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Textos para o Café com Letras - Vol. 1
Autor: Julian Barg

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Published by ctrls, 2020-04-02 15:18:56

Textos para o Café com Letras - Vol. 1

Textos para o Café com Letras - Vol. 1
Autor: Julian Barg

Julian Barg

YO
HABLO

Porque é
impossível
fingir que
literatura
não existe



Julian Barg

YO
HABLO

Porque é
impossível
fingir que
literatura
não existe

4

5

Texto de
introdução/
apresentação

Miligent eum ducime voluptat. Rovidella simus a
doloreperum, sinctus con conet vellani mintiae. Ut
quis a velendignis doluptat ium hiciditendit quos autem
et aligenias voluptat velit et debitatem que con eat
quam qui con nos eruntur? Onsequis de molupti orerchil
imustium quam laborem essimpossunt dolupie nderia
pelent fugia sam aspelit, non repero debit, sequi conse et,
atque omnist, andes eum voluptatis ali

atus est, vendia iur re corum harum quissiti
quidestium, omnihit omnitasperum quistiandae pro
doloreicae consequi res a aut est, same corepro tem
aribusanimi, que explite volupta sperumquia consed ut
eum ea aperemporum, ullitaes etusape rferchil il atus est,
vendia iur re corum harum quissiti quidestium, omnihit
omnitasperum quistiandae pro doloreicae consequi res
a aut est, same corepro tem aribusanimi, que explite
volupta sperumquia consed ut eum ea aperemporum,
ullitaes etusape rferchil il

atus est, vendia iur re corum harum quissiti

6
quidestium, omnihit omnitasperum quistiandae pro
doloreicae consequi res a aut est, same corepro tem
aribusanimi, que explite volupta sperumquia consed ut
eum ea aperemporum, ullitaes etusape rferchil il atus est,
vendia iur re corum harum quissiti quidestium, omnihit
omnitasperum quistiandae pro doloreicae consequi res
a aut est, same corepro tem aribusanimi, que explite
volupta sperumquia consed ut eum ea aperemporum,
ullitaes etusape rferchil il
atus est, vendia iur re corum harum quissiti
quidestium, omnihit omnitasperum quistiandae pro
doloreicae consequi res a aut est, same corepro tem
aribusanimi, que explite volupta sperumquia consed ut
eum ea aperemporum, ullitaes etusape rferchil il atus est,
vendia iur re corum harum quissiti quidestium, omnihit
omnitasperum quistiandae pro doloreicae consequi res
a aut est, same corepro tem aribusanimi, que explite
volupta sperumquia consed ut eum ea aperemporum,
ullitaes etusape rferchil il
atus est, vendia iur re corum harum quissiti
quidestium, omnihit omnitasperum quistiandae pro
doloreicae consequi res a aut est, same corepro tem
aribusanimi, que explite volupta sperumquia consed ut
eum ea aperemporum, ullitaes etusape rferchil il atus est,
vendia iur re corum harum quissiti quidestium, omnihit
omnitasperum quistiandae pro doloreicae consequi res
a aut est, same corepro tem aribusanimi, que explite
volupta sperumquia consed ut eum ea aperemporum,
ullitaes etusape rferchil il
atus est, vendia iur re corum harum quissiti
quidestium, omnihit omnitasperum quistiandae pro
doloreicae consequi res a aut est, same corepro tem
aribusanimi, que explite volupta sperumquia consed ut
eum ea aperemporum, ullitaes etusape rferchil il atus est,
vendia iur re corum harum quissiti quidestium, omnihit
omnitasperum quistiandae pro doloreicae consequi res
a aut est, same corepro tem aribusanimi, que explite

7

volupta sperumquia consed ut eum ea aperemporum,
ullitaes etusape rferchil il

atus est, vendia iur re corum harum quissiti
quidestium, omnihit omnitasperum quistiandae pro
doloreicae consequi res a aut est, same corepro tem
aribusanimi, que explite volupta sperumquia consed ut
eum ea aperemporum, ullitaes etusape rferchil il atus est,
vendia iur re corum harum quissiti quidestium, omnihit
omnitasperum quistiandae pro doloreicae consequi res
a aut est, same corepro tem aribusanimi, que explite
volupta sperumquia consed ut eum ea aperemporum,
ullitaes etusape rferchil il

atus est, vendia iur re corum harum quissiti
quidestium, omnihit omnitasperum quistiandae pro
doloreicae consequi res a aut est, same corepro tem
aribusanimi, que explite volupta sperumquia consed ut
eum ea aperemporum, ullitaes etusape rferchil il atus est,
vendia iur re corum harum quissiti quidestium, omnihit
omnitasperum quistiandae pro doloreicae consequi res
a aut est, same corepro tem aribusanimi, que explite
volupta sperumquia consed ut eum ea aperemporum,
ullitaes etusape rferchil il.

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9

Considerações sobre
A montanha mágica,
de Thomas Mann

parte 1

Na contracapa da edição da Companhia das Letras de A
montanha mágica, de Thomas Mann, a obra do autor
alemão é descrita como um “romance de formação”. Se
você for ler a respeito desta monumental obra do século
XX, quase sempre encontrará essa definição.

Eu diria que sim, essa definição faz sentido, mas ela
vem acompanhada de mais sentidos e definições do que
serei capaz de mencionar aqui. Eis algumas definições
adicionais: “romance de ridicularização da formação”, ou,
mais suavemente “ironia da formação”. Outros: “romance
de como o ser humano se sente doente”, “romance de como
os outros seres humanos doentes também querem que nós
estejamos doentes”; “romance de como a influência do
meio nos faz mudar de opinião”, “...de como assuntos
profundos se perdem em meio a discussões intermináveis”,
“...de como assuntos pertinentes se perdem quando não

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analisados de forma tão extensa como os assuntos não
pertinentes”, “...de como o ser humano, quando isolado
em uma montanha, em meio a apenas outros seres
humanos, começa a duvidar de si mesmo”. Mas antes
e depois de tudo, um “romance sobre as distorções do
tempo e da razão quando colocadas lado a lado”.

Nada do que está escrito acima é piada, é tudo
muitíssimo sério, e estes são apenas alguns poucos motivos
pelos quais A montanha mágica é um livro especial. Há
muitos outros.

Começando pela última “definição” (a do tempo), a
que reúne todas as outras. A experiência de ler esta obra
é, em si, o resultado do seu impacto: a lentidão no topo da
montanha, no sanatório, ao lado de todos os doentes, faz
com que Hans Castorp comece a duvidar de si mesmo em
relação à sua saúde, dúvida que inicialmente nem sequer
lhe passava pela cabeça. O realismo do livro se mescla com
uma espécie de sensação de enlouquecimento ou ilusão
lenta e crescente à medida que 1.nada de fato acontece;
2.não é possível que nada de fato aconteça; 3.assuntos
seríssimos são discutidos; 4.assuntos seríssimos são
levados ao nível mais alto de futilidade uma vez que não
se sabe por que se está discutindo o que se está discutindo
e nem por que e para onde essa conversa vai.

Mas a questão do “romance do tempo” vai além: os
fatos vão acontecendo de forma tão natural, mas tão
natural, e agora mais natural ainda, e quando você vê
tão natural que é impossível que a vida seja tão natural
que só coisas naturais aconteçam, e então se instala uma
espécie de “mistério” no ar, uma sensação intrínseca
de que algo pode acontecer a qualquer momento e que
(espere aí!), talvez vá acontecer! E então caímos em algo
que beira o mágico ao mesmo tempo em que o realista, o
real, nunca deixam de existir. É quase como aquele filme
em que após 40 minutos você começa a perceber que a

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qualquer momento algo radical deve acontecer, mas que
nunca acontece.

E como o tempo é muito longo, e as pessoas estão
isoladas, e há um mundo micro, uma micro civilização
no sanatório, e você está sozinho lendo aquilo há tanto
tempo que já faz parte da paisagem, pronto, você já é
parte daquele tempo, daquela micro civilização e daquela
lógica que parece prestes a lhe oferecer uma novidade a
qualquer momento.

Até que você percebe que a novidade é essa.

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Considerações sobre
A montanha mágica,
de Thomas Mann

parte 2

Àmedida que o tempo passa e Hans Castorp vai
permanecendo no sanatório, a ambientação se
torna “fixa” do ponto de vista que, agora, não mais
temos uma situação passageira, temporária. A partir do
diagnóstico que lhe é dado, o hospital passa a ser sua
moradia permanente – mesmo que haja, longinquamente,
a possibilidade de que ele se cure.

Com essa mudança de visão sobre o estado de saúde
de Hans Castorp e a ideia de que passamos a ter uma
situação estável no dia a dia na montanha, o leitor
também é fixado em uma realidade que se materializa: o
mundo não é lá embaixo na planície, é aqui em cima, na
montanha; o mundo não são as pessoas lá fora, mas sim

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essa microssociedade que vive isolada.

Parece-me haver duas questões que dominam a
narrativa a partir desse momento.

A primeira delas é uma questão humana em que se
desenvolve a noção de que o ser humano precisa, de
qualquer forma, criar uma realidade em qualquer novo
habitat que ele esteja. Se for na prisão, será na prisão,
se for em uma grande cidade, será ali, se for no deserto,
na neve, perdido sozinho, em grupo etc, sempre, de uma
forma ou outra, após o choque inicial, cria-se uma vida
emocional e social em que o ser humano se estabiliza
dentro de sua nova realidade. Em outras palavras: o ser
humano precisa viver e viverá conforme o que a natureza
psicológica que lhe é inata necessita para mantê-lo são.

Dessa forma, cria-se essa sociedade dos moradores
do sanatório em que as características humanas passam
a se desenvolver (se não fosse ali seria na planície, ou
em qualquer outro lugar). O ser humano não tem como
escapar de ser ele mesmo, de raciocinar das formas que
raciocina, de buscar problemas no que lhe incomoda
em seus espaços não totalmente preenchidos na mente,
de buscar amores nas pessoas que lhe estão próximas,
encontrar ódios, observações, de criar teorias, de manter-
se ocupado para sentir-se vivo.

A segunda direção que a narrativa toma é a de criar
um estado de imersão em determinados pontos do enredo
de forma a fazer o leitor sentir o que se passa nessa
sociedade e no interior dos personagens. Passagens longas
como a que Hans Castorp lê sobre medicina, apesar de
soarem bastante monótonas e às vezes como um beco sem
saída na história, têm a função de não apenas informar
o leitor de que Castorp está passando todo aquele tempo
lendo exatamente aquilo, mas fazê-lo passar por essa

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experiência.

A montanha mágica é um livro publicado em 1924,
mas essa característica de imersão é bastante atual e
frequentemente usada por escritores contemporâneos,
em que não basta informar, há de fazer o leitor sentir
a sensação (e não há compromisso com a escrita ou a
leitura prazerosa, o compromisso é com a verdade,
a realidade, e se ela for dura, difícil, sofredora, não
importa). Nesse sentido, best-sellers têm a intenção de
divertir o leitor, fazê-lo se sentir bem. Grandes clássicos
têm a característica de serem verdadeiros, seja essa
verdade incômoda ou não.

Exemplos de obras em que o tom da história e a
sensação do leitor são próximos (ou às vezes iguais): O
compromisso (Herta Müller), Estorvo (Chico Buarque),
Desonra (J. M. Coetzee), Vidas secas (Graciliano Ramos).

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Considerações sobre
A montanha mágica,
de Thomas Mann

parte 3

Amontanha mágica mais e mais parece ir se tornando
um título dual, assim como sua narrativa também se
divide de forma que pode ser interpretada sob olhares
opostos. O título pode tanto ser levado a sério, levando
em consideração a seriedade da condição de saúde dos
moradores do hospital e das questões que os afligem, como
de uma forma irônica, em que muitas vezes o ridículo de
situações toma conta dos moradores da montanha.

Uma das coisas mais frequentes que me parecem
acontecer na arte, e por consequência na literatura, é o
excesso de seriedade, ou talvez rigidez com que certos
aspectos e características das obras são levados em conta.
Quando me referi à dualidade do título, me referi também

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à maneira como o autor aborda as questões levantadas
principalmente nos diálogos entre os personagens. Em
lugar algum, mencionado ou discutido por qualquer
crítico literário jamais li nada sobre tais assuntos beirarem
o ridículo ou a futilidade. A arte, afinal, é uma coisa séria,
e a literatura, algo tenso, sisudo, principalmente nos
clássicos, quando o tom da narrativa é lento e arrastado,
e quando o assunto parece ter profundidade. Será?

Voltando à dualidade, acho que nesta obra há as duas
questões. Ao mesmo tempo em que grandes perguntas
e dúvidas e posições sobre a vida são discutidos e
levantados nos diálogos, o tempo a que esses diálogos são
expostos terminam por expor a natureza humana frágil
dos que discutem (na maioria das vezes Settembrini e
Naphta), mostrando também que estes se confundem,
passam a defender o que há pouco condenavam, vivem
em desacordo com o que defendem, e, mais do que tudo,
não são resistentes a uma discussão prolongada em que a
linguagem, por si só, é mais poderosa do que aqueles que
tentam dominá-la, resultando em um circo de futilidades.

Mas nisso não se fala em lugar nenhum, não é mesmo?
O que se fala é sobre o assunto levantado. Sobre o resultado
do assunto, nada. Nessa omissão, há uma grande perda,
que é a análise do que é a natureza humana quando tenta
ser coerente com ideias ao ponto não só de defendê-
las, mas também exemplificá-las, e, sobretudo, viver de
acordo com os princípios dessas ideias. E aí é que falo
da dualidade desse texto. A obra de Thomas Mann não
apenas discute os assuntos que os personagens discutem,
mas disfarçadamente discute o que é o ser humano
quando tenta ser dono da verdade, o quão impossível é
ser coerente e humano ao mesmo tempo.

A montanha mágica é sobre a natureza humana, ou
seja, sobre coisas mágicas, interessantes, profundas,

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problemáticas, duais, conflitantes, e, junto a tudo isso,
ridículas.

Em tempo: a passagem em que Hans Castorp sonha
acordado com um mundo paralelo me parece demasiado
semelhante ao conto “Sonho de um homem ridículo”, de
Dostoiévski, publicado em 1877, para não ser intencional.

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Considerações sobre
A montanha mágica,
de Thomas Mann

parte 4

Àmedida que o romance se encaminha para o final,
confirma-se a impressão de que há uma paisagem
macro dominante na narrativa, ou seja, os detalhes
funcionam de forma a, na somatória, criar a “imagem
total”, que é o que realmente importa.

Se pensarmos que cada debate ocorrido no texto, entre
os personagens, é um satélite – que por momentos parece
ser o ponto principal – mas que funciona de forma a
compor um significado maior do que a discussão por si
só, veremos que o que A montanha mágica é, ou parece
ser, um espelho da vida, ou talvez da existência. Pois em
momentos tudo nos parece complexo e cheio de questões
labirínticas, mas em outros há uma certa maré em que a

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movimentação da vida é constante e, muitas vezes, com a
sensação de um marasmo.

Do ponto de vista de um clássico da literatura, as
questões e as perguntas estão lá: um clássico nunca é um
clássico por causa da pergunta “o que vai acontecer?”.
A resposta para isso é a emoção que o leitor sente em
relação à sua expectativa pelo desenrolar do enredo.
Isso pode ser encontrado nas obras mais comerciais e,
inclusive, é nisso que elas são baseadas. No clássico,
mesmo essa questão existindo (ou não), o que o torna o
que ele vem a ser, é “como isso aconteceu?”, “por que isso
aconteceu?”, “como as pessoas se sentem?”, “como a vida
se deu e por que dessa forma para esses personagens?” e
assim por diante. Assim, obras em que “nada acontece”
se transformam em clássicos pela intensidade humana
contida nelas.

O ponto de vista final sobre A montanha mágica em
si, sendo a obra o espelho da vida que conseguiu ser, me
parece ser que o leitor transita por dois espaços que são
intermitentes (e que são os espaços mentais e emocionais
que a vida também proporciona). E esses são as sensações
opostas de vivenciarmos o tempo e nos perguntarmos (ou
sentirmos) estas duas coisas em relação à existência (e ao
livro):

- Mas então é tão complicado?
- Mas então era só isso?

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25

Pastoral
Americana

Pastoral Americana é considerado muitas vezes como a
obra-prima de Philip Roth. Lançado em 1997, o livro
ganhou o prêmio Pulitzer e foi adorado pela crítica. É
um romance longo, realista, complexo, de frases extre-
mamente bem acabadas e extensas (PIERPONT, 2015, p.
301).

É também um romance claramente americano e que
parece se inserir mais na tradição da literatura americana
gentia que na da literatura judaica. Há pouco de Bellow,
Malamud ou Norman Mailer (influências recorrentes de
Roth) aqui, e muito de John Updike e Scott Fitzgerald
(PIERPONT, 2015, p, 300).

Seu protagonista, Sueco Levov, é um homem comum,
simples, um “americano normal”. Diferente dos tipos
neuróticos, intelectuais, atormentados e ostensivamente
judeus que Roth costuma criar, o Sueco é o mais próxi-
mo que o autor consegue chegar de Coelho Armstrong6
(PIERPONT, 2015, p. 296). Mas há também muito de
Gatsby no Sueco: o homem que tenta moldar a si mesmo,

26
reconstruir sua história e acaba, por causa disso, atraindo
a tragédia.
A história que o Sueco tenta reconstruir é a de si mes-
mo como americano e judeu. Nascido Seymour Irving Le-
vov, ele se tornou um ídolo de sua escola de ensino médio
por duas façanhas: ser ótimo em esportes e se parecer
com “um americano” (ROTH, 1997, p. 3). Já no primei-
ro parágrafo, seu rosto é chamado de “anômalo” (ROTH,
1997, p.3) e Pierpont, ao comentar o livro, afirma que a
própria existência do Sueco é vista como uma façanha as-
similativa (2015, p. 292). Diferentemente de todos os seus
colegas de escola, Sueco Levov nasceu para se integrar a
América.
Mesmo seu apelido é algo significativo: Sueco era um
apelido relativamente comum para garotos altos, loiros,
de olhos azuis. Sua aparência física, seu apelido “viking”,
seus traços quase germânicos são um assombro para uma
comunidade judaica durante a Segunda Guerra Mundial
(Pierpont, 2015, p. 292). O apelido de Seymour Levov o
leva ainda mais perto da América de descendência nórdi-
ca e anglo-saxã, o coloca ainda mais no caminho da as-
similação. O nome foi inspirado em um personagem real
da Weequahic High, escola de ensino médio onde Roth
estudou: nos anos 30, Sueco Masin foi uma estrela do fu-
tebol e seguia famoso dez anos depois, quando o escritor
estudou lá. (Pierpont, 2015, p. 291)
Roth, contudo, não tomou mais do que o nome e a
fama atlética do personagem real, mas diz que esse foi o
ponto de partida da história: tudo que o nome Sueco evo-
cava e sua incongruência com o universo de uma escola
judaica.
A história de Sueco Levov, no entanto, não é contada
em primeira pessoa, mas através de Nathan Zuckerman, o
mais famoso dos alteregos de Philip Roth. Zuckerman foi
colega de classe de seu irmão, Jerry, muito mais parecido
com as dezenas de garotos judeus da escola.
Zuckerman começa sua narrativa com os anos de gló-

27

ria do Sueco, em um capítulo chamado “O Paraíso Relem-
brado”. Os triunfos no esporte, a forma como ele se casou
com uma garota católica e ganhadora do Miss Nova Jer-
sey, a herança da fábrica do pai (apesar de suas ressalvas
ao casamento), são o material desse paraíso vivido nos
anos 40 e 50. As lembranças são ativadas por uma carta
que ele recebe do Sueco em uma tarde de 1995, chaman-
do-o para um almoço.

O escritor vai ao almoço com seu antigo ídolo ado-
lescente e durante a conversa, embora nada de estranho
venha à tona, algo lhe parece esquisito. Meses depois, em
um encontro com Jerry, Nathan descobre que, em 1968, a
filha do Sueco explodiu uma agência do correio na peque-
na cidade em que moravam, matando uma pessoa.

O que se segue não é um relato da realidade, mas o que
Zuckerman imagina ter acontecido com a família aparen-
temente tão perfeita. Os capítulos seguintes, A Queda e
Paraíso Perdido, são, segundo Shechner, “Uma descida ao
pior círculo do inferno que Roth pode sonhar para os que
não refletem: a auto- reflexão” (PARRISH, 2007, p. 143).

A presença de Nathan Zuckerman, e o fato da nar-
rativa apresentada não ser mais que uma criação sua,
é extremamente relevante. Zuckerman, o intelectual, é
convocado para contar a história do Sueco, alguém bem
pouco intelectual. O acadêmico e escritor é capaz de dar
aos acontecimentos uma dimensão de análise histórica
que o atleta não poderia. Aos olhos de Nathan, a filha
terrorista se torna uma parábola, uma narrativa exemplar
dos sonhos e riscos envolvidos no processo de se tornar
americano (PIERPONT, 2015, p. 292).

Shechner define Pastoral Americana como um livro de
pesadelos (IN: PARRISH, 2007, p. 143), um livro em que o
sonho americano se distorce e demonstra sua pior faceta.
Para Pierpont, é um romance sobre “a loucura assassina
americana” (2015, p. 289) e para o próprio Roth é uma
história sobre “um homem bom” e a tragédia que neces-
sariamente decorre dessa bondade (PIERPONT, 2015, p.

28
291). Em comum, todas essas interpretações reconhecem
no livro a queda, a história de algo que, em algum mo-
mento, dá errado.
Em Adeus, Columbus, Roth já havia abordado com um
olhar ácido o tema dos judeus bem-sucedidos, que viviam
em casas grandes em subúrbios gentios. Ali, a comédia
provinha justamente do excesso de esforço e da artificia-
lidade: para serem góis precisavam ser mais góis do que os
góis. As refeições são pantagruélicas, o gosto por esportes
é quase uma religião e a ênfase do Sr. Patimkin7em como
é um self made man8 chega a ser exaustiva. Saul Bellow
chamou o livro de “um reflexo verdadeiro da vacuidade
espiritual” que acometia muitos dos judeus de classe mé-
dia alta na América (PIERPONT, 2015, p. 25).
Em Pastoral Americana, o mesmo tema assume uma
dimensão trágica. Há no Sueco o mesmo exagero que nos
Patimkin: ele também precisa aderir as convenções e ao
sonho americano com uma força descomunal. O que o
Sueco quer é ser Johnny Semente de Maçã9, que, em sua
cabeça, não era um judeu, ou católico irlandês, ou um
protestante, mas apenas “um americano feliz” (ROTH,
1998, p. 282).
A imagem mítica do pioneiro se reflete em seu apego a
terra, ao seu pequeno pedaço de América que é a casa no
subúrbio. Há uma passagem especialmente expressiva na
qual o Sueco caminha de volta do mercadinho da cidade
para sua casa:

e caminhava todo o trajeto de volta para casa, passando pelas
cercas brancas dos pastos que adorava, os campos de feno

7 Adeus Columbus tem como protagonistas Neil Klugman e sua namorada Brenda
Patimkin. A casa da família dela é o cenário e boa parte da narrativa.
8 O homem que se faz por si mesmo, pilar da cultura americana
9 Uma figura história americana: no século XVIII, Johnny Semente de Maçã foi um pioneiro
e missionário que trouxe macieiras para boa parte do norte dos Estados Unidos. Já em
vida ele se tornou uma lenda devido a sua generosidade e comprometimento com a
pátria, hoje representa o espírito americano do pioneiro e de conquista da terra.

29

ondulante que adorava, os milharais, os campos de tulipa, os
celeiros, os cavalos, as vacas, os poços, os riachos, as fontes,
as cachoeiras, os agriões, os juncos lustrosos, os prados, acres
e acres de mata que adorava com todo o amor infantil pela
natureza (ROTH, 1998, p. 284)

Comparemos esse trecho com quando sua filha, Mer-
ry, faz o mesmo caminho:

passando pelos estábulos, os cavalos, as vacas, os tanques, os
córregos, as nascentes, as cachoeiras, os agriões, os juncos
ásperos (“Os pioneiros, mamãe, usavam os juncos para esfre-
gar vasos e panelas”), os prados, acres e mais acres de mata
que ela detestava, vindo da vila, seguindo o trajeto alegre e
animado do seu pai, ao estilo de Johnny Semente de Maçã,
até que, no momento em que as primeiras estrelas estavam
surgindo, Merry chegava aos bordos de cem anos, que ela
detestava, e à sólida e antiga casa de pedra na qual vivia a
sólida família, também marcada pela existência de Merry, e
que ela também detestava. (ROTH, 1998, p. 375)

Merry é o oposto exato do Sueco. Mesmo filha de uma
ex-Miss e um belo jogador de futebol, é uma criança feia.
Desde pequena, ela apresenta uma gagueira incapacitan-
te, não é uma boa aluna, nem especial de nenhuma for-
ma. Ao contrário, tudo que Merry faz parece falho de
algum jeito e tanto a mãe quanto a própria criança sen-
tem que ela parece destinada a falhar na mesma medida
em que seu pai é bem-sucedido em tudo que tocou. Há,
de partida, uma incompreensão essencial desse pai para
com a filha, a incompreensão daqueles para quem muito
foi dado e confundem sua sorte com o jeito de ser do
mundo (PIERPONT, 2015, p. 291).

Merry vê o mundo como essencialmente falho. Na ado-
lescência, ela se envolve com grupos radicais, é uma mar-
xista ferrenha e ataca todos os valores americanos que o

30
pai tanto adora até terminar com o ato terrorista que pre-
cipita a família no abismo. A garota é, claro, um produto
de seu tempo. Nos anos 60, os Estados Unidos voltam-se
para si mesmos, para a ideologia ingênua e mitológica
comprada por milhões de Suecos (SHECHNER IN: PAR-
RISH, 2007, p. 144).
Mas para Shechner, Merry é fruto de mais do que os
anos 60: ela é o pior pesadelo de seu pai, um fruto da
cultura judaica. Ela é, ele nota, semelhante ao seu avô,
Lou Levov, na violência de suas convicções e na incapa-
cidade para se integrar. Para Pierpont, enquanto o Sueco
vive na América “do mesmo jeito que vivia dentro da
própria pele” (p. 299), Merry se sente deslocada, mal en-
caixada, aquele país não lhe pertence e ela o odeia por
isso. Para a autora, a tragédia do Sueco se dá em parte
porque sua “façanha assimilativa” não se estende a filha
(p. 300). Omer-Sherman nota que Pastoral Americana
é um livro “sobre as perdas de se tornar o ‘Sueco’” um
judeu que perdeu todos os vestígios de sua identidade
judaica. (ROYAL, 2005, p. 192)
Em Modernidade e Ambivalência, Bauman parte da ob-
servação de que muitas das críticas mais contundentes
feitas a modernidade partiram de judeus. Ele elenca Kaf-
ka, Marx e Freud como exemplo e analisa que as pressões
exercidas pelo processo de assimilação tornaram certas
contradições das sociedades em que viviam mais claras
para os judeus. (2015, posição 2242) Merry seria então,
tanto para Bauman como para Schechner, apenas mais
um caso de uma longa tradição. A revolta, a combativi-
dade, mesmo o marxismo, são, tanto para Bauman como
para Shechner, profundamente judeus.
Bauman nota que a assimilação, ao exigir uma violên-
cia profunda contra si mesmo e suas raízes e uma adesão
quase cega aos ideais da sociedade em que deseja inte-
grar-se, produz desolação e desenraizamento. Ele iden-
tifica ainda, no projeto de assimilação, “o sonho moder-
no da uniformidade” e o “moderno horror à diferença”

31

(2015, posição 2995). Ser igual, perfeitamente igual a to-
das as casinhas de subúrbio, é precisamente o que o Sueco
deseja e o que Merry mais rejeita.

Shechner chama Merry de “uma vítima da mediocri-
dade de seu pai, da cegueira de sua mãe e do conforto
burguês sólido e nada reflexivo de Old Rimrock”10 (IN:
PARRISH, 2007, p. 146). Mas ele traça suas origens mais
além:

Merry Levov vem de algum lugar, afinal. Não de Old Rimrock,
mas de Newark, da Polônia, da Rússia revolucionária, da
Diáspora Askhenazi, de Massada mesmo (IN: PARRISH,
2007, p. 147)

Ao desejar ser alguém sem raízes, sem identidade, um
“Johnny Semente de Maçã” a conquistar novas fronteiras,
o Sueco atrai sua própria desgraça. Ao ser um homem
bom, e esperar que o mundo fosse igualmente bom, em
um universo tão violento quanto é o de Philip Roth, ele
se destina a cair como Jó: não são gratuitas as alusões
bíblicas nos nomes dos capítulos. Merry, a filha terrorista,
é a consequência de sua vontade ilimitada de ser um ame-
ricano. Roth, na voz de Zuckerman, comenta:

Ele aprendera a pior lição que a vida pode ensinar –
que ela não faz sentido. E quando isso acontece, a felici-
dade nunca mais é espontânea. É artificial e, mesmo en-
tão, obtida ao preço de um tenaz alheamento de si mesmo
e da própria história. (1998, p. 75)

Merry é o produto desse alheamento. Nas palavras de
Shechner, ela é “o inconsciente judaico de seu pai; ela é
o retorno do reprimido” (PARRISH, p. 147). Bauman diz:

10 Cidadezinha de subúrbio onde vive a família Levov.

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O Projeto assimilatório da modernidade deu à luz seus pró-
prios coveiros. Montou inadvertidamente o palco onde seria
encenado o drama da cultura moderna (2015, pos. 3000)

Pastoral Americana é esse drama da cultura moderna
encenado em casas de subúrbio onde habitam judeus as-
similados. Philip Roth, um patriota confesso (PIERPONT,
2015, p. 289), é ao mesmo tempo um crítico contumaz de
projeto de uniformidade e da adesão sem críticas à ame-
ricanidade que ele parece promover. Roth, por mais ame-
ricano que seja, sabe que há um lado obscuro da América,
e critica-o com precisão.

Parrish comenta que Roth é o exemplo de um fenôme-
no da literatura americana pós Segunda-Guerra em que,
quanto mais étnico é o trabalho de um autor, ao mes-
mo tempo mais americano ele é. Pastoral Americana é ao
mesmo tempo seu trabalho mais judeu e mais americano
e uma reflexão sobre o custo do abandono de qualquer
uma destas identidades.

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A consciência
de Zeno

(Ítalo Svevo)

Aconsciência de Zeno, obra de Ítalo Svevo, é
considerada uma das primeiras (por alguns a
primeira) a situar a questão da psicanálise dentro da
obra literária, ou seja, inserida não só no assunto,
mas também como guia do enredo. Isso acontece,
principalmente, uma vez que a questão psicanalítica
se inicia já na primeira página, quando o psicanalista
de Zeno assume estar não só publicando as memórias
que seu paciente escreveu (a seu pedido), como diz ser
coautor dessas memórias. Bem, há algumas questões
que devem ser separadas para análise mais direta.

Uma coisa é ter a psicanálise como um assunto domi-
nante e, assim, criar uma obra chamada “psicanalítica”.
Nisso entra também a questão da época em que a obra foi
escrita e a quebra que esta provocou ao apresentar um
assunto como este, somada ao fato de o protagonista ser
um anti-herói, um personagem sem grandes virtudes e
confesso de seus defeitos e de certa malandragem. Nesse
caso, temos a psicanálise quase como uma paisagem que
se mescla ao meio-ambiente, como um fator dominante.

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De fato, a narrativa tem um tom “claustrofóbico”, em

que tudo se passa dentro da mente de Zeno, esbarrando,
portanto, nos enganos ou intenções de erro dos fatos do
personagem e transformando-se também em uma obra
memorialística (mesmo que a memória seja proposital-
mente alterada).

O outro ponto é que esta obra seja considerada psi-
canalítica não por seu assunto ou forma, mas pela tão
chamada crítica literária psicanalítica, que pretende usar
livros e teorias de psicanálise como fonte de análise de
qualquer obra literária. E é aí que está feita a confusão
quando essas duas coisas diferentes passam a ser conside-
radas a mesma, pois não são.

A crítica literária psicanalítica é muito criticada (e não
tão levada a sério nos dias de hoje) por ser usada de for-
ma quase aleatória por críticos que nada têm a ver com
a psicanálise e, portanto, com muita frequência destacam
passagens de livros de psicanálise de forma a “encaixar”
a obra que estão analisando sem grande conhecimento do
que de fato a teoria diz. Assim, a crítica literária psicana-
lítica foi perdendo força e não é exatamente confiável nos
dias de hoje. Isto tendo sido dito, temos de separar o que
de “psicanalítico” realmente existe na obra de Ítalo Sve-
vo: se é a temática, a forma, a aproximação do enredo e
dos personagens a uma realidade que era nova à época da
escrita do livro, ou se devemos considerar que há algo de
“mais fundo psicanalítico” nesta obra do que em outras.

Em minha opinião, se formos falar em psicanálise ou
psicologia (apesar de que sempre é melhor deixar isso
para os profissionais), qualquer situação ou personagem
pode ser analisado, e para isso não é necessário que haja
alguém no divã dentro do enredo ou que alguém na nar-
rativa esteja se tratando. Basta apenas que exista alguém
em algum lugar em relação com algo, nem que esse algo
seja seu próprio pensamento.

Me parece haver dois pontos mais claramente “psica-

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nalíticos” na obra, e esses fizeram com que A consciência
de Zeno fosse considerada “altamente psicanalítica”: (1) a
época e (2) a inovação da TEMÁTICA; não o alto teor de
reflexão sobre o assunto. Aliás, na literatura contempo-
rânea, caso quiséssemos adotar o enfoque psicanalítico,
teríamos muito mais material literário escondido nas en-
tranhas das narrativas.

À medida que o enredo se desenvolve, o que vemos é
que o que parece dominar a obra são as narrativas “em
moldura”: o livro A consciência de Zeno contém um de-
poimento que afirma que a narrativa é de outra pessoa (e
portanto está contida nessa primeira afirmação) e que por
sua vez assume que pode ser verdade ou mentira em dife-
rentes partes (ou seja, contém alterações vindas de Zeno),
que, por sua vez, pode ter alterações vindas do médico,
em uma sequência de narrativas dentro de narrativas al-
teradas por narrativas, formando uma Matrioska.

À medida que o romance se desenvolve (ou, para mui-
tos, parece não se desenvolver), surgem as questões in-
trínsecas ao estilo, conteúdo e forma da obra de Svevo.

O protagonista é um personagem que parece estar à
deriva grande parte do tempo, tomando pequenas deci-
sões que não mudam drasticamente seu destino, mas dei-
xando-se levar pelos acontecimentos, pelas decisões de
outros e permitindo que essa faceta decida sua vida. Os
personagens coadjuvantes, somados, são os que decidem
a vida de Zeno, uma vez que este flutua em meio ao que
lhe cerca.

Com isso em mente, e tendo observado o desenrolar da
narrativa, surgem várias questões:

- O que quer dizer a palavra “consciência” no título do
livro? A mente de Zeno e como ele vê as coisas e as des-
creve? Seria esta uma consciência no sentido de “cons-
ciência pesada” ou “consciência leve” conforme ele levou
sua vida? Será esta uma “falta de consciência” em relação
às coisas importantes da vida? Será esta consciência na

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verdade uma ironia do autor uma vez que a narrativa não
é exatamente de Zeno, mas também a de seu médico?
Estas questões surgem, são importantes e pertinentes
principalmente por uma razão: ao analisar cada uma des-
sas perguntas (e quaisquer outras que surjam delas) deve-
mos lembrar que o que estamos lendo não é exatamente o
que aconteceu, nem o que necessariamente Zeno pensou
ou fez, nem necessariamente o que os outros personagens
fizeram ou pensaram. O que estamos lendo, como foi avi-
sado no começo, é um livro alterado onde não se sabe
quem escreveu o quê, e o que é verdade e o que não é.
Por essa razão, os acontecimentos e o enredo são se-
cundários. Existe aí uma armadilha para o leitor. Pois o
instinto do leitor é analisar o que o narrador lhe conta.
Certo, mas esse narrador é mentiroso e a mentira não se
sabe qual é. Então toda a leitura se vira para outra análise
e outra pergunta principal que pode (e deve) gerar ou-
tras: quem é (no sentido abstrato) esse narrador e por que
ele escolhe escrever essa história dessa forma? A verda-
deira questão psicanalítica não está claramente “dentro”
do livro no sentido de que não está “dentro do enredo”,
mas sim simbolicamente “fora do livro” no sentido de es-
tar “fora do enredo”. Aqui, o principal não é analisar o
que acontece, mas sim qual é a personalidade (do ponto
de vista psicológico/psicanalítico) desse narrador que es-
colheu escrever a história assim, com essas características
e com essas escolhas.
A psicanálise está no romance, mais do que em qual-
quer outro “lugar”, na análise “exterior” ou “anterior” à
escrita, que é a escolha de escrever essa história e não
outra.

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A filha perdida

(Elena Ferrante)

Eu deveria começar falando sobre A filha perdida, de
Elena Ferrante, mas vou começar por The Appointment,
de Herta Muller. Já veremos por quê.

Em The Appointment, Herta Muller propõe um mer-
gulho nas profundezas do sofrimento de uma mulher.
Um sofrimento duro, frio e enraizado. Cada palavra
tem o propósito de levar o leitor para dentro dessa mu-
lher que se odeia, que por isso odeia o mundo e a to-
dos. Mas, sobretudo, odeia a si mesma. E o sofrimento
não vem acompanhado de uma explicação. Ele parece
ser intrínseco, da natureza dessa pessoa, e cada vez
mais vai tornando sua vida insuportável e escura. Tudo
é culpa dela, tudo ela poderia ter feito melhor, poderia
não ter feito, poderia ter feito diferente. Em qualquer
das opções, o resultado é o sofrimento.

O livro parece ter esse propósito. Não existem des-
culpas ou encruzilhadas, não existe nada que desvie
o leitor desse objetivo. Nada que desvie o leitor desse
mergulho e do consequente sofrimento que este viven-
ciará ao ler a obra. Tudo está às claras. O escuro dessa
mulher é bem claro na narrativa. E então temos A filha
perdida, um romance que se esconde atrás de outro. Um
livro que finge ser outro.

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Elena Ferrante é o pseudônimo de alguém que o pú-

blico não sabe quem é. Alguém que se tornou uma escri-
tora de best-sellers e parece, após um breve olhar pelas
capas de seus livros, oferecer uma experiência leve para
as massas. Não é isso.

A paisagem é linda: férias na praia observando uma
família, uma criança, sua boneca. Um pouco de seus pen-
samentos, a volta para a praia, algumas coisas começam a
ser notadas pela protagonista, os dias vão passando, pen-
samentos dolorosos, observações amargas aqui e acolá,
mas ainda assim ela está na praia, algo vai acontecer. A
família recebe mais pessoas. Leda não simpatiza com um,
simpatiza com outro, observa como as coisas acontecem,
o leitor espera alguma novidade que vem aparecendo no
horizonte próximo.

Leda rouba a boneca, mas vai devolvê-la. Há uma es-
pécie de intriga que não sabemos bem qual é, parece que
há gente que não gosta de alguém, ou esse alguém está
escondendo algo. Será que Leda vai ter um caso? Parece
possível. Em breve saberemos.

Leda espera e espera e não entrega a boneca. Ela está
demorando. Pedem o apartamento que ela está alugando
emprestado para fazer sexo. Ela acha estranho. Ou não
acha, não sabemos bem. Ela pede para falar com a moça.
Por quê? Vai tirar satisfações? Já, já algo vai acontecer e
parece que vai ser complicado. Todo esse tempo se mis-
tura com a própria vida de Leda, que, assim como em
The Appointment, tem um DNA complicado, há traumas,
há traumas causados, há algo inquietante e tenso. Mas e
a família? O que vai acontecer com todo o envolvimento
de Leda com eles?

E aí o livro acaba. E nada realmente aconteceu. É isso?
Diferentemente do livro de Herta Muller, a obra de
Elena Ferrante é feita de uma narrativa “cortina de fuma-
ça”. Uma história que nos distrai enquanto o verdadeiro
propósito vem rastejando por baixo da fumaça. O livro

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“escondido” é “quase” The Appointment, mas um outro
está tentando se passar por ele: aquele que nos conta do
dia a dia nas férias de Leda e toda aquela família.

O verdadeiro livro está em cada frase escondida no
meio do livro “falso” e que, somadas todas as passagens,
revelam o livro “real”: o interior de Leda. Quase o mesmo
personagem de Herta Muller, mas disfarçado e, por isso,
menos agressivo, mais suave.

A cortina de fumaça permanece por toda a narra-
tiva, com alguns vãos pelos quais podemos espiar. Na
última frase, essa cortina some, e aparece o livro real.
Leda revela a verdade. Herta Muller sabe do que Elena
Ferrante está falando.



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A guerra do
fim do mundo

(Mario Vargas Llosa)

Dentre os grandes escritores latino-americanos (talvez
com exceção dos argentinos), Mario Vargas Llosa
possui a característica de uma narrativa mais ligada aos
fatos e menos ligadas ao desenvolvimento de emoções
(ou em alguns casos, da tal “emotividade”). Suas obras
narram os acontecimentos de forma mais sóbria do que
outros autores, como Gabriel Garcia Márquez, Isabel
Allende e Jorge Amado, apenas para ilustrar alguns.

Em A guerra do fim do mundo – obra frequentemente
comparada a Os sertões, de Euclides da Cunha – o tom
principal é quase jornalístico. Isso se pode explicar, tal-
vez, uma vez que o romance é baseado em fatos reais, a
guerra de Canudos. Mas vale lembrar que romances se-
melhantes, como Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo
Ribeiro, apesar de ser baseado na formação de uma civi-
lização, possui, em vários momentos, um tom mais ligado
às emoções humanas, quase chegando ao mágico, apenas
centímetros de se transformar em uma obra fantástica.

Um quase-épico, A guerra do fim do mundo proporciona
momentos de “alívio” ao leitor em meio a tantas descrições

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de fatos que se entremeiam e da quantidade de personagens
que continuam surgindo. Esses momentos levam o leitor a
se deparar com situações mais humanas e menos políticas,
em um contínuo despertar de religiosidade e esperança em
personagens que vão desde os excluídos da sociedade, pas-
sando pelos desacreditados e chegando aos que demonstram
uma maldade nata. O poder de transformação do Conselhei-
ro talvez seja o único momento ou situação no início da
obra que, de alguma forma, se aproxima de uma situação
“além dos fatos”, ou “além da matéria”.
Mas mesmo essas descrições são sóbrias. Se os fatos
da conversão de bandidos e homens perigosos em segui-
dores do Conselheiro têm algo de quase sobrenatural,
por outro a situação se mantém dentro de uma reali-
dade, pois tais acontecimentos são corriqueiros no ser
humano. Note-se então, que o mais perto do “inacredi-
tável” que Vargas Llosa chega é, na verdade, o “inacre-
ditável retórico”, ou seja, aquele do qual temos provas
diárias no nosso dia a dia, e nunca de um milagre em
que entraríamos em um mundo mágico.
A narrativa jornalística que domina a obra é entre-
cortada com descrições de personagens novos a todo o
momento, personagens estes que, em sua maioria, ser-
virão para ilustrar de que forma foi formado o grupo de
seguidores do Conselheiro. Em um momento temos uma
quebra de narrativa, onde a terceira pessoa passa para
a primeira e logo desaparece. Temos também a reporta-
gem do Jornal de Notícias, em que o tom, ironicamente,
parece ser um motivo para vangloriar políticos e servir,
literariamente, como crítica ao pedantismo com que os
detentores do poder se referem a si mesmos.
Como um grande escritor que é, Vargas Llosa usa
destas técnicas tanto para enriquecer a paisagem da
narrativa quanto para maximizar a experiência do lei-
tor, que se depara então com uma miríade de enfoques
sobre o conflito em Canudos.

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À medida que a narrativa e o enredo vão se desenvol-
vendo, os personagens crescem em importância, porém
lentamente, nunca permitindo que o tema histórico –
que é o principal – seja menos importante em destaque
que qualquer questão humana isolada e não relacionada
à Guerra de Canudos.

É clara a intenção de Vargas Llosa de criar uma obra
histórica, mesmo que romanceada, mas nunca deixar que
os fatos lhe fujam ao controle em detrimento de subenre-
dos totalmente alheios ao conflito. Nesse sentido, pode-se
dizer que o romance é mais livro histórico que romance
propriamente dito, pois não se perde em sua intenção. E
isso certamente requer um domínio da escrita em todos
os momentos, linha a linha, já que o leitor sempre se atém
mais ao que lhe é familiar do que ao que lhe é alheio ou
distante. Assim, é muito fácil que um drama pessoal de
algum personagem tome a dianteira do enredo, pois todos
os leitores se identificariam com as questões humanas, e
poucos (de maneira íntima e pessoal) com uma guerra.

Mas como a guerra é o cavalo a ser domado, Vargas
Llosa mantém os personagens na superfície sem torná
-los protagonistas e evitando correr o risco de trans-
formar a guerra em pano de fundo. Diferentemente de
quase todos os romances, aqui os personagens servem à
guerra e não o oposto.

Mas a habilidade do autor é ainda maior quando che-
gamos aos últimos momentos da obra, quando a guerra
acabou e o que sobra é a destruição – e as pessoas que
sobreviveram. Nesse momento os personagens tomam a
dianteira do enredo e o final se foca neles, com o intuito
de relaxar e acalmar a escrita e lembrar que não, este não
é simplesmente um relato histórico.

Se os personagens estavam lá o tempo todo para apoiar
a História, Vargas Llosa conseguiu equilibrá-los para que,
mesmo em segundo plano, fossem humanos o suficiente
para depois valorizá-los sem causar um estranhamento

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no leitor. Com essa técnica, consegue fazê-los subir à su-
perfície, tornar-se o ponto alto da conclusão do romance
e, claro, manter o livro dentro do que se chama romance
histórico e não apenas obra histórica. As últimas páginas
são o aftertaste deixado no paladar do leitor, e este sabor
residual é sobre pessoas, sobre o lado humano que vive e
sobrevive a todos os dramas.
Mario Vargas Llosa conseguiu realizar o melhor dos
dois mundos nesta grande obra: desenvolveu um enredo
em que a guerra é a protagonista, mas criou personagens
que, se na maior parte do tempo servem ao relato da guer-
ra, são grandes e humanos o suficiente para virem à tona
como seres reais, únicos e críveis, humanizando não só a
guerra, mas o romance, sem causar um estranhamento no
leitor nem fazer com que este duvide do que está lendo.

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