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Um conto sobre ser.

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Published by Catarina Lino, 2023-10-29 15:28:05

Margem

Um conto sobre ser.

2A vida é um rio. Nasce, corre e desagua, terminandoumciclo num novo que se inicia-o oceano vasto e profundo. Hojesei que é esta a verdade que não conhecia antes de otemponosunir.


3Todos os dias, no caminho de regresso a casa, sentava-me na sombra dos choupos da minha aldeia a vê-lofluir. Detempo em tempo, como fera em busca de presa, arrastavaomeucorpo até à margem e num gesto fulminante tentava agarrá-lo.Falhava. Tentava novamente. E falhava mais uma vez. Repetiaeste gesto por dia mais vezes do que as que sabia contar eemnenhuma delas consegui prendê-lo nas minhas mãos. Assimqueos meus dedos o abraçavam, a água escorria-me pelos braços,caía sobre si mesma e avançava. Nunca esperava por mim. Euinvejava a sua fluidez, a sua força, a sua liberdade. Enquanto me via a flutuar no rio, a voz da minhamãecomeçava a surgir, exaltada, por não ter chegado a casaahoras.O jantar estava na mesa, mas eu não e, por isso, fui proibidodevoltar àquela margem. No dia que se seguiu, depois dasaulas,cumpri as ordens que a minha mãe me dera. Nãovoltei àmargem do rio, mas segui o seu curso.


4Corríamos os dois -eu e o rio -, cada umparasuacasa. Os meus passos agigantavam-se numa tentativainútil deacompanhar os movimentos da água. O reflexo doSol pareciatambém ele desafiar-me. Comecei a correr desenfreadamentepara o alcançar, mas o meu corpo cedeu, tropecei e caí. Aoabriros olhos, julguei-me perdido entre os dois tons de azul queperseguira, num limbo terrestre em que não sabia distinguiraimagem real da refletida. Levantei-me. Risos. Gargalhadasdeuma meninice inocente. Na paisagem do outro lado, tu.


5Estávamos separados pelo rio e, ainda assim, nuncaantesme sentira tão junto de alguém como naquele momento. Tudoparou, menos a água que fluía com os raios de luz, menososramos das árvores que acolhiam as andorinhas, menos asfloresque mudavam de cor por invejarem a beleza do teurosto. E,enquanto te olhava, pintei. O corpo esguio de água, os cabeloslongos de terra, os olhos brilhantes de céu, o silêncio. Pinteisobretudo o silêncio. Ainda hoje quando fecho os olhoserelembro a dor de não te ter, consigo ver os traços daqueledia,consigo ouvir o silêncio da nossa voz. Frágil, sonhadora, sedentade amor - mesmo que em crianças ainda não soubéssemosoque isto era. O belo e a arte andam de mãos dadas e trocamolharescontinuamente. Qualquer apreciador de arte encontranosquadros que admira um rasgo de beleza crua, porque eleprópriotem gravadas na pele as marcas dessa beleza, da história, dasmemórias. Para apreciar a arte do outro é necessáriover comos


6olhos que nos pertencem, mas, primeiro que tudo, paraapreciara arte do outro é preciso viver. E naquele fimde tarde, eupresenciei o começo da vida. Um recém-nascido a ver omundopela primeira vez. Na altura, não soube o que fazer comaquelas coisastodas que sentira - onde as pôr, onde as guardar -epor issodisse-te as únicas palavras que uma criança é capaz dearticularem situações semelhantes. Estás a rir-te do quê? Semhesitar,respondeste que te rias de mim, viraste-te para o teuladodapaisagem e foste embora. Naquele momento, o rioparoueeufiquei a contemplar, a pouco e pouco, a fusão da tuasilhuetacom a natureza. Cheguei outra vez tarde para jantar. No percursoquecorri desesperadamente até casa tentei inventar as melhoresdesculpas para justificar o meu atraso, mas quandovi osolhosda minha mãe percebi o quão inútil seria tentar usá-las. Prometiapenas que no dia seguinte nem olharia para o rio e foi issoquefiz.


7Era sábado, o meu dia preferido da semana. Acordei como barulho do armário onde a minha mãe tentava arrumarostachos. Ouvi-os a barafustar -aos tachos e à minhamãe-,mas decidi que não queria participar naquela batalha. Virei-mepara o lado, mostrando as costas à janela que deixavapenetraros raios de luz na minha pele, fechei os olhos e adormeci.Segundos depois, avistava de novo o rio, no seu reflexoatuaimagem, e no ar pairava um cheiro familiar que se perdianaminha cabeça. Acorda, meu amor. Já são horas. Ao erguer uma das pálpebras em esforço tenho a certezadeque momentaneamente reconfigurei o meu rosto. Sóissoexplicaria a gargalhada descontrolada da minha mãe quequaseentornara o leite com chocolate na minha cama. Afundadonoslençóis, bebi-o de um trago e depois a mãe limpou-meobigodecastanho. -Estavas a sonhar com o quê? -perguntou-me curiosa. -Não te posso dizer.


8-Como assim não podes? É um sonho... -Mas se eu te contar o meu sonho, vais pôr-me decastigo!- respondi convicto, elevando-me da cama. -Não sejas tolo! Eu não te posso castigar por causadealgoque não fizeste de verdade. -E por algo que eu quero muito ser? -É o rio, não é? Receoso, atirei as minhas costas de novo contra ocolchão,puxei o lençol e cobri a minha tristeza. Amãe fez-meumcarinho e saiu. Era hora de almoço quando comecei a notar a sua ausência.Levantei-me num ápice e, descalço, corri até à cozinha. Nãoavi.Fui à sala e também não a encontrei. Comecei a chamar porelaaté que ouvi a sua voz fatigada vinda da garagem. Quandocheguei perto da minha mãe, ela estava a expirar para dentrodeum objeto que ia ganhando forma. -O que é isso, mãe? -É um barco. -Um barco como? Eu já vi muitos barcos e eles nãosãoassim.


9-Este é... - susteve a respiração e expirou mais umavez-insuflável. Era do teu pai. -O pai tinha um barco? Tu detestas o rio! Nãoacreditoque deixavas o pai ir para lá! -Pois, bem.... Infelizmente, vocês são mais parecidosdoque eu pensava. Mesmo não gostando, ele ia... Ehoje decidi queeu também vou.


10O rio parecia esperar sempre por mim, por isso, aminhamãe foi a primeira a entrar no barco. Lembro-me de na alturameter parecido impossível cabermos os dois naquele espaço, poissó mais tarde percebi que o aperto que sentia estava nomedoena vergonha que levara comigo. A cada movimento, o barco moldava-se ao desequilíbriodo meu corpo numa tentativa inútil de evitar a queda. Não tardei a apreciar a paisagemque havia pintadonodia anterior - a apreciar-te a ti -e, no meio da contemplação,fechei os olhos para te ver melhor. Tudo o que eu queriateretudo o que eu queria ser estava ali, na escuridão dos meusolhos,como um presente para o futuro. O ar rareava. A leveza que o meu corpo emanavatinhasido interrompida por uma sensação de sufoco. Orio, quetantasvezes tentara apanhar, fizera-me cativo da sua força. Fluía,fluíamos... Ao encontrar-te, estendi a minha mão, mas, quando


11os nossos dedos se preparavam para se abraçar, fui puxadoparaa superfície. Ainda inconsciente, senti-me repousado emmimpróprio,na outra margem do rio. Estar do outro lado era abrir asportaspara um novo mundo, novo mundo esse que a minha mãeaindanão conhecia. Ao ouvido, uma voz. Acorda, por favor.


12As lágrimas da minha mãe trouxeram-me de voltaàvida.Despertei com a face salpicada e comumsabor a sal nabocaque me lembrava os dias que passara na praia, quandoaindanem sabia pronunciar o meu nome. Aprendemos desde cedo a dizer o nome quenosidentifica. Um como te chamas? e automaticamente os nossoslábios articulam-se para soltar uma palavra. Oque eucomeceiaperceber cedo demais é que a libertação de umnomenãonosliberta. Saber como nos chamamos não equivale a saber quemsomos e, por isso, durante muito tempo corri atrás dorioparame poder encontrar. Sempre que o tentava agarrar, ele fugia. Semprequemetentava encontrar, eu perdia-me. Até ao dia emque mevi dooutro lado da margem - o corpo esguio de água, os cabeloslongos de terra, os olhos brilhantes de céu. Apaisagemerastueera eu.


13Quando abri os olhos, vi os medos amparados nocolodaminha mãe. Há muito que ela sabia que eu queria partir, quequeria fugir para o outro lado da margem, e foi por receiodemeperder e de que eu me perdesse que me tinha proibidodeiraorio. -Tu não querias voltar. A certeza magoou-me por saber a dor que lhecausava.Magoou-me ainda mais a falta de coragempara onegar. Decada vez que me debruçara sobre as águas, o meureflexodesaparecia, a água do rio escapava-me por entre os dedos, masnaquele dia o meu e o teu reflexo uniram-se e senti-meforçadacorrente, força da liberdade. Os dias adormeceram, asnoitesdespertaram e o tempo, braço direito da vida, foi dandosinaisdemudança. -É ela, não é? -Não. Sou eu. Ela sou eu.


14No tempo em que a vida ainda nascia nomeuoutrocorpo, tu corrias pela minha pele, cobrindo-a de orvalho. Depois,o tempo amainou e a força da corrente que sempre nos separouum do outro acabou por desaparecer. Comecei a ser euetudooque ficou no leito foram as figuras embaciadas do passado. Hoje,finalmente, desaguas em mim.


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