coberta por tubos de metal que se torciam em nós e terminavam em uma
saída enorme e aberta que parecia um chifre tsungi.
Ela estava sozinha.
Seus amigos tinham seguido por caminhos diferentes. Kirima e Wong
queriam fazer uma pausa na vida de contrabandista e ficar um tempo fora
do radar, vivendo dos bens que surrupiaram da mansão de Jianzhu. Eles
prometeram manter contato e visitar Kyoshi, assim que ela tivesse se
estabilizado. Eles eram os companheiros do Avatar, afinal. Sem dúvida
alguma ela conseguiria perdoá-los de qualquer encrenca que eles se
envolvessem.
Lao Ge recusou-se a ir com eles, alegando que ele precisava descansar
seus velhos ossos. Quando estavam a sós, ele disse a Kyoshi que, como o
Avatar e importante líder mundial, ela agora estava na lista dele. Ele dissera
isso em tom de brincadeira, parcialmente. Mas ela não se importava. Ela
estava convencida de que agora ela conseguiria enfrentar o velho em uma
luta até a morte.
Hei-Ran havia acordado. Rangi, lutando com cada palavra, dissera a
Kyoshi que ela precisava levar sua mãe ao Polo Norte, onde os melhores
curandeiros do mundo viviam. Se existia uma chance de ela se recuperar
completamente, seria encontrada junto aos especialistas da Tribo da Água.
Isso significava dizer adeus por tempo indeterminado. Elas poderiam
se encontrar novamente no futuro. Mas, como Lao Ge previra, elas não
seriam as mesmas pessoas quando isso acontecesse. Por mais que Kyoshi
quisera ficar com ela, em uma única piscina congelada de momentos, a
corrente que as carregava para frente era forte demais.
Kyoshi esperou até que seus amigos fossem embora para fazer sua
jogada, querendo poupá-los do caos que iria se seguir depois que ela se
revelasse. Os Nômades do Ar tinham costume de aceitar peregrinos de
outras nações, deixando-os ficar em seus monastérios e conventos
temporariamente. Sem Jianzhu para deixar sua vida obscura, ela
simplesmente se juntou a um grupo de viajantes maltrapilhos que escalavam
a montanha para o Templo do Ar do Sul.
Durante a orientação para seus companheiros leigos, ela se
apresentou pedindo para que todos se afastassem. Na frente dos monges,
ela invocou um tornado de fogo e ar. O vórtex ardente de dois elementos
provou sua identidade sem sombra de dúvidas — apesar de que quase
queimar uma árvore sagrada ao fazer isso a relembrara que seria uma boa
ideia depender de seus leques por um pouco mais de tempo.
Assim como esperado, houve um rebuliço. Muitos dos abades mais
velhos conheciam Jianzhu e haviam encontrado Yun. A existência dela
causou uma reviravolta de um fato já estabelecido. Ela não era o celebrado
prodígio do Reino da Terra, o garoto ora creditado publicamente pela
destruição da ameaça dos piratas da Quinta Nação.
Mas havia um motivo de ela ter ido para os dominadores de ar em
vez de um sábio de sua nação natal. O isolamento e a santidade do templo
proviam a medida de proteção enquanto a tempestade de sua chegada
uivava fora de suas paredes. Apesar de ser uma dominadora de terra nativa,
os Nômades do Ar tomaram os ultrajantes relatos de eventos como a mais
simples verdade, dita pelo Avatar. Eles suportariam a raiva e violência de
sábios da Terra que a veriam como ilegítima, como se ela de algum modo
tivesse usurpado sua posição apenas por ter nascido, e transmitiriam
mensagens para ela com serenidade e graça.
O conselho de anciãos no Templo do Ar do Sul não tinha interesse
em lucrar com a presença dela ali, ou em ditar o que ela deveria fazer depois.
Eles pareciam contentes em escutá-la e realizar quaisquer pedidos que
podiam.
Além disso, Pengpeng desfrutava de estar reunida com uma manada.
Kyoshi devia a ela uma folga com sua própria espécie.
— Avatar Kyoshi! — alguém gritou, quebrando os devaneios dela.
Ela olhou para cima.
Bem acima dela, em uma sacada, um alto e jovem monge acenou. Ela
deu um passo para trás para lhe dar espaço para pousar, e ele saltou sobre o
gradeamento. Uma rajada de vento abrandou sua queda, inflando seus robes
laranja e amarelos. Ele aterrissou ao lado dela tão suavemente quanto
Kirima fizera, tempos antes, na casa de chá da Madame Qiji.
— Perdão, Avatar — disse o Monge Jinpa — As escadas da torre
levam uma eternidade.
— Eu já tive grande parcela dos meus atalhos arquitetônicos —
comentou Kyoshi. Ela e Jinpa começaram a passear pelo jardim enquanto
eles conversavam, até que ela perguntou — Quais são as novidades?
O Monge Jinpa tinha sido designado a ela como um tipo de
mordomo. Ele era o líder do grupo administrativo do templo, lidando com
logísticas e finanças quando os Nômades do Ar eram obrigados a lidar com
o mundo material. Até monges precisavam de alguém para cuidar de cada
dinheirinho que acabava na posse deles.
— As novidades são… Bem, ainda está uma bagunça — disse Jinpa
— A tragédia em Yokoya é pior do que temíamos. Aproximadamente
quarenta pessoas da elite do Reino da Terra foram mortas por
envenenamento. E alguns agregados da família também.
Kyoshi fechou seus olhos mediante a dor profunda. Ela tinha
descoberto há pouco tempo o que acontecera na mansão
— Tem mais algum detalhe?
— Os investigadores enviados pelo Rei da Terra acreditam que foi
um ato de vingança de algum grupo daofei. De algum modo descobriram
sobre uma reunião importante entre sábios e decidiram atacar com um nível
de atrevimento que nunca foi visto antes.
A mãe de Rangi deve ter adoecido do mesmo modo. E Kyoshi não
sabia quem dentro de seus antigos colegas de trabalho ainda estava vivo. Ela
não sabia se a Tia Mui estava viva. Ela tinha que voltar a Yokoya o mais
rápido possível.
— O que você ouviu sobre Qinchao? — ela perguntou.
Jinpa comprimiu seu rosto. O pobre monge estava esgotado por ter
tantas más notícias passando por suas orelhas. Como um pacifista, ele não
estava acostumado com esse nível de morte e desordem.
— Os policiais encontraram o corpo de Jianzhu. Algumas
testemunhas corroboraram sua história, de que um jovem o matou a sangue
frio. Mas muitos dos cidadãos não estão convencidos de sua inocência. A
maioria deles manteve no depoimento que você destruiu a casa de chá.
Kyoshi não contara a ninguém que Yun era quem vingara sua própria
morte. Em retrospectiva, ela mal tinha certeza disso. O encontro fora tão
surreal quanto o na cidade mineradora onde ela achava que ele tinha
perecido. Em ambos os casos, ela vira uma entidade que ela não tinha
esperanças de entender.
— Tudo bem — ela respondeu — Duvido que incomodarei os Chin
novamente em um futuro próximo. Essa é a última das notícias?
— Ah, não. A morte do Mestre Jianzhu veio com uma complicação.
Por mais que fosse completamente inapropriado, ela quase caiu na
gargalhada. Óbvio. O que era mais uma complicação adicionada àquela
pilha?
Jinpa continuou:
— Aparentemente vários associados próximos, incluindo o Rei da
Terra e o Rei de Omashu, possuíam cópias seladas do testamento dele para
ser aberto em alguma eventualidade. Nele, o Avatar fora nomeado como o
herdeiro de toda sua propriedade.
Kyoshi deu de ombros à revelação.
— Ele estava treinando Yun para ser seu sucessor como protetor do
Reino da Terra. Faz sentido.
O monge sacudiu a cabeça.
— O testamento se referia a você pelo nome, Avatar Kyoshi. O
mestre Jianzhu tinha enviado as cópias por falcões algumas semanas atrás.
Nesses documentos ele confessava seu grande erro identificando o Avatar
e implorava aos seus colegas que eles lhe dessem todo o apoio que
pudessem, como ele está fazendo postumamente. Suas terras, sua casa —
agora pertencem a você.
Kyoshi teve que parar e admirar o modo que Jianzhu persistia em seus
métodos até dentro de seu túmulo. Era tão a cara dele assumir o privilégio
de uma súbita mudança de curso, pensar que corrigir um erro era a mesma
coisa que fazer as pazes. Em seu testamento, Jianzhu esperava que, com seu
pedido, o mundo veria os eventos do modo que ele via.
— Deixe-me adivinhar — disse Kyoshi — Enquanto esses
documentos sanaram as dúvidas sobre eu realmente ser o Avatar, agora as
pessoas pensam que eu o matei para herdar sua fortuna.
Jinpa apenas pôde levantar seus braços em impotência.
— É incomum que ele estivesse com você em Qinchao e não na casa
dele pouco depois do envenenamento.
Os outros membros da Companhia da Ópera Voadora teriam achado
aquilo hilário. Ao menos conseguir a mansão como herança não violava os
votos daofei que ela fizera. Ela tinha todas a intenções de manter o mesmo
Código que seus familiares por juramento, vivos ou mortos.
Ela ficou em silêncio enquanto eles terminavam a volta. Era dito que
cada Avatar era nascido em tempos de adaptação, em uma era que precisava
deles.
Julgando por seu começo, a era de Kyoshi era marcada por incerteza,
medo e morte, os únicos presentes que ela aparentava ser capaz de dar ao
mundo. O povo nunca a reverenciaria como faziam a Yangchen ou
sorririam para ela como faziam com Kuruk.
“Então que seja assim”, ela pensou. Ela lutaria contra sua má-sorte, suas
estrelas ruins, e protegeria aqueles que poderiam desdenhá-la até o fim de
seus dias.
Eles chegaram ao alojamento dela. Kyoshi dissera aos monges que ela
estaria perfeitamente bem dormindo nas mesmas celas simples que os
outros peregrinos, mas eles insistiram em dar um quarto reservado para a
encarnação atual do Avatar. Era mais como uma sala vasta, para os
parâmetros dela. Colunas laranja seguravam o teto, dando a impressão de
um sulco interior, e o chão de madeira escura tinha um carpete de lã fina de
bisão expelida naturalmente e tecido em padrões de espirais dos Nômades
do Ar. Havia um posto para exercícios de meditação, incluindo uma piscina
espelhada e uma superfície de pedra branca rodeada por frascos de areia
colorida.
— Tem mais alguma coisa que você precise agora, Avatar Kyoshi? —
perguntou Jinpa.
Na verdade, tinha.
— Eu notei o nome do Mestre Kelsang em vários registros ao redor
do templo — ela comentou — Mas em um lugar de honra mais baixo do
que sua experiência sugeriria.
— Ah, perdão, Avatar, mas isso é uma questão de procedimentos dos
Nômades do Ar. Sabe, é costume manter um certo nível de separação entre
aqueles que tiraram uma vida, direta ou indiretamente, e aqueles que se
mantiveram espiritualmente puros. É aplicado em nomes e registros
também.
Então era uma questão de Kelsang ser impuro. Era assim como os
Nômades do Ar interpretaram os esforços dele para salvar aldeões de
regiões costeiras da depredação de piratas. Ela imaginava onde o nome de
sua mãe estaria no Templo do Ar do Leste. Talvez enterrado no chão com
o lixo.
Ela olhou para a expressão redonda e inocente de Jinpa. Suas façanhas
em Zigan ainda não tinham chegado ali. Ela pensou em quão no controle
ela havia se sentido quando deixou Xu cair.
— Eu gostaria que o nome do Mestre Kelsang fosse restaurado para
seu status normal e estimado — Kyoshi disse. A soberba casual veio a ela
com muita facilidade. Ela odiava cada polegada que a empurrava na direção
de se portar como Jianzhu. Mas era uma ferramenta extremamente efetiva
em seu arsenal, aprimorada por sua reputação pavorosa.
— O conselho de anciãos não ficaria satisfeito — respondeu Jinpa,
esperando que ela desistisse.
— Mas eu ficaria — retrucou Kyoshi — Na verdade, uma estátua
seria legal.
Ele era jovem e sagaz o suficiente para entender o nível em que ela
estava operando. Ele riu em resignação.
— Como desejar, Avatar Kyoshi. E, se tiver mais algum pedido, me
avise. É o mínimo que meus compatriotas e eu podemos fazer depois de
falhar em vir à sua assistência por tanto tempo. Estávamos, infelizmente, no
escuro, como o resto do mundo.
Kyoshi inclinou a cabeça.
— Os Nômades do Ar não tiveram culpa em relação aos meus
problemas.
— Eu, er, me referia a um “nós” diferente — Jinpa coçou a nuca —
Por acaso você joga Pai Sho?
Kyoshi fez uma careta para sua afirmação enigmática e mudança de
assunto súbita.
— Não jogo — ela respondeu — Não gosto do jogo.
Jinpa tomou essa afirmação como um sinal para sair. Ele se curvou e
a deixou para sua solidão.
Kyoshi suspirou profundamente e andou até a piscina espelhada,
onde havia uma almofada na ponta. Ela se sentou na pose que Lao Ge a
ensinara e semicerrou os olhos, seus cílios formando uma cortina sobre sua
visão. Ela passara muito de seu tempo no Templo do Ar meditando naquele
lugar.
Parecia errado chamá-lo de seu lugar favorito. “O único lugar em que
podia ficar relativamente em paz” era mais apropriado. Ninguém a avisara
sobre o quão vazia ela se sentiria tendo apenas um objetivo e o vendo ser
alcançado. O reaparecimento de Yun, sua assistência, seu novo e absoluto
desprezo pela vida inocente, corroía suas extremidades e a impedia de
dormir.
Era mais fresco na borda da piscina do que no resto do quarto. Ela
sabia que isso se devia à evaporação, mas, hoje, havia um frio absoluto. Sua
pele se arrepiou com calafrios e ela tremeu.
— Kyoshi — ela ouviu um homem falar.
Os olhos dela abriram com surpresa. Onde estaria vendo seu reflexo
na água, ela viu a silhueta mudando, ainda de uma pessoa, mas ondulante
entre dezenas de formas, como se ela tivesse corrido pela superfície da
piscina.
— Kyoshi — ela ouviu a voz novamente.
Uma rajada de vento fez seu cabelo voar. Um manto de névoa subiu
da piscina. Ela piscou, e havia um homem sentado sobre a água, olhando-a,
espelhando a pose dela.
Ele tinha por volta de trinta anos e era acidentalmente bonito. Vestia
os adereços de um grande chefe da Tribo da Água, suas peles azuis-escuras
compensando a palidez de seus olhos. O corpo dele era adornado com os
troféus de um poderoso caçador, os dentes afiados de feras atados em volta
de seu pescoço e pulsos.
— Kyoshi, eu preciso da sua ajuda — ele pediu.
Ela encarou o espírito do homem que ela sabia que estava morto. O
homem que fora amigo de Jianzhu, Hei-Ran e Kelsang. O homem que a
precedera no ciclo do Avatar.
— Kuruk?