O CINTURÃO DA FERRUGEM sumir e a vida piorar nos últimos anos”,
O nome designa uma região com indústria pesada diz Robert Shapiro, cientista político da
e decadente no nordeste dos EUA. Ela se espalha por diversos estados Universidade Columbia, em Nova York.
WISCONSIN Rochester A distância maior para o sonho ame-
MICHIGAN Buffalo ricano esgotou a simpatia desses eleitores
com a agenda progressista dos democra-
Milwaukee Detroit PEErNieSILVÂNIA tas, concentrada em conquistas sociais e
Filadélfia mais acordos de livre-comércio, identi-
IOWA Chicago Cleveland Pittsburgh ficada com o que os europeus chamam
de “terceira via”.“O partido passou a ser
Davenport OHIO visto como pertencente a pessoas ins-
truídas e bem de vida”, diz Mauro Guil-
Indianápolis Columbus len, professor de relações internacionais
Springfield Cincinnati da Wharton School, na Pensilvânia.
St. Louis Evansville Por convicção ou esperteza, Trump
enxergou no discurso de ressentimento,
SOB IMPACTO volta ao passado e segurança econômica
a linguagem perfeita para se comuni-
Estão no Cinturão da Ferrugem algumas das principais car com esses eleitores, de modo mais
cidades industriais dos Estados Unidos, como Detroit, emotivo que racional. De quebra, ele
Cincinnati, Cleveland e Milwaukee personifica o sonho americano dessa
população – o homem que enriquece
5 milhões 1 milhão 800 mil Oceano Atlân tico à custa do próprio trabalho (ao menos
na visão de seus eleitores). Ele elegeu
de empregos desses postos empregos inimigos a combater, entre eles o imi-
da indústria de trabalho da indústria grante que rouba empregos. “A agen-
sumiram nos desapareceram migraram para da isolacionista de Trump se alimenta
Estados Unidos durante o o México entre dessa raiva da classe média baixa”, diz
desde 1997 governo Obama 1997 e 2013 Christopher Garman, diretor da con-
sultoria Eurasia. “É um tanto oportu-
Golfo do México Fontes: Bureau of nista, uma vez que o imigrante compete
Economic Analysis, por trabalhos piores.”
Bureau of Labor A falha principal das pesquisas e dos
Statistics, Economic analistas democratas foi não perceber
Policy Institute, Real que o ressentimento levaria esse eleitor
Clear Politics e Robert a comparecer em massa às urnas, como
Scott, do Instituto de se estivesse lutando por sua vida. No
Política Econômica campo adversário, os americanos que
preferiam Hillary não chegavam a se
O PAÍS ENRIQUECEU... ...MAS A RIQUEZA SE CONCENTROU empolgar com ela e não compareceram
O PIB per capita melhorou em cinco dos Nos seis estados, a renda das classes na quantidade necessária para que ela
seis estados que deram a vitória a Trump média e baixa avançou pouco ou nada vencesse (leia mais a partir da página 48).
Em %
Variação de 2008 a 2015 em % Agora eleito, Trump terá o desafio
Ganho do 1% mais rico de atender aos anseios desse eleitor
Ganho dos demais 99% angustiado e intolerante, tendo como
freio as instituições americanas, os tra-
3 ESTADOS UNIDOS 1 17 tados internacionais e as relações di-
plomáticas. Muito do que ele prometeu
7 IOWA 5 13 em campanha oscila entre o absurdo,
como a construção de um muro na
5 MICHIGAN 0 26 fronteira com o México, e o imprati-
cável, como isolar a maior economia
7 OHIO 4 17 global do resto do planeta. Mas a maior
lição da semana passada ainda ecoa:
7 PENSILVÂNIA 08 Trump é muito mais hábil e inteligente
que seus oponentes imaginavam. u
6 WISCONSIN 5 12
14 de novembro de 2016 I ÉPOCA I 47
-6 FLÓRIDA -4 15
-15 0 +15 -30 0 +30
E N T R E V I S TA
noticiário político pela televisão. Não sou muito de me dedi- Houellebecq – É uma pena que a Brexit não consiga der-
car aos jornais. Na França, os jornais estão sendo abando- rubar a ideia de uma união europeia de vez. Não entendo
nados pelos leitores. Em outros momentos, porém, deixo de a razão de tantos lamentos. Jamais encontrei um só ponto
lado a política. Sou como todo mundo. A política tem um positivo no projeto europeu. Tudo está baseado em pilares
lado folhetinesco de jogos de poder, ambições, ascensões falsos. Não há um só verdadeiro ponto cultural em comum
e quedas. Isso acaba nos chamando a atenção ou nos can- entre os diferentes países para que eles queiram ou possam
sando. Li sobre a destituição da presidente do Brasil. Não viver juntos abdicando de suas particularidades e da au-
consegui entender o que aconteceu. Parei de ler. O que me tonomia que cada um dispõe como nação independente.
interessa mesmo na política é seu aspecto tático, o jogo, as O fato de que a Justiça tenha decidido que o Parlamento
estratégias, a disputa, não o conteúdo. britânico deve dar sua palavra sobre o que foi decidido em
plebiscito é estranho, algo como uma invalidação da posi-
ÉPOCA – Suas posições sobre religião criam polêmica. O ção dos eleitores. Tomara que se confirme a saída. A União
islamismo radical continua a ser a grande ameaça para o Europeia não passa de uma ideia de tecnocratas que nunca
Ocidente?
compreenderam bem as especificidades de cada país. Em
Houellebecq – Certamente. Os atentados aconteceram e vão todo caso, a saída da Inglaterra da União Europeia nada
continuar a acontecer. Quando uma religião, com setores tem a ver com a chamada crise dos refugiados, como se cos-
extremistas, é minoritária num lugar, surge a possibilidade tuma dizer por facilidade ou superficialidade. Os ingleses
da ruptura. Normalmente, as religiões ajudam a organizar as nunca se sentiram realmente parte desse projeto absurdo.
sociedades. No caso do islamismo radical, ocorre o contrário, A pergunta que todos deveriam se fazer todos os dias é esta:
uma desestruturação. E é só o começo. como foi possível embarcar tanta gente, tantos países, tantas
ÉPOCA – Uma onda conservadora pare- línguas numa ideia tão inadequada e tão
ce avançar no Ocidente. Marine Le Pen, fadada ao fracasso?
líder da Frente Nacional, será presidente As religiões ÉPOCA – Como lidar com as ondas de
da França? refugiados que chegam à Europa?
Houellebecq – Pode ser que ela chegue à organizam as Houellebecq – Não sei. Não me interesso
Presidência da França algum dia, mas não sociedades. No por esse assunto. Sou completamente indi-
será na próxima eleição. Apesar de estar caso do islamismo ferente a isso. Ou, às vezes, mudo três vezes
radical, ocorre uma
sempre crescendo, ela ainda está muito de opinião no mesmo dia sobre esse tema.
distante de ter os votos necessários para desestruturação. Mudo de opinião por uma razão bastante
ganhar uma eleição presidencial. O jogo simples: como me perguntam muito sobre
já me parece jogado. François Hollande isso, eu, por gentileza, respondo. A melhor
quer ser candidato, embora seja uma nuli- E é só o começo” maneira de acabar com a conversa é dar
dade como presidente. Os socialistas talvez uma resposta. Depois, esqueço a resposta
não saibam ainda como fazer para se livrar dada e acabo dando outra diferente. Mes-
dele. Todos tentam convencê-lo a cair fora. Nicolas Sarkozy mo que os refugiados estejam próximos da minha casa, ou
também quer voltar. Mas o próximo presidente da França onipresentes nos telejornais, eu não me sinto interpelado.
deverá ser mesmo Alain Juppé (ex-primeiro-ministro, libe- Não sou um intelectual. Sou um escritor. Não tenho de me
ral, candidato nas primárias da direita francesa). Ele largou manifestar sobre tudo.
na frente e tem tudo para ganhar. A rejeição a ele parece ÉPOCA – O que é ser intelectual no começo do século XXI?
ser menor que a destinada a seus adversários. Houellebecq – O importante, antes de tudo, é definir o que é
ÉPOCA – O populismo ameaça as democracias ocidentais? ser intelectual. Há muita confusão. O termo ficou muito am-
Houellebecq – O populismo é uma realidade. Também é ver- plo. Quase todo mundo pode ser tratado como intelectual.
dade que se tem chamado de populismo qualquer tentativa É preciso ter critérios precisos para classificar alguém como
de tirar o poder das elites. Há populistas demagogos e perigo- intelectual. Intelectual para mim é quem faz certos estudos,
sos e há quem seja considerado populista por especialistas em obtendo um diploma, por exemplo, em ciências humanas.
estratégias de desqualificação. Os “novos progressistas”, gente Além disso, é alguém que escreve e publica ensaios e tem
da velha esquerda com roupagem nova, chamam de novos poder de publicação, dirigindo uma coleção numa grande
reacionários todos os que não seguem suas ladainhas. Quem editora. Não basta para ser intelectual fazer intervenções
não usa smartphone é reacionário. Quem quer mais demo- esporádicas no espaço público sobre questões gerais. Pelo
cracia direta e menos politicagem convencional, também. conceito amplo usado por alguns, qualquer celebridade da
mídia pode ser chamada de intelectual. Não é por ser famoso
ÉPOCA – Há épocas de aceleração histórica inesperada. e dar palpites sobre tudo que alguém merece esse rótulo.
A Brexit representa um fracasso irreversível para a União
Europeia? ÉPOCA – Não é uma noção muito institucionalizada de inte-
58 I ÉPOCA I 14 de novembro de 2016
Michel Houellebecq
lectual? Onde entra o intelectual marginal como propulsor fundamentos para que a lei seja respeitada. Cumpre uma
de ideias e contestador dos sistemas?
função moralizadora. Eu já quis até ser batizado na Igreja
Houellebecq – As épocas são diferentes. Intelectuais na Católica, mas isso é assunto passado e não quero retomá-lo
França, hoje, são Bernard-Henri Lévy, Eric Zemmour, Régis no momento. Se eu fosse abraçar uma religião, contudo, se-
Debray. O papel do intelectual é justamente dizer o que se ria o catolicismo. Deus e religião são temas incontornáveis.
deve pensar. Tem sempre algo de normalizador nessa função.
Não é contraditório afirmar que o intelectual serve para ÉPOCA – Nada lhe parece muito importante fora dos li-
domesticar e questionar. O importante é que o intelectual vros. É verdade, porém, que não conseguiu ler um livro de
não se deixe absorver pela mídia e tenha independência para Philip Roth até o fim?
disseminar o que pensa. O intelectual é um poder e precisa Houellebecq – Não, não é verdade. Eu li O complexo de Por-
ter poder. Para exercer o poder das ideias, precisa ter poder tnoy da primeira até a última página e achei bom. Quando
de difusão e publicação. Não consigo ver como intelectual tive oportunidade, tentei outros. Aí não fui em frente. Achei
alguém que não escreva ou sustente teses. Não estou confun- repetitivo. Sei que isso acontece com muitos escritores. Não
dindo intelectual com pesquisador ou acadêmico. Sei que há é fácil ser sempre novo. Tenho lido muito poucos autores
diferenças. O intelectual abre o campo, amplia o espaço de estrangeiros. Passo a maior parte de meu tempo em casa
discussão, tem por alvo um público mais amplo. Um inte- lendo obras de escritores franceses que me são enviadas
lectual precisa ter ideias sólidas e construídas. Não é produto pelo correio. Há autores de todos os tipos, jovens ou ve-
fácil de encontrar. Talvez as ideias estejam em outras cabeças. lhos, desconhecidos da mídia e do grande público, alguns
excelentes. O problema da literatura é a visibilidade. Nesse
ÉPOCA – Os filósofos marxistas Alain Badiou (francês) e sentido, a internet não fez nenhuma revolução. Eu consi-
Slavoj Zizek (esloveno) são intelectuais?
go, numa livraria, folheando exemplares
Houellebecq – Pode ser que sim. Sobrevi-
ao acaso, encontrar coisas surpreendentes,
vem alguns marxistas. Apesar da decadência mas não consigo fazer o mesmo navegando
da esquerda. Atenção: afirmar que a esquer- Já ouvi muito na internet. Há outro problema: comprei
da acabou não significa aceitar a ideia de três tipos de tablets e não me adaptei. Acabo
fim da história. Isso nunca passou de uma Bob Dylan. com os olhos cansados. A culpa, num caso
asneira. Enfim, essa bobagem já passou. Li Tratando-se desses, não é do autor. Muito menos de um
alguma coisa de Badiou. Não faz sentido. de músicos, autor como Philip Roth. O gosto de cada
eu teria preferido
Zizek é incompreensível. Pura perda de um é que é muito singular.
tempo. Tem quem goste. Não conheço um o Nobel para
só grande intelectual anglo-saxão, mas os ÉPOCA– Sonha com o Nobel de Literatura?
britânicos vivem anunciando a decadên- Houellebecq – Não. Mas poderia ganhá-
cia do pensamento francês. É verdade que Lou Reed” lo. Não vejo na França quem possa estar
das ideias de Sartre e Camus nada sobrou. mais bem colocado do que eu para isso.
Escreviam mal, não foram de fato filósofos O problema é que eles vão demorar bas-
e nada entendiam de ciência. Depois deles, tante a escolher novamente um francês.
gente como Derrida, Lacan, Deleuze e Foucault só produziu Acho que morrerei antes que eles façam isso. A Academia
frases obscuras, com palavras bizarras e nenhum sentido. O Sueca tem seu jeito muito particular de atuar. Premiaram
que temos, então? Intelectuais que desertaram e escritores Bob Dylan. Não farão algo assim outra vez. O Brasil, que
que, como eu e o grande Maurice Dantec e Philippe Murray ainda não ganhou o Nobel, certamente não o terá com
(escritores franceses), tiveram de tratar daquilo que dói no dia um cantor. Já ouvi muito Bob Dylan. Só que nunca me
a dia de uma sociedade. Como sempre fomos mais artistas, dediquei a compreender de fato suas letras. Não sei se elas
não fizemos filosofia, nem prometemos isso. Tratamos da- podem funcionar como poesia sem a música e a interpre-
quilo que tem real significado na vida cotidiana das pessoas. tação cantada. Tenho dúvidas. Tratando-se de músicos, eu
ÉPOCA – O senhor é um ateu que acredita na importância teria preferido o Nobel para Lou Reed.
de Deus? ÉPOCA – Leu algum livro de Chico Buarque?
Houellebecq – Deus é importante. Não há como negar. Já Houellebecq – Não.
pensei muito sobre isso. As razões para crer em Deus são
variadas. A mais importante tem a ver com a morte. Como ÉPOCA – E de Paulo Coelho?
suportar a morte sem Deus? Como suportar a finitude e Houellebecq – Tentei ler um. Acho que foi O alquimista.
o sofrimento sem a crença em algo superior? Como dar Desisti. u
sentido ao que se é? Muita gente não consegue se situar
sem esse ponto de referência e de transcendência. Deus Juremir Machado é jornalista, professor da PUC-RS e escritor.
também tem uma função na estruturação das sociedades. Publicou pela Record, em 2007, Um escritor no fim do
Serve de referência para a moral e para os costumes. Dá mundo (viagem com Michel Houellebecq à Patagônia)
14 de novembro de 2016 I ÉPOCA I 59
CARTAS DA FRANÇA
O desmonte do maior campo
de refugiados da Europa evidencia
a questão da imigração e dos
refugiados, central para a eleição
de Donald Trump
52 I ÉPOCA I 14 de novembro de 2016
Felipe Maia, de Paris
herzad fixou acampamento ao lado clandestinas. A Jungle se subdividiu
dos canais que levam ao Rio Sena, em “Minijungles”.
em Paris. Imaginar o lugar pode A prefeitura de Paris afirma que cerca
suscitar devaneios românticos a de 2.500 pessoas se espalham atualmente
muitos – não a Sherzad, sem condições em uma área com 25 hectares. Pelas cal-
de sobreviver, quanto mais de sonhar. çadas veem-se abrigos de poliéster estam-
Ele guarda os poucos documentos que pando, entre outras, a marca da maior
lhe restam em um saco plástico preso rede de produtos de esporte da França,
junto ao corpo. Titubeia para respon- doados por tropas de voluntários, junto
der se tem 17 ou 18 anos, desconfiado com roupas e alimentos. Se o acampa-
do que pode lhe acontecer. “Paris é me- mento cresce, banheiros químicos são
lhor que a Jungle”, diz. Com medo do instalados. Em algum momento, a po-
Taleban, ele deixou seu Afeganistão e lícia chega. “A polícia quer levar a gente
caminhou por três meses até a Europa. para a delegacia, fazer uma impressão
Estancou na Jungle, como ficou conhe- digital e nos deportar”, diz Arman, que
cido o maior campo de refugiados do deixou a família em uma comunidade
continente, em Calais, litoral norte da rural no Afeganistão e viajou três meses
França. Boca do Eurotúnel, Calais é a para instalar-se embaixo de uma ponte.
passagem procurada nos últimos anos A dinâmica se repete até nova desocu-
por milhares de refugiados em direção pação. Minijungles surgem e são des-
ao Reino Unido. Sem montadas em Paris.
conseguir burlar as A situação é similar
barreiras de seguran- ARMAN DEIXOU ao desmantelamen-
ça, Sherzad fixou-se na to da parte sul do
Jungle como uma das SUA COMUNIDADE campo, iniciado em
9 mil pessoas vindas RURAL NO março. Nos três me-
de países como Sudão, ses seguintes, cerca
Eritreia, Síria e Iraque, AFEGANISTÃO PARA de 3 mil migrantes
entre tantos outros, à foram evacuados
espera de uma opor- VIVER EMBAIXO DE da Zona Norte de
tunidade, de um vacilo UMA PONTE EM PARIS Paris. Ao todo, 15
da vigilância do túnel. mil migrantes fo-
Após seis meses ram expulsos ape-
de tentativas infrutíferas de cruzar o nas da capital nos últimos 18 meses.
Canal da Mancha por baixo, Sherzad A indústria que formou a Jungle, e
perambula pelas ruas de Paris à espera dispersa gente pela França, é abastecida
de algo. Não sabe o que vai fazer, como pelas diásporas nascidas de tragédias na
MINIJUNGLE a maioria dos refugiados espalhados África, no Oriente Médio e no Extremo
Acampamento
pela França desde o início do processo Oriente. Os fornecedores de gente são
de refugiados
sudaneses de desmonte da Jungle, no mês passa- a guerra civil sem limites de crueldade
em Paris. A
prefeitura do. A operação tocada por trabalhado- na Síria, o avanço do Estado Islâmico
não tem como res de roupa laranja acaba aos poucos no Iraque, a ditadura na Eritreia, o co-
alojá-los
com uma espécie de cidade formada lapso do Sudão, entre outras desgraças
por barracas, contêineres e velhos trai- humanitárias. Segundo o governo fran-
lers dispostos num terreno lamacento cês, quase 2 mil migrantes foram enca-
à beira de uma estrada. Os abandona- minhados para centros de acolhimento
dos que lá estavam, no entanto, apenas do país no primeiro dia da evacuação
se deslocaram. Na Zona Norte de Paris, do campo, no mês passado. ONGs de
todos os dias policiais desmontam ten- apoio aos moradores da Jungle calcu-
das e retiram barracas nas quais eles se lam que cerca de 3 mil pessoas se diri-
abrigam. A 30 minutos da Torre Eiffel, giram a Paris e região.
o chamado “Triângulo dos Migrantes” Na mesma proporção que os refugia-
está ocupado há cerca de um ano por dos se espalham, a política que viceja na
quem busca asilo na Europa depois de xenofobia fervilha. A ascensão da Fren-
meses de travessia em barcos ou rotas te Nacional, o partido de ultradireita s
Foto: Mustafa Yalcin/Anadolu Agency 14 de novembro de 2016 I ÉPOCA I 53
CARTAS DA FRANÇA
comandado por Marine Le Pen, é um Jungle. Em 15 dias, forças de segurança,
fato tão consumado quanto os migran- assistentes sociais, dezenas de ônibus e
tes. A turma de Le Pen defende uma dura tratores deram fim ao acampamento que
política antimigração e se manifesta. Re- se formara às margens da estrada que liga
centemente, membros da Frente Nacio- a Europa continental e o Reino Unido.
nal, inclusive uma sobrinha de Le Pen, A seus moradores, restaram três opções:
participaram de uma marcha em La permanecer escondidos na região, ser le-
Tour-d’Aigues, no sul da França, contra vados a um centro de acolhimento em
a chegada dos refugiados a pequenas lo- alguma cidade francesa ou dirigir-se a
calidades. Perseguidos em seus países, os Paris para se juntar a outra multidão de
refugiados que chegaram à França foram barracas. Ismael, dentista que fugiu do
empilhados na Jungle e, agora, são desa- Sudão em 2011, resolveu ficar – mesmo
lojados das ruas de Paris ou rejeitados em sabendo do frio que se intensifica com a
outras cidades, numa perseguição eterna. chegada do inverno e da destruição to-
Em um mundo que agora terá Donald tal da Jungle. “Eu quero ficar aqui para
Trump a liderar o país mais poderoso tentar ir ao Canadá, porque muitos su-
entre todos, com a ideia pré-histórica daneses fizeram isso em 2012 e 2014
de construir um muro na fronteira com pela ONU”, diz. “Pode ser impossível,
o México para barrar migrantes, o Oci- mas…” Antes da França, Ismael viveu
dente não parece nada acolhedor. ilegalmente na Alemanha e na Bélgica.
Se nos acampamentos é comum ver A Inglaterra deixou de ser seu objetivo,
homens vindos de e para muitos outros,
países da África sub- com o recrudesci-
saariana, do Iraque O FIM DO CAMPO EM mento da fiscalização.
e do Afeganistão, Em março deste
nas ruas de Paris é CALAIS NÃO SIGNIFICA ano, o primeiro-mi-
frequente a presen- O FIM DAS MIGRAÇÕES. nistro britânico, Da-
ça de mulheres ou vid Cameron, anun-
AS PESSOAS
crianças que pedem ciou um aporte de
esmola com placas CONTINUARÃO A e 22 milhões para a
ou passaporte que os CHEGAR À FRANÇA construção de cercas
identificam como sí- e um muro na área.
rios. Segundo dados “As pessoas ficam via-
do Ministério do In- jando entre os países
terior francês, entre 70 mil pedidos de para chegar ao Reino Unido”, diz Ismael.
asilo feitos em 2015, 20 mil foram aten- “Um garoto morreu atropelado tentan-
didos. Os sírios lideram, seguidos pelos do ir para lá.” Raheemullah Oryakhel,
sudaneses.“Não podemos deixar as pes- de 14 anos, foi atingido por um cami-
soas nessa situação de indigência e não nhão na madrugada de 15 de setembro,
podemos deixar os moradores dessas em uma das estradas que dão acesso ao
áreas sofrer tantos inconvenientes”, disse Eurotúnel. Ele tinha direito de ir para ACABOU
Trabalhadores
recentemente o presidente francês, Fran- a Inglaterra, juntar-se a um irmão que desmontam a
Jungle, maior
çois Hollande. Anne Hidalgo, prefeita de vive em Manchester, mas o processo para campo de
refugiados da
Paris, anunciou em maio a construção realocá-lo corria lentamente. Segundo as Europa. Parte dos
refugiados que
de dois novos alojamentos no norte da organizações Help Refugees e Auberge viviam ali não quer
sair da região
capital para 900 pessoas, mas o projeto é des Migrants, havia pouco mais de 1.000
voltado a recém-chegados. Em carta en- menores de idade desacompanhados vi-
dereçada ao ministro do Interior, Hidal- vendo na Jungle. Esse número chegou a
go pede que a esfera superior encontre 1.800 nos dias do desmonte.
uma solução para quem vive nas Mini- Uma diversidade de etnias se reuniu
jungles. “Não é função (da prefeitura), na Jungle por afinidade em torno de um
nem há capacidade (para abrigar essa destino triste, busca por uma saída na
população)”, diz ela na carta. vida e pobreza. O campo era dividido
Há duas semanas, a 300 quilômetros em pequenos bairros formados segun-
de Paris, ainda era possível encontrar mi- do a nacionalidade e o poder aquisitivo:
grantes andando sobre os escombros da áreas elevadas eram espaço para peque-
54 I ÉPOCA I 14 de novembro de 2016
nas casas de madeira ou trailers antigos, e materiais e suprimentos para fabricar muitos querem ficar na França; e ou-
enquanto barracas e tendas ficavam em cigarros – dez por e 1. “Eu trabalho
lugares próximos a esgotos e banheiros numa loja aqui na Jungle porque preci- tros vão chegar. “O problema está nas
improvisados. Ruas largas levavam a en- so”, diz. “Minha família no Afeganistão
claves do acampamento, como pontos não tem dinheiro para comer.” semanas que vêm a partir de agora”,
de distribuição de comida, e serviam de
entrada a restaurantes ou pequenas lojas. Exceção entre os migrantes, Tura afirma François Guennoc, responsável
O afegão Tura montou um comércio na aprendeu francês por ter vivido du-
esquina da rua que ia ao bairro iraquia- rante dois meses com uma família pela ONG Auberge des Migrants. “As
no.“Microempresário”, Tura agora quer em Calais. A energia que usa para
ficar na França. Há três anos ele deixou carregar seu celular é tão fundamen- pessoas que se esconderem na região
sua família em Jalalabad, no Afeganistão. tal quanto o tabaco e o filtro que ven-
Com o dinheiro que conseguiu guardar de. Como ele, muitos migrantes têm terão necessidade de ajuda. Aí não
da jornada comprou um gerador elétrico algum aparelho para se comunicar
com as famílias. Assim como Tura, saberemos o que fazer. E as pessoas
vão chegar, porque elas continuarão a
chegar.” O fim da Jungle não significa
o fim da migração. Suas causas estão
vivas, como a guerra na Síria, no Ira-
que ou a crise no Sudão. A rejeição não
vai resolver nada. u
Foto: Philippe Wojazer/Reuters 14 de novembro de 2016 I ÉPOCA I 55
E N T R E V I S TA
MICHEL HOUELLEBECQ
“É um erro associar
Trump a Marine Le Pen”
O mais famoso escritor francês diz que Trump
é diferente da líder da extrema-direita da França
– e que ele pode se sair bem se abandonar o belicismo
Juremir Machado
N ascido na Ilha da Reunião, em 1956, Michel ÉPOCA – Como viu o duelo entre Donald Trump e Hillary
Houellebecq tornou-se conhecido em 1994 com Clinton e a vitória do republicano?
um pequeno romance chamado Extensão do domí- Michel Houellebecq – Vi como algo enfadonho. Resolvi as-
nio da luta. Nele, a sexualidade é tratada como um “sistema sistir a um dos debates. Cansei logo. No começo, os golpes
de hierarquia social”. Em 1998, alcançou o sucesso mundial baixos, as provocações, os blefes e as alfinetadas de todos os
com Partículas elementares. Poeta, ator, cineasta, compositor, tipos até parecem interessantes. Depois, isso cansa e dá para
romancista e fotógrafo, Houellebecq é um falso tímido. Fala ver o vazio do espetáculo. Não consegui localizar as ideias,
pouco, baixo e lentamente, mas cada frase tende a ser uma os grandes planos, as propostas diferentes. Achei muita apa-
bomba. Em 2001, lançou Plataforma, história que termina rência para pouco conteúdo. É claro que cada lado exagera
com um atentado terrorista. Em 2010, venceu o Prêmio os perigos do outro. A estratégia de atemorizar os eleitores
Goncourt, considerado o Nobel da literatura francesa, com nunca é descartada. Não existe na França um equivalente
O mapa e o território. Foi processado por ter classificado o a Donald Trump. No passado não muito distante, tivemos
islamismo como “a religião mais idiota de todas”. Em 2015, Bernard Tapie (empresário que foi presidente de clube de fu-
estava na capa do Charlie Hebdo quando o jornal satírico tebol e político), que era fanfarrão, exagerava sua fortuna e
francês sofreu um atentado praticado por terroristas islâ- vivia envolvido em escândalos. Passou. Tapie era desprezado
micos. Era o dia da sessão de autógrafos – que precisou ser pelos verdadeiros empresários e as ideias dele não eram mui-
cancelada – de Submissão, romance no qual Houellebecq to precisas. Tudo nele remete a Trump. É um erro associar
imagina um muçulmano na Presidência da França. Tradu- Trump a Marine Le Pen (política francesa de extrema-direita).
zido em mais de 50 países, ele ocupa o lugar de mais famo- São diferentes. Não sei o que vai resultar dessa eleição. Por
so e polêmico escritor francês atual. Em 2016, dominou o um lado, se Trump, como ele disse, deixar de lado a Otan e
Palais Tokyo, em Paris, com uma exposição fotográfica lou- investir menos em guerras, será ótimo. Perigoso era George
vada pela crítica. Na semana passada, fez uma conferência Bush, que provocou uma tragédia no Iraque. Barack Obama
no ciclo Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre, onde já foi mais parcimonioso. Trump será perigoso se retomar o
criticou intelectuais franceses famosos como Jean-Paul Sar- comportamento tradicionalmente belicista dos republicanos.
tre, Albert Camus, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Jacques Se não fizer isso, poderá não se sair mal.
Lacan e Michel Foucault – para ele, obscuros, vazios e in-
compreensíveis. Nesta entrevista a ÉPOCA, Houellebecq ÉPOCA – A política o fascina tanto quanto a literatura?
fala sobre literatura, política, religião, sexo, intelectualidade Houellebecq – A política pode ser matéria da literatura. Eu
e, claro, de Donald Trump. Ateu, Houellebecq persevera a usei em Submissão. Meu interesse por ela, no entanto, é
num paradoxo: sem Deus, a humanidade não tem salvação. bastante variável. Há épocas em que acompanho muito o s
56 I ÉPOCA I 14 de novembro de 2016
PROVOCADOR
O escritor Michel
Houellebecq. “O
que me interessa
na política é o
aspecto tático,
não o conteúdo”
14 de novembro de 2016 I ÉPOCA I 57
DEBATES E PROVOCAÇÕES
Marcelo Moura
ÉPOCA – Como o senhor se sente a respei- não. Não sabemos. Uma coisa foi escutar a
to das consequências da eleição de Donald retórica violenta de Trump durante a cam-
Trump para a economia brasileira? panha. Outra coisa será ver suas ações como
David Fleischer – Eu me sinto cético e um presidente. Só em janeiro vamos descobrir as
pouco negativo. Um grande problema é a re- diferenças entre o discurso e a prática.
lação comercial. Trump pretende aumentar
tarifas de importação. Pretende forçar empre- ÉPOCA – Durante a campanha, Trump prati-
sas americanas a nacionalizar sua produção e camente não falou sobre o Brasil ou a Amé-
investir menos no exterior. Isso terá um efeito rica do Sul. Isso é bom ou ruim?
muito forte contra o México, mas pode afetar Fleischer – Trump se concentrou em falar –
o Brasil também. no caso, falar mal – do México. Não falar da
América Latina, de uma certa maneira, é uma
ÉPOCA – Por que a briga de Trump com o boa notícia. É um sinal de que não pretende
México é ruim para o Brasil? cortar atividades com o Brasil.
Fleischer – O Brasil firmou com o México
um acordo de comércio de automóveis e au- ÉPOCA – Caso os Estados Unidos realmente
topeças. Se os americanos frearem a impor- dificultem o comércio com a América Lati-
tação de produtos mexicanos, o México será na, o Brasil ganharia espaço para conquistar
forçado a frear, também, sua importação de mercados no continente?
produtos e subprodutos brasileiros. Fleischer – Na teoria, sim. Na prática, a Chi-
na é que tem aproveitado o vácuo deixado pe-
ÉPOCA – Trump sugeriu rever tratados inter- los americanos. Nas últimas duas décadas, os
nacionais de livre-comércio. Como o Brasil governos Bush e Obama deixaram a América
não participou da maioria desses tratados, Latina um pouco de lado. Os chineses ocupa-
passaria a competir em melhores condições ram bastante coisa no comércio, nas relações
contra os antigos signatários dos acordos? políticas e nos investimentos.
Fleischer – Não assinamos tratados gerais,
mas temos vários acordos. Acordos de ex- ÉPOCA – Trump sugeriu aumentar as taxas
portação de açúcar, de aço e de carne, além de importação de produtos chineses. Isso
de outros tantos negociados na Organização pode favorecer os exportadores brasileiros?
Mundial do Comércio (OMC). Trump pode Fleischer – Dependendo do produto, pode fa-
querer cancelar essas coisas. De concreto, ele vorecer. Os Estados Unidos foram inundados
quer cancelar o Nafta (com México e Cana- de manufaturados chineses. Se Trump dificul-
dá), além de acordos de livre-comércio com tar o comércio com a China, pode abrir espaço
a América Central. Não sabemos qual será a no mercado americano para os produtos brasi-
relação dele com a OMC. Se vai respeitar ou leiros. Os produtores brasileiros teriam melho-
62 I ÉPOCA I 14 de novembro de 2016 Foto: Ruy Baron/Valor/Agência O Globo
Quando ameaça fechar
o mercado americano
a produtos da
China e do México,
Trump pode favorecer
os manufaturados
brasileiros – mas
prejudicar a exportação
de matérias-primas
res condições no mercado externo, mas piores ÉPOCA – Ao mesmo tempo que promete au- David Fleischer,
condições no mercado interno. Barrados nos mentar o gasto com obras públicas, Trump brasileiro nascido nos
Estados Unidos, os chineses aumentariam seu promete cortar impostos. Para financiar essa Estados Unidos, é doutor
apetite pelo mercado brasileiro. expansão, os Estados Unidos precisarão em ciência política pela
atrair mais capital externo? Universidade da Flórida
ÉPOCA – Como as sobretaxas prometidas Fleischer – Sim. Não vejo outro jeito. e professor emérito da
por Trump podem afetar a exportação de Universidade de Brasília
matérias-primas do Brasil? ÉPOCA – Uma alta na taxa de juros dos Esta-
Fleischer – Muitas matérias-primas que o dos Unidos levaria embora investimentos que
Brasil exporta não têm muita acolhida nos hoje estão no Brasil?
Estados Unidos. Soja e aço são dois exem- Fleischer – Sim. O Federal Reserve (Fed), o
plos. Os americanos são grandes produtores. Banco Central americano, já sinalizou que
Quem compra bastante do Brasil é a China. vai aumentar os juros. Fizeram isso em de-
Os chineses passariam a comprar menos, zembro do ano passado. Esperava-se que
caso percam acesso ao mercado americano. É aumentassem de novo durante o ano, mas
importante lembrar que Trump não tem au- não aconteceu. Certamente, aumentarão na
tonomia para aumentar sozinho as taxas de reunião de dezembro. Juros mais altos nos
importação. Isso precisaria da aprovação do Estados Unidos estimulam a valorização do
Congresso. Existe o lobby das empresas locais, dólar e realmente podem tirar do Brasil in-
interessadas em um mercado mais fechado. vestimentos estrangeiros.
Mas também existe o lobby de outros grupos,
interessados em produtos mais baratos. O ÉPOCA – Que setores na economia brasileira
aumento de taxas de importação não é uma podem perder com uma fuga de dinheiro para
questão resolvida. os Estados Unidos?
Fleischer – Nenhum em especial. Esses in-
ÉPOCA – Trump diz que pretende aumentar vestimentos voláteis estão mais no mercado
os investimentos em infraestrutura nos Esta- financeiro. É capital especulativo. Não é in-
dos Unidos. Isso é bom para o Brasil? vestimento direto.
Fleischer – Isso é bom. De maneira direta,
as empreiteiras e os fornecedores brasileiros ÉPOCA – A eleição de Hillary Clinton teria
podem participar das frentes de obras. De sido melhor para o Brasil?
maneira indireta, brasileiros exportadores de Fleischer – Acho que sim. Hillary e o marido,
manufaturados podem se beneficiar de um Bill Clinton, conhecem o Brasil muito bem. O
aquecimento da economia americana. Obras governo Trump, até agora, é uma grande in-
públicas são uma forma rápida de gerar em- certeza. Muitas de suas promessas dificilmente
pregos e estimular o consumo. serão cumpridas.
14 de novembro de 2016 I ÉPOCA I 63
StatuS:
em um caso
sério com
a rainha
das ovelhas
negras.
Nas livrarias e em e-book
www.globolivros.com.br
IDEIAS
D E B AT E S
E PROVOCAÇÕES
Ao ameaçar China e México, o novo presidente
dos Estados Unidos ajuda ou atrapalha nossos interesses?
Foto: Mark Wilson/Getty Images 14 de novembro de 2016 I ÉPOCA I 61
DEBATES E PROVOCAÇÕES
Marcelo Moura
ÉPOCA – Como o senhor se sente a respeito nos econômico, político e retórico, será buscar
das consequências da eleição de Donald Trump uma compensação com o Brasil.
para a economia brasileira?
Roberto Mangabeira Unger – Vejo com oti- ÉPOCA – Trump sugeriu rever tratados inter-
mismo. A ascensão de Donald Trump pode sig- nacionais de livre-comércio. Como isso afeta
nificar uma grande oportunidade para o Brasil. nossa balança comercial?
Mangabeira – Trump começa com um ceticismo
ÉPOCA – Que oportunidades a eleição de em relação à agenda anterior, pautada por gran-
Trump abre ao Brasil? des projetos de integração comercial. Portanto,
Mangabeira – Trump chega ao poder sem uma sem nenhum interesse em ressuscitar o projeto
visão consolidada em relação à América Latina da Alca (Aliança de Livre Comércio das Américas).
e, especialmente, ao Brasil. Há um grande vá- Isso é muito importante para nós, porque aquele
cuo. Um vazio. Houve uma discussão acalorada projeto era um obstáculo à construção de rela-
em relação ao México, mas essa discussão não ções entre Brasil e Estados Unidos. A tendência
predetermina a política em relação ao Brasil ou de Trump, na América Latina, será ouvir ou pro-
à América Latina em geral. Os democratas e o por acordos específicos. Nos debates da campa-
grupo em volta de Hillary Clinton tinham uma nha eleitoral sobre os acordos comerciais, Trump
visão consolidada. Uma visão que nos colocaria mostrou-se preocupado com a desindustrializa-
em posição subalterna, como uma espécie de ção dos Estados Unidos. Mas não teve nenhu-
linha auxiliar dos Estados Unidos. É muito me- ma posição firmada, por exemplo, em relação à
lhor para nós ter esse vazio do que ter a diretriz abertura dos mercados agrícolas. Ou em relação
anterior, do governo Obama. Trump representa a colaborações de qualificação tecnológica.
uma volta aos problemas internos do país. Uma
tendência a atenuar um engajamento agressivo ÉPOCA – Preocupado em preservar a indústria
dos Estados Unidos no mundo. americana de manufaturados, Trump não traria
dificuldade para as matérias-primas que domi-
ÉPOCA – Os ataques de Trump ao México, nam a pauta brasileira de exportações?
durante a campanha, favorecem o Brasil? Mangabeira – É prematuro dizer que não tra-
Mangabeira – Temos todo o interesse em que rá dificuldade. O que se pode dizer é que não
os Estados Unidos evitem ou superem tensões há nenhum obstáculo a priori. Não há uma
com o México. Mas, friamente, é preciso obser- visão consolidada. Portanto, há uma oportu-
var que a dificuldade da relação com o México nidade. Nós deveríamos aproveitar essa opor-
cria uma oportunidade para o Brasil. Essa é a tunidade com iniciativas e propostas nossas,
lógica das coisas. Havendo uma dificuldade na em vez de esperar passivamente uma iniciati-
relação com o México, que levará muito tempo va do novo governo. Trump estará preocupa-
para ser superada, a tendência natural, nos pla- do com outras coisas.
64 I ÉPOCA I 14 de novembro de 2016
A principal causa de Trump,
evitar a perda de empregos
para a China, é também um
problema nosso. Devemos
aproveitar a ruptura na
política americana para
construir um projeto de
desenvolvimento com
os Estados Unidos
ÉPOCA – Trump sugeriu aumentar as taxas de Mangabeira – Claro. Devemos propor o que Mangabeira Unger
importação de produtos chineses. Isso pode nos interessa e construir uma nova relação. O é professor de filosofia
favorecer os exportadores brasileiros? Brasil é o país mais parecido com os Estados
Mangabeira – Trump tem problemas com a Unidos. Temos imensas afinidades. Mas o Brasil em Harvard (deu
China. É a segunda maior potência econômica praticamente não tem relação com os Estados aulas para Barack
no mundo, atrás dos Estados Unidos. Os deba- Unidos. Discutimos apenas questiúnculas co- Obama). Foi ministro de
tes a respeito da desindustrialização americana merciais. Não temos uma visão geopolítica com Assuntos Estratégicos
têm relação direta com a economia chinesa. O os Estados Unidos, apesar de isso ter sido tema
Brasil também tem problemas com os chineses. central do embaixador Rio Branco há 100 anos. do governo Lula
Nós não queremos ter com a China uma relação
neocolonial, de país desindustrializado exporta- ÉPOCA – Por que o Brasil raramente teve uma
dor de matérias-primas, como a relação que os parceria frutífera com os Estados Unidos?
chineses construíram com a África. De alguma Mangabeira – A política exterior brasileira
maneira, embora em patamar diferente, esse tem duas vozes tradicionais. Na primeira, típi-
nosso problema com a China é análogo ao pro- ca da esquerda, o governo se submete aos inte-
blema americano. Brasil e Estados Unidos preci- resses do rentismo financeiro, dentro do país,
sam conter a influência chinesa e construir com e tende a compensar essa rendição com um
a China outro tipo de relação. Uma relação em antiamericanismo retórico na política exterior.
que a China ajude a qualificar nossa produção A segunda voz usa a política exterior como um
industrial, em vez de manter um interesse em mercantilismo tacanho. Imaginamos que a ta-
nossa desindustrialização. refa da política exterior é vender nossos pro-
dutos. Temos de abandonar essas posições. A
ÉPOCA – Como Brasil e Estados Unidos podem política exterior não deve servir como um de-
combater a desindustrialização? partamento da UNE, mas também não é para
Mangabeira – O Brasil poderia propor um con- ser uma sucursal da Fiesp. Temos de desen-
junto de experimentos para o avanço tecnológi- volver, a partir dela, um projeto político sério.
co e o avanço da educação. Um projeto comum Essa é a oportunidade que nós temos agora.
de democratização de oportunidades e de capa-
citações, focado em experimentos concretos que ÉPOCA – Para aumentar investimentos e baixar
os dois países apoiariam. Uma iniciativa dessas impostos, os Estados Unidos precisarão atrair
seria recebida com interesse em Washington. financiamento. O Brasil perderá recursos?
Mangabeira – O governo Obama só teve uma
ÉPOCA – Estados Unidos e Brasil mantiveram estratégia de crescimento econômico: “Di-
uma relação fria na última década. A ruptura nheiro barato”. Chegou a um ponto insusten-
política criada pela eleição de Trump dá espaço tável. A taxa de juros deles vai subir. Isso era e
para recomeçar um diálogo? é inevitável. O Brasil não pode se apoiar nisso.
Foto: Alan Marques/Folhapress 14 de novembro de 2016 I ÉPOCA I 65
OBSERVADOR DA POLÍTICA
A vitória de Trump prova a capacidade americana
de trazer para o centro da cena política
aqueles que tinham ficado sem representatividade
Fernando Schüler Fernando Schüler Essa intuição está na tese da socióloga e
é cientista político, escritora feminista americana Arlie Russell
professor e doutor em oi curioso o papel protagonizado por parte da Hochschild, autora de Estranhos em sua pró-
filosofia, escreve sobre mídia e da opinião ilustrada global na eleição pria Terra (em tradução livre, ainda não pu-
análise política, economia de Donald Trump. O editorial do The New blicado no Brasil). Arlie se internou por cinco
e comportamento York Times, logo após o resultado, anunciou anos no interior da Louisiana, no extremo sul
brasileiro em ÉPOCA que os estúpidos eleitores americanos haviam“jo- conservador americano, em busca da América
gado os Estados Unidos no precipício”. Seu colu- profunda e de um modo de definir o sentimen-
nista e prêmio Nobel Paul Krugman entrou em to da nova “direita” americana. Sua definição,
uma espécie de transe apocalíptico, anunciando, ao final, veio na forma de uma imagem: uma
aparentemente sóbrio, uma recessão global, danos pessoa comum em uma fila, ao final da qual
irreparáveis para o clima, uma praga de gafanho- está o sonho americano. Ela trabalha duro para
tos e o fim do mundo tal qual o conhecemos. O chegar lá, respeita as regras e espera sua vez. De
festejado articulista John Carlin (El País) chamou repente, vê pessoas furando a fila, por todos os
os eleitores de Trump de “analfabetos”, disse que lados, e isso lhe produz um enorme mal-estar.
eles cometeram um“ato de irresponsabilidade cri-
minosa”, que Trump será um Cantinflas fazendo O mal-estar vem do ressentimento. Algo
papel de Calígula na decadência de Roma e que difuso, contra a ação seletiva dos governos, a
sua eleição coloca em xeque a democracia repre- proteção das “minorias”, o preconceito contra o
sentativa como ideal para a humanidade. “sulista atrasado”, a falta de firmeza do governo
Vi nisso tudo uma competição. Sendo Trump o diante do crime, da imigração ilegal, do lobby
grande inimigo público, mais virtuoso seria quem econômico. A sensação de que alguma coisa se
com mais força lhe cuspisse na cara. Não votaria perdeu e que os canais de representação polí-
em Trump, se fosse americano, mas me confesso tica não prestam mais.
sem ânimo para imaginar que aquilo que pen-
so expresse algum tipo de verdade. A vitória de Muita gente boa já havia colocado o dedo
Trump me parece, ao contrário da opinião corren- nessa ferida. O economista Branko Milanovic,
te, exatamente uma prova de autorrenovação da em seu conhecido “gráfico do elefante”, mostrou
democracia americana. Uma prova da capacidade como a globalização e a abertura econômica
de trazer para o centro da cena política aqueles foram positivas para a classe média dos países
que, por falhas previsíveis no sistema de represen- emergentes, ao mesmo tempo que relativamente
tação política, o sistema havia deixado para trás. negativa para a classe média dos países avança-
66 I ÉPOCA I 14 de novembro de 2016
dos. O trabalhador não especializado, incapaz Ao tema econômico soma-se o ingrediente cul- OUTRO LADO
de acompanhar a mutação tecnológica, que viu Manifestantes
empresas e empregos migrar para países perifé- tural. Trump representa a perfeita negação do po- protestam contra
ricos (leia mais em Da Redação, na página 12).
liticamente correto, a novilíngua contemporânea. a eleição de
Trump seguramente não leu as teses de Donald Trump nos
Hochschild e Milanovic, mas soube produzir uma A imagem do bilionário quase self-made man, Estados Unidos. A
narrativa para essas pessoas. E com isso tocou no
nervo exposto da sociedade americana. A narrati- que gosta de luxo, modelos, misses, junk food, globalização foi
va é simplória, grotesca até, mas funcionou. Nela, boa para as
a culpa de tudo surge dos acordos internacionais piadas de mau gosto e cassinos em Las Vegas. É
malfeitos em Washington, da liderança política classes médias
incompetente, da concorrência dos imigrantes como o sujeito que resolve elogiar Romero Britto dos países pobres,
ilegais, da invasão de produtos estrangeiros e da
gastança do governo com a Otan. em uma festa da Bienal de São Paulo. Quase in- e nem tanto para
os países ricos
Não acho que Trump acredite muito nessas suportável. Um pouco como é a democracia, esse
coisas. Ele sabe que o eleitorado tem memória
curta, que há mil maneiras de reinterpretar pro- regime por vezes detestável, que reserva espaço
messas de campanha quando se está no governo
e que há muita gente para pôr a culpa, a começar demais para gente que não toleramos.
pelo Congresso, se alguma coisa der errado. É um
tipo pragmático. E é esse pragmatismo que pode- Quem se deu conta dessas coisas foi Obama.
rá fazer de seu governo algo bastante diferente do
que anunciou na campanha. Para o bem de todos. Seu discurso no dia seguinte às eleições é uma
obra-prima. “Por vezes você perde um argu-
mento, por vezes você perde uma eleição”, diz
ele. E então você pode “aprender com seus pró-
prios erros”. Hillary disse algo parecido quando
pediu que todos dessem a Trump uma “mente
aberta e uma chance de liderar”. Vai aí o incrível
vigor da democracia americana. Esta mesma
que manterá Trump em rédea curta. E que pa-
rece tão pouco compreendida por aqueles que
já sabem de quase tudo. u
Foto: Eduardo Munoz/Reuters 14 de novembro de 2016 I ÉPOCA I 67
E N T R E V I S TA JAN-WERNER MÜLLER
ÉPOCA – O que há em comum entre o movimento po- ÉPOCA – A eleição de Trump será um combustível para
pulista de esquerda, ocorrido na América Latina com os partidos conservadores de outros países?
a eleição de Hugo Chávez e Evo Morales, e o resultado Müller – Isso é o que eles querem que todos acreditem.
da eleição americana?
E propagam essa vitória como um sinal de que esse é o
Müller – Populista é alguém que se proclama como o único caminho. O que pode fazer a diferença é menos a imagem
representante legítimo do povo e é contra o pluralismo. de Trump e mais o risco de uma certa mensagem política
Chávez foi um populista. Trump durante a campanha se disseminar. Essa mensagem diz que o candidato que
foi um populista – e acho que o que temos de observar e se alinhar a um movimento de identidade branca pode
cuidar é que, se as condições forem favoráveis, se ele tiver vencer. Esse é um cenário mais perigoso.
poder suficiente e a maioria ao lado dele, ele governará
como populista, o que significa que tentará silenciar o ÉPOCA – Até que ponto o discurso de Trump é mais
pluralismo e qualquer tipo de oposição, como fez Chávez. nativista do que nacionalista? Quais as consequências
disso?
ÉPOCA – Até que ponto o fortalecimento dos partidos Müller – Essa é uma questão importante. Há claramen-
da ala direita extremista se deve ao desequilíbrio pro- te no discurso de Trump um componente muito forte
vocado pela globalização?
de nativismo. Ele atraiu pessoas que concordam com
Müller – Há claramente algo acontecendo em vários países. a ideia de que os filhos legítimos da terra valem mais
Há um conflito entre aqueles que querem mais abertura e que outras pessoas. Isso vai muito além de qualquer
aceitam a transformação da cultura e da economia vinda tipo de nacionalismo americano convencional porque
da globalização e os que querem permanecer ou se tornar traz componentes de racismo e supremacia branca. Esse
mais fechados. Esse é o tipo de disputa que alimenta o na- pensamento nunca esteve tão representado no poder,
cionalismo. Mas, novamente, não devemos desde o início do século XX. No Reino
pular para a conclusão de que agora temos Unido, fomentou uma série de episódios
de combater a globalização. Globalização racistas e homofóbicos. Isso deve ocorrer
não é como fé, que se tem ou não se tem. Se Trump com os Estados Unidos também. Basica-
Não é como um pacote inteiro de reformas tiver poder, mente, a eleição de Trump dá o sinal de
que podemos aceitar ou rejeitar. Há muitas ele silenciará que é OK dizer às pessoas que elas não
gradações e possibilidades para cada país. a oposição, pertencem realmente àquele país. Isso
A globalização não deve ser como optar terá consequências no nível da sociedade
por tudo branco ou tudo preto. O Bre- e individual.
xit (a decisão do Reino Unido de deixar a como fez ÉPOCA – Pode-se ter esperança de que
União Europeia) pode ser lido como um Chávez” as ações de Trump sejam muito mais
movimento contra a globalização, mas equilibradas do que seu discurso?
agora, quando olhamos para os detalhes, Müller – Infelizmente temos muito pou-
deparamos com o fato de que há uma série
de aspectos associados à globalização, como o acesso ao ca clareza sobre o que será o programa nacional. Eu só
mercado, a liberdade de ir e vir etc., que mesmo os maiores seria cuidadoso também com essa expectativa de que,
defensores do Brexit não querem perder. agora que chegou lá, ele será normal, que as barbari-
dades foram só para levá-lo até lá. Ele tem sido bem-
ÉPOCA – O que Donald Trump e a francesa Marie Le sucedido com seu jeito de fazer as coisas. Não há nada
Pen têm em comum?
que faça mais sucesso do que o próprio sucesso. Ele já
Müller – Ambos são populistas, inegavelmente. Ambos di- disse que não respeita as instituições. Eu não gostaria
zem que somente eles representam o povo e qualquer um de ser apocalíptico e alarmista, mas eu não vejo por que
que não concorde com esse ponto não faz parte do povo. tudo vai mudar agora que ele venceu, se ele venceu com
A diferença é que Trump foi abertamente sexista e racista, essa postura. Pessoalmente, eu nunca vi alguém de 70
enquanto Le Pen trabalha no sentido de não demonizar anos que mudou totalmente seu caráter depois de ter
o discurso contra nenhum grupo. O importante é ter em ganho mais poder.
mente duas coisas. Primeiro que nenhum partido conserva-
dor do mundo pavimentou o caminho para o surgimento ÉPOCA – Trump pode fomentar de alguma forma ações
de um Trump, como fez o Partido Republicano americano. terroristas?
Não acho que teremos outro Trump. Agora, sobre governos Müller – Os terroristas querem mais homofobia, mais
populistas, outro ponto é que eles não nascem de partidos racismo e o ódio pelos muçulmanos disseminado em
extremistas – mas, sim, de partidos normais que se transfor- vários países. Então, nesse sentido, eles devem estar mui-
mam. Observamos esse movimento com Theresa May, no to satisfeitos com a eleição de Trump. Mas é importante
Reino Unido. Sabemos o que pensa Le Pen. O interessante frisar que o Estado Islâmico e outros grupos não precisam
é se perguntar o que pensa um Nicolas Sarkozy. de Trump para agir. u
70 I ÉPOCA I 14 de novembro de 2016
HELIO GUROVITZ
Trump é apenas um
populista latino-americano?
A eleição de Donald Trump trouxe ao comando da na- que criticam nas elites que dizem combater. Implementam
ção mais poderosa da Terra um fantasma despertado também políticas econômicas erradas, contraproducentes.
pela crise financeira de 2008. Não o racismo, o preconceito “Restringir a imigração, impor tarifas sobre produtos im-
religioso, a xenofobia ou a misoginia, pechas que tentaram portados e penalizar empresas que investem no exterior são
associar a Trump na campanha. Não faz sentido ver nele medidas que, se adotadas pelo governo americano em 2017,
um novo Hitler ou Mussolini. Mas Trump, apesar de seus quase certamente reduzirão o crescimento e o emprego”,
discursos contra os mexicanos, encarna um espectro bem afirma Ferguson. “Foi essa a experiência latino-americana
conhecido na América Latina, talvez ainda mais pernicioso: – e poucas regiões do mundo tentaram o experimento po-
o populismo. “Populistas não são fascistas”, diz o historia- pulista com mais frequência.”
dor Niall Ferguson.“Preferem guerras comerciais a guerras Ele elenca cinco fatores que, ao longo da história, levaram
reais; muros nas fronteiras a fortificações.” O populismo vai ao populismo: imigração, desigualdade, percepção de corrup-
hoje da Venezuela de Maduro à Hungria de Orbán, da Gré- ção nas elites, crise financeira e o surgimento de demagogos.
cia do Syriza à Turquia de Erdogan, da França Os cinco estão hoje presentes nos Estados Unidos e
de Le Pen ao Reino Unido de Farage, do nova- num mundo onde a globalização tirou milhões da
iorquino Occupy Wall Street ao espanhol Po- pobreza, mas deixou outros sem perspectiva. Isso ex-
demos. O que permite incluir Trump em grupo plica em parte o êxito de Trump. Müller levanta ainda
tão diverso? Dá para definir algo aparentemente outro fator: a dificuldade de lidar com populistas
vago como “populismo”? quando começam a ganhar força. Não basta tratá-
Não se trata apenas de rejeição à globalização, los de “deploráveis”, criticar sua posição econômica
que levou embora os empregos e trouxe mais como “ingênua” ou chamar sua opinião de “conser-
imigrantes para competir. Tampouco de ressen- vadora”, “preconceituosa” ou “xenófoba”. É um erro,
timento, frustração ou raiva contra os políticos, LIVRO DA SEMANA diz Müller, relegar à posição de pária quem foi legi-
os banqueiros, os empresários e a imprensa. Po- timamente eleito, mesmo que com ideias nocivas.
pulismo não é a revolta da “maioria silenciosa” What is populism? É preciso estabelecer algum diálogo, mas é preciso
contra as “elites”.“Não é uma patologia causada Jan-Werner Müller criticá-los pelo que são: um risco ao próprio regime
por atores irracionais”, diz o cientista político University of democrático, não apenas a uma ou outra visão eco-
Jan-Werner Müller, da Universidade Princeton, Pennsylvania Press nômica ou comportamental. “Falar com populistas
em What is populism? (O que é populismo?). Nem não é o mesmo que falar como populistas”, afirma.
2016
todos os que criticam as elites são populistas. 136 páginas Na imagem do cientista político Benjamin
US$ 20
Apenas aqueles que se apresentam como porta- Arditi, os populistas são como um convidado in-
dores de retidão moral. Só quem se diz o verdadeiro repre- conveniente que bebe demais. Tem modos rudes, não se
sentante do “povo”. “Populistas só querem ver confirmada comporta à mesa e começa a dar em cima da mulher do
aquela que já sabem ser a vontade do povo”, diz Müller. A anfitrião. “Mas também pode deixar escapar a verdade so-
definição de “povo” varia segundo critérios étnicos, sociais bre uma democracia liberal que esqueceu seu ideal funda-
ou religiosos – “é uma entidade moral, homogênea, que dor de soberania popular”, diz Müller. “O populismo de-
não pode errar”. Uma característica não muda: a rejeição veria forçar os defensores da democracia a pensar melhor
ao pluralismo, inerente à democracia. Apenas quem faz sobre as atuais falhas no sistema de representação.” Por
parte do tal “povo” pode participar. Quem está fora tem isso, não adianta apenas tratar os eleitores de Trump como
de ser excluído. O que importa não é o debate livre. En- se fossem movidos por alguma doença. Goste-se ou não
quanto eleições e instituições confirmam a visão populista, deles, são cidadãos livres como quaisquer outros. Se não
são mantidas. Quando não, a Constituição é reescrita para praticarem agressões, não violarem a lei, nem ofenderem
atendê-la, como na Venezuela e na Hungria. as instituições, têm todo direito de participar delas – por
Governos populistas são caracterizados pela ocupação mais que lhes faltem boas maneiras. É, afinal, o convívio
em massa do estado por apaniguados, pelo clientelismo, civilizado com as diferenças que define a democracia. u
pela corrupção e por tentativas de controle da imprensa e
da sociedade civil – males comuns na América Latina. A Helio Gurovitz é jornalista [email protected] (e-mail)
ironia é que os populistas acabam pondo em prática tudo o @gurovitz (Twitter) http://g1.globo.com/mundo/blog/helio-gurovitz/ (web)
14 de novembro de 2016 I ÉPOCA I 71
E N T R E V I S TA
JAN-WERNER MÜLLER
“Trump é algo sem
precedentes nas
democracias modernas”
O cientista político diz que o presidente eleito dos Estados
Unidos não respeita instituições e pode disseminar a
perigosa mensagem da supremacia branca para o mundo
Flávia Yuri Oshima
O escritor belga Jan-Werner Müller considera a elei- de um Trump, que já disse que não confia nas intituições.
ção do republicano Donald Trump à Presidência Trump é o coroamento dessa falta de confiança.
dos Estados Unidos uma ameaça real à democra-
cia. Segundo o cientista político formado pela Universida- ÉPOCA – A eleição de Trump ameaça a democracia?
de Princeton, Trump foi um candidato populista durante Müller – Eu acredito que sim. Um grupo de republicanos
toda a campanha. Para ele, populistas são contra o plura- tem mostrado o desejo de basicamente manipular insti-
lismo de opiniões e a oposição, antíteses da democracia. tuições como o goveno federal, a Suprema Corte, o FBI, os
Não há razão para acreditar, segundo Müller, que Trump direitos humanos, a liberdade de expressão, o respeito pela
mudará no exercício do poder – apesar do discurso mais imprensa e o pluralismo. Agora temos alguém no coman-
equilibrado na comemoração da vitória. Para Müller, não do que tratou a imprensa de uma forma sem precedentes
há chances de outro Trump surgir em outro lugar do mun- na história moderna da democracia americana. Trump já
do hoje; mas ele influenciará partidos de extrema-direita, mostrou que não respeita a democracia americana.
que já usam sua vitória como propaganda para suas pró-
prias propostas. “O perigo é a disseminação do movimen- ÉPOCA – O senhor concorda com a teoria de que o Cin-
to de supremacia branca”, diz ele nesta entrevista a ÉPOCA. turão da Ferrugem e o homem branco de baixa renda
“Trump é algo sem precedentes na história política moder- foram os responsáveis por esta eleição?
na de países democráticos.” Müller acaba de lançar What
is populism, ainda sem tradução (leia na página 71). Müller – É difícil negar a tragédia desta eleição e que
ÉPOCA – O que a eleição de Trump representa? Trump tenha conseguido o apoio do nacionalismo bran-
Jan-Werner Müller – Tem havido uma crescente polariza-
ção política nos Estados Unidos há mais de duas décadas. co. Dito isso, eu resistiria ao reducionismo de ser essa
Há uma perda de confiança nas instituições. Uma série
de problemas éticos pavimentou isso, como o escândalo a explicação para sua eleição. A sociedade tem muita
Halliburton, no governo de George W. Bush na década
de 2000 (a empresa, que fora presidida pelo vice Dick Cheney, necessidade de explicações rápidas, baseadas em uma
obteve contratos superfaturados durante a Guerra do Ira-
que). Desde então, poderíamos listar vários episódios, motivação clara. Não é assim. Tanto entre democratas
com o FBI e com todo tipo de burocracia, que minaram
a confiança. Esse movimento contribuiu para a ascensão quanto entre republicanos, o grupo é muito heterogêneo.
Lembre-se de que a maioria dos votantes não votou em
Donald Trump, mas em Hillary Clinton. Esse é o mesmo
tipo de reducionismo que levou as pessoas a relaxar ao
pensar que latinos, negros e mulheres solteiras dariam
a vitória certa a Hillary. O reducionismo empobrece o
debate e mina qualquer possibilidade de reconhecimento
do que estamos passando. s
68 I ÉPOCA I 14 de novembro de 2016 Foto: Casper Holmenlund Christensen/Polfoto
DEFINIÇÃO
O cientista político
Jan-Werner Müller.
“Populista é alguém
que se proclama
como legítimo
representante
do povo e é contra
o pluralismo”
14 de novembro de 2016 I ÉPOCA I 69
VIDA
MENTE
A B E R TA
SDOENHHAOVSANEAINSÔNIAS
Leonardo Padura veio ao Brasil para lançar a tetralogia
detetivesca Estações Havana. Ele conta que dormiu mal na
madrugada em que Donald Trump se tornou presidente
72 I ÉPOCA I 14 de novembro de 2016
o que há na cabeça dele, debaixo da- secara e a ilha submergiu numa pro-
quele cabelo tão esquisito.” A sombra
do muro que Trump ameaça erguer ao funda crise econômica –, mas aprovei-
norte do México distraiu muita gente
da lembrança de outro muro que veio tou os casos de Conde para compor
abaixo nesta mesma data – em Berlim,
em 1989. Naquele ano, um Bush go- uma crônica da vida cubana em meio à
vernava os Estados Unidos, o Império
Soviético balançava e Padura esboçava escassez de material e à sujeira das ruas
as primeiras aventuras de Mario Conde,
o detetive de seus romances. de Havana, onde uma mesa farta era
Padura veio ao Brasil para lançar a privilégio de quem tinha os contatos
tetralogia Estações Havana, que reúne as
aventuras de Conde ao longo do atri- certos. Em Passado perfeito, publicado
bulado ano de 1989. Além de reedições
dos romances Passado perfeito, Ventos no México em 1991, o detetive investi-
de quaresma e Máscaras, a Boitempo
também publica Paisagem de outono, ga o sumiço de um burocrata corrupto
que permanecia inédito em português.
As cenas mais emblemáticas de Paisa- que posava de comunista exemplar. O
gem de outono se passam um mês antes
da queda do Muro de Berlim, no dia terceiro volume da tetralogia, Másca-
9 de outubro, quando o Furacão Félix
aterrorizou os cubanos e Conde aban- ras, denuncia a repressão aos homos-
donou a polícia. Conde, porém, tem de
resolver um último caso antes de se des- sexuais, chamados por Fidel Castro
pedir de seu cubículo no Departamento
de Informação da Central de Polícia: o de gusanos (vermes, na tradução do
corpo de um ex-burocrata castrista que
se exilara em Miami fora encontrado espanhol), o mesmo adjetivo reserva-
por pescadores numa praia de Havana.
do àqueles que partiam para o exílio
Quando Conde apareceu, o gênero
policial era bastante popular em Cuba ensolarado em Miami.
e representava 40% da produção edi-
torial da ilha. Em 1972, o Ministério “Mario Conde foi um presente que
do Interior promoveu um concurso
para premiar romances policiais com- a literatura me deu”, diz Padura. “En-
postos segundo as miseráveis diretrizes
estéticas do realismo socialista, com contrei um personagem que me per-
detetives patriotas que não falassem
palavrão. Padura queria distância des- mite expressar minhas visões sobre a
sa literatura panfletária: Conde é um
beberrão boca suja e melancólico, que complexa realidade cubana e também
se desencantou com o sonho do so-
cialismo tropical. “Quando comecei a sobre os problemas da condição huma-
escrever Passado perfeito, não sabia di-
reito aonde aquele romance chegaria, na.” Escritor e personagem têm muito
mas queria que tivesse um caráter mais
social que policial”, afirma Padura. “E em comum: envelheceram juntos e são
não apenas porque eu sou obcecado
pelo social, mas também por ser inca- sexagenários recentes. Conde deixou a
paz de armar uma boa trama policial.
Era uma forma de expiar meu defeito.” polícia no dia do aniversário de Padura
Padura não sabia se seus livros se- (que também é aniversário de morte
riam publicados em Cuba, pois nem
papel havia por lá – a mesada soviética de Ernesto “Che” Guevara). Ambos
cresceram no bairro de La Víbora, em
INSONE Havana, e veneram os mesmos heróis
O escritor cubano
Leonardo Padura literários, como Ernest Hemingway
em Madri, em 2015.
(1899-1961), que viveu em Cuba. No
“Quando li que
Donald Trump romance Adeus, Hemingway, um Conde
havia triunfado,
senti angústia” ainda menino avista o escritor america-
NRuan de Sousa Gabriel no saltar de um barco de pesca.
a manhã da última quarta-
feira, dia 9, o escritor cubano No entanto, o maior parentesco lite-
Leonardo Padura acordou de
sonhos intranquilos e descobriu que rário de Padura é com outro prosador
Donald Trump era o novo presiden-
te dos Estados Unidos. “Abri os olhos ianque: John Updike (1932-2009), que
pouco antes das 6 da manhã e não con-
segui voltar a dormir. Digitei ‘eleição nem sequer escrevia histórias policiais.
americana’ no Google e, quando li que
Trump havia triunfado, senti uma an- O herói dos romances de Updike é
gústia, uma opressão”, disse Padura a
ÉPOCA poucas horas depois de anun- Harry “Coelho” Armstrong, um ameri-
ciada a vitória do candidato republi-
cano. “Trump é imprevisível! Não sei cano médio – branco, protestante e an-
gustiado – que, da prosperidade tediosa
dos subúrbios, vê seu país se transformar
ao longo do século XX. Assim como
Conde, Coelho Armstrong percorre
toda uma tetralogia, na qual Updike
redige uma crônica da vida americana
do ponto de vista de uma classe média
branca sem maiores pretensões inte-
lectuais – como aquela que elegeu Do-
nald Trump, o presidente imprevisível,
de cabeleira espalhafatosa, que tirou o
sono de Padura. u
Foto: Emilio Naranjo/EFE 14 de novembro de 2016 I ÉPOCA I 73
ÉPOCA EM AÇÃO
PRÊMIO SUADO site, num total de 10,8 milhões de re-
Equipe da gistros. A previsão é que 2016 termine
com 12 milhões de reclamações. “Na
Anhanguera, crise, o consumidor fica mais cauteloso,
premiada pelo mas não mede esforços por um atendi-
atendimento. Lidar mento de melhor qualidade”, afirma
com o público na Gisele Paula, diretora de relacionamen-
crise é mais difícil to do ReclameAQUI.
Menos consumo, O cliente com menos dinheiro e
mais reclamações menos paciência vem exigindo esforço
extra das empresas no atendimento. As
A crise comprimiu a renda do brasileiro companhias que mais se destacaram
e o deixou mais exigente na hora de comprar nesse quesito foram reconhecidas pela
pesquisa As Melhores Empresas para
A cesso restrito a crédito, juros MAIS CRÍTICO o Consumidor 2016. A premiação
elevados e desemprego alto. O ocorreu em 7 de novembro, em São
cenário leva o consumidor a O número de reclamações Paulo. Foram 85 vencedoras, eleitas em
comprar menos e pensar mais antes de registradas pelos usuários uma votação popular com mais de 4,5
cada gasto. O consumo das famílias, do ReclameAQUI milhões de consumidores, número re-
fator relevante no crescimento da eco- cresce ano a ano corde para a disputa.
nomia nos anos 2000, vem recuando há
seis trimestres. As vendas do varejo en- Em milhões de reclamações 1,8 A fabricante de brinquedos Estrela e
colheram 6,6% nos últimos 12 meses 3,7 o grupo educacional Anhanguera fo-
– a pior taxa já calculada. Mas comprar 2011 5,1 ram as duas principais vencedoras da
menos não leva o consumidor a recla- 2012 9,2 noite. A primeira foi eleita Supercam-
mar menos. Com o poder de compra 2013 10,9 peã de Atendimento e a segunda ficou
comprometido, o brasileiro se torna 2014 12,0 com o título de Equipe Campeã de
mais exigente. É o que mostra o levan- 2015 Atendimento. “Nosso aluno fica cada
tamento do site ReclameAQUI. 2016(1) vez mais exigente. Procuramos acom-
panhar isso, adotando novas tecnolo-
Entre 2014 e 2015, houve aumento (1) Previsão gias, melhorando os métodos de ensino
de 18% nas queixas registradas pelo Fonte: ReclameAQUI e criando um atendimento mais seg-
mentado”, afirma Lilian Bassani, geren-
74 I ÉPOCA I 14 de novembro de 2016 te de relacionamento da Anhanguera.
O humor dos consumidores não
deve melhorar tão cedo, se depender da
volta do crescimento. “A economia de-
verá se recuperar no ano que vem, mas
não na velocidade que gostaríamos. A
crise é profunda, afetou todos os seg-
mentos”, diz Ezidio Roberto Maran,
superintendente executivo do Bradesco
– que venceu na categoria bancos. “O
cenário atual é desafiador. Talvez já te-
nha sido mais, mas ainda é desafiador”,
afirma Carlos Padilha, diretor da B2W
Digital, que detém as marcas America-
nas.com, Submarino, Shoptime e Sou
Barato. Ele afirma se manter empolga-
do com as expectativas do país. En-
quanto o bom humor não volta, todo
profissional (assalariado ou autônomo)
que lide com cliente deve se preparar
para aprender com a “consultoria” dada
pela crise. Em períodos assim, o cliente
examina com lupa qualquer produto
ou serviço em que gaste dinheiro. u
Foto: Emiliano Capozoli/ÉPOCA
[email protected]
eEnatersecorsitaossos Voz de
protesto
Muito ligada a Chico
Buarque no começo da
carreira, por causa do
romance que eles viveram,
Thaís Gulin segue em
processo de desassociação
da imagem do cantor e
mostra que tem muito a
dizer com o novo show
que vai virar DVD. “Chico
é muito genial, melhor
compositor do Brasil, ao
lado de Caetano e Gil,
mas, musicalmente, a
gente é bem diferente.
Meu som é tão de agora.
Quero provocar as pessoas,
de forma pura e inteira”,
explica a cantora, que
decidiu incluir uma música
protesto no set list. “Chama-
se ‘Baile de favela (em
resposta)’, um contraponto
ao famoso funk, que ouvi
na época daquele estupro
coletivo. É uma visão
feminista. Estamos tendo
mais consciência das coisas
do que há três anos. Não
consigo falar de outra coisa
que não seja liberdade.”
Ana Carolina já tinha plantado uma falava, me escondia atrás do violão.” Ana
árvore, mas lhe faltava escrever um livro Carolina conta também outros casos,
e ter um filho. Um dos planos ainda vai como o de um acidente de carro em 2001.
demorar. “Preciso congelar mais óvulos “Capotei seis vezes e levei 20 pontos na
para uma futura inseminação artificial, é cabeça. Estava voltando de um ensaio
preciso ter uns dez. O momento parece cansada e cochilei. Fiquei três meses numa
que é nunca, mas estou chegando lá, cadeira de rodas, fazendo shows sentada.”
uma hora vai rolar”, explica a cantora, Cheia de planos para 2017, ela promete
que lança seu primeiro trabalho literário, uma incursão pelas pistas, terreno que
Ruído branco, em que reúne poesias e ainda não desbravou na carreira. “Fiz
prosas autobiográficas. “Revisitei minha um remix para uma poesia, uma coisa
infância. Gostava de brincadeira de bem eletrônica. Achei libertador. Estou
menino, era muito tímida, quase não a fim de me meter mais para esse lado.”
76 I ÉPOCA I 14 de novembro de 2016
Com Acyr Méra Júnior e Guilherme Scarpa
Arte à carioca
Alex Gabriel, Márcia Fortes e Alessandra
D’Aloia, do grupo paulistano Fortes Vilaça,
estão de malas prontas para o Rio de
Janeiro. Eles lançarão no dia 20 a galeria
Carpintaria, no Jockey Clube carioca.
“Mas sem aquela cara de filial. Cada
espaço é um espaço. Sempre quisemos
participar da vida cultural do Rio, e
ocupar um polo cultural e gastronômico
veio muito a calhar”, afirma Alex. A
programação inicial tem artistas do calibre
de Adriana Varejão e Beatriz Milhazes.
“Temos previstas para elas exposições em
duetos e individuais”, explica Márcia. “A
Carpintaria é o nosso atestado de teimosia
diante da crise. Queremos é produzir
coisas boas para o carioca e o turista.”
Todas as mulheres
Todas as mulheres que Domingos de Oliveira amou – inclusive Leila
Diniz – reunidas numa só. Essa foi a missão de Sophie Charlotte no
novo longa-metragem de pegada autobiográfica do diretor, BR 176,
que estreia no dia 17. “Minha personagem é uma cara de pau, sedutora,
prafrentex. Para mim, foi uma honra e uma responsabilidade muito
forte”, afirma a atriz, que também canta em cena a música “Amado mio”.
“No filme, minha personagem se chama Gilda, como no clássico com a
Rita Hayworth. Fiz uma colcha de retalhos; me inspirei na minha avó,
que tinha unhas longas e vermelhas, muito cativante, e também em
Sophia Loren e Marilyn Monroe.” Sophie se prepara para a temporada
de divulgação do filme, mas avisa que ainda está de licença-maternidade
por causa de Otto, de 7 meses, fruto do casamento com o ator Daniel
de Oliveira. “Continuo amamentando. Ele é uma revolução, a revolução
do amor, a melhor coisa que poderia ter acontecido na minha vida.”
Fotos: Nelson Faria, Desirée Do Valle, Em dose tripla
Eduardo Ortega, divulgação, Jorge Bispo
Sumida da TV há tempos, Isadora Ribeiro está
de volta ao vídeo na reprise da novela Torre
de Babel, no Viva. Aos 51 anos, ela conserva as
curvas que estamparam a abertura do Fantástico
e de Tieta, mas diz duvidar de que hoje seria
possível mostrá-las como antes. “Nua, talvez
ficasse constrangedor. Acho que Deus está sendo
condescendente comigo, mantendo meu corpo
e rosto com aspecto de 40. Não faria mais algo
de tanta exposição, mas ficaria nua no cinema
ou na TV dentro de um contexto”, afirma a atriz,
que está em turnê pelo Brasil com a peça Diário
de bordo, em que interpreta três personagens:
uma senhora, uma moça e um rapaz. “O rótulo
de sex symbol sempre me ajudou. E quem me vê
atuando percebe a qualidade do meu trabalho.”
14 de novembro de 2016 I ÉPOCA I 77
BRUNO ASTUTO Leia a coluna diária de Bruno Astuto em epoca.com.br
E N T R E V I S TA Depois do luxo
FERNANDA TORRES Para onde vai o mercado
de luxo? O que desejam os
ATRIZ E ESCRITORA endinheirados agora? O que
fazem quando descobrem que
“Não me uma grife, um esbanjo e um
fecho a nada” carimbo de opulência não
satisfazem como se achava?
H á 30 anos, quando tinha apenas Foi pensando nisso que a
20, Fernanda Torres se tornou a empresária Fernanda Ralston
primeira brasileira a ganhar a Palma de Semler criou o conceito que ela
Ouro em Cannes, pelo filme Eu sei que batizou de après luxe. “O luxo
vou te amar. “Me lembro do orgulho e tradicional, aquela coisa das
da alegria”, afirma. A atriz e escritora grifes em excesso, está obsoleto.
está prestes a se lançar como roteiris- Quem já tem todas as bolsas
ta com o longa O juízo, que leva a dire- da Chanel e da Louis Vuitton,
ção do marido, Andrucha Waddington. por exemplo, não está mais
Ela faz as vezes de entrevistadora no disposto a pagar em média oito
programa Minha estupidez, que estreia vezes mais do valor real da coisa
no GNT no dia 14, e ainda volta ao ar na só por uma etiqueta”, afirma
série Filhos da pátria, na Globo. “A per- ela, que promete descortinar
sonagem é um protótipo da mulher do esse universo em forma de
Cunha, vibra com a corrupção.” curadoria, com um site que
será lançado neste mês. “Para
ÉPOCA – De onde veio Minha estu- FERNANDA EM CENA valer realmente o que custa, um
pidez? “As histórias vão me puxando”, diz, produto ou um serviço precisam
Fernanda Torres – Queria falar do sobre a experiência como roteirista preencher certos filtros. Quero
lugar da ignorância, quando você não classificá-los, colocá-los sob
sabe e finge. Sabe aqueles livros que ÉPOCA – Como é ser roteirista? um guarda-chuva e um selo de
você compra e ficam na estante? Fernanda – Nunca planejo nada, as qualidade.” Fernanda entrou
Eu menti para o João Ubaldo Ribei- histórias vão me puxando. Estava na no mundo da moda pelas mãos
ro que tinha lido um dos livros dele. fazenda de um amigo no interior de Mi- do estilista italiano Gianni
Até que um dia, ele olhou para mim e nas Gerais quando tive a ideia. Sempre Versace, que a convidou para
conversamos (risos). Depois, ele me achei que Minas dava uma história de cuidar de suas festas e vitrines.
mandou uma cópia com dedicatória. assombração. O Brasil tem uma dívi- “Gianni me adotou. Trabalhei
Sofro mais pelos livros que não li do da com a escravidão. Então, o (rapper) com ele até sua morte.”
que pelas séries de TV que não vi. Criolo vai fazer um escravo em busca
Acho que você precisa ter outra vida de um acerto de contas. Também es- Fotos: Alexandre Campbell/ Divulgação,
para poder ver tudo. tou adaptando meu livro, Fim, para e Anna Carolina Negri/ Época
ÉPOCA – Como tem visto a estupidez? uma minissérie de dez capítulos.
Fernanda – O Brasil tem muito anal- ÉPOCA – Como bateu chegar aos 51?
fabetismo, um nível de educação bem Fernanda – Toda idade tem um peso,
baixo. Mas estamos vivendo uma fase não é? Ralei muito no começo. Mas
estranha no mundo todo, uma deses- chega uma maturidade bacana, vejo
perança. Existe um pragmatismo que isso também nos amigos de minha ge-
leva as pessoas a votar no Trump. O ração. Fiz muito cinema, TV e teatro.
programa mostra que ainda temos ca- Procurei alternar, porque um alivia o
beças interessantes, como a do Cae- outro. Sinto que as juntas dão um chia-
tano. Dá esperança. Precisei estudar do. Hoje, não me fecho a nada, nem
muito para que os entrevistados não mesmo a uma novela.
me olhassem com cara de pena.
78 I ÉPOCA I 14 de novembro de 2016
WALCYR CARRASCO
O drama
após o Enem
V eio o Enem. Ah, bom, para muitos não. Mas vem. E, sitei, foi porque viver de escrever não é algo linear. Tipo ter-
durante ou depois do Enem, o jovem tem de escolher minar uma faculdade e começar como trainee. Sempre sou-
uma profissão. O que você será o resto da vida, eis a pergun- be o que desejava ser. É uma dádiva. Boa parte dos jovens se
ta. Os que têm sorte fizeram um teste vocacional. Hum... enquadra em dois tipos: os que escolhem a profissão dese-
testes vocacionais não são perfeitos. O resultado é difuso, jada pelos pais e os rebeldes, frontalmente contra qualquer
aponta tendências. Na minha época, fiz um. Deu que eu tinha desejo ou sugestão dos mais velhos. O médico é filho de
vocação para... tudo. É, tudo. Ler a palma da mão talvez seja médico e surge uma dinastia. Roqueiro também pode ser
mais exato. Um bom quiromante extrai verdades daquelas filho de médico. Boa parte escolhe as profissões “certinhas”,
linhazinhas. Certa vez um estudante se aconselhou comigo de emprego certo, garantido. Um grande número deseja
por e-mail sobre que universidade cursar. Era de família empregos públicos, estáveis. Mas isso criará seres humanos
pobre e falei para escolher algo seguro. Advocacia, medicina. felizes? Pessoas têm um potencial, uma vocação. A família
Fez o teste e deu jornalismo na cabeça. Ainda insisti: os co- tenta induzir o jovem a escolher algo para “se dar bem”. Mas
legas jornalistas sabem que a profissão é dificil e não deixa há um outro conceito de “se dar bem”. É tornar-se um ser
ninguém rico. Ele insistiu em jornalismo. humano pleno e realizado.
No meio do curso, descobriu seu ser mais Estudei num colégio que fez nome na
íntimo: travesti. Travesti não é profissão. época. O antigo Colégio de Aplicação da USP,
Mas daí decorrem várias questões e possi- HÁ A PROPOSTA DE fechado pelo governo militar. Reabriu depois.
bilidades profissionais. Algum psicólogo Era experimental e proporcionava a todos
analisando teste vocacional consideraria REFORMA CURRICULAR nós experiências variadas e extracurriculares.
essa hipótese? Pois virar travesti foi a me- Do Colégio de Aplicação saíram pessoas que
lhor mudança que ele poderia ter feito. Vi- E DE EXIGIR OPÇÕES se tornaram importantes em vários campos.
rou um sucesso. Sobrevive do Snapchat e MAIS CEDO. COMO AOS Há a proposta de modificar o currículo e
tornou-se um dos principais influenciado- 15 ANOS ALGUÉM PODE exigir que escolhas sejam feitas mais cedo.
res do país. Agora fez ponta numa série de Como aos 15 anos alguém pode escolher
TV e juro que não tem dedo meu nessa ESCOLHER UMA ÁREA? uma área? Pior: não haverá opção. A maior
história. Quer fazer stand-up comedy. E parte estudará onde conseguir. Se houver
terá sucesso, eu sei. Repito: algum teste...???? vaga em um colégio mais voltado para hu-
Você visualiza uma psicóloga dizendo num teste vocacional: manas, é para lá que vai, mesmo que seja um gênio em física.
– Bota peito, querida. Vai ser. No passado, havia clássico e científico. Mas em todas as escolas.
A garotada do Enem está saindo da adolescência. Há A decisão vocacional, muito difícil mesmo após o Enem,
quem tenha sorte e saiba o que pretende fazer o resto da com um conhecimento tênue das carreiras, nem existirá
vida. Alguns, por uma vocação que explodiu muito cedo. mais. De certa forma, o Estado decidirá pelos cidadãos. Será
Eu, por exemplo. Aos 11 anos avisei meus pais que seria muito dinheiro perdido. Engenheiros sem contato com a
escritor. Como a família não tinha nem sequer o hábito de filosofia, já adultos, podem se apaixonar por ela e jogar
ler (só eu), foi uma surpresa. Medo de que eu passasse fome. anos de estudo fora para recomeçar. Da mesma maneira,
Papai me botou num curso de datilografia, aprendi a usar filósofos que não se encontrarem na vida acadêmica vão
aquelas máquinas enormes, antigas. Observou: recomeçar em arquitetura, por exemplo. Tempo, dinheiro e
– Se não der certo como escritor, pelo menos pode tra- capital humano gastos à toa. Será mais caro. Se alguém sen-
balhar num escritório. tir o impulso da vocação mais tarde, que se vire se não tiver
Essa ferramenta ajuda-me até hoje. Sou rapidíssimo para as ferramentas apropriadas. A reforma educacional reduz
escrever capítulos de novelas. Mesmo assim, como escritor opções. E reduz a vida. Vocação, para quê? u
não era exatamente uma profissão, tentei faculdade de his-
tória, cursei três anos na Universidade de São Paulo, prestei Walcyr Carrasco é jornalista, autor de livros,
novo vestibular e concluí jornalismo na mesma USP. Se he- peças teatrais e novelas de televisão
14 de novembro de 2016 I ÉPOCA I 79
TEMPO LIVRE? ESQUEÇA. EIS O QUE VOCÊ PRECISA FAZER NESTA SEMANA
CINEMA MOSTRA LIVRO
2 horas 2 hora 2 horas
América em três atos Liberdade, liberdade! Uma história
de solidão
Durante a Guerra Civil americana, A mostra África(s). Cinema
o fazendeiro Newton Knight e revolução exibe 39 filmes O escritor português
(Matthew McConaughey) sobre a descolonização Valter Hugo Mãe
liderou um grupo de confederados repete na literatura
desertores. Na base da rebeldia, de Angola, Guiné-Bissau o gesto dos antigos
ele tentou formar um estado navegadores lusos
livre no condado de Jones. e Moçambique. Diversas e se lança ao mar à
O filme Um estado de liberdade procura de histórias e
retrata três momentos da história produções retratam a terras exóticas. Depois
americana: a Guerra de Secessão, de A desumanização,
a Reconstrução e a eclosão de atuação feminina nas lutas cujo cenário era a
movimentos de direitos civis em gélida Islândia, a nau
meados do século XX. O diretor de independência ou são lírica de Mãe aporta
Gary Ross tenta mostrar que os num Japão ancestral
embates se forjaram na iniquidade assinadas por mulheres, com Homens
econômica, nos conflitos de como Árvore de sangue, imprudentemente
classe e na opressão racial. Mas, dirigido pela guineense Flora poéticos, um romance
apesar das boas intenções, falta Gomes. Caixa Belas Artes, sobre a solidão. Numa
profundidade para essa história real São Paulo, até 23/11. aldeia ao pé do Monte
e fascinante. Estreia no dia 17/11. Fuji, nos arredores
da lúgubre Floresta
80 I ÉPOCA I 14 de novembro de 2016 dos Suicidas, vivem
o artesão Itaro e o
oleiro Saburo, vizinhos
e inimigos que, com
a pobreza e a morte
sempre à espreita,
acabam por suspender
suas disputas
cotidianas e aprendem
uma ou outra lição
de cordialidade.
Biblioteca Azul, 192
páginas, R$ 44,90.
Por Nina Finco, [email protected],
e Ruan de Sousa Gabriel, [email protected]
T E AT R O CONCERTO
1 hora 1 hora
Esperando Alfredo Relaxa que não é fado
Mrs. Rowland (Nadia Bambirra) é uma mulher frustrada e infeliz que, Os pianistas portugueses Pedro Burmester
enquanto prepara o café, maldiz Alfredo, seu marido, o Mr. Rowland que nunca e Mário Laginha seguiram por carreiras
chega. Ela é uma simples costureira, filha de um verdureiro; ele é um poeta, diferentes: o primeiro prefere um repertório
alcoólatra e adúltero, herdeiro de uma confortável fortuna. Na casa deles clássico e o segundo está mais próximo
falta tudo: o relógio foi penhorado e não sobraram moedas para comprar pó do jazz e das composições folclóricas.
de café. Mrs. Rowland, porém, ainda se levanta todas as manhãs para cuidar Mesmo assim, há mais de 20 anos, a dupla
de prendas domésticas, como fazer café e humilhar o marido ausente. “Viver se reúne para misturar suas preferências
com você é morrer a fogo lento”, diz ela à beira do fogão. Dirigido por Jorge entre as teclas negras e brancas do piano
Farjalla, o monólogo Antes do café apresenta o realismo expressionista de de cauda. Numa apresentação única em
Eugene O’Neill, o único dramaturgo americano homenageado com o Nobel São Paulo, eles oferecem para o público
de Literatura. Teatro Nathália Timberg, Rio de Janeiro, até 27/11. uma obra inédita do pianista de jazz e
compositor João Paulo Esteves da Silva,
obras clássicas de Debussy, Bach e Ravel
e uma sonata breve composta pelo próprio
Laginha. Teatro Santander, 14/11, às 21h.
CD
1 hora
Quem é essa?
Contida, despojada e modesta
não são adjetivos normalmente
associados a Lady Gaga. Mas,
com Joanne, Gaga mostra que
é possível se renovar após anos
de hits pop. Na nova empreitada,
ela mistura faixas destinadas às
pistas de dança com canções
de soft rock embaladas por
um doce violão acústico.
Universal Music, R$ 27,90.
DVD 14 de novembro de 2016 I ÉPOCA I 81
3 horas
Oi, oi, oi
Quatro anos após a exibição de seu
último capítulo, o novelão Avenida Brasil
está de volta num box que contém 12
discos e 32 horas de conteúdo. Quem
estava com saudades dos carismáticos
personagens do bairro do Divino tem a
chance de ouvir novamente o “oi, oi, oi” da
abertura e os bordões inesquecíveis de
Carminha (“A culpa é da Rita!”) e Nina (“Me
serve, vadia!”). Som Livre, R$ 149,90.
Fotos: divulgação
RUTH DE AQUINO
“Vai todo mundo
ficar igual ao Rio?”
A pergunta, em tom dramático, foi feita a empresários pelo populista de Hugo Chávez entrou em colapso. O estado de
ministro do Desenvolvimento Social e Agrário, Osmar Mato Grosso há cinco meses não repassa às prefeituras as
Terra, em defesa do ajuste fiscal do governo Temer. “Vamos verbas mensais para a Saúde. No Distrito Federal, 40 mil
deixar piorar? Com o Rio de Janeiro aconteceu isso, gastou alunos ficaram sem transporte escolar porque as empresas
muito mais do que arrecadou, prometeu muito mais do que não recebem o pagamento do governo estadual. Merenda
pôde cumprir e acabou. Não consegue nem pagar a folha, nem escolar? Sumiu em muitos estados.
os aposentados.” Para Osmar Terra, “o Rio acabou”. Começamos a ver hospitais fechando, escolas fechando,
O Rio é um exemplo “didático” do que não deve ser feito. postos de saúde fechando. Os índices de criminalidade
Foi o adjetivo usado pelo ministro da Fazenda, Henrique estão aumentando. A ousadia dos bandidos cresce nas
Meirelles. Mirem-se no mau exemplo dos gestores irres- ruas. O orçamento da segurança pública está à míngua.
ponsáveis e imprevidentes do Rio e tentem frear o colapso. No Estado do Rio, três restaurantes populares que serviam
Mirem-se no mau exemplo de um estado que deixou a fo- 7.500 refeições por dia foram fechados. Ao todo, são 16 os
lha inchar até explodir e que deitou na cama dos royalties restaurantes populares, mas o estado deve R$ 22 milhões
do petróleo, vivendo na farra sem pensar no amanhã. Uma às dez empresas responsáveis por eles.
mistura de má gestão, incompetência, falta de planejamento, Mães com crianças de colo e velhos dão com a cara na por-
desperdício de recursos, prioridades erradas, mordomias e ta fechada dos postos de saúde. Uma folha de papel informa
desvios. Nenhuma economia resiste a isso. que o atendimento médico foi suspenso por
O plano do governador Pezão é apelidado falta de equipamentos, manutenção, profis-
de “pacote de maldades”. A maior maldade sionais e salários.Você se lembra das vítimas
não passará: o confisco da remuneração men- MIREM-SE NO MAU das tempestades de 2011 na Serra Flumi-
sal dos servidores. Uma coisa é aumentar o nense e em Niterói? Pezão quer suspender
desconto da Previdência de 11% para 14%. EXEMPLO DE UM o Aluguel Social para quase 10 mil famílias
Tudo bem. A outra é descontar 30% mensal- ESTADO QUE DEIXOU desabrigadas. Ao mesmo tempo, o governo
mente de Previdência dos isentos e de todos Pezão gastou, só de janeiro a outubro, R$ 74
os servidores aposentados para ajudar a ree- A FOLHA INCHAR E milhões com aluguéis de imóveis, R$ 34 mi-
quilibrar as contas do Estado. Esquece, Pezão DEITOU NA CAMA lhões em aluguéis de veículos, R$ 5,6 milhões
– parece que já esqueceu. É uma provocação DOS ROYALTIES em aluguéis de vagas de estacionamento,
em tempos bicudos e um convite ao que vi- R$ 7,2 milhões em passagens aéreas.
mos: o vandalismo na Assembleia Legislativa Tenta-se arrecadar na marra dos mais
do Rio de Janeiro, a Alerj, e o confronto com a PM. pobres, após se abrir mão de bilhões de reais em impostos
O Rio de Janeiro não é o único estado sem dinheiro dos mais ricos, com as chamadas renúncias fiscais. “Pre-
e sem saber se pagará ou não o 13o aos servidores. Oito cisamos de medidas anticorrupção, de uma Lava Jato flu-
estados estouraram a despesa de pessoal – Minas Gerais, minense para reaver verbas que sumiram em comissões.
Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Paraíba, Distrito Com o que é proposto, chegamos a uma solução parcial,
Federal, Goiás e Paraná, além do Rio. Salários já são pagos mas não resolvemos a megacrise estadual”, afirma Istvan
com atraso ou em parcelas. Kasznar, professor de economia e administração pública da
Mas, se fosse só isso... Na verdade, os servidores são ví- Fundação Getulio Vargas do Rio.“As elites políticas pagam
timas mas também causa da calamidade dos cofres vazios. pouco desse ajuste, e o povo paga tudo.”
Pelos dados do Tesouro Nacional, o Estado do Rio, entre Se ao menos se desse um basta à esquizofrenia. Mais um
2012 e 2015, ou seja, em três anos, aumentou seu gasto trem da alegria (ou da tristeza?) foi aprovado na Câmara em
com pessoal de R$ 20,8 bilhões para R$ 31,6 bilhões; e o Brasília: aumento salarial para auditores fiscais e analistas da
gasto com inativos dobrou de R$ 5,2 bilhões para R$ 10,8 Receita Federal, acompanhado de “bônus de eficiência”. O
bilhões. É ralo que não fecha. projeto, enviado pelo Executivo ao Congresso, prevê impacto
A calamidade financeira já atinge os serviços essenciais, de R$ 8,5 bilhões até 2019 nas contas do governo federal.
na saúde e na educação. As cenas de penúria e sofrimento Quem quer mesmo ficar igual ao Rio? u
da população pelo país afora, exibidas diariamente nos
telejornais, lembram as da Venezuela, quando o modelo Ruth de Aquino é colunista de ÉPOCA [email protected]
82 I ÉPOCA I 14 de novembro de 2016