana A. dos; QUEIROZ, Claudio R. S. A mulher negra em Ponciá Vicêncio: discurso e representatividade,
Universidade Católica do Salvador. Anais da 22ª Semana de Mobilização Científica- SEMOC 2019. Disponível em:
h�p://ri.ucsal.br:8080/jspui/handle/prefix/1269. Acesso em 15 abr.2021.

Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021 29

ENTREVISTA

Literatura e violência em movimento

Maria de Fátima Moreira Peres¹

Nesta edição de número 17 da revista Mulheres em Letras convidamos
para falar sobre o tema, “Percursos da violência na literatura de autoria feminina”
duas mulheres que atuam no movimento mineiro “Quem Ama Não Mata” (QANM).

Uma é a jornalista e coordenadora geral do QANM, Mirian Chrystus
que vai nos contar um pouco sobre o movimento.

A outra é a escritora e, também, ativista e jornalista, Beth Fleury.

Mirian Chystus, a precursora Foto: Jornalistas Livres

Segundo a jornalista Mirian Chystus, o
movimento surgiu em agosto de 1980 com o “Ato
da Igreja São José” em protesto contra a morte de
duas mulheres por seus maridos, Maria Regina
Souza Rocha e Heloísa Balesteros. “O ato era contra
a violência contra as mulheres e por uma relação
amorosa mais igualitária. Tanto que o “Manifesto
das Mineiras” começava com um poema anônimo

"Senhora, aqui está vossa chave vitórias expressivas que foram alcançadas na Cons-
para vós abrirdes com quem quiserdes e tituição de 1988, entre elas a igualdade jurídica
quando quiserdes. entre homens e mulheres e a responsabilização do
Porque maior que a dor de vos perder Estado pela segurança das mulheres. Isso, segundo
É a dor de vos deixar presa nesses ferros". Mirian, contribuiu para pavimentar o caminho para
a criação da Lei Maria da Penha, em 2006.
da Idade média”, comenta a jornalista. Em 9 de novembro de 2018, o QANM re-
Após o “Ato da Igreja São José” foi cria- editou o “Ato da Igreja São José”, porém, incluin-
do o “Centro de Defesa dos direitos da mulher” do novas vozes da sociedade: representações das
(CDDM). Ali foram feitas as primeiras pesquisas em profissionais do sexo, das trabalhadoras rurais, das
Minas Gerais sobre a questão da violência contra negras, LGBTQIA+, das trans, etc.
as mulheres. Celina Albano, a primeira presidenta O QANM que começou com jornalistas
do CDDM atuou na Constituinte de 1986 ao lado acabou se expandindo alcançando mulheres de
de tantas outras mulheres e conquistaram algumas outras áreas profissionais, inclusive escritoras. “E
sem elas o movimento não existiria. Beth Fleury é
uma dessas escritoras”, destaca a jornalista Mirian
Chrystus.

1 Jornalista pela UFMG, Licenciada em Letras e Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC-Minas. Ocupa a cadeira
de número 15 da Academia de Letras de Pará de Minas.
30 Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021

A literatura para desembaralhar as emoções

Nesta entrevista exclusiva, Beth revela um
pouco da sua escrevivência:

Quando e como surge a Beth escritora? Foto: arquivo particular
Beth: Acho que a experiência do ser humano, de
modo geral, é sobreviver às várias formas de vio- morar nas repúblicas de estudantes (no meu caso,
lência que a ordem social nos submete desde a de minhas irmãs e amigas delas). Essa vivência me
idade mais tenra. Educar-se para viver a experiên- trouxe inclusive a possibilidade de publicar a poe-
cia coletiva da existência é de várias maneiras vio- sia que eu já produzia nos estudos de literatura em
lentar-se, contrariar seus desejos primários e tratar colégio em Sete Lagoas. Como estudante da Fafi-
de viver no social. Dessa maneira, a arte surge para ch-UFMG (Faculdade de Filosofia e Ciências Huma-
nos resgatar dessa experiência profundamente hu- nas da UFMG), ainda no bairro do Santo Antônio
mana e elaborar as emoções, resgatar nossa indivi- na época, criamos a Revista Silêncio, incentivadas
dualidade, tratar aquilo que foi pisado, dar sentido e orientadas pela então estudante de psicologia,
a nossa vivência, desembaralhar as emoções. Lúcia Afonso (além de poeta, depois professora de
É nesse sentido que vejo a poesia, a escri- psicologia social da Fafich e psicanalista). Depois,
ta, a literatura em minha vida. E sim, as pequenas ao longo da experiência como jornalista (que exerci
violências, ou como dizia o poeta, “as mesquinha- por 13 anos na grande mídia de Minas, Rio e São
rias do cotidiano” surgem na forma de poemas, Paulo), a poesia sempre me acompanhou, ao lado
contos, crônicas. As anotações na beira do caderno de todas as atividades em que estive envolvida
de estudos, a emoção na leitura dos primeiros po- pela vida afora. Enfim, as experiências formadoras
etas, os estudos de literatura portuguesa, o des- em minha juventude, foram essenciais para desen-
lumbramento com sonetos de Camões, de Cecília volver esse olhar sobre a vida e as pessoas, que for-
Meireles, de Drummond foram me levando ao ca- ma muito o caráter e o estilo de sua escrita.
minho das artes da escrita.
Quando começou a publicar?
Mirian Chrystus disse que você é uma poeta e Beth: Então, como eu disse, comecei a publicar na
artista de “mão cheia”. Conte-nos um pouco das Revista Silêncio (de 1974 a 1978); depois, em 1982,
suas experiências e escrevivências. ganhei o “Prêmio Nacional Cem Anos de Augusto
Beth: Bom, pra começar, gostaria de esclarecer dos Anjos” (fiquei em 2º. Lugar), patrocinado pela
que minha poesia tem um acento fortemente fe-
minino. Nunca procurei demarcar minha lingua-
gem, isto é, censurar minha livre manifestação de
mulher na poesia. Nunca policiei isto e nunca pro-
curei imitar quem quer que seja. O resultado é que
meu trabalho é fortemente marcado pela presença
da preocupação que minha geração e meus grupos
de formação na juventude me inspiraram, por me
ensinarem muitas coisas sobre o mundo e sobre a
vida.
Sou muito grata pela vivência que estes
grupos puderam me proporcionar – grupos de mo-
vimento estudantil, de poesia, de literatura em ge-
ral, de teatro, de política, de feminismo. Vim para
Belo Horizonte em 1972, aos 17 anos, para cursar
o 3º científico no Estadual Central, era um estágio
importante na vida, deixar a família no interior e vir

Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021 31

Universidade Federal da Paraíba (terra do poeta) e sim. Como você percebe a violência na literatura
pela Editora José Olympio. Acabou não sendo pu- dessa escritora?
blicado porque a editora responsável faliu naque- Beth: Infelizmente ainda não li a Conceição Evaris-
les duros anos 1980 (crise do petróleo e etc). to, não por falta de interesse, mas por estar dedi-
cada demais à escrita de minha tese de doutora-
Mas alguns dos poemas do meu livro Na do. Nesses momentos você não tem espaço para
Cor do Sangue acabaram saindo em 1974, publica- explorar novas leituras, fora do teu campo de es-
dos no Rio de Janeiro dentro da coletânea de seis pecialização. Tenho visto alguns vídeos e algumas
poetisas brasileiras, Língua Solta da Editora Rosa, entrevistas dela e consigo perceber a potência de
Tempos/Record. Morei 17 anos no Rio antes de re- seu surgimento no cenário das inquietações con-
tornar para Minas em 2003. De lá trouxe muita coi- temporâneas e vejo que grande interlocutora ela
sa. Esses poemas e mais outros que fui produzindo tem se tornado desse momento duro a complexo
já em Minas se transformaram no meu terceiro li- que estamos todas e todos vivendo, não é? Esse
vro, Palavra Possuída, que saiu pela Orobó Edições, sofrimento das mulheres mais vulneráveis nos toca
do poeta Anelito de Oliveira que à época era editor a todas, especialmente nos estudos que faço des-
do Suplemento Literário do Minas Gerais (2005). de que direcionei meu foco para a sociologia da
violência de gênero. E me parece central termos a
Mas, antes disso, comecei a publicar nova- interlocução de alguém da qualidade e das qualifi-
mente em revistas literárias no Rio de Janeiro. No cações de uma Conceição Evaristo para explorar a
início dos anos de 1990 comecei a circular pelo am- compreensão desse lugar.
biente literário do Rio, onde o Affonso Romano de
Santanna dirigia a Biblioteca Nacional e o Márcio Falar da violência de maneira literária ajuda as
de Souza, romancista, dirigia o Instituto Nacional mulheres a encontrarem um caminho da não vio-
do Livro (funcionava no prédio principal da Biblio- lência? Você acredita que isso é possível?
teca Nacional). A poeta Suzana Vargas (autora de Beth - Sempre enxerguei a literatura como o regis-
vários títulos) ainda não havia criado o projeto do tro da experiência humana, assim como os nossos
CCBB de literatura. Acho que era “Roda de Conver- ancestrais registravam nas cavernas desenhos que
sa”, não me lembro bem. terminaram por se constituir em importantes ras-
tros de sua experiência. Desse modo, creio que, fa-
Enfim, era uma turma fantástica para se zendo ou não literatura, o registro escrito de nossas
conviver. E eles começaram a me publicar na Re- emoções se reveste de uma importância central no
vista Poesia Sempre da Biblioteca Nacional, criada resgate da nossa humanidade. Um momento de
pelo Affonso Santanna e onde a Suzana Vargas era contato íntimo com as emoções mais profundas,
uma das editoras. Também publiquei numa revista sua tentativa de autoconhecimento e até eu diria
de intelectuais do Instituto Universitário de Pesqui- de autocuidado pode significar a sobrevivência de
sas e Estudos do Rio de Janeiro (IUPERJ), Revista alguém em sua humanidade.
Presença, editada pelo cientista político Werneck e
a cientista social Maria Alice Rezende de Carvalho. Por estas razões é que sempre que costu-
Foi uma vida ali, participei de muitos eventos lite- mo falar de literatura para algum grupo costumo
rários, juris, debates, recitais. Foi muito intenso. afirmar que a literatura nunca foi para mim apenas
um pedaço de papel e um lápis. Mais do que isso,
O Palavra Possuída se tornou também um às vezes foi uma caverna e seu pedaço de carvão,
espetáculo teatral idealizado pelo diretor de tea- a possibilidade de me comunicar com o mundo a
tro Pedro Paulo Cava, em seu Teatro da Cidade. O partir daquilo que nos é mais caro, a liberdade de
espetáculo teve duas temporadas em Belo Hori- dizer o que sentiu, de se compreender às vezes e é
zonte, final de 2005 e em 2006. Em 2015 publiquei tudo o que resta a alguém vivendo em situação de
o Dicionário Feminino da Infâmia – acolhimento e violência. Por isso costumo dizer que, a literatura é
diagnóstico de mulheres em situação de violência, minha mãe, minha irmã e minha filha.
pela Editora Fiocruz. Mas nunca deixei a poesia, ou
ela nunca me deixou melhor dizendo. Sempre me
acompanha, iluminando os caminhos e a consciên-
cia.
Não sei se já leu Conceição Evaristo, acredito que

32 Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021

RESENHA

ALVES, Míriam. Juntar pedaços. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2020.

Vidas ressignificadas

Imaculada Nascimento1

Juntar Pedaços é o sétimo livro de Foto: facsímile da capa
Míriam Alves, publicado em 2020 pela Edi-
tora Malê. Trata-se de um livro de contos sa entre mulheres, como em “Troca de casais” e
que aborda trechos da vida de personagens “Zunzunzum”, após vivenciarem a experiência de
femininas negras, tendo como pano de abandono em relacionamentos com homens.
fundo o contexto social vigente, a partir do Um ponto alto em Juntar Pedaços é o con-
qual a escritora observa a intensificação do to “Um só gole”, no qual a narradora, em primei-
desejo masculino de dominação por meio ra pessoa, extravasa sentimentos conturbados,
da supressão da liberdade, do silenciamen-
to, da violência física e psicológica. A partir
daí, a autora procura dar relevância ao peso
de ser mulher – especialmente a mulher
negra – numa sociedade ainda privilegiada
pela hegemonia masculina e incita à neces-
sidade de resistência e ruptura.
Cada um dos contos revela estra-
tégias individuais das personagens para
“juntar pedaços” (ou mesmo quebrar em
pedaços aquilo ou quem foi motivo de
desconforto), transformando-os e ressig-
nificando para seguir em frente com digni-
dade. As sete narrativas iniciais, nomeadas
“Cena” – numeradas de 1 a 7 –, reúne as
protagonistas em diferentes e intrigantes
caminhos que, entretanto, revelam ao lei-
tor que a vida delas se entrecruzam, para-
doxalmente, em um único objetivo: colar os
cacos e reconstruir.
A denúncia da violência contra
a mulher é a temática recorrente que ga-
nha – em alguns contos – uma nova feição,
surpreendente, por meio de estratégias
cuidadosamente articuladas pelas protagonistas
para defender-se de seus agressores. Os contos
“Acidente” e “Tampa de privada” exemplificam,
do ponto de vista da vingança, aquilo que a força
emanada pelos maus-tratos e sucessivas violências
é capaz de provocar. Um dos modos de reconstru-
ção da vida acontece por meio da relação amoro-

1 Doutora em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG; professora de Língua Espanhola e Língua Portuguesa

no IF Sudeste MG - Campus Santos Dumont.
Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021 33

contraditórios, náufraga de si, caminhando sem A leitura de Juntar Pedaços é relevante por-
direção, debaixo de uma chuva torrencial, pelas que a escritora paulista nos faz pensar o quanto é
margens de um rio lodoso, atordoada por pensa- essencial refletir, conversar, rever conceitos e, não
mentos suicidas. As cicatrizes causadas no corpo e apenas denunciar, mas agir contra a objetalização
na alma pelas múltiplas violências físicas e psico- da mulher. Nesses tempos pandêmicos, nos quais
lógicas em decorrência de sua cor de pele negra e temos tido constantes notícias do alto índice de fe-
cabelos “falsamente lisos”, fizeram-na recordar do minicídio, as vozes das protagonistas Jéssica, Ester,
incidente quando, pequena, na escola, queria ser Cecília, Raquel, Arminda, entre outras, desnudam
Maria, mãe de Jesus, numa peça teatral. O riso do um cotidiano urbano ainda velado pelo sistema
professor e das crianças martelavam em sua cabe- patriarcal e convidam a repensar novas formas de
ça a repetida frase: “Maria não é preta, é mãe de viver, especialmente longe de relacionamentos
Jesus”. abusivos.

O tema sobre a violência contra mulheres Míriam Alves, militante do Movimento de
não deve ser esquecido nem deixado de lado; em Literatura Negra é também autora, de Brasilafro
pleno 2021, observa-se que a estrutura falocêntri- Autorrevelado, Literatura Brasileira Contemporâ-
ca que permeia o imaginário social brasileiro apon- nea, Mulher mat(r)iz, prosas de Míriam Alves (reu-
ta para um persistente sistema opressivo, cujo per- nião de textos publicados na coletânea Cadernos
centual é maior ainda quando se trata de mulheres Negros), Rainha do lar, Estrela nos dedos, Momen-
negras que muito ainda sofrem com o paradigma tos de busca, dos romances Bará na trilha do vento
da segregação. e Maréia.

34 Mulheres em Letras - n. 17 - Set. 2021

FEMINICÍDIOS REGISTRADOS NO BRASIL

Taxa de 100 mil mulheres no 2º quadrimestre (maio a agosto) de 2019 e de 2020

2019 2020 Diminuiram Cresceram

PARÁ 0 ,40 0,62 MARANHÃO 0,61 0,47
0,64
RORAIMA 0,0 0 0,74 PIAUÍ 0,48 0,05
0,28
ACRE 0 ,46 0,44 RIO GRANDE DO NORTE 0,39 0,75
RONDÔNIA 0 ,45 0,22 PERNAMBUCO 0,38 0,00
MATO GROSSO 0 ,82 1,03 ALAGOAS 0,75 0,39
TOCANTINS 0,26 0,37
MATO GROSSO DO SUL 0, 73 0,65 BAHIA 0,38 0,33
SANTA CATARINA 0 ,44 0,38 DISTRITO FEDERAL 0,70 0,28

RIO GRANDE DO SUL 0,7 1 0,34 ESPÍRITO SANTO 0,53

SÃO PAULO 0 ,20 0,16 RIO DE JANEIRO 0,25

MINAS GERAIS 0,3 9 0,43

Os estados que não foram
citados na pesquisa não tinham
dados disponíveis.

Fontes: órgãos oficiais de Estado
nas diversas unidades federati-
vas do território brasileiro que
fazem estatíticas dos crimes de
feminicídio, como Secretarias
de Segurança Pública, de Defesa
Social, Polícias Civil, delegacias
especializadas, entre outras.

FEMININAS ÁGUAS

Temos olhos úmidos
Olhos amanhecidamente úmidos
Olhos que guardam a pré-história

e a história de todas
Femininas águas

que se banham ao vento
Ainda gotejando sangue
Olhos que se riem em queda
Irmanados à fúria das chuvas
Olhos repetidamente úmidos

Eroticamente úmidos
Desejosamente úmidos
Aguerridamente úmidos
Comungando a existência
de tudo o que fecunda e vinga

- temos olhos d’água

Luciana Pimenta


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