VALORES SEM PREÇO
PÍTICA
Carolina Andrade
Ilustração Circe Bernardes
Série
VALORES SEM PREÇO
PÍTICA
Carolina Andrade Ilustração Circe Bernardes
ERA UMA VEZ UMA MENINA CHAMADA PÍTICA...
...que nasceu na cidade de São Paulo, no Brasil. Como tantas meninas brasileiras, ela era pequena, moreninha, magrela e irrequieta. O rosto, completamente tomado por dois olhos pretos enormes, com pestanas escuras e compridas, tinha, assim, um jeito de bichinho. Quem sabe uma aranha, uma abelha ou até mesmo uma joaninha de algum desenho animado?
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Ou quem sabe um mico? Esperto, sempre inquieto, pulando de galho em galho. É que
a Pítica adorava galgar, subir, montar. Tanto que ganhou o apelido de “infante grimpante”, igual
à música do Vinícius. Da escola, telefonavam muitas vezes para o trabalho da sua mãe pedindo:
“Por favor, venha tirar sua filha de cima da jabuticabeira porque ela subiu e não quer descer.”
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PÍTICA, PITITI-BOBÓ,
GATA MARISCA PELADA...
Era impressionante a quantidade de apelidos
da menina. É engraçada essa coisa de apelido de criança. Às vêzes, ele é apenas um jogo de palavras, ligado à sonoridade do nome. Ou tem a ver com alguma história, um episódio da infância.
O apelido de Gata Marisca Pelada, por exemplo,
não era uma novidade na família. Uma tia da Pítica também tinha sido um bebê muito calorento, que tirava toda a roupa e ficava nuazinha no berço. Quando a nossa menininha começou a fazer a mesma coisa, alguém resgatou o antigo apelido e pronto: eis que a família ganhou uma outra Gata Marisca. Mas por que Marisca? Talvez um simples jogo de palavras e arisca virou marisca... quem sabe...
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Além de marisca e grimpante, a Pítica era voluntariosa. Quando queria uma coisa, queria porque queria, e era impossível impedir ou adiar. A menina parecia um tratorzinho: com tração nas quatro rodas e marcha reduzida, lá ia ela, desbravadora, avançando rumo aos seus objetivos.
A Pítica era mesmo uma menina como tantas outras: alegre, engraçada, carinhosa e levada da breca. Só numa coisa ela era muito diferente, especial. Tinha uma imaginação!!! Inventava palavras, rimas, histórias; contava sonhos cheios de fantasia. Era uma verdadeira fabriquinha de coisas engraçadas.
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E, quando falava com a sua cachorrinha branca, peluda como um carneirinho, a Malu, brotavam versos completamente malucos:
BIA PI, BIA RE,
BIA TURQUESIGUIAM...
E, quando a mãe ou alguém perguntava o que significava isso, a resposta variava. De um “é isso mesmo” até uma tradução meio improvisada: “Minha Pequena, minha Rainha, minha Turquesinha...” Como se Turquesa fosse algum título parecido com marquesa, duquesa, princesa.
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Ou, então, sempre para a cadelinha, para quem ela vivia contando histórias:
INTERESSA-SE?
INTERE-SACI?
DE QUE COR É O
CABELO DO SACI?
O SACI É RUIVO,
MALU?
Saci ruivo? Só mesmo a maluquinha da Pítica.
De uma coisa todos os que viviam com ela tinham certeza: não era porque não sabia falar. Não mesmo!
Por que será que ela inventava tantas palavras?
A Pítica era muito esperta; desde o início tinha aprendido a falar tudo mais do que certinho. Nunca tinha falado “queio” ou “quelo”, em lugar de “quero”;
ou “pimaveia”, em vez de “primavera”, como tantas crianças. Ela até que tinha demorado a falar.
Sua mãe chegou a ficar um pouco preocupada: “Quando será que esta menina vai falar?”
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Quando começou... Falava muito e tudo
certinho, com todas as sílabas bem pronunciadas, todos os erres. Raramente, mas raramente mesmo, falava errado. Então, não era por não saber falar. Era por alguma outra razão, porque queria inventar. Tinha, lá no fundo da sua cabecinha, uma coisa mágica chamada imaginação.
E era uma cabecinha povoada de sonhos, que ela sonhava tanto dormindo como acordada e que, depois, viravam as histórias que ela contava, com aquela vozinha doce de menina de cinco anos, sempre fantasiando e inventando.
Quando ela começava
a falar “esta noite tive um sonho...”, todos se preparavam para ouvir alguma coisa bem esquisita.
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“Esta noite tive um sonho. Sonhei que estava andando em um caminho cheio de plantas e encontrei uma formiga-índio. Então, perguntei o que ela estava fazendo lá e ela respondeu...”
FORMIGA-ÍNDIO?
Assim, a Pítica foi crescendo. Num mundinho povoado de sacis ruivos e formigas-índio, sempre acompanhada pela cachorrinha que gostava de ouvir histórias.
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A menina ficou mocinha, a Malu ficou bem velhinha e morreu, e o tempo foi passando. Como na vida de todo mundo, aconteceram coisas boas e ruins na vida da Pítica, que deixou de lado aquele apelido de criança pequena e passou a usar seu nome de verdade: Celina.
Celina cresceu, estudou, até morou uns anos em outro país. Começou a trabalhar, namorou, brigou. E foi vivendo. Até que, um dia, ela se lembrou dos versos para a Malu, dos sonhos maluquinhos, daquela criança inquieta e cheia de imaginação, que tinha ficado meio perdida, lá atrás, no meio de um monte de lembranças.
Sentiu saudades da Pítica e, mais ainda, da fantasia da menininha. E percebeu que, em algum momento da sua vida, tinha perdido a imaginação.
Será que isso é grave? Isso de perder a imaginação. Celina ficou pensativa. Muito pensativa, mesmo.
Ela agora sabia como a imaginação, a fantasia e a criatividade são importantes. São verdadeiros dons que trazem beleza e magia para a vida. E enfiou na cabeça a idéia de que ia entender melhor essa coisa de imaginação. Ia procurar e, se fosse possível, reencontrar
a imaginação e a fantasia da Pítica.
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Começou pela avó. Queria falar com a Vó Memé, que era mais
velha e muito experiente. Era uma pessoa corajosa, que havia enfrentado muitos problemas ao longo dos seus setenta anos
bem vividos. Mesmo nos momentos mais difíceis, ela nunca tinha visto a avó reclamar, queixar-se da
vida. Ao contrário, era sempre generosa, acolhedora.
Celina gostava muito da
avó, daquele seu jeito calmo, corajoso. Gostava também dos comentários engraçados, do seu senso de humor, da inteligência rápida e daquela pitada de malícia que punha na conversa.
E Celina procurou a avó para falar
da Pítica, ou seja, dela mesma, quando pequena.
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– Era uma menininha incrível – disse a avó. – Alegre, levada, com uma imaginação fantástica. Eu me divertia ouvindo as histórias da Pítica. E ainda me lembro de muitas delas. – Olha, que você falava pelos cotovelos e também inventava uma verdadeira enxurrada de palavras...
Vó Memé gostava muito de provérbios, ditos populares, versos em francês. Dizia sempre, por exemplo,
“à chaque jour suffit sa peine”,
que significa “para cada dia basta a sua aflição”, sempre que alguém andava preocupado com coisas que poderiam ou não acontecer amanhã. Quando Celina perguntou se algum dia
ela conseguiria reaver sua imaginação, a avó respondeu, indo buscar mais
um provérbio:
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– O que é do homem, o bicho não come, minha filha. O que é seu, é seu. Ninguém tira.Cedo ou tarde, você vai ter de volta sua imaginação e seu sonho. Quem sabe sonhar nunca esquece. É como quem sabe nadar ou andar de bicicleta. Pode passar muito tempo sem fazer isso.
Um dia, é só recomeçar e pronto. Sai por aí pedalando estrada afora... Só tenha cuidado com uma coisa, minha filha. Cuidado com o medo. Quem tem medo não nada, não pedala e também não sonha.
É claro que Celina ficou pensativa. Sempre que conversava com a avó acontecia isso. É que a avó
era inteligente, gostava de pensar e gostava mais ainda de fazer pensar. Essa história de medo era mesmo uma coisa muito séria. E é verdade que quem tem medo não consegue fazer um monte de coisas. Celina pensou tanto no medo e em como ele podia atrapalhar a vida das pessoas que acabou rindo sozinha. É que percebeu que estava ficando “com medo do medo”!
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A moça continuava tocando a vidinha. Trabalhando, estudando, passeando, saindo com os amigos, almoçando aos domingos com a tia Celina, tão bonita e querida de toda a família. É fácil adivinhar porque ela tinha esse nome. Para tia Celina, ela não era nem Pítica, nem Celininha, era Xarazinha. E a tia se lembrava da menininha com uma enorme ternura:
– Ela era tão bonitinha, tão engraçadinha. Falante, cheia de histórias engraçadas. Tão alegre! Uma menininha incrível. Eu me lembro tão bem: era pequena, mas tinha tanta personalidade que todos acabavam fazendo o que ela queria... E estava sempre com aquela
cachorrinha branca, para cima e
para baixo.
E tia Celina achava muito normal a menina conversar com a cachorrinha. É que ela também gostava muito de bicho. Sempre teve bicho em casa e sempre ajudou os gatos e cachorros de rua. Mal do nome,
quem sabe, as duas Celinas sempre foram
muito amigas dos bichos.
– Tia, você acha que eu tinha muita imaginação, quando era pequena?
– Toda criança tem muita imaginação, Xarazinha. Depois, vai perdendo isso com o tempo. Nesse
mundo, os problemas práticos acabam ocupando tanto a nossa cabeça que deixam pouco espaço para coisas como a imaginação, a poesia, o sonho. E tudo isso é muito importante.
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Celina continuava querendo saber o que tinha acontecido com a sua fantasia. Sempre que surgia alguma oportunidade, perguntava. E perguntou para seus antigos professores, para seus colegas de escola, para suas primas. Perguntou até para uma tia meio velha e meio chata, chamada Luiza.
por perto, a Pítica passava longe. Morria de medo. Depois, ela sempre falava alto, com uma voz esganiçada. Até onde Celina conseguia se lembrar, ela nunca na
vida viu a tia Zita falar uma frase ou uma palavra simpáticas ou mesmo elogiar alguém. Para ela, todos eram chatos, insuportáveis.
Quando era pequena, a Pítica sempre teve medo da tia Zita. Era assim que todos chamavam a tia Luiza.
Ela era muito magra, muito feia: tinha uma boca enorme e olhinhos pequenos e maus. Quando esta tia estava
Na família, essa tia tinha uma triste fama. De quem gostava de dar notícia ruim. Era só alguém morrer
ou ficar doente que a tia Zita aparecia. Toda vestida de preto e feliz da vida.
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Agora, depois de grande, Celina não tinha mais medo da tia Zita. Sabia, como diria a Vó Memé, que “cão que ladra não morde” e que ela não mordia. Mas, certamente, gostava de ladrar e continuava vendo maldade por toda parte. Celina sabia, já, antes mesmo de perguntar o
que a tia Zita ia responder. Alguma ruindade, com certeza.
– Tia Zita, você se lembra como eu era quando pequena? Perguntou, num jantar, na casa da tia Celina.
– Uma menininha mentirosa como todas. Vivia inventando histórias. Magrelinha e chatinha.
Celina sabia que não adiantava argumentar nem falar de imaginação. Menos ainda falar em sonho.
A tia Zita poderia soltar uma daquelas horrendas gargalhadas que
tanto a assustavam quando era pequena.
Preferiu desconversar e deixar
o dito pelo não dito. Aliás, a tia maldosa já tinha encontrado alguém com quem conversar e... falar mal de alguma conhecida.
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Que Celina era uma moça inteligente, ninguém duvidava. Mas, todos sabiam que ela era muito distraída, “despassarada”, como diriam em Lisboa, onde morou, durante alguns anos. Na verdade, ela fazia parte de uma família de mulheres distraídas: a avó, a mãe e,
agora, ela. Tão despassarada que não percebeu
quando a Pítica voltou. As pessoas que viviam
perto dela bem que notaram a volta do brilho
malicioso no olhar, do senso de humor e de
algumas brincadeiras.
Novamente, um cãozinho era o interlocutor permanente. Musti, um schnauzer (uma raça engraçada, bigoduda, rabugenta e de pêlo cinza), que ganhou da mãe em Portugal e que voltou com ela para o Brasil, virou
Com tanta conversa, o schnauzerzinho acabou se transformando no cão mais bem-informado do mundo e dono de um profundo conhecimento de música brasileira, já que ficava horas ao lado de Celina, quando ela trabalhava no seu computador, sempre ouvindo música.
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Essa coisa de “conversar” com o Musti já era um sinal da mudança. A quantidade de apelidos que ele foi ganhando, porque era cinza, rabugento ou porque comia fazendo nham-nham-nham, era sinal da volta daquela alegria infantil e explosiva da Pítica. Aos poucos, foram ressurgindo outras coisas que tinham ficado meio esquecidas pelo caminho. Entre elas, acabou voltando a vontade, aquela coisa do “quero porque quero”
e, muito mais importante, o sonho.
É claro que o sonho da Celina adulta não tinha nada a ver com o saci ruivo e a formiga-índio da Pítica. Era um sonho maior. Ela começou a sonhar com o seu país, o Brasil do qual ela sentiu tanta saudade quando morou em Portugal. Ela “queria porque queria” um Brasil melhor. Começou a fazer trabalhos voluntários em bairros distantes da cidade. Todo mundo sabe que só quem sonha faz trabalho voluntário. Era difícil sair cedinho, atravessar
a cidade e chegar lá longe, para dar a crianças e adolescentes mais pobres a possibilidade de se tranformarem em adultos mais felizes.
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ESTA HISTÓRIA NÃO TERMINOU. MUITA COISA AINDA PODE ACONTECER NA VIDA DA CELINA ADULTA, QUE ESTÁ APENAS COMEÇANDO. E, COM CERTEZA,
VÃO ACONTECER COISAS MUITO BOAS. PORQUE, AGORA, ELA TEM A ALEGRIA
E O SONHO, AS FERRAMENTAS MAIS IMPORTANTES PARA CONSTRUIR FELICIDADE.
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Série VALORES SEM PREÇO
PÍTICA
Carolina Andrade Ilustração Circe Bernardes
Projeto: Patrícia Secco
Editoração Eletrônica: Celina Pereira Revisão: Frank de Oliveira