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Published by be.esc, 2023-05-30 07:48:25

Textos para a paz

Antologia

Biblioteca da Escola Secundária de Caneças TEXTOS PARA A PAZ ANTOLOGIA 2023


O mês de outubro é o Mês Internacional das Bibliotecas Escolares. Proposto pela IASL (International Association of School Librarianship), o Mês Internacional da Biblioteca Escolar (MIBE) é «uma celebração anual das bibliotecas escolares em todo o mundo, uma oportunidade para darem a conhecer o trabalho que desenvolvem e mostrarem que não são apenas um serviço, mas um centro nevrálgico vital nas escolas». Subordinado sempre a um tema, o de 2022, no início deste ano letivo, foi Ler para a paz e harmonia globais. Em resposta ao repto lançado, publicámos no nosso blogue Leituras Acordadas textos literários que nos lembrassem a necessidade de viver em paz. No final da nossa recolha, verificámos que, afinal, a maioria fala da guerra. Sim, é a guerra que nos faz falar da paz. Sempre que possível, indicamos a data em que os textos foram escritos, num esforço para se entender melhor o seu enquadramento histórico. O conjunto de textos escolhidos convida à reflexão e ao debate. E convida, ainda, à leitura de escritores e de obras que estão à espera, numa estante de biblioteca, de serem descobertos. João Nuno Machado Professor bibliotecário Caneças, 2023


2 se as lorigas dos meus bravos espalham treva, o vinho por donzelas dado traz claridade. al- Mu’tamid (1040-1095) al- Mu’tamid, poeta do destino, org.Adalberto Alves, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p.90


3 Coimbra, 22 de maio de 1944 - Combater é, em termos absolutos, uma diminuição. O homem quer defenda a pátria, quer defenda as ideias, desde que passa os dias aos tiros ao vizinho, mesmo que o vizinho seja o monstro dos monstros, está a perder grandeza. Sempre que por qualquer motivo a razão passou a servir a paixão, houve um apoucamento do espírito, e é difícil que o espírito se salve num processo onde ele entra diminuído. Mas quando numa comunidade alguém endoidece e desata a ferir a torto e a direito, é preciso dominar o possesso de qualquer forma, e a guerra é fatal. Então, embora sabendo que vai empobrecer a sua alma, o homem normal começa a lutar, e só a morte ou o triunfo o podem fazer parar. É trágico, mas é natural. O que é contra todas as leis da vida é ficar ao lado da contenda como espectador. Sendo uma diminuição combater, é uma traição sem nome lavar as mãos do conflito, e passar as horas de binóculo assestado a contemplar a desgraça do alto dum monte. Assim é que nada se salva. Miguel Torga, Diário, Vols. I a IV, 6.ª edição conjunta, (1944), Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2021


4 O soldado morto Os infinitos céus fitam seu rosto Absoluto e cego E a brisa agora beija a sua boca Que nunca mais há-de beijar ninguém. Tem as duas mãos côncavas ainda De possessão, de impulso,de promessa, Dos seus ombros desprende-se uma espera Que dividida na tarde se dispersa. E a luz, as horas, as colinas São como pranto em torno do seu rosto Porque ele foi jogado e foi perdido E no céu passam aves repentinas. Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar novo (1958), Obra poética, Alfragilde: Caminho, 2010, p.330


5 O menino da sua mãe No plaino abandonado Que a morna brisa aquece, De balas traspassado — Duas, de lado a lado —, Jaz morto, e arrefece. Raia-lhe a farda o sangue. De braços estendidos, Alvo, louro, exangue, Fita com olhar langue E cego os céus perdidos. Tão jovem! que jovem era! (Agora que idade tem?) Filho único, a mãe lhe dera Um nome e o mantivera: «O menino da sua mãe». Caiu-lhe da algibeira A cigarreira breve. Dera-lha a mãe. Está inteira E boa a cigarreira. Ele é que já não serve. De outra algibeira, alada Ponta a roçar o solo, A brancura embainhada De um lenço... Deu-lho a criada Velha que o trouxe ao colo. Lá longe, em casa, há a prece: «Que volte cedo, e bem!» (Malhas que o Império tece!) Jaz morto, e apodrece, O menino de sua mãe. Fernando Pessoa (1888-1935) s. d. Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). 1ª publ. in Contemporânea , 3ª série, nº 1. Lisboa: 1926. In http://arquivopessoa.net/textos/2052 (consultado em abril, 2023)


6 Um soldado de Lee (1862) Atingiu-o uma bala na ribeira De uma clara corrente cujo nome Ignora. Cai de borco. (É verdadeira A história e mais de um homem foi esse homem.) O ar que é de oiro agita as preguiçosas Folhas desses pinhais. A paciente Formiga escala o rosto indiferente. Sobe o sol. Já mudaram muitas coisas E mudarão ainda até ao dia Desse futuro incerto em que te canto, A ti, que, sem a dádiva do pranto, Caíste como um homem na agonia. Não há mármore guardando-te a memória; São seis palmos de terra, a tua glória. Jorge Luis Borges, «O outro, o mesmo» (1964), Obras completas II 1952-1972, Círculo de Leitores, 1989, p.321


7 Ela olha para ele demoradamente como se não percebesse o sentido das palavras. Depois agarra na mochila, esquadrinha dentro dela e tira uma pequena carteira castanha. Abre-a sem olhar e estende-a a Avram. Dentro de uma bolsinha de plástico está a fotografia de dois rapazes abraçados. Foi tirada no dia da incorporação de Adam. Têm ambos os cabelos compridos e Ofer, jovem e magro, está pendurado no irmão mais velho, envolve-o com o braço e o olhar. Avram contempla. Ora tem a sensação de que todas as feições do seu rosto se agitam descontroladamente. Avram, diz ela mansamente. Pousa a mão em cima da dele enquanto ele segura na fotografia,estabilizando-a. Que bonito rapaz, sussurra Avram. Ora fecha os olhos. Vê as pessoas de pé dos dois lados da rua que conduz a sua casa. Algumas já entraram no pátio, outras estão nas escadas junto à porta. Esperam-na em silêncio, de cabeça baixa. Esperam que ela passe entre eles e entre em casa. Para que possa começar, pensa ela. David Grossman, Até ao fim da terra (2007), Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2012, pp.677-678


8 Muito ao longe, na subida, o mais longe que se podia ver, havia dois pontos negros, ao meio, como nós, mas eram dois alemães que há um bom quarto de hora estavam muito entretidos a fazer fogo. Talvez soubesse o nosso coronel a razão por que esses homens faziam fogo, e talvez os alemães o soubessem também, mas eu realmente é que não sabia. Por mais longe que procurasse na minha memória, não havia feito nada aos Alemães. Tinha sido sempre muito amável e muito educado para com eles. Conhecia um pouco os Alemães, tinha até frequentado a escola na terra deles, em pequeno, nos arredores de Hanôver. Falara a sua língua. Nessa altura eram um monte cretinozinhos berrões com olhos pálidos e furtivos como os dos lobos; íamos juntos apalpar as miúdas depois da escola, nos bosques ali próximos, e atirávamos também com balestras e com aquelas pistolas que se compram apenas por quatro marcos. Bebíamos cerveja açucarada. Mas daí a atirarem-nos agora à tola sem nos virem falar primeiro, ali bem no meio da estrada, havia uma certa distância e até mesmo um abismo. Muito diferente. A guerra, em suma, era tudo quanto menos eu conseguia compreender. Aquilo não podia continuar. Louis-Ferdinand Céline, Viagem ao fim da noite (1932),Lisboa: Ulisseia, 1983, p.15


9 Trouxeram-nos até aqui, trouxeram estes camaradas, para que impusessem o último ímpeto a um combate que já durou o dia inteiro, para que reconquistassem a posição naquelas colinas e nas aldeias que ardem atrás delas, tomadas pelos inimigos dois dias antes. É um regimento de voluntários recentemente colocado na frente de batalha, estudantes na maior parte dos casos, sangue jovem, portanto. Foram alertados durante a noite, viajaram de comboio até de madrugada e marcharam à chuva até ao cair da tarde, por caminhos terríveis. Nem de caminhos se tratava realmente: as estradas estavam atravancadas e tiveram de caminhar durante sete horas por campos e pântanos, com os casacos encharcados, o equipamento de assalto às costas, um passeio nada agradável. Quem não quisesse perder as botas, era obrigado a curvar-se quase a cada passo para puxar pela presilha e retirar o pé do fundo da lama. Por isso haviam levado mais de uma hora para atravessar um pequeno prado. Ei-los ali chegados, o sangue jovem suportou todas as vicissitudes, os corpos, nervosos e já exaustos, ainda de alerta porém, graças às mais profundas reservas vitais, não reclamam nem o sono nem a comida de que foram privados. Os rostos a pingar, salpicados de lama, emoldurados pelas correias abotoadas debaixo do queixo, ardem sob os capacetes forrados de cinzento e atirados para trás. Ardem de cansaço e de desespero pelas perdas que sofreram ao longo da marcha pela floresta barracenta. Porque o inimigo, alertado pela sua aproximação, lançara projéteis de balas e granadas de grande calibre sobre o seu caminho, espalhando chispas e chamas por toda a floresta e atingindo o grupo em marcha, uivando e vomitando fogo por todos os lados, fustigando os imensos campos recém-lavrados. É forçoso que eles passem, estes três mil rapazes febris, é forçoso que estes reforços decidam, com as suas baionetas, o ataque às trincheiras cavadas à frente e atrás da cordilheira, que socorram as aldeias incendiadas, que conduzam o assalto exactamente como determina a ordem que o comandante traz na algibeira. São três mil homens para que sobrem dois mil quando chegarem às colinas, quando estiverem às portas das aldeias - é esse o sentido do seu grande número. Thomas Mann, A Montanha Mágica (1924), Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2009, p.813


10 Recitativo do requiem para os caídos da Europa (1917) Quero queixar-me dos homens no exílio do seu tempo; Queixar-me das mulheres de coração jubilante, agora a gritar num lamento; Quero acumular e repetir todos os queixumes De viúvas apertando-se em corpetes impacientes, no crepitar de lumes; Ouço crianças de loira voz que antes de irem para a cama perguntam por Deus-Pai; Em todos os frisos vejo retratos com hera, sorrindo fiéis ao tempo que já lá vai; De todas as janelas ardem para pétreos longes olhares de raparigas abandonadas; Em todos os jardins se, cultivam sécias, como se já as campas tivessem de ser [preparadas; Em todas as ruas os carros se movem mais lentos, como num enterro; Em todas as cidades tocam mais forte os sinos, porque há sempre mais um que às [balas tombou em qualquer cerro; Em todos os corações há um lamento E em cada dia o oiço mais violento. Iwan Goll, «Recitativo do requiem para os caídos da Europa (1917)», Expressionismo alemão, antologia poética, (org. João Barrento), Lisboa: Ática [sd, 1976], p.83


11 Aviso de mobilização Passaram pelo meu nome e eu era um número - menos que a folha seca de um herbário. Colheram-no com mãos de zelo e gelo; escreveram-no, sem mágoa, num postal. Convite a que morresse... mas por quê? Convite a que matasse... mas por quem? Ó vago amanuense, ó apressado e súbito verdugo, que te ocultas numa rubrica rápida, ilegível, que dirás tu do meu e de outros nomes, que dirás tu de mim e de outros mais, no Dia do Juízo já tão próximo - que dirás tu de nós, se nem tremeu, na rápida rubrica, a tua mão? Bem sei que a tua mão só executa; mas para além do ombro a ti pertences. Bem puderas chorar, ter hesitado... - A mancha de uma lágrima bastara para dar um sentido a esta morte a que a tua indiferença nos convoca. David Mourão-Ferreira, «Aviso de mobilização, Tempestade de Verão» (1950-1953) in Obra Poética(1948-1995), Porto: Assírio e Alvim, 2019, p.96


12 Era terrível, não somente como um aspeto isolado dos acontecimentos, mas de um modo geral, que os atenienses estivessem partindo assim, após perderem todas as suas naus, num momento em que, em lugar de grandes esperanças, só havia perigo para si mesmos e para a sua cidade; o simples abandono de seu acampamento trazia aos olhos e ao espírito de cada um dolorosas impressões; os cadáveres ainda estavam insepultos, e quando alguém via algum amigo morto era dominado por um forte sentimento de comiseração e medo. Os feridos ou doentes deixados no local despertavam nos sobreviventes compaixão ainda maior que os mortos, e mais do que estes eram dignos de piedade; com efeito, com suas súplicas e lamentos eles provocavam o desespero entre os que partiam, implorandolhes que os levassem consigo e chamando aos gritos cada companheiro ou parente que viam, agarrando-se aos seus camaradas de barraca em retirada e seguindo assim até onde podiam; quando se extinguia a resistência física de uns ou de outros, eram abandonados, não sem um último apelo aos deuses e muitas lamentações; todos os soldados, chorando desesperadamente, achavam difícil partir, mesmo para sair de uma terra hostil, apesar de já terem suportado tantos sofrimentos, e de temerem no seu íntimo ainda outros que teriam de enfrentar no futuro, grandes demais para lágrimas. Tucídides, História da Guerra do Peloponeso (Livro sétimo, 75), p.512 https://funag.gov.br/loja/download/0041-historia_da_guerra_do_peloponeso.pdf


13 Sobre todo o campo, antes tão bonito e alegre, com as baionetas cintilantes e os vapores do sol da manhã, pairava agora uma bruma de humidade e de fumo e sentia-se agora um estranho cheiro ácido a salitre e a sangue. Formaram-se pequenas nuvens e começou a chuviscar, uma chuva miudinha sobre os mortos, sobre os feridos, sobre os amedrontados, sobre os extenuados e os hesitantes, como que a dizer: «Chega, chega, homens. Parem... Reconsiderem. O que estão vocês a fazer?» Homens exaustos, sem comida, de uma e de outra parte, começavam igualmente a ter dúvidas sobre se deviam ainda exterminar-se uns aos outros, e em todos os rostos se notava a hesitação, e em cada alma se erguia igualmente a pergunta: «Porquê, para quem hei de eu matar e ser morto? Matem quem quiserem, façam o que quiserem, mas eu não quero mais!» Este pensamento, ao anoitecer, amadureceu de igual modo no espírito de cada um. A qualquer momento todos aqueles homens podiam horrorizar-se com o que estavam a fazer, abandonar tudo e fugir para onde calhasse. Lev Tolstoi, Guerra e Paz, volume II (1869), Lisboa: Relógio d’Água, 2013, p.235


14 Parecia que a guerra desalojara a Stalinegrado antiga. Era fácil imaginar como os oficiais alemães saíam das caves, como o marechal de campo andava ao longo destas paredes cobertas de fuligem e as sentinelas se endireitavam à vista dele. Mas seria possível imaginar que foi ali que Aleksandra Vladimirovna comprou fazenda para um sobretudo, o relógio que dera a Marússia no seu dia de anos, que viera ali com Serioja e, na secção de desporto, no primeiro andar, lhe comprara patins? Provavelmente, é a mesma impressão estranha que têm aqueles que vão visitar Malákhov Kurgan, Verdun, o campo de Borodinó - ver criança, mulheres que lavam a roupa, uma carroça carregada de feno, um velho com um ancinho... Aqui, onde são as vinhas, andaram colunas de poilus, andaram camiões cobertos de lona; lá, onde agora é uma isbá, pasta o gado magro kolkhoziano e há macieiras, passara a cavalaria de Murat; deste sítio, Kutúzov, sentado na poltrona, com um gesto da mão senil, lançava ao ataque a infantaria russa. Em cima do kurgan, onde as galinhas e as cabras poeirentas estão a pastar nas ervas entre as pedras, o almirante Nakhímov esteve parado, daqui voaram as bombas luminosas descritas por Tolstói, aqui os feridos gritavam, as balas inglesas assobiavam. Vassili Grossman, Vida e destino (c.1961), Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2011, pp.844-845


15 Ruínas A lua quebra os seus espelhos nas ruínas enquanto Beirute faz muletas de sangue e cinzas e coxeia com elas. É verdade. O céu tem correntes à volta dos pés, e as estrelas têm adagas presas na cintura. O dia esfrega os olhos sem acreditar no que vê. Chora, Beirute, limpa as tuas lágrimas com o lenço do horizonte. Escreveste de novo ao céu, mas estavas errada e agora os teus erros escrevem-te. Não tens outro alfabeto? Adonis, O arco-íris do instante antologia poética, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2016, p .95


16 Em Mangando e Marimbanguengo, vi a miséria e a maldade da guerra, a inutilidade da guerra nos olhos de pássaros feridos dos militares, no seu desencorajamento e no seu abandono, o alferes em calções espojado pela mesa, cães vadios a lamberem restos na parada, a bandeira pendente do seu mastro idêntica a um pénis sem força, vi homens de vinte anos sentados à sombra, em silêncio, como os velhos nos parques, e disse ao furriel miliciano, que desinfectava o joelho com tintura, É impossível que um dia destes não tenhamos uma merdósia qualquer, porque, sabe como é, quando homens de vinte anos se sentam assim à sombra, num tão completo desamparo, algo de inesperado, e estranho, e trágico acontece sempre, até que me vieram informar do rádio Um tipo deu um tiro em Mangando, e eu corri para o carro onde a escolta me aguardava a aprontar-se ainda, e seguimos aos saltos para o norte pela picada que a chuva destruíra. António Lobo Antunes, Os cus de Judas, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1994, p. 199


17 Dembos Monólogo e explicação Mas não puxei atrás a culatra, não limpei o óleo do cano, dizem que a guerra mata: a minha desfez-me logo à chegada. Não houve pois cercos, balas que demovessem este forçado. Viram-no à mesa com grandes livros, com grandes copos, grandes mãos aterradas. Viram-no mijar à noite nas tábuas ou nas poucas ervas meio rapadas. Olhar os morros, como se entendesse o seu torpor de terra plácida. Folheando uns papéis que sobraram lembra-se agora de haver muito frio. Dizem que a guerra passa: esta minha passou-me para os ossos e não sai. Fernando Assis Pacheco, «Catalabanza, Quilolo e volta» (1972) A Musa irregular, Lisboa: Assírio e Alvim, 2006, p.51


18 Um dia, chegou um homem à aldeia, ferido, com a roupa em farrapos sanguinolentos. Suplicou para o esconderem. Eles nem tiveram tempo para pensar no que fazer. Apareceram soldados, quatro ao todo, pegaram no homem, empurraram-no para uma árvore, uma rajada atordoou os pássaros e as gentes. Enterrem-no, mandaram. E foram embora pelo caminho de onde vieram, sem mesmo beberem água. Enterraram o homem, iam fazer mais como então? Durante dias lamentaram o morto, enterrado sem xinguilamento nem choro de familiares, sem bebida deitada nos caminhos para orientar o espírito. Muitas teorias foram criadas sobre a origem do finado e as causas da sua morte, todas sem comprovação. E temiam que o espírito injustiçado rondasse perto e eles pagassem pelo que não fizeram. Tantas outras coisas sucederam entretanto que foram esquecendo, mesmo o local da sepultura. A Muari não esqueceu, por vezes murmurava, podia ter sido um dos meus filhos. Pepetela, Parábola do cágado velho (1997), Alfragilde: Publicações Dom Quixote, 2016, p.37


19 Metralhadoras cantam Acenderam-se as armas pela noite dentro. Quem rebenta? Quem morre? Quem vive? Quem berra? Há um vento de lamentos nos lamentos do vento. Metralhadoras cantam a canção da guerra. Cantam granadas a canção da morte. E há uma rosa de sangue à flor da terra. Morrer ou não morrer é uma questão de sorte. Metralhadoras cantam a canção da guerra. Cantam bazucas e morteiros e estilhaços cantam esta canção do aço que não erra no espaço do seu fogo o espaço entre dois braços. Cantam metralhadoras a canção da guerra. Há um tiro que parte. Há um corpo que tomba. Nesta boca fechada há um morto que berra. Quem estoira no meu peito: o coração? Uma bomba? Metralhadoras cantam a canção da guerra. Todo o tempo é uma batalha. Ataque. Fuga. Fuga. Ataque. Silêncio. Um silêncio que aterra. Que marca o rosto com seu peso ruga a ruga. Um silêncio que canta na canção da guerra. Mina.emboscada. Pó. Pólvora. Sangue. Fogo. Acerta não acerta? Erra não erra? Perdeu todo o sentido dizer-se até logo. Metralhadoras cantam a canção da guerra. Cada segundo pode ser o último segundo. Como enterrar os mortos que a memória desenterra? Há um poço tão fundo tão fundo tão fundo.


20 Metralhadoras cantam a canção da guerra. Há um soldado que grita eu não quero morrer. E o sangue corre gota a gota sobre a terra. Vai morrer a gritar eu não quero morrer. Metralhadoras cantam a canção da guerra. Houve um que se deitou e disse: Até amanhã. Mas amanhã é o dia que se enterra o soldado que disse: Até amanhã. Metralhadoras cantam a canção da guerra. E um jipe corre pela noite dentro. Avança não avança? Emperra não emperra? Passam balas de chumbo nas balas do vento. Metralhadoras cantam a canção da guerra. E há duzentos quilómetros de morte em duzentos quilómetros de terra. Neste caminho de Luanda para o Norte metralhadoras cantam a canção da guerra. Manuel Alegre, O canto e as armas (1967), Poesia, primeiro volume (1960-90), Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2009, pp. 126-128


21 A rosa de Hiroshima Pensem nas crianças Mudas telepáticas Pensem nas meninas Cegas inexatas Pensem nas mulheres Rotas alteradas Pensem nas feridas Como rosas cálidas Mas oh não se esqueçam Da rosa da rosa Da rosa de Hiroshima A rosa hereditária A rosa radioativa Estúpida e inválida A rosa sem cirrose A anti-rosa atómica Sem cor sem perfume Sem rosa sem nada. Vinicius de Morais, Antologia poética,Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, p.299


22 O carro de assalto e o camião como os animais pesados e corpulentos da selva, búfalos e rinocerontes. A metralhadora como um mexerico que ceifa muitas vidas de uma só vez? Ou a espingarda, a arma calma e pessoal, a extensão do poder do homem. Não poderão estar todos relacionados? E, pelo contrário, em combate, os homens estão mais próximos da natureza das máquinas que da natureza humana. Uma tese plausível e aceitável. Os combates são organizações de milhares de homens-máquinas a deslocarem-se com movimentos preordenados através de um campo, a suarem como um radiador ao sol, a estremecerem e a tornarem-se rígidos como um pedaço de metal à chuva. Já não nos encontramos assim tão distantes das máquinas. Consigo vislumbrar isso no meu próprio pensamento. Já deixámos de adicionar maçãs e cavalos. Uma máquina vale tantos homens. A marinha levou isso a um requinte maior do que o exército. Os países cujos líderes aspiram a igualar-se a Deus fazem a apoteose da máquina. Norman Mailer, Os nus e os mortos (1948),Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2008, p.561


23 Saldos no Vietname Bombas de esferas: cachos de bombas nascem de uma só bomba-mãe. Cada bomba-filha ejecta, à altura do homem, 300 esferas que vão penetrar na carne aos ziguezagues. Parente deste sanguinário jogo do berlinde é o jogo das setas: um polegar de tamanho, aletas que lhe permitem entrar em parafuso carne dentro, pontas de arpão, o que torna a sua extração mais difícil. (Agora, as setas, quando já no corpo - é um melhoramento!- fragmentam-se.) Também há projécteis de plástico não detectáveis pelos raios X; e a bomba dita de nuvem explosiva. Quando entra em cena o seu papel é este: introduzir, primeiro, por escâncaras ou frinchas, no teatro onde está a atuar, uma expansiva nuvem de etileno. Só depois explode: então, o fogo pega-se ao etileno e ... cai o pano! E mais uma invenção: as minas-aranhiços, que desenrolam patas de 6 metros quando tocam no chão.


24 Ai de quem tropeçar numa das patas: nem a mosca da alma terá tempo de se evolar! A TV veio também colaborar com «diretos» bem sofisticados: realizador-bombista, o pessoal-piloto a um só tempo fabrica e realiza a própria acção e faz-vê, em grande plano, o seu desfecho. Outros sinetes deixou o americano no texto Vietname. Um dos mais velhos: a incandescente lepra à procura de pessoa que se chama napalm; um dos mais novos: a bomba devoradora de todo o oxigénio 250 metros em derredor do ponto onde cair. E onde o americano espera nunca estar. Alexandre O’Neill, «Saldos no Vietname» (1975), Poesias completas, Lisboa: Assírio &Alvim, 2001, pp.364-365


25 II Haverá, meu amor, ainda pássaros no céu entre aviões e aviões, crianças com o sorriso ao ombro entre bombas e bombas? Tão longe, podes imaginar, amor, desta ponta da Europa aquela morgue onde morremos indefesos, aquela invasão de bactérias, uma putrefação armada tentando impor a lei, a destruição à sua imagem? Cai a tarde. O vento anula o peso dos teus pés na areia mas na tua cabeça mantém-se a raiva, a pedra em que ameaças transformar-te de impotência. Ó ódio que marca a tua cinta é o único remédio. Alimenta-o Em cada colher de sopa se não queres ser apenas o gato, a rã, o mineral cibernético que querem modelar no espaço do teu corpo. Poderás sem isso imaginar a paz de que precisam os filhos que te esperam? Egito Gonçalves, « II, Dois poemas a propósito do Vietname», Egito Gonçalves, Luís Veiga Leitão e Papiniano Carlos, Sonhar a terra livre e insubmissa, Porto: Editorial Inova, 1973, pp.37-38


26 Quando Francisco Charrua chegou ao largo gritando: - Eh! gente, estalou a guerra! Zé Gaio de alvoroçado Pôs-se a bater o fandango. Os outros só pelos olhos falavam surpresa, esperança: - Será agora? Talvez...! Mas Zé Gaio tinha a certeza: estava a bater o fandango!... Já vão dois anos passados. Agora a telefonia da venda, à esquina do largo, informa todas as noites: «uma esquadrilha inimiga bombardeou a cidade: Morreram trinta mulheres e vinte e sete crianças.» Agora a telefonia Informa todas as noites, Dias, meses, anos...noites: Morreram trinta mulheres e vinte e sete crianças.» E lá num canto do largo, coberto de noite e raiva, Zé Gaio abriu a navalha, Zé Gaio espetou a navalha no grosso tronco da faia. Lá num canto do largo a faia toda dobrada - será do peso da noite ou do vento de desgraça que sai da telefonia? Manuel da Fonseca, «Guerra» (1941), Obra poética, Alfragide: Caminho, 2017, pp.140-141


27 Ele rodava a cadeira, frente para trás. De quando em enquanto se escutavam tiros, rajadas de metralhadora.Já nem nos alarmávamos. Lá fora havia o matraquear da morte, lamentos de vidas que se apagavam. Para nós, porém, aquele ruído, era já parte da paisagem. Ficava, contudo, um amargo escorrendo naquelas paredes. Nosso assunto se engasgou. Comentei sobre a eternidade que demorava a guerra. Assane discordou: - Nem isto guerra nenhuma não é. isto é alguma coisa que ainda não tem nome. Se explicou: antes fosse uma guerra a sério. Se assim fosse teria feito crescer o exército. Mas uma guerra-fantasma faz crescer um exército fantasma, salteado, desnorteado, temido por todos e mandado por ninguém. E nós próprios, indiscriminadas vítimas, nos íamos convertendo em fantasmas. - No fundo da latrina não pode haver guerra limpa. Mia Couto, Terra sonâmbula, Lisboa, Caminho, 1998, p.121


28 General, o teu tanque é um carro forte. Arrasa um bosque e esmaga centos de homens. Mas tem um defeito: Precisa de um condutor. General, o teu bombardeiro é forte. Voa mais rápido que uma tempestade e carrega mais que um elefante. Mas tem um defeito: Precisa de um mecânico. General, o homem é muito hábil. Sabe voar e sabe matar. Mas tem um defeito: Sabe pensar. Bertolt Brecht, «Cartilha de guerra alemã» (c.1940), Poemas e canções, Coimbra: Almedina, 1975, pp. 158-159


29 Na biblioteca da escola depois da guerra Ao entrar sinto a cara a arder: montes de livros, migalhas de cultura e de beleza juncam o chão como espigas calcadas após a passagem de um brutal furacão. A poeira da guerra veio pousar nos lábios dos homens de génio. Vozes incorruptíveis a troar por cima do espaço e do tempo. Mas incapazes de esmagar as botas do fantasma. Apanho o livro pouco espesso furado Por uma bala. A chaga é horrível. Todas as folhas estão manchadas de sangue. Abro. Leio. Não posso reter as lágrimas quando o título vem dançar diante dos meus olhos: «Os sonetos sangrentos de Hviezdoslav». Julius Lenko (1914-2000), in A rosa do mundo 2001 poemas para o futuro, (dir edit. Manuel Hermínio Monteiro) Lisboa: Assírio e Alvim, 2001, pp.1547-1548 Nos 32 poemas que compõem Os Sonetos Sangrentos (1914), o poeta eslovaco Pavol Országh Hviezdoslav (1849-1921) pergunta quem é o responsável pelos horrores e sofrimentos da guerra, revelando também esperança de que a humanidade aprenda a viver em paz. http://relvateresa.blogspot.com/2021/03/os-sonetos-sangrentos-de-hviezdoslav.html (consultado em abril 2023)


30 Autores citados Adonis …………………………………………………………p.15 Alexandre O’Neill ……………………………………………..p.23 António Lobo Antunes ………………………………………p.16 Bertolt Brecht …………………………………………………p.28 David Grossman………………………………………………p.7 David Mourão-Ferreira ……………………………………….p.11 Egito Gonçalves ………………………………………………p.25 Fernando Assis Pacheco ……………………………………p.17 Fernando Pessoa……………………………………………..p.5 Iwan Goll ………………………………………………………p.10 Jorge Luis Borges…………………………………………… p.6 Julius Lenko ………………………………………………….p.29 Lev Tolstoi ………………………………………………….…p.13 Louis-Ferdinand Céline……………………………………...p.8 Manuel Alegre…………………………………………………p.19 Manuel da Fonseca…………………………………………..p.26 Mia Couto………………………………………………………p.27 Miguel Torga …………………………………………………..p.3 Norman Mailer…………………………………………………p.22 Pepetela ……………………………………………………….p.18 Sophia de Mello Breyner Andresen……………………..….p.4 Thomas Mann…………………………………………………p.9 Tucídides ………………………………………………………p.12 Vassili Grossman …………………………………………….p.14 Vinicius de Morais ……………………………………………p.21


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