As ondas e as nuvens parecem existir para adicionar um efeito dramático no mar. Moderado Velocidade de 11-16 nós; Pequena vaga de 1,25 m; ‘Pequenas vagas com tendência para aumentarem de comprimento. Numerosas cristas brancas.’ Fresco Velocidade de 17-21 nós; Cavado com vaga até 2.5 m; ‘Vaga moderada. Há cristas brancas e todas as direcções. Alguns borrifos.’ Frescalhão Velocidade de 22-27 nós; Cavado com vaga até 4 m; ‘Começam a formar-se vagas grandes. Aumenta o número de cristas brancas. Borrifos abundantes.’ Furacão Velocidade acima de 64 nós; Excepcional com vagas de 14 m; ‘As vagas atingem alturas desmedidas. A visibilidade é seriamente afectada.’ GOLFO DE BISCAIA ESPANHA ESPANHA PORTUGAL Gijón GOLFO DE CÁDIS OCEANO ATLÂNTICO Vigo Figueira da Foz Berlengas Cascais La Coruña Cádis Sagres Sines Lisboa Nazaré Porto A MÚSICA DOS VENTOS A escala de Beaufort caracteriza os ventos pela força, velocidade, e efeitos visíveis no mar. Uma carta de ventos é como uma partitura, utilizando a escala para ajudar a antecipar as condições de navegação, com colcheias e semifusas próprias onde cada viagem é uma música única. A orientação do símbolo reflecte a direcção do vento. A escala de Douglas complementa a de Beaufort, caracterizando o tipo e altura provável de vagas. Após o cabo Finisterra, o vento Frescalhão daria lugar a ventos «Moderados» ou «Frescos», sempre com uma direcção favorável ao destino... ...um Adagio harmonioso, portanto. Para ter uma noção de escala, ajuda ter por referência o máximo da escala: 51 187º
52 187º
GOLFO DE CÁDIS OCEANO ATLÂNTICO GOLFO DE BISCAIA ESPANHA PORTUGAL 29-30 AGO Figueira da Foz (POR) DIA 3 Escala na Figueira The Tall Ships Race 2023 MAGALHÃES - ELCANO Fazendo fé no sistema de navegação estamos apontados à barra do porto da Figueira da Foz. O Sol nasceu há pouco, adivinhado na luz difusa que aclara o nevoeiro denso sobre o desenho da linha de costa. Nesse momento, perdida a vista de terra — e mesmo sabendo que está ali —, temos um vislumbre do que será navegar sem essa referência que tranquiliza os «mais terrenos» de nós, mas deixa insatisfeitos os marinheiros ansiosos pelo mar alto. A aproximação é lenta, demorando-nos para que possamos entrar no porto à hora possível. A capitania propôs a cortesia de nos receber com um navio salva-vidas para dar as boas-vindas e conduzir ao local de amarração. Aí a Vera Cruz preparar-se-ia para receber o público visitante, passando a noite no cais, antes de sair com o Sol nascente do dia seguinte. Gijón Vigo Figueira da Foz La Coruña Lisboa Porto «The Tall Ships Race 2023»: percurso diário Caminho-de-Ferro Estrada Terça, 29 Agosto «The Tall Ships Race 2023»: Rota anterior O nevoeiro levanta-se à medida que nos aproximamos da costa, como se fosse uma ilha mágica camuflada, apenas para se revelar àqueles destinados conhecê-la. 53 187º
TURNOS DE QUARTOS Q1: DIA 29 (3.ª FEIRA) 05:00 08:00 12:00 16:00 20:00 23:00 02:00 05:00 Lavar a loiça Lavar a loiça Leme e Vigia Pôr a mesa Leme e Vigia No rádio ouvimos o nosso anfitrião anunciar-se, enquanto a nosso lado uma traineira regressa qual cometa, com uma cauda de gaivotas no seu encalce. Vai rápida, como se mais devagar a tornasse vítima das piratas aladas que lhe levaria a carga preciosa da pescaria dos últimos dias. Toca à faina para que a tripulação se reúna no convés, pronta a entrar em acção, preparando o lançante para nos amarrar ao cais, prender e posicionar as defesas móveis para proteger os costados a estibordo. Ainda é cedo e já se juntam os visitantes na plataforma do cais, apreciando o número de teatro que é içar as vergas com as velas latinas, coreografado o suficiente para sair cada vez mais fluído. Partidas de um cérebro almariado Passáramos os últimos dias dizendo-lhe que assim é que é normal — o chão move-se e o corpo deve acompanhá-lo. Ainda atordoados pelo efeito do Stugeron, milhões de neurónios iniciaram um debate prolongado sobre o que fazer, afinal «aquilo lá fora agora é diferente». Tomada uma decisão, disparariam sinapses à velocidade da luz para informar todo o corpo — «Atenção! Atenção! Agora o chão balouça. Junta-te à Nova Ordem» — fazem anunciar. Leais à autoridade suprema, cada célula obedece. Tudo estava tranquilo, enquanto o hospedeiro que O início da manhã já é o meio do dia de trabalho para a tripulação da embarcação pesqueira que acelera para chegar à lota. 54 187º
EM LINHA Navegar com a costa em linha de vista significa que a rede móvel funciona. Para além das óbvias vantagens, fica uma sensação que não nos libertámos o suficiente com as frequentes nucas flectidas sobre os telemóveis. Antes da chegada à Figueira da Foz vemos as novidades anunciadas pelo Município, anunciando a entrada da Vera Cruz no porto e a abertura das visitas que encheriam o dia. ‘Pi’ mantém-se vigilante e activo durante toda a manobra, descontraindo apenas mais tarde quando a Vera Cruz estiver amarrada ao cais. servem parece surfar as ondas sem enjoos. E assim, depois de noites passadas durante as quais, nos piores momentos e derrotado por dores de cabeça, equacionou ficar em terra na próxima oportunidade, se vê agora aproximar dela quando a já não deseja, como um paixoneta adolescente que se desvanece para se tornar apenas em afecção. Terminada a azáfama a bordo, procurámos os duches na marina do porto da Figueira da Foz. Parados à entrada do chuveiro, o chão mexia-se e cada passo, julgado em terra firme, era hesitante. Depois de alguns dias embarcado, o efeito ao regressar a terra é confuso, onde o que está fixo parece mover-se debaixo dos pés. — «Nova Ordem! Agora o chão está firme!» —, adivinha-se a agitação no mundo dos neurónios. De certa forma, esta náusea em terra deixou-me contente. Entendo-a como uma confirmação que é possível adaptar-me a estar embarcado, que compensa a perseverança. Quando acreditamos esta experiência ser enriquecedora para os mais jovens é também por lhes exigir força de vontade para ultrapassar as dificuldades momentâneas próprias do momento, movidos com o fito no objectivo final — desfrutar da navegação no mar. 55 187º
A popularidade da ‘Vera Cruz’ é testada na cidade da Figueira da Foz, que responde em números. 56 187º
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«Bem-vindos a bordo» Há duas coisas em que a Vera Cruz se destaca — a navegar e a receber visitas. Hoje era dia de dar as boas-vindas a bordo da caravela, estendendo o portaló ao cais. A tripulação revela a versatilidade e simpatia acolhendo todos, explicando os pormenores, tirando dúvidas, sorrindo. As bandeiras da regata estão desfraldadas ao sabor do vento habitual na Figueira, mas os lugares cimeiros são da Portuguesa e das Quinas. Presa ao mastro do capelo, a bandeira da Aporvela relembra à teimosia de quem tudo se deve. Recebemos o responsável da capitania e o vereador, agraciados com o bacalhau à Brás do Sr. Ribeiro, servido com toda a tripulação à volta da mesa. Para a noite estava reservada uma caldeirada, antes de um passeio à noite pela beira-mar e um sorvete. O dia foi dedicado a receber visitas, do público, protocolares e de amigos como a Ágata, Luis e o pequeno João. 58 187º
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GOLFO DE CÁDIS OCEANO ATLÂNTICO GOLFO DE BISCAIA ESPANHA PORTUGAL 30 AGO 00:30 Figueira da Foz (POR) Cascais (POR) DIA 4 Lua Azul The Tall Ships Race 2023 MAGALHÃES - ELCANO Mais de 150 toneladas de moedas de ouro e prata, 600 toneladas de cobre, 64 canhões, 100 toneladas de uma planta sul americana (quinquina), sete toneladas de cacau — este era o registo de carga do San Pedro de Alcantara, naufragado nas rochas que rodeiam o cabo Carvoeiro perto da mais recente Peniche de hoje em plena península da Papôa. Devido ao peso excessivo e um erro de navegação, mais de uma centena de passageiros morreu nessa noite de 1786. Dois anos depois, o Marquês de Pombal — o mesmo que de imediato ordenou que ninguém deveria tocar na carga do naufrágio, gerindo a delicada relação com os reis de Castela — emite um alvará para a construção do farol da Berlenga, ainda que apenas fosse Gijón Vigo Berlengas Cascais Lisboa «The Tall Ships Race 2023»: percurso diário Caminho-de-Ferro Estrada Nazaré Figueira da Foz La Coruña Porto Quarta, 30 Agosto «The Tall Ships Race 2023»: Rota anterior Os grupos de golfinhos aumentam em quantidade e frequência, enquando o mar vai lavando o convés com as vagas com que lambe os costados da caravela. Vento Moderado (11-16 nós) 61 187º
Amanhece cedo a bordo da Vera Cruz, com céu limpo e perspectivas de ventos favoráveis. 62 187º
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TURNOS DE QUARTOS Q1: DIA 30 (4.ª FEIRA) 05:00 08:00 12:00 16:00 20:00 23:00 02:00 05:00 Pôr a mesa Lavar a coberta Pôr a mesa Leme e Vigia Leme e Vigia Leme e Vigia Com a costa à vista, aprendemos-lhe os traços, distinguindo povoações, deltas, rias, baías naturais e foz dos rios, impressionados com as extensões ininterruptas de praias. Manhã cedo, toca à faina para desmontar o museu e preparar para zarpar, retomando o caminho para Sul. 64 187º
construído 85 anos após o infortúnio do navio carregado de ouro sul-americano. Para evitar igual sorte seguindo uma das rotas mais seguidas para velejar vindo das Américas em direcção ao Mediterrâneo ou África, navegamos pela mais segura passagem entre a ilha da Berlenga e Peniche, separadas por menos de seis milhas náuticas. Essa cortesia de salvo-conduto deve-se à morfologia do fundo do mar, que remete a estrutura submersa para uma profundidade onde as rochas graníticas da linha geológica que o une cabo Carvoeiro às mais distantes ilhas Farilhões não rasguem o casco. Não corras para a luz Um Comandante partilharia a mesma sorte se fosse como a traça que se precipita para a luz ou o paciente terminal que caminha em direcção a ela. A luz na noite cerrada significaria desgraça também para ele, tripulação e a sua embarcação relevando ainda hoje a importância dos faróis, das suas diferenças de cores e formatos, dos significados na cadência e padrão da luz intermitente — tudo é mais uma das áreas fascinantes do mundo que envolve a navegação. Em viagens anteriores e parte do projecto educativo da Vera Cruz, conta Pi, não é incomum fundear-se ao largo da Berlenga para visitar a ilha maior do arquipélago composto pelas Estelas e os mais longínquos Farilhões. Numa das ocasiões, a 65 187º
visita organizada levou os jovens grumetes da caravela a conhecer o farol Duque de Bragança na Berlenga Grande, numa altura em que a Autoridade Marítima Nacional lamentava não conseguir candidaturas para a vaga de faroleiro naquele posto, indiferentes à distinção «Prémio Defesa Nacional e Ambiente» atribuída pelo sistema inovador baseado em energia solar. Naquele momento, a tripulação recebeu nova missão — preparar um vídeo curto para encorajar a participação no concurso para faroleiro no Duque de Bragança. Mobilizados com entusiasmo, os resultados foram então partilhados com a Autoridade Marítima que acabou por os solicitar para ajudar a colmatar a posição. Este é um dos exemplos da criatividade da equipa da Aporvela em se reinventar para oferecer formas de aprendizagem e criar nos jovens laços de relacionamento com a sua envolvência. Outros envolvem escrita criativa — caso do «Liberta o Teu Monstro», onde se encorajava a falar sobre os medos e receios numa ligação com o mar e a experiência a bordo — ou da prática que tornou regra na escrita rotativa da função de Escrivão, onde a cada um à vez lhe compete escrever sobre a sua perspectiva do dia atribuído. SINAIS SONOROS A linguagem com apito entre embarcações à vista usa dois sons de base com durações distintas: Som curto (1 seg.) Som longo (4-6 seg.) «Estou a virar para estibordo» «Estou a virar para bombordo» «Pretendo ultrapassar por estibordo» «Não compreendo os seus movimentos» Certas combinações convencionadas permite comunicar coisas como: Chegado o quarto das quatro da tarde, é a minha vez de ser iniciado nas artes de manobrar o leme, sempre debaixo do olhar atento do João. 66 187º
ONDE ESTAMOS É uma aplicação que bem podia ter sido inventada pelas mães do mundo. Através da ‘MaritimeTraffic’ (ou uma ligação directa através do sítio de ‘internet’) é possível seguir onde está a caravela Vera Cruz, junto com a velocidade de navegação e as suas características. «Tem horas?» Conforme a noite cai, Pedro continua a contar-nos pormenores sobre os faróis e a sua relevância na navegação. Além de avisos para manter a distância, cada um obedece a um código de cores e formas que permite ao navegador identificá-lo. Com essa informação era possível determinar a posição exacta onde se encontravam, fazendo triangulação com dois faróis. Na altura, equipamentos como o Português astrolábio utilizando observações astronómicas permitiam determinar a Latitude. Já para saber a Longitude, o caso torna-se mais complicado. Isso apenas se tornou possível com a invenção do cronómetro marinho pelo relojoeiro John Harrison em 1761, mais de três séculos após os Portugueses terem conseguido navegar distâncias tão longas não cartografadas. Aos cartógrafos e pilotos, juntava-se assim o insuspeito relojoeiro como partes essencial para a navegação marítima. A luz dos faróis, contudo, servia de pouco em caso de nevoeiro. Um sistema de comunicação baseado em sons resolveria o problema, parte do «Código Internacional de Sinais» estabelecido pela ONU junto a sinais visuais, eléctricos e homógrafos (ver caixa «Sinais Sonoros»). Começamos a sentirnos em casa a bordo da caravela, com novas pernas de marinheiro. Até há tempo para poses imperialistas sobre um fundo de bandeira nacional ao vento. 67 187º
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Lua Azul na baía de Cascais Os bons ventos (ver «A música dos Ventos», pág. 51), favoráveis ao nosso objectivo de chegar a Cascais a sul, superaram as estimativas. Meia-hora passada da meia-noite e «toca à faina», subindo todos ao convés para lançarmos âncora em frente a Cascais. Alguns de nós estão melhor preparados com uma lanterna frontal montada à cabeça, útil para perscrutar o que se esconde no pequeno alçapão entre o capelo e o cabrestante, à proa. Fora isso, a luz intensa da lua cheia ilumina todo o convés, projectando as nossas sombras apressadas. Com a ajuda do turco — um braço de ferro em ‘L’ invertido, semelhante ao utilizado para fazer descer os escalares em navios maiores — e um jogo de roldanas, montamos a âncora e rodamo-la para fora de bordo. Junto ao capelo na proa, uma lona cinzenta esconde um guincho mecânico antigo que, pintado de negro, me fez lembrar a máquina de costura da Singer em casa da minha tia-avó. À ordem do Comandante para largamos âncora, o guincho é accionado, precipitando-a para o fundo do mar. Vemos a corrente desfilar apressadamente com um elo pintado de vermelho a cada dez metros. — «Já mal se nota hoje» — repara Pedro. — «Há poucos anos juntámos um grupo de amigos para a pintarmos», trabalho pago com a promessa de um almoço. Muito do esforço de manter a caravela em boa condição vive do trabalho voluntário de um (demasiado) pequeno grupo de amigos. — «É difícil as pessoas mobilizarem-se para isto» —, lamenta-se. Antes de começar o meu turno às duas da manhã, prolongo a conversa com o Pedro. Passa rápido, o tempo ao ouvi-lo. Chegado o fim da sua vigia, baixa ao seu beliche no convento para dormir Esta seria a noite do apogeu da Lua (a menor distância da Terra) o que a faz parecer ser cerca de 15 % maior. Ganhou o nome de «Lua Azul» e é um fenómeno que se repetirá não antes de 2037. Essa raridade cunhou a expressão idiomática inglesa «Once in a blue moon». 69 187º
As primeiras horas na baía de Cascais, em boa companhia com outros navios da regata. 70 187º
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GOLFO DE CÁDIS OCEANO ATLÂNTICO GOLFO DE BISCAIA ESPANHA PORTUGAL DIA 5 Entrada em Lisboa The Tall Ships Race 2023 MAGALHÃES - ELCANO As vergas sobre nos mastros às 07:30 da manhã na baía de Cascais. O pano da mezena tira o melhor partido do vento fraco de proa, enquanto entramos na foz do Tejo, contra a corrente forte vazante. Ao desfilarmos em frente da Torre de Belém e o Padrão dos Descobrimentos, há um arrepio que nos percorre o corpo, como quando alguém que respeitamos nos devolve o cumprimento. O nosso acenar é feito com o pano da mezena também, com todas as bandeiras da regata hasteadas junto à do Porto de Lisboa. Enquanto deslizamos por debaixo da ponte 25 de Abril, vislumbram-se já os navios companheiros da regata. A coreografia da entrada foi preparada e a colubrina a postos com o «Artilheiro» João sem mãos a medir entre os Gijón Vigo Figueira da Foz Berlengas La Coruña Lisboa Nazaré Porto Cascais 31 AGO 31- AGO Lisboa (POR) Cascais (POR) «The Tall Ships Race 2023»: percurso diário Caminho-de-Ferro Estrada Quinta, 31 Agosto «The Tall Ships Race 2023»: Rota anterior Vento Moderado (11-16 nós) Uma de pedra, a outra viva, mas ambas com uma carga imensa naquilo que representam. 73 187º
O pano de fundo ideal para uma fotografia da ‘Vera Cruz’. 74 187º
Não existem ângulos errados: todos funcionam. 75 187º
TURNOS DE QUARTOS Q1: DIA 31 (5.ª FEIRA) 05:00 08:00 12:00 16:00 20:00 23:00 02:00 05:00 Lavar a loiça Leme e Vigia Leme e Vigia «COLUBRINA» Assim chamam a bordo da Vera Cruz ao pequeno canhão utilizado para disparar salvas de pólvora seca sem projéctil, talvez numa homenagem aos parentes bem maiores que originalmente serviam para atacar alvos em terra. Também à teatralidade criada por esta peça operada pelo nosso Chefe de Quarto e multi-facetado João se deve a cresta ganha na regata para a «Melhor Chegada ao Porto» em Lisboa. fósforos e cargas explosivas para as salvas de pólvora seca. A cada irmã de viagem, dispara-se uma salva seguida do nosso «grito de guerra». Vera Cruz regressa a casa. Lançamos as amarras na doca de Alcântara e repetimos o número de sempre para preparar a caravela para ser visitada. Na plataforma do cais, os anfitriães já nos acenam, caras familiares de outras pernas e regatas. Carregam mimos de terra para os que chegam embarcados — «Bolas de Berlim», lê-se na caixa branca da pastelaria. No cais conhecemos alguém cujo nome víramos colado num armário fechado e misterioso no corrdeor dos beliches — «Adelino» — diz somente. Pertencem ao responsável pela manutenção da Vera Cruz que, apesar dos oitenta anos de idade e uma mulher que precisa dos seus cuidados, lhe dedica todas as manhãs desde bem cedo, fazendo pequenas reparações e pinturas. Os dias seguintes em Lisboa — antes de voltar a partir para completar a última perna até Cádis — serão de festa e celebração, trazendo ainda mais cor, alegria 76 187º
Com a bandeira do Porto de Lisboa, saudamos a cidade à nossa entrada. Ninguém quer facilitar, deixando algo ao acaso para o regresso da Vera Cruz ao seu porto. 77 187º
e boa disposição à capital portuguesa. Organizam-se jogos da amizade onde as equipas de cada navio se defrontam em campos de basquetebol e futebol, em jogos da corda ou provas de remo no rio. Inscrevo-me no de futebol, derrotado pela equipa polaca num jogo demasiado exaltado de ambas as partes, fruto do ímpeto da juventude que perde a perspectiva de estarmos ali. Almoçamos todos a bordo juntando anfitriões e amigos da tripulação como convidados especiais, conhecendo já alguns membros da nova tripulação que seguirá até à cidade costeira espanhola. No final do dia cumprem-se as cerimónias protocolares com visitas de Estado e Marinha, incluindo o Ministro das Infraestruturas e Transportes e o Vice-Almirante Gouveia e Melo. O ambiente é festivo quando se aproxima do porto no final de cada perna da regata. 78 187º
Volvidos alguns dias cheganos a notícia que a Vera Cruz venceu a edição 2023 da regata «The Tall Ships Race», vitória celebrada em Cádis pela nova tripulação. (foto: Aporvela) A grande caravela volta a parecer pequena com tanta comitiva e gente a bordo. As bolas de berlim deviam ser mágicas pois desapareceram. 79 187º
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TRIPULAÇÃO «Per Mare Pro Juventute» Muito do que se traz de uma viagem a bordo da Vera Cruz é resultado das pessoas que viveram connosco essa experiência. Cada um participa para o bem do colectivo a bordo, onde todos desempenham iguais funções em rotação de turnos. O resultado é tão melhor quanto as pessoas que nos acompanham. É indissociável uma da outra, sendo uma oportunidade para procurar tirar o melhor de cada um em cada momento, lidando com as nossas emoções, cansaço ou mal-estar. De pólo vermelho, os membros da tripulação encontram tempo para aprender com os mais experimentados, que connoscpartilham histórias e nos permitem apreciar e ganhar o gosto pelo mar. 81 187º
Três Quartos para os Vinte Organizada em Quartos, a tripulação dispõe-se na caravela, liderados pelos Chefes de Quarto. A organização em Quartos não é uma característica imobiliária da caravela. A designação deriva de uma estrutura de turnos de trabalho regida em blocos de quatro horas durante o dia. À noite os turnos são reduzidos para três horas, para minimizar cansaço e permitir uma rotação das tarefas. Não sendo uma embarcação militar, a disciplina aplicada segue os pergaminhos das Forças Armadas, obedecendo a uma hierarquia clara e a procedimentos ensinados e ensaiados. O comandante confia nos Chefes de Quartos os quais, coadjuvados pelos seus marinheiros, garantem que todos a bordo executam o que é suposto em cada momento e objectivo de manobra. A Aporvela definiu uma estratégia para a Vera Cruz, dirigindo a sua acção aos jovens, procurando que a experiência a bordo incuta sentido de responsabilidade, espírito de equipa, e gestão emocional e de energia, ao mesmo tempo que se aprendem técnicas novas de navegação marítima. No final, os nós de marinheiro aprendidos apertam bem as novas amizades criadas. A vida a bordo não se compadece com momentos «Kodak» — há sempre tarefas para assegurar, seja ao leme, fazer vigia, ou acompanhar as visitas em terra. Aqui apanhámos alguns. Cima: Inês e Bernardo («Marinheiro Sardinha»); Centro: Pedro Duarte, Diogo, Francisco, Camila, Joana, Rodrigo, João Silva, João Abreu; Baixo: Zé, Sara, Leonor, Ribeiro; Algures: Comandante Felipe «Pi» Costa, António, Carlos e Irina. (@Cais de Rocha Conde de Óbidos, Lisboa. Foto: António Baganha) 82 187º
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Afixado à entrada na coberta, o plano de Quartos indica quais as nossas funções a bordo — no mar e no porto —, quem lidera como Chefe de Quarto Q1 (João Silva), e em qual beliche dormiremos. FUNÇÕES DO TURNO Cada Quarto obedece ao mesmo sistema partilhado e colaborativo de turnos afixado pelo Comandante para esta tripulação ao longo de oito dias. Dependendo do turno, assim as tarefas. Comandante Só lhe conhecemos o nome completo quando lido na assinatura da folha de turnos — Felipe Costa prefere que o tratem por «Pi». Nesta ‘Vida de Pi’ não haverá tigres a bordo, desiludam-se. Competente e atento, é o ponto de referência para tudo o que passa naquela que carinhosamente chama «Nave Espacial do séc. xv». Compreende bem a sua verdadeira missão a bordo, afectuoso e compreensivo, mas sempre com uma atitude conciliadora e determinada. Este perfil encaixa bem ao lidar com tripulações em constante mutação, entrando e saindo jovens sempre que o lançante encontra um cabeço de amarração no porto. Com pouco tempo a bordo, é desafiante ter um papel relevante na vida de cada um, levando-o a ser mais tolerante com os mais novos na exigência para cumprirem as tarefas de turno. Surpreende a energia com que se entrega durante os dias, mas vemos-lhe o cansaço no olhar chegados ao porto quando troca as instruções de comando pela voz calma. No mar damos com ele embevecido a admirar a elegância de uma proa de um veleiro ao vencer as ondas ou a manter-se encantado com a dança dos golfinhos na esteira da proa. Chefes de Quartos A função do «Chefe de Quarto» é das mais importantes a bordo, reunindo várias responsabilidades. O João leva-nos até perto da regeira nas amuras — o nosso posto a bordo onde nos devemos dirigir quando «toca à faina». Aí dá-nos o briefing de segurança mostrando quais são, onde estão (no pequeno armário de cada beliche) e como funcionam os coletes salva-vidas, arnês e linhas de vida, bem como a localização da balsa atribuída ao nosso quarto a utilizar em caso de emergência. Os coletes possuem uma cápsula de ar comprimido com um sensor de pressão para abrir de forma automática quando em contacto com a água. Começa a formação do essencial para soltar e caçar as carregadeiras da vela grande, com uma breve introdução ao mundo do «Náutiquês» (pág. 14). O intuito é sermos capazes de interpretar de forma rápida e clara as instruções dadas e identificar com clareza onde e com quê completar as tarefas. O léxico próprio da navegação existe para que seja possível executar tudo de forma clara e assim não comprometer a segurança das pessoas a bordo. O efeito adverso é manter alheados quem chega de novo antes de aprender. Cada Chefe de Quarto possui uma incomparável base de conhecimento náutico e experiência a bordo, como é o caso do João Silva. Apenas assim conseguirá ser um ponto de referência para aprender e esclarecer, bem como ser eficaz e rápido a desdobrar-se quando estômago e pernas dos aspirantes a marinheiros fraquejarem, 05:00 — 08:00 Leme e Vigia; Pôr a mesa para o pequeno-almoço; Lavar coberta e casas de banho. 08:00 — 12:00 Lavar a loiça do pequeno-almoço; Leme e Vigia; Pôr a mesa para o almoço. 12:00 — 16:00 Lavar a loiça do almoço; Leme e Vigia; 16:00 — 20:00 Leme e Vigia; Pôr a mesa para o jantar. 20:00 — 23:00 Lavar a loiça do jantar; Leme e Vigia. 23:00 — 02:00 Leme e Vigia. 02:00 — 05:00 Leme e Vigia. 84 187º
Equipa Q1 (da esquerda para a direita): Inês, João Duarte Silva («Chefe de Quarto»), Joana Pestana, Zé e Bernardo Souto (também conhecido por «Marinheiro Sardinha»). O trabalho a bordo não dá quartel nem folga as costas, conseguindo o João ainda encontrar tempo e ânimo para dar uma ajuda a preparar as refeições ou ajudando na limpeza do sino. 85 187º
Não fora a Vera Cruz ser uma caravela Portuguesa, é à volta de uma mesa que todos convergem, atraídos pelo famoso Arroz de Polvo do Sr. Ribeiro no almoço de despedida em Lisboa. Esquerda: Felipe «Pi» Costa (no lugar reservado ao Comandante), o arrais Sr. Adelino, Jaime, Francisco, Diogo, Joana. Direita: Comandante José Inácio, cozinheiro Sr. Ribeiro, (António e João sentados atrás), Bernardo, Rodrigo, Camila, Leonor, Sara. CHEFE DE QUARTO Durante o seu quarto, o chefe de quarto assume em navegação a responsabilidade pela segurança, supervisiona os meios humanos do navio, assegura as tarefas administrativas da secção do convés e garante os meios de salvamento. No porto, acompanha as operações de carga, de estiva e de descarga e estabelece a ligação entre o navio e as autoridades, fornecendo-lhes a documentação devida. tornando-os tão úteis como uma bicicleta para uma alforreca e com a mesma capacidade de se manter em pé. Conforme explica a lógica dos turnos por quartos e percorre os vários momentos e responsabilidades a bordo, João vai realizando uma formação intensiva, remetendo alguns detalhes para a primeira ocasião de os colocar em acção, como é exemplo manobrar a cana do leme apenas eficaz quando em andamento. As partes de lavar a louça e pôr as mesas assume-se que é algo familiar para a maioria... pelo menos no nosso Quarto que apenas incluía maiores de idade. Os demais chefes de quarto, Pedro e António, são peças essenciais a bordo. Pedro, atleta remador, filho de mãe germânica e pai Português, é dos que sorriem com os olhos, azuis como o mar que adora. Tem sempre algo curioso e interessante para nos ensinar, contado na forma empolgante de quem vive a navegação bem perto do peito e com muitos calos queimados em cabos corridos. Revelou-nos algo sobre o nome «Vera Cruz» — denominação inicial dada pelos Portugueses ao Brasil. O nome actual do país advém do pau-brasil, a madeira vermelha como brasas usada para tingir tecidos, trazida então para a Europa. Bracino tornou-se Brasil. António cresceu literalmente a bordo da Vera Cruz — ambos nascidos por volta da mesma altura —, desde cedo subindo os mastros, caminhando pelas vergas e reconhecendo cada cabo só por senti-lo correr outra vez nos dedos. Ele e ela são cúmplices em quase tudo, seres jovens com a sabedoria dos antigos. Ambos enfrentam o mar com a mesma calma e tranquilidade, dando passos firmes executados com precisão e mestria. De cabelo comprido preso num rabo-de-cavalo, chamam-lhe Jesus Cristo, também por nos fazer acreditar de ser capaz de — se preciso fosse — caminhar sobre as águas do mar. Nada do que fazemos escapa ao radar de um dos melhores alunos na Escola Náutica, pronto a ajudar e ensinar. Coube-lhe orientar a equipa mais jovem com a Leonor, a Sara e a Irina. Marinheiros Cada quarto tem pelo menos um marinheiro mais experimentado que os grumetes que faz sombra ao chefe de quarto. O nosso conta com o Bernardo, auto-denominado «Marinheiro Sardinha», personagem que encarna com virtuosismo raro sempre que a bordo entram grupos de crianças. Cada um bebe as suas palavras, seguindo-lhe os gestos e interagindo de forma alegre e entusiasmada, enquanto o Marinheiro Sardinha ensina algo sobre a vida a bordo ou a caravela. Os demais marinheiros a bordo na tripulação foram o desenhador Carlos, e os jovens Diogo e 86 187º
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O lenço na cabeça onde se lê «Pirata» faz conjunto com a disposição brincalhona do Sr. Ribeiro, tirando a preparar refeições que é coisa séria. À entrada da cozinha, o aviso diz tudo com pouco: «Regra n.º1 a bordo: Cumprir as ordens quando e como são dadas. Não imitar o cozinheiro!» 88 187º
Francisco. Carlos troca os cabos pelos lápis e pincéis de aguarela, retratando várias cenas onde a caravela vai passando, desde o escaler a remos que cruza as águas do porto de La Coruña aos golfinhos. Diogo, o mais novo e irrequieto, começou por querer fazer apenas uma perna e já vai na terceira. Encontrou no Francisco o seu «parceiro no crime», ouvindo- -lhes a gargalhada das traquinices próprias da adolescência. Houve mesmo que os comparasse a Heckle e Jeckle, as pêgas-falantes animadas dos estúdios Terrytoons. Cozinheiro A bordo usa um lenço de Pirata, reflexo apropriado de uma certa irreverência saudável. Experimentado nas lides de navegação, permite-se ser encenador na dança que tachos e panelas executam ao sabor das ondas no mar. Na pequena cozinha cabem três pessoas à justa, mas serão sempre duas a mais para o Sr. Ribeiro — aquele é o seu território e prefere tê-lo à sua guarda apenas... excepto para lavar a louça e tirar pratos e talheres para pôr a mesa, que para isso há grumetes. É impossível ficar indiferente a ele, rindo contagiados pela sua boa disposição. Os mais novos vêm nele uma fonte de diversão, mas com um respeito que os conquista, sem ser paternalista ou ditador. Em cima de tudo isso, cozinha bem, não fora o passado na restauração. Talvez por o chão Parte da nossa equipa de quarto, a Joana usou sempre um sorriso tão vibrante quanto a côr das nossas roupas a bordo. A sua curiosidade com a vida na caravela apenas foi suplantada pelo enjoo que a deitou abaixo nos primeiros dias, como a muitos de nós. Ultrapassada essa condição, o seu caderno de notas e pensamentos não teve descanso. «MARINHEIRO SARDINHA» O nosso companheiro de quarto Bernardo tem o mar bem próximo do peito, vivendo e entregandose em cada momento a bordo com uma determinação e empenho impressionantes. Quando as crianças entram a bordo, encarna a personagem «Marinheiro Sardinha», fazendo vibrar miúdos e graúdos. Foto: Bernardo Souto 89 187º
estar demasiado quieto, prefere hoje manter a ligação ao mar a bordo da Vera Cruz. Ganhamos todos. Dispõe de três assinaturas vocais, as quais usa em situações específicas. Um gutural «Hey!» serve para cumprimentar alguém ao longe, marinheiros ou público nas margens, ao passo que um uivo prolongado revela pasmo com algo. Ambos foram adoptados pelo Diogo, reflexo de admiração pelo seu criador, arriscamos. Sempre que a caravela abana a anca em demasia, ouvimos-lhe no convés um «Olh’ó Leme!» arremessado da cozinha. O Contador de Histórias Adivinhamos onde está pela cortina de fumo do cigarro que o envolve enquanto lhe consome as pausas, deixando apenas entrever uma cara enxuta de barba, pontuada pelos pesados óculos de lentes grossas. Sem fazer parte da tripulação desta perna, o Rui marcou presença nas chegadas aos portos de La Coruña e Lisboa. Estudioso da matéria, é um membro da equipa cativante na forma como vive a caravela, entregando-se de corpo e alma procurando contagiar todos em redor com o seu entusiasmo adornado de pequenas histórias e pormenores delicodoces sobre a época dos Descobrimentos e da embarcação. Carismático e emotivo, desdobra-se na criação de laços e relações com as autoridades e parceiros, distribuindo abraços fortes a cada passo. ‘Grumetes’ Preferindo a designação portuguesa grumete ao termo inglês trainee — conforme descrita a nossa função na folha de tripulação — estes são a força braçal menos esclarecida nos misteres náuticos, para ser simpático e usando um eufemismo. Eu e a Inês temos a companhia dos grumetes Joana e João (Pires), cada um com uma história diferente que o levou até ali, todos unidos na inexperiência com a navegação marítima ou mesmo com o mar em alguns casos. João é arquitecto em Castelo Branco e Joana faz investigação em Economia da Saúde. Como nós, sofreram as dores de crescimento nas lides do mar vencidos por enjoos persistentes, exigência para a conquista das nossas pernas de marinheiro. Na realidade, a equipa dos grumetes é predominantemente composta por jovens, diferentes a cada perna, representando mais de metade. Os portugueses Rodrigo, Leonor e Camila procuraram aconchegar e envolver Sara e Irina, castelhana e russa, onde a barreira da língua se fez sentir, ainda que com intensidades bem diferentes 90 187º
Cada um encontra formas próprias para ocupar os tempos livres, seja pintando, remendando a bandeira nacional, treinando pandeiros, ou subindo ao topo do mastro grande. Foto: Bernardo Souto 91 187º