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Published by profamiryammastrella, 2024-02-21 14:29:13

Inteligencia-emocional-Daniel-Goleman

Inteligencia-emocional-Daniel-Goleman

poder de desligar os choques sai sem sinais permanentes de tensão. Só no rato impotente é que ocorrem as mudanças no cérebro induzidas pela tensão.6 Para uma criança que é alvejada no pátio de uma escola, que vê os coleguinhas sangrando e morrendo — ou para um professor ali, incapaz de deter a carnificina —, a impotência deve ter sido palpável. O PTSD COMO DISTÚRBIO LÍMBICO Fazia meses que um grande terremoto a pusera para fora da cama e a fizera sair gritando em pânico pela casa às escuras à procura do filho de 4 anos. Os dois passaram horas abraçados na fria noite de Los Angeles, sob a proteção de um vão de porta, presos ali sem comida, água ou luz, com as sucessivas ondas de tremores sacudindo o solo a seus pés. Hoje, meses depois, ela já se recuperou bastante do pânico súbito que se apoderava dela nos dias subseqüentes ao terremoto, quando o bater de uma porta a fazia começar a tremer de medo. O único sintoma que ficou foi a impossibilidade de dormir, um problema que só a ataca nas noites em que o marido está ausente — como na noite do terremoto. Os principais sintomas desse medo aprendido — inclusive o tipo mais intenso, o PTSD — podem ser explicados por mudanças nos circuitos límbicos que se concentram na amígdala cortical.7 Algumas das principais alterações ocorrem no locus ceruleus, uma estrutura que regula a secreção pelo cérebro de duas substâncias chamadas catecolaminas: a adrenalina e a noradrenalina. Esses produtos neuroquímicos mobilizam o corpo para uma emergência; a mesma onda de catecolamina grava lembranças com uma força especial. No PTSD, esse sistema torna-se hiper-reativo, secretando doses muito grandes desses produtos químicos do cérebro, em resposta a situações pouco ou nada ameaçadoras, mas que de algum modo evocam o trauma original, como as crianças da Escola Primária Cleveland que entravam em pânico quando ouviam uma sirene de ambulância semelhante às que tinham ouvido na escola após o tiroteio. O locus ceruleus e a amígdala estão estreitamente ligados, junto com outras estruturas límbicas como o hipocampo e o hipotálamo: os circuitos das catecolaminas estendem-se até o córtex. Presume-se que alterações nesses circuitos sejam responsáveis pelos sintomas do PTSD, que incluem ansiedade, medo, hipervigilância, irritabilidade e provocação, disposição para lutar-ou-fugir e indelével codificação de intensas lembranças emocionais.8 Um estudo constatou que os veteranos do Vietnã com PTSD tinham 45% menos receptores para deter a catecolamina do que aqueles que não apresentavam esses


sintomas — o que sugere que o cérebro deles sofrera uma alteração permanente, com um controle inadequado da secreção de catecolamina.9 Outras mudanças ocorrem no circuito que liga o cérebro límbico à glândula pituitária, que regula a liberação de CRF, o principal hormônio de estresse que o corpo secreta para mobilizar a resposta lutar-ou-fugir numa emergência. As mudanças levam a uma supersecreção desse hormônio — sobretudo na amígdala, hipotálamo e locus ceruleus —, colocando o corpo em alerta para uma emergência que na verdade não existe.10 Como disse o Dr. Charles Nemeroff, psiquiatra da Universidade Duke: — O excesso de CRF faz com que reajamos de forma exagerada. Por exemplo, se você é um veterano do Vietnã, tem PTSD e ouve o barulho de um cano de descarga de um carro no estacionamento de um shopping center, é o disparo de CRF que o inunda com os mesmos sentimentos do trauma original: começa a suar, fica com medo, tem arrepios e tremores, pode ter flashbacks. Nas pessoas que hipersecretam CRF, a reação de susto é superativa. Por exemplo, se você chegar sorrateiramente por trás de alguém e bater palmas, a pessoa levará um susto, mas depois já não mais se assustará. Acontece que as pessoas com excesso de CRF não se habituam: reagem com a mesma intensidade à quarta repetição da palma quanto à primeira.11 Um terceiro conjunto de mudanças ocorre no sistema opióidico do cérebro, que secreta endorfinas para amortecer a sensação de dor. Também ele se torna hiperativo. Esse circuito neural também envolve a amígdala, desta vez em combinação com uma região do córtex cerebral. Os opióides são produtos químicos do cérebro, poderosos agentes entorpecentes, como o ópio e outros narcóticos, seus primos químicos. Quando com altos níveis de opióides (“a morfina do cérebro”), as pessoas têm uma maior tolerância à dor — fato observado em campos de batalha por cirurgiões que constataram que soldados seriamente feridos precisavam de doses mais baixas de narcóticos para agüentar a dor do que civis com ferimentos muito menos sérios. Alguma coisa semelhante parece ocorrer no PTSD.12 Mudanças na endorfina dão uma nova dimensão à mistura neural pela reexposição ao trauma: um entorpecimento de certas sensações. Isso parece explicar um conjunto de sintomas psicológicos “negativos” há muito notados no PTSD: anedonia (incapacidade de sentir prazer) e um embotamento emocional generalizado, a sensação de estar isolado da vida ou o desinteresse pelos sentimentos dos outros. Aqueles que convivem com essas pessoas podem achar que essa indiferença se deva a


uma ausência de empatia. Outro possível efeito é a dissociação, incluindo a incapacidade de lembrar minutos, horas ou mesmo dias cruciais do fato traumático. As mudanças gerais do PTSD também tornam a pessoa mais susceptível a sofrer outros traumas. Vários estudos em animais constataram que, mesmo expostos a uma tensão branda quando jovens, eles eram muito mais vulneráveis que os animais não tensos a mudanças no cérebro provocadas por um trauma sofrido quando mais velhos (o que sugere a necessidade de tratar imediatamente crianças com PTSD). Esse parece ser um dos motivos pelos quais, expostas a uma mesma catástrofe, uma pessoa fica com PTSD e outra não: a amígdala é preparada para descobrir perigo, e quando a vida lhe apresenta mais uma vez um perigo concreto, seu alarme soa mais alto. Todas essas mudanças neurais proporcionam vantagens de curto prazo para lidar com as emergências sinistras e aflitivas que as causam. Sob pressão, a amígdala adapta-se para ficar altamente vigilante, estimulada, pronta para qualquer coisa, indiferente à dor, o corpo preparado para demandas físicas constantes e — naquele momento — indiferente ao que de outro modo poderiam ser fatos intensamente perturbadores. Essas vantagens de curto prazo, porém, tornam-se problemas duradouros quando a alteração cerebral é de tal monta que elas se tornam predisposições, como um carro com o câmbio emperrado em marcha alta. Quando a amígdala e as regiões a ela ligadas no cérebro assumem um novo ponto de partida num momento de trauma intenso, essa mudança de excitabilidade — essa acrescida prontidão para disparar um seqüestro neural — significa que tudo o que acontece na vida está na iminência de tornar-se uma emergência, e um acontecimento qualquer pode detonar uma explosão desenfreada de medo. REAPRENDIZADO EMOCIONAL Essas lembranças traumáticas parecem permanecer como pontos fixos da função cerebral porque interferem no aprendizado posterior — especificamente, no reaprendizado de uma resposta mais normal a esses fatos traumatizantes. No medo adquirido como o PTSD, os mecanismos de aprendizado e memória se desorientam; também aqui, é a amígdala que é a chave entre as regiões do cérebro envolvidas. Mas, na superação do medo adquirido, o neocórtex é fundamental. Medo condicionado é o nome que os psicólogos empregam para designar o processo pelo qual uma coisa que não apresenta ameaça alguma se torna temida por estar associada na mente de alguém a algo assustador. Quando tais pavores são


induzidos em animais de laboratório, observa Charney, o medo pode durar anos.13 A região-chave do cérebro que aprende, retém e age com base nessa reação de medo é o circuito entre os tálamos, amígdala e lobo pré-frontal — a rota do seqüestro neural. Em geral, quando alguém aprende a assustar-se com uma coisa por estar condicionado pelo medo, o medo passa com o tempo. Isso ocorre através de um reaprendizado natural, à medida que o objeto temido é de novo encontrado em circunstâncias diferentes. Assim, uma criança que tem medo de cachorro porque um dia foi perseguida por um rosnante pastor alemão vai aos poucos e naturalmente perdendo o medo se, digamos, se muda para perto de alguém que tem um pastor alemão simpático, e passa seu tempo brincando com o cachorro. No PTSD espontâneo, o reaprendizado não ocorre. Charney sugere que há a possibilidade de que as mudanças causadas pelo PTSD no cérebro sejam tão fortes que, na verdade, o seqüestro da amígdala ocorre toda vez que aparece alguma coisa ainda que vagamente reminiscente do trauma original, fortalecendo a rota do medo. Isso quer dizer que não há uma só vez em que o que tememos se iguale com um sentimento de calma — a amígdala nunca reaprende uma reação menos intensa. “A extinção do medo”, observa, “parece envolver um processo de aprendizado ativo”, que está ele próprio danificado nas pessoas com PTSD, “o que leva à anormal persistência de lembranças emocionais”.14 Mas se ocorrerem experiências adequadas, mesmo o PTSD pode desaparecer; fortes lembranças emocionais, e os padrões de pensamento e reação que elas disparam, podem mudar com o tempo. Charney sugere que esse reaprendizado seja cortical. O medo original entranhado na amígdala não vai embora completamente; em vez disso, o córtex pré-frontal suprime ativamente o comando que a amígdala envia para o resto do corpo responder com medo. — Resta saber quanto tempo leva para que a gente se livre do medo aprendido — diz Richard Davidson, psicólogo da Universidade de Wisconsin que descobriu o papel do córtex préfrontal esquerdo como um amortecedor de angústia. Numa experiência laboratorial em que as pessoas primeiro aprendiam a ter aversão a um ruído alto — um paradigma do medo aprendido e um discreto paralelo do PTSD —, Davidson constatou que aqueles que tinham mais atividade no córtex préfrontal esquerdo superavam mais rapidamente o medo adquirido, o que também sugere que o córtex atua na liberação da angústia aprendida.15


REEDUCANDO O CÉREBRO EMOCIONAL Uma das mais promissoras descobertas sobre o PTSD veio de um estudo com sobreviventes do Holocausto, três quartos dos quais, mais ou menos, meio século depois ainda tinham sintomas ativos de PTSD. A descoberta mais importante foi que um quarto dos sobreviventes outrora perturbados por tais sintomas não mais os tinham; de alguma forma, os fatos naturais de suas vidas haviam contrabalançado o problema. Aqueles que ainda apresentavam os sintomas mostravam indícios de alterações cerebrais relacionadas com a catecolamina típicas do PTSD — mas os que haviam se recuperado não tinham tais mudanças.16 Essa descoberta e outras iguais sugerem que as mudanças cerebrais no PTSD não são indeléveis, e que as pessoas podem se recuperar mesmo das mais angustiantes cicatrizes emocionais — em suma, que os circuitos emocionais podem ser reeducados. A notícia boa, portanto, é que traumas profundos causadores do PTSD podem ser curados, e que a rota para essa cura passa pelo reaprendizado. Uma das formas como essa cura emocional ocorre espontaneamente — pelo menos em crianças — é através de jogos como o “Purdy”. Essas brincadeiras, feitas repetidas vezes, permitem que as crianças revivam o drama num ambiente em que se sintam seguras, brincando. Isso oferece duas rotas de cura: de um lado, a memória repete o contexto de baixa ansiedade, dessensibilizando-a e permitindo que um conjunto de respostas não traumatizadas se associem a ela. Outra rota de cura é que, em suas cabecinhas, as crianças podem magicamente dar à tragédia um “final feliz”: às vezes, ao brincarem de Purdy, elas o matam, fortalecendo seu senso de domínio sobre aquele traumático momento de impotência. Brincadeiras como “Purdy” são previsíveis em crianças que passaram por uma violência tão arrasadora. Essas brincadeiras macabras criadas por crianças traumatizadas foram pela primeira vez observadas pela Dra. Lenore Terr, psiquiatra infantil de São Francisco.17 Ela identificou essas brincadeiras entre crianças de Chowchilla, na Califórnia — a pouco mais de uma hora, pelo Central Valley, de Stockton, onde Purdy criou aquele inferno —, que em 1973 haviam sido seqüestradas quando voltavam de um dia de acampamento. Os seqüestradores enterraram o ônibus que as trazia, com as crianças e tudo, e o sofrimento durou 27 horas. Cinco anos depois, a Dra. Terr descobriu o seqüestro ainda sendo reencenado nas brincadeiras das vítimas. As meninas, por exemplo, faziam seqüestros simbólicos com suas bonecas Barbie. Uma delas, que detestara a sensação da urina das outras


crianças em sua pele, quando estavam amontoadas e aterrorizadas, não parava de dar banho em sua Barbie. Outra brincava de Barbie Viajante, em que a boneca viaja para um lugar qualquer e retorna em segurança, que é o objetivo da brincadeira. A brincadeira preferida por outra menina se dava num cenário em que a boneca era metida num buraco e sufocava. Enquanto adultos que passaram por um trauma arrasador podem sofrer um entorpecimento psíquico, bloqueando a lembrança ou sensação da catástrofe, a psique das crianças muitas vezes lida diferentemente com ele. A Dra. Terr acredita que elas se tornam menos freqüentemente entorpecidas para o trauma porque recorrem à fantasia, às brincadeiras e aos devaneios para lembrar e elaborar o sofrimento por que passaram. Essas reencenações voluntárias do trauma impedem a necessidade de represá-lo em poderosas lembranças que podem depois irromper como flashbacks. Se o trauma é menor, como ir ao dentista para fazer uma obturação, apenas uma ou duas vezes podem bastar. Mas se é arrasador, a criança precisa de incontáveis repetições, reencenando o drama muitas vezes, num ritual sinistro e monótono. Uma das formas de chegar à imagem congelada na amígdala é através da arte, que é uma das formas de expressão do inconsciente. O cérebro emocional é altamente sintonizado com simbolismos e com o que Freud chamou de “processo primário”: as mensagens da metáfora, história, mito, as artes. Esse recurso é muito utilizado no tratamento de crianças traumatizadas. Às vezes, a arte oferece à criança a oportunidade de falar do momento de horror sobre o qual não ousaria falar em outras circunstâncias. Spencer Eth, psiquiatra de Los Angeles especializado em tratar dessas crianças, fala de um menino de 5 anos que, junto com a mãe, foi seqüestrado por um ex-namorado dela. O homem levou-os para um quarto de hotel, mandou o menino ficar debaixo de um cobertor enquanto espancava a mãe até a morte. O menino, compreensivelmente, relutava em falar com Eth sobre o massacre que ouvira e vira de debaixo do cobertor. Por isso o psiquiatra pediu-lhe que desenhasse qualquer coisa. Eth lembra que o desenho era de um piloto de corridas com uns olhos impressionantemente grandes. Ele interpretou isso como uma referência à ousadia do menino ao espiar o assassino. Essas referências ocultas à cena traumática quase sempre aparecem nos trabalhos artísticos de crianças traumatizadas; Eth utiliza o desenho no tratamento de crianças com esse tipo de problema, a jogada de abertura da terapia. As potentes lembranças que as preocupam invadem o desenho tal


como invadem seus pensamentos. Além disso, o ato de desenhar é em si terapêutico, iniciando o processo de controle do trauma. REAPRENDIZADO EMOCIONAL E RECUPERAÇÃO DE UM TRAUMA Irene foi a um encontro romântico que acabou em tentativa de estupro. Embora ela houvesse resistido ao atacante, ele continuou a persegui-la: incomodando-a com telefonemas obscenos, ameaçando-a, telefonando no meio da noite, tocaiando-a e observando todos os seus movimentos. A certa altura, quando ela pediu ajuda à polícia, os policiais consideraram que seu problema não era caso de polícia, já que “nada de fato acontecera”. Quando recorreu à terapia, Irene tinha sintomas de PTSD, desistira de toda vida social e sentiase prisioneira em sua própria casa. O caso de Irene é citado pela Dra. Judith Lewis Herman, psiquiatra de Harvard cujo trabalho pioneiro traça as etapas para a recuperação de um trauma. Ela vê três etapas: obter uma sensação de segurança, lembrar os detalhes do trauma e lamentar a perda que ele trouxe e, finalmente, restabelecer uma vida normal. Há uma lógica biológica na ordenação dessas etapas, como veremos: essa seqüência parece se refletir no cérebro emocional, que reaprende que a vida não precisa ser encarada como uma emergência iminente. O primeiro passo, a reconquista do sentimento de segurança, tem por objetivo descobrir formas de acalmar os circuitos emocionais demasiado amedrontados e facilmente disparáveis, bastantes o suficiente para ensejar o reaprendizado.18 Muitas vezes isso começa com a ajuda aos pacientes para que entendam que seu nervosismo e pesadelos, hipervigilância e pânicos fazem parte dos sintomas do PTSD. Ao entenderem esse mecanismo, os próprios sintomas se tornam menos assustadores. Outro passo consiste em ajudar os pacientes a reconquistar algum senso de controle sobre o que lhes acontece, um desaprendizado direto da lição de impotência transmitida pelo trauma que sofreram. Irene, por exemplo, mobilizou a família e os amigos para formar um anteparo entre ela e seu perseguidor, e conseguiu fazer com que a polícia interviesse. A sensação de “insegurança” dos pacientes com PTSD vai além do temor de estarem cercados por perigos ocultos; a insegurança deles começa mais intimamente, com um sentimento de descontrole sobre o próprio corpo e as emoções. Isto é compreensível, em vista do gatilho sensível para o


seqüestro criado pelo PTSD com a hipersensibilização dos circuitos da amígdala. A medicação auxilia os pacientes a não se sentirem tão à mercê dos alarmes emocionais que os inundam de inexplicável ansiedade, que lhes tiram o sono ou que causam pesadelos. Os farmacólogos esperam um dia preparar remédios específicos que atuem diretamente sobre os efeitos do PTSD sobre a amígdala cortical e circuitos neurotransmissores a ela ligados. Mas, enquanto isso não acontece, há medicamentos que combatem apenas algumas dessas mudanças, notadamente os antidepressivos, que atuam no sistema de liberação da serotonina, e os betabloqueadores como o propanolol, que bloqueiam a ativação do sistema nervoso simpático. Os pacientes também podem aprender técnicas de relaxamento que lhes permitam combater a ansiedade e o nervosismo. A calma fisiológica oferece espaço para que os brutalizados circuitos emocionais redescubram que a vida não é uma ameaça, e para dar aos pacientes a sensação de haverem recuperado a segurança que tinham antes da ocorrência do trauma. Outro passo na cura envolve contar e reconstruir a história sob a proteção dessa segurança propiciada pelo remédio ou pelo relaxamento, o que permite que os circuitos emocionais adquiram uma compreensão e resposta novas e mais realistas à lembrança traumática e seus gatilhos. À medida que os pacientes narram os horríveis detalhes do trauma, a memória começa a transformar-se, tanto em seu significado emocional quanto em seus efeitos sobre o cérebro emocional. O ritmo dessa narrativa é delicado; idealmente, imita o ritmo que ocorre naturalmente nas pessoas que conseguem recuperar-se do trauma sem sofrer PTSD. Nesses casos, muitas vezes parece haver um relógio interno que “dosa” as lembranças intrusas que revivem o trauma, que as interrompe durante semanas ou meses nas quais o paciente mal se lembra de alguma coisa dos horríveis acontecimentos.19 Essa alternância de reimersão e alívio permite um exame espontâneo do trauma e o reaprendizado da resposta emocional a ele. Para aqueles cujo PTSD é mais difícil de ser tratado, diz a Dra. Herman, narrar a sua história às vezes dispara temores arrasadores, caso em que o terapeuta deve reduzir o ritmo para manter as reações do paciente dentro de um certo nível de tolerância, de forma a não comprometer o reaprendizado. O terapeuta encoraja o paciente a contar os fatos traumáticos o mais vividamente possível, como se fora filme de terror, recuperando cada sórdido detalhe. Isso inclui não apenas as coisas específicas que viu, ouviu, cheirou e sentiu, mas também


suas reações — pavor, nojo, náusea. O objetivo aqui é expressar a lembrança em palavras, o que significa captar partes dela que podem ter sido dissociadas e, portanto, estar ausentes da memória consciente. Quando detalhes sensoriais e sentimentos são expressos em palavras, presume-se que as lembranças fiquem mais sob o controle do neocórtex, onde as reações que elas disparam podem ser tornadas mais compreensíveis e também mais controláveis. O reaprendizado emocional nesse ponto é, em grande parte, conseguido pelo reviver dos fatos e das próprias emoções, mas desta vez num ambiente de segurança, em companhia de alguém em quem se confia, no caso o terapeuta. Isso começa a transmitir uma lição reveladora aos circuitos emocionais — de que se pode sentir segurança, e não implacável terror, juntamente com as lembranças do trauma. O menino de 5 anos que desenhou olhos enormes depois de assistir ao sangrento assassinato de sua mãe não fez mais nenhum outro desenho depois do primeiro; em vez disso, ele e o terapeuta, Spencer Eth, brincaram, estabelecendo um elo entre si. Só muito aos poucos o garoto começou a contar a história do assassinato, a princípio de uma forma estereotipada, recitando cada detalhe exatamente da mesma forma a cada repetição. Aos poucos, porém, sua narrativa foi se tornando mais aberta e solta, o corpo se relaxando à medida que ele falava. Ao mesmo tempo, seus pesadelos com a cena tornaram-se menos freqüentes, uma indicação, diz Eth, de um certo “domínio do trauma”. Gradualmente, a conversa dos dois foi se afastando dos temores deixados pelo trauma e passando mais para o que acontecia no cotidiano do menino, que estava se ajustando num novo lar com o pai. E finalmente ele pôde falar apenas de sua vida diária, enquanto a força do trauma desaparecia. Finalmente, a Dra. Herman constata que os pacientes precisam lamentar a perda trazida pelo trauma — seja um ferimento, a morte de um ente querido ou o rompimento de uma relação, o arrependimento por não ter feito alguma coisa para salvar alguém, ou apenas a perda da confiança nas pessoas. O lamento que se segue ao contar esses fatos dolorosos serve a um fim crucial: assinala a capacidade de livrar-se em certa medida do trauma. Isso quer dizer que, em vez de ficar perpetuamente preso naquele momento do passado, os pacientes podem começar a olhar para a frente, até mesmo ter esperança, e reconstruir uma nova vida, livre das garras do trauma. É como se o constante reciclar e reviver do terror do trauma pelos circuitos emocionais fosse um sortilégio que pôde


ser finalmente quebrado. Cada sirene não precisa trazer um dilúvio de medo; cada som na noite não precisa impor um flashback de terror. Muitas vezes persistem efeitos posteriores ou recorrências ocasionais de sintomas, diz a Dra. Herman, mas há sinais específicos de que o trauma foi em grande parte superado. Entre esses sinais estão a redução dos sintomas fisiológicos a um nível controlável e a capacidade de suportar os sentimentos associados a lembranças do trauma. Especialmente significativo é não ter mais erupções de lembranças do trauma em momentos incontroláveis, mas antes poder rememorá-los voluntariamente, como qualquer outra lembrança — e, o que é talvez mais importante, afastá-los como qualquer outra lembrança. Finalmente, significa reconstruir uma nova vida, com relações fortes, de confiança, e um sistema de crenças que encontra sentido mesmo num mundo onde acontece tal injustiça.20 Tudo isso junto são sinais de sucesso na reeducação do cérebro emocional. A PSICOTERAPIA COMO UM CURSO EMOCIONAL Felizmente, os momentos catastróficos em que as lembranças traumáticas se gravam são raros na vida da maioria de nós. Mas os mesmos circuitos que gravam tão fortemente as lembranças traumáticas também estão supostamente em ação nos melhores momentos da vida. As mais comuns agruras da infância, como ser constantemente ignorado e privado de atenção ou carinho dos pais, o abandono, perda ou rejeição social podem não ser traumatizantes, embora certamente fiquem marcados na memória emotiva, gerando problemas — e lágrimas, e sentimentos irados — nas relações íntimas da vida adulta. Se é possível curar o PTSD, o mesmo pode acontecer com os arranhões sociais que tantos de nós trazemos; esta é uma tarefa para a psicoterapia. E, em geral, é no aprender a lidar habilmente com essas carregadas reações que entra a inteligência emocional. A dinâmica entre a amígdala e as reações mais completamente informadas do córtex pré-frontal oferece um modelo neuroanalítico para a maneira como a psicoterapia remodela padrões emocionais profundos e mal-adaptados. Como conjetura Joseph LeDoux, o neurocientista que descobriu o papel de gatilho sensível da amígdala nas explosões emocionais:


— Uma vez que nosso sistema emocional aprende alguma coisa, parece que nunca mais nos livraremos dela. O que a terapia faz é ensinar-nos a controlá-la: ensina nosso neocórtex a inibir nossa amígdala. A tendência à impulsividade é suprimida, enquanto a emoção básica sobre ela continua sob contenção. Considerando que a arquitetura do cérebro está por trás do reaprendizado emocional, o que parece permanecer, mesmo após uma psicoterapia bem-sucedida, é uma reação residual, um resto da sensibilidade ou medo original na raiz de um problema emocional perturbador.21 O córtex pré-frontal pode aprimorar ou frear o impulso desenfreado da amígdala, mas não pode simplesmente impedi-lo de reagir. Assim, embora não possamos decidir quando temos nossas explosões emocionais, temos mais controle sobre o quanto elas duram. Um tempo mais rápido de recuperação dessas explosões talvez seja um sinal de maturidade emocional. Durante a terapia, o que parece mudar principalmente são as respostas que as pessoas dão assim que uma reação emocional é disparada — mas a tendência para a reação ser disparada não desaparece inteiramente. Isso é indicado por uma série de estudos em psicoterapia realizados por Lester Luborsky e seus colegas na Universidade da Pensilvânia.22 Eles analisaram os principais conflitos de relacionamento que levavam dezenas de pacientes à psicoterapia — questões como o profundo anseio por ser aceito ou encontrar intimidade, ou o temor de ser um fracasso ou superdependente. Eles analisaram então cuidadosamente as respostas típicas (sempre negativas) que os pacientes davam quando esses desejos e medos eram ativados em seus relacionamentos — respostas como ser muito exigente, que geravam reações de raiva ou frieza na outra pessoa, ou retirar-se como uma autodefesa de uma ofensa prevista, deixando a outra pessoa triste com a suposta rejeição. Durante esses malfadados contatos, os pacientes, compreensivelmente, sentiam-se inundados por sentimentos perturbadores — desesperança e tristeza, ressentimento e raiva, tensão e medo, culpa e auto-recriminação e por aí adiante. Qualquer que fosse o padrão específico do paciente, a sensação perturbadora parecia surgir na maioria dos mais importantes relacionamentos, com o cônjuge ou o namorado, filho ou pai, ou colegas e chefes no trabalho. Durante a terapia de longo prazo, porém, esses pacientes passavam por dois tipos de mudança: sua reação emocional aos fatos disparadores tornava-se menos angustiante, e até calma e divertida, e suas respostas abertas tornavam-se mais efetivas na obtenção do que eles realmente queriam do relacionamento. O que não mudava, porém, era o subjacente desejo ou medo e a


pontada de sentimento inicial. Quando o tratamento já estava chegando ao término, os relatos que faziam indicavam que já estavam reagindo negativamente de forma menos intensa e já havia duas vezes mais probabilidade de obter a resposta positiva que profundamente desejavam da outra pessoa. Mas o que não mudava de modo algum era a sensibilidade particular na raiz dessas necessidades. Em termos do cérebro, podemos especular, os circuitos límbicos mandariam sinais de alarme em resposta a indícios de um fato temido, mas o córtex pré-frontal e zonas relacionadas teriam aprendido uma nova e mais saudável resposta. Em suma, as lições emocionais — mesmo os hábitos mais profundamente arraigados do coração, aprendidos na infância — podem ser reformuladas. A aprendizagem emocional é para toda a vida. [1]Jogo surgido na década de 1990, em que duas crianças impelem uma bola, presa por uma corda ou corrente a um poste, para que se enrole totalmente no poste, no sentido contrário uma da outra. (N. do T.) [2] Do inglês, post traumatic stress disorder. (N. do T.)


14 Temperamento Não é Destino Os padrões emocionais aprendidos podem ser mudados, porque temperamento não é destino. Mas o que dizer sobre as respostas que são parte de nossa herança genética — como mudar reações habituais de pessoas que, por natureza, por exemplo, são muito explosivas ou terrivelmente tímidas? Essa faixa do comportamento emocional é parte do temperamento, o murmúrio de sentimentos de fundo que assinalam nossa disposição básica. O temperamento pode ser definido em termos dos estados de espírito que tipificam nossa vida emocional. Em certa medida, cada um de nós tem um tipo de emoção favorecida; o temperamento é um dado no nascimento, parte da loteria genética que tem força compulsória no desenrolar da vida. Qualquer pai sabe disso: desde o nascimento, a criança é calma e plácida, ou obstinada e difícil. O que cabe indagar é se um dado conjunto emocional pode ser mudado pela experiência. Nossa biologia determina o nosso destino, ou é possível a uma criança que nasça tímida tornar-se um adulto mais confiante? A resposta mais esclarecedora a essa questão está no trabalho de Jerome Kagan, eminente psicólogo desenvolvimentista da Universidade de Harvard.1 Ele afirma que existem pelo menos quatro tipos de temperamento — tímido, ousado, otimista e melancólico — e que cada um deles é função de um padrão diferente de atividade cerebral. Provavelmente, há inúmeras diferenças de herança temperamental, cada uma baseada em diferenças inatas nos circuitos emocionais; diante de um determinado tipo de emoção, as pessoas podem diferir na facilidade com que ela dispara, no quanto dura, na intensidade que alcança. O trabalho de Kagan se centra num desses padrões: a dimensão de temperamento que vai da ousadia à timidez. Durante décadas, mães têm levado seus bebês e filhos pequenos ao Laboratório de Desenvolvimento Infantil de Kagan, no 14º andar do William James Hall, em Harvard, para participar de estudos sobre o desenvolvimento infantil. Foi ali que Kagan e co-pesquisadores observaram sinais iniciais de timidez num grupo de crianças de um ano e nove meses. Nas brincadeiras com outras crianças, algumas eram esfuziantes e espontâneas, brincando sem a menor hesitação. Outras, porém,


mostravam-se inseguras e hesitantes, ficando de fora, grudadas às mães, quietinhas olhando as outras. Quase quatro anos depois, quando essas mesmas crianças já estavam no jardim-de-infância, o grupo de Kagan voltou a observá-las. Nos anos seguintes, nenhuma das crianças desembaraçadas se tornara tímida, enquanto dois terços das tímidas continuavam reticentes. Kagan constata que crianças muito sensíveis e medrosas tornam-se adultos tímidos e medrosos; desde o nascimento, cerca de 15 a 20% das crianças são “inibidas do ponto de vista comportamental”, segundo ele diz. Em bebês, essas crianças se intimidam diante de qualquer coisa que não lhes seja familiar. Hesitam em comer algo novo, relutam em aproximar-se de animais que nunca viram ou de locais onde nunca estiveram e são tímidas em presença de estranhos. Também são sensíveis sob outras formas — por exemplo, sentem-se facilmente culpadas e tendem à auto-recriminação. São crianças que ficam ansiosamente paralisadas nos contatos sociais: na sala de aula e no pátio de recreio, quando encontram novas pessoas, sempre que acontece de serem centro das atenções. Na idade adulta, tendem a ficar pelos cantos e têm um medo mórbido de falar ou de se apresentar em público. Tom, um dos meninos observados por Kagan, é o tímido típico. Em toda avaliação durante a infância — 2, 5 e 7 anos — foi considerado como um dos mais tímidos. Quando entrevistado aos 13 anos, Tom estava tenso e rígido, mordendo os lábios e contorcendo as mãos, o rosto impassível, insinuando um sorriso apenas quando se referia à sua namorada; respostas curtas, modos contidos.2 Por todos os anos da infância, até cerca dos 11 anos, Tom lembra que foi muitíssimo tímido, ficando encharcado de suor sempre que tinha de se aproximar de colegas de brincadeiras. Também era tomado por medos intensos: de sua casa pegar fogo, de mergulhar numa piscina, de ficar sozinho no escuro. Em pesadelos freqüentes, era atacado por monstros. Embora tenha se sentido menos tímido nos últimos dois anos, mais ou menos, ainda sente certa ansiedade em presença de outros meninos, e agora é preocupadíssimo com seu desempenho escolar, embora esteja entre os 5% melhores de sua turma. Filho de um cientista, acha atraente esse tipo de profissão, uma vez que a relativa solidão serve às suas inclinações introvertidas. Ralph, ao contrário, foi uma das crianças mais ousadas e extrovertidas durante toda a infância. Sempre descontraído e falador, aos 13 anos recostava-se à vontade na cadeira, não tinha maneirismos nervosos e falava num tom confiante, amistoso, como se o entrevistador fosse um colega — embora a diferença de idade entre eles fosse de 25 anos. Na infância, tivera apenas


dois temores, de curta duração: de cachorros em geral e, depois, especificamente de um cachorro que o atacou quando tinha 3 anos. Teve medo de viajar de avião, aos 7 anos, quando ouviu falar de um acidente aéreo. Sociável e querido pelas pessoas, Ralph nunca se considerou uma pessoa tímida. É possível que as crianças tímidas nasçam com circuitos neurais que as tornam mais reativas mesmo a tensões brandas — desde o nascimento, diante de circunstâncias estranhas ou novas, seus corações batem mais rápido que os de outras crianças. Com um ano e nove meses, quando os bebês reticentes ficavam de fora das brincadeiras, monitores de ritmo cardíaco mostravam que seus corações disparavam de ansiedade. Essa ansiedade, que é facilmente acionada, parece justificar sua timidez a vida toda: eles encaram cada nova pessoa ou situação como uma ameaça em potencial. Talvez por causa disso, as mulheres de meia-idade que relatam terem sido muito tímidas na infância, quando comparadas com outras que foram mais extrovertidas, tendem a viver com mais temores, preocupações e culpas, e também a ter problemas associados a tensão, como enxaquecas, constipação intestinal e problemas estomacais.3 A NEUROQUÍMICA DA TIMIDEZ Kagan acredita que a diferença entre o cauteloso Tom e o ousado Ralph está na excitabilidade de um circuito neural centrado na amígdala cortical. Ele sugere que pessoas medrosas como Tom nascem com uma neuroquímica que torna esse circuito facilmente estimulável, e por isso elas evitam o desconhecido, recuam diante da incerteza e são ansiosas. Aquelas que, como Ralph, têm um sistema nervoso calibrado com um limiar muito mais alto de estimulação da amígdala se assustam com menos facilidade, são naturalmente mais abertas e ávidas por explorar novos lugares e conhecer novas pessoas. Um primeiro sinal, na criança, de comportamento herdado é sua irritabilidade e comportamento difícil em bebê, e até onde se perturba quando diante de alguma coisa ou alguém que não conhece. Enquanto cerca de um em cinco bebês se encaixa na categoria dos tímidos, cerca de dois em cinco têm temperamento ousado — pelo menos ao nascer. Parte dos indícios coletados por Kagan vem de observações em gatos anormalmente tímidos. Cerca de um em sete gatos domésticos tem um padrão de medo semelhante ao das crianças tímidas: afasta-se das coisas novas (em vez de exibir a lendária curiosidade do gato), reluta em explorar novos territórios e ataca


apenas os roedores menores, por ser muito tímido para enfrentar os maiores, os quais seriam caçados com prazer por outros felinos, mais corajosos. Sondagens feitas diretamente no cérebro desses gatos detectaram que partes da amígdala são incomumente excitáveis, sobretudo quando, por exemplo, ouvem o rosnado ameaçador de outro gato. A timidez dos gatos surge com cerca de um mês de idade, momento em que a amígdala amadurece o suficiente para assumir o controle dos circuitos do cérebro que ordenam abordar ou evitar. Um mês de amadurecimento do cérebro de um gatinho equivale a oito num bebê humano; é aos oito ou nove meses, observa Kagan, que o medo do “desconhecido” surge nos bebês — se a mãe abandona o aposento e há um estranho presente, o bebê chora. Kagan afirma que as crianças tímidas podem ter herdado cronicamente altos níveis de norepinefrina ou outros produtos químicos cerebrais que ativam a amígdala e com isso criam um baixo limiar de excitabilidade, fazendo a amígdala disparar com mais facilidade. Um dos sinais dessa maior sensibilidade é identificável através de medições feitas em laboratório em rapazes e moças que foram muito tímidos em criança. Expostos a tensões como maus cheiros, o ritmo cardíaco deles continua muito mais elevado que o dos colegas mais abertos — um sinal de que a onda de norepinefrina mantém sua amígdala excitada e, através de circuitos neurais relacionados, também o sistema nervoso simpático.4 Kagan constatou que as crianças tímidas reagem com maior intensidade a toda a gama de índices do sistema nervoso simpático, desde uma pressão sanguínea mais alta, quando em repouso, a uma dilatação maior das pupilas e níveis mais altos de marcadores de norepinefrina na urina. O silêncio é outro barômetro de timidez. Sempre que a equipe de Kagan observou crianças tímidas e ousadas num ambiente natural — no jardim-de-infância, diante de crianças que não conheciam ou conversando com um entrevistador —, as tímidas falavam menos. Uma criança tímida de jardim-deinfância não dizia nada quando outras falavam com ela, e passava a maior parte do dia apenas olhando os outros brincarem. Kagan especula que um tímido silêncio diante da novidade ou de alguma coisa vista como uma ameaça é sinal da atividade de um circuito neural que liga o cérebro anterior, a amígdala e as estruturas límbicas próximas que controlam a capacidade de vocalizar (os mesmos circuitos que nos fazem “sufocar” sob tensão). Essas crianças sensíveis correm alto risco de apresentar problemas de ansiedade, como a crise de pânico, já a partir da sexta ou sétima série. Num estudo em 754 meninos e meninas


nessas séries, descobriu-se que 44 já haviam sofrido pelo menos um episódio de pânico, ou tinham tido vários sintomas preliminares. Esses episódios eram em geral disparados pelos alarmes comuns do início da adolescência, como o primeiro namoro ou uma prova importante — alarmes com os quais a maioria das crianças lida sem apresentar problemas mais sérios. Mas os adolescentes tímidos por temperamento e anormalmente assustados com novas situações tinham sintomas de pânico como palpitações cardíacas, respiração curta ou sensação de sufocação, juntamente com a sensação de que alguma coisa horrível ia acontecer-lhes, como enlouquecer ou morrer. Os pesquisadores acreditam que, embora os episódios não fossem suficientemente importantes para que fosse diagnosticada uma “síndrome do pânico”, esses adolescentes correriam maior risco de contrair o problema com o passar dos anos; muitos adultos que sofrem de ataques de pânico dizem que eles começaram na adolescência.5 O início dos ataques de ansiedade estavam estreitamente relacionados com a puberdade. As meninas com discretos sinais de puberdade não relataram terem tido esses ataques, mas entre aquelas que já haviam passado pela puberdade, 8% disseram que tinham sentido pânico. Quando experimentam uma crise de pânico, os adolescentes tendem a ter medo de ter a crise novamente, o que leva ao retraimento social. NADA ME PREOCUPA: O TEMPERAMENTO ANIMADO Na década de 1920, quando mocinha, minha tia June deixou sua casa na cidade de Kansas e aventurou-se numa viagem a Xangai — uma viagem, naquela época, perigosa para uma mulher sozinha. Lá, June conheceu e casou-se com um detetive britânico da força de polícia colonial daquele centro internacional de comércio e intriga. Quando os japoneses tomaram Xangai no início da Segunda Guerra Mundial, minha tia e o marido foram internados no campo de prisioneiros descrito no filme e livro O Império do Sol. Após sobreviverem a cinco horrorosos anos nesse campo, ela e o marido haviam, literalmente, perdido tudo. Sem um tostão, foram repatriados para a Colúmbia Britânica. Lembro-me da primeira vez que, em criança, vi June, uma velhinha ebuliente cuja vida tomara um rumo extraordinário. Nos últimos anos, ela sofrera um derrame que a deixou semiparalítica; após uma lenta e árdua recuperação, conseguiu voltar a andar, mas capengando. Lembro-me de que, na época, saí para passear com ela, então na casa dos 70 anos. Ela foi se afastando e, algum tempo depois, ouvi um gritinho — era June


pedindo socorro. Caíra e não conseguia se levantar sozinha. Corri para ajudá-la, e enquanto o fazia, em vez de queixar-se ou lamentar-se, ela ria de seu apuro. Apenas comentou alegremente: “Bem, pelo menos posso andar de novo.” Por alguma razão, as emoções de algumas pessoas parecem, como as da minha tia, gravitar para o pólo positivo; essas pessoas são naturalmente otimistas e dadas, enquanto outras são sombrias e melancólicas. Essa amplitude de temperamento — ebuliência numa ponta, melancolia na outra — parece estar ligada à relativa atividade das áreas pré-frontais esquerda e direita, os pólos superiores do cérebro emocional. Esse entendimento é, em grande parte, fruto do trabalho de Richard Davidson, psicólogo da Universidade de Wisconsin. Ele descobriu que as pessoas com maior atividade no lobo frontal esquerdo do que no direito são por temperamento animadas: geralmente sentem prazer em estar com outras pessoas e com o que a vida lhes oferece, dando a volta por cima dos reveses, como minha tia June. Mas aquelas com maior atividade no lado direito são dadas ao negativismo e ao azedume, e perturbam-se facilmente com os problemas da vida; num certo sentido, parecem sofrer por não poderem evitar a preocupação e a depressão. Num dos experimentos de Davidson, compararam-se voluntários que exibiam uma atividade mais pronunciada nas áreas frontais esquerdas com outros 15 que apresentavam mais atividade no lado direito. Aqueles com acentuada atividade frontal direita mostraram um padrão diferente de negativismo num teste de personalidade: encaixavam-se na caricatura retratada por Woody Allen, do alarmista que vê catástrofes nas menores coisas — medrosos e rabugentos, desconfiados de um mundo que consideram cheio de problemas terríveis e de perigos a cada esquina. Diferentemente dos melancólicos, aqueles que têm uma mais forte atividade frontal esquerda viam o mundo de uma forma bem diferente. Sociáveis e animados, tinham, geralmente, uma sensação de alegria, estavam sempre num alto astral e sentiam-se prazerosamente engajados na vida. Suas contagens de pontos em testes psicológicos sugeriam um risco menor de contrair depressão e outros problemas emocionais durante toda a vida.6 Davidson constatou que as pessoas com um histórico de depressão clínica tinham menores níveis de atividade cerebral no lobo pré-frontal esquerdo, e mais no direito, quando comparadas com outras que nunca estavam deprimidas. Encontrou o mesmo padrão em pacientes com depressão recém-diagnosticada. Davidson especula que as pessoas que superam a depressão aprenderam a aumentar o nível de atividade no lobo pré-frontal esquerdo — uma especulação que


ainda aguarda testagem experimental. Davidson diz que, embora sua pesquisa se refira aos mais ou menos 30% de pessoas nos extremos, praticamente todo mundo pode ser classificado por padrões de ondas cerebrais como tendendo para um ou outro tipo. O contraste entre tristes e alegres mostra-se de muitas formas, grandes e pequenas. Por exemplo, num experimento, voluntários viram pequenos trechos de filmes. Uns eram divertidos — um gorila tomando banho, um cachorrinho brincando. Outros, como um filme didático para enfermeiros, exibia detalhes sanguinolentos de cirurgias, eram bastante perturbadores. As pessoas cujo hemisfério direito era dominante, soturnas, acharam os filmes alegres apenas medianamente divertidos, mas sentiram extremo medo e náusea em reação à sangueira cirúrgica. As pessoas do grupo alegre reagiram muito pouco à cirurgia; reagiram com intensa alegria quando viram os filmes alegres. Assim, nós parecemos, por temperamento, preparados para responder à vida segundo um registro positivo ou negativo. A tendência para um temperamento melancólico ou alegre — como para a timidez ou ousadia — surge no primeiro ano de vida, um fato que sugere fortemente que ele seja geneticamente determinado. Como a maior parte do cérebro, os lobos préfrontais ainda estão amadurecendo nos primeiros meses de vida, e assim sua atividade não pode ser medida com segurança até em torno dos dez meses. Mas, em bebês de cerca de dez meses, Davidson descobriu que o nível de atividade nos lobos pré-frontais predizia se iam chorar quando as mães deixassem o quarto. A correlação era praticamente de 100%: de dezenas de bebês assim testados, todos os que choravam tinham mais atividade cerebral no lado direito, e entre os que não choravam, a atividade cerebral era mais acentuada no lado esquerdo. Ainda assim, mesmo que essa dimensão básica de temperamento venha de nascença, ou de muito próximo, aqueles que apresentam o padrão de tristeza não estão necessariamente condenados a levar a vida meditativos e excêntricos. O aprendizado emocional adquirido na infância pode ter um profundo impacto no temperamento, ampliando ou reduzindo uma predisposição inata. A grande plasticidade do cérebro na infância indica que as experiências então vividas podem causar um impacto duradouro no esculpir das rotas neurais para o resto da vida. Talvez a melhor ilustração dos tipos de experiência que podem melhorar o temperamento esteja na observação que surgiu da pesquisa de Kagan com crianças tímidas.


DOMANDO A AMÍGDALA SUPEREXCITÁVEL A grande novidade trazida pelos estudos de Kagan é que nem todos os bebês medrosos serão retraídos quando adultos — temperamento não é destino. Pode-se domar a amígdala superexcitável, com as experiências adequadas. O que é importante são as lições e respostas emocionais que as crianças aprendem durante o seu desenvolvimento. Para a criança tímida, o que importa no início é como ela é tratada pelos pais, e como aprende a lidar com sua timidez natural. Os pais que criam, de forma gradual, situações para que os filhos tenham experiências encorajadoras, estão lhes proporcionando uma espécie de corretivo de seu medo, para toda a vida. Cerca de um em três bebês que nascem com todos os sinais de amígdala superexcitável perde a timidez quando chega ao jardim-de-infância.7 Observações que foram feitas junto a crianças que, em casa, eram medrosas constatam que os pais, sobretudo as mães, desempenham um papel importante para determinar se uma criança, com o decorrer dos anos, vai se tornar mais ousada ou continuará a fugir do que é novo e perturbar-se diante de um desafio. A equipe de pesquisa de Kagan constatou que algumas das mães tinham como premissa proteger os bebês tímidos de qualquer coisa perturbadora; outras achavam mais importante ajudá-los a enfrentar situações e, desta forma, adaptarem-se às pequenas batalhas da vida. A conduta protetora avalizou o medo, e provavelmente privou as crianças de oportunidades para aprenderem a superar o medo. A filosofia do “aprender a adaptar-se” na criação dos filhos parece ter ajudado crianças medrosas a tornarem-se mais corajosas. Observações feitas na casa dos bebês quando eles tinham cerca de seis meses constataram que as mães protetoras, ao tentarem dar consolo aos filhos, lhes davam colo quando ficavam inquietos ou choravam, e faziam isso por mais tempo do que as mães que tentavam ajudar os bebês a dominar esses momentos de perturbação. A incidência das vezes em que os bebês eram postos no colo quando estavam calmos e quando estavam perturbados demonstrou que as mães protetoras ficavam com o bebê no colo muito mais tempo durante os períodos de perturbação do que em períodos calmos. Foi identificado um outro tipo de comportamento quando os bebês já tinham mais ou menos um ano: as mães protetoras eram mais tolerantes, não eram explícitas na imposição de limites quando eles faziam alguma coisa perigosa, como pôr na boca um objeto que podiam engolir. As outras mães, ao contrário, eram enfáticas, impunham limites com firmeza, dando


ordens diretas, impedindo que a criança agisse de uma determinada forma, insistindo na obediência. Por que a firmeza diminuiria o medo? Kagan especula que algo é aprendido quando o bebê engatinha em direção a algo que para ele é intrigante (mas que é perigoso, segundo o julgamento da mãe), mas é detido com uma advertência: “Afaste-se disso!” O bebê é, de repente, obrigado a lidar com uma leve incerteza. A repetição desse desafio centenas e centenas de vezes no primeiro ano de vida proporciona ao bebê contínuos ensaios, em pequenas doses, para o enfrentamento, na vida, do inesperado. No caso de crianças medrosas, é exatamente esse tipo de contato que tem de ser dominado, e doses controláveis bastam para que elas aprendam. Quando o fato acontece com pais que, embora amorosos, não correm a pegar e consolar o bebê a cada pequena perturbação, ele vai aprendendo aos poucos, e por si só, a lidar com tais momentos. Aos 2 anos, crianças medrosas que retornam ao laboratório de Kagan estão menos medrosas e com menor probabilidade de romper no choro quando um estranho faz uma careta, ou um pesquisador aperta um medidor de pressão em torno de seu braço. Conclusão de Kagan: — Aparentemente, as mães que protegem seus bebês que reagem intensamente diante de frustrações e que são ansiosos, na esperança de obterem um bom resultado, na verdade exacerbam a insegurança do bebê e produzem o efeito contrário.8 Em outras palavras, a estratégia protetora sai pela culatra, privando os bebês tímidos da oportunidade de acalmarem-se diante do desconhecido, e com isso adquirir um pequeno domínio de seus medos. No nível neurológico, supostamente, isso significa que seus circuitos pré-frontais perderam a oportunidade de aprender respostas alternativas ao medo intenso; ao contrário, a tendência ao medo desabrido pode ter sido fortalecida simplesmente pela repetição. Por outro lado, disse Kagan: — As crianças que se tornaram menos tímidas quando chegam ao jardim-de-infância parecem ter tido pais que lhes aplicavam delicada pressão para serem mais expansivas. Embora esse traço experimental pareça ligeiramente mais difícil de mudar — provavelmente devido à sua base fisiológica —, nenhuma qualidade humana é imutável. Por toda a infância, algumas crianças tímidas vão se encorajando mais à medida que a experiência continua a moldar os principais circuitos neurais. Um dos sinais de que a criança tímida terá mais probabilidade de superar essa inibição


natural é o fato de ela ter ou não um nível superior de aptidão social: ser cooperativa e se dar bem com outras crianças; ser empática, inclinada a dar e dividir, e atenciosa; e poder criar amizades íntimas. Esses traços eram característicos de um grupo de crianças identificadas primeiro como sendo tímidas aos 4 anos, e que, aos 10, já não apresentavam mais o problema.9 Ao contrário, as crianças tímidas de 4 anos cujo temperamento pouco mudou ao longo daqueles mesmos seis anos tendiam a ser menos capazes emocionalmente: choravam e se desmontavam facilmente sob tensão; eram emocionalmente incompetentes; medrosas, rabugentas ou caprichosas; demasiado sensíveis à crítica, ou desconfiadas. Essas falhas emocionais, é claro, provavelmente significam que, se puderem superar a relutância inicial de juntarem-se a outras crianças, o seu relacionamento com elas não será agradável. Ao contrário, é fácil ver por que crianças emocionalmente mais competentes — embora tímidas por temperamento — superam espontaneamente sua timidez. Porque mais hábeis nos contatos sociais, tinham maior probabilidade de ter uma série de experiências positivas com outras crianças. Mesmo que hesitassem, digamos, em falar com um novo coleguinha, assim que o gelo quebrava elas eram capazes de ser socialmente brilhantes. A repetição regular desses sucessos sociais durante muitos anos naturalmente fazia com que os tímidos ficassem mais seguros de si. Esses avanços para a ousadia são encorajadores; sugerem que mesmo os padrões emocionais inatos podem mudar em certa medida. A criança que nasce com tendência a se assustar pode aprender a ser mais tranqüila, ou mesmo aberta, diante do desconhecido. O sentimento de medo — ou qualquer outro temperamento — pode, em parte, ser um dado biológico para a nossa vida emocional, mas não estamos necessariamente limitados por nossos traços hereditários a um cardápio emocional específico. Há uma gama de possibilidades mesmo dentro dessas limitações genéticas. Como observam os geneticistas comportamentais, os genes, por si só, não determinam o comportamento; o ambiente em que vivemos, sobretudo quando experimentamos e aprendemos enquanto crescemos, molda a maneira de uma predisposição temperamental manifestar-se no desenrolar da vida. Nossas aptidões emocionais não são um fato determinado; com o aprendizado certo, podem ser aperfeiçoadas. Isto está ligado à maneira como o cérebro humano amadurece. INFÂNCIA: MOMENTO DE BOAS OPORTUNIDADES


O cérebro humano não está totalmente formado no nascimento. Continua a moldar-se durante a vida, com um ritmo mais intenso de crescimento durante a infância. As crianças nascem com muito mais neurônios do que reterá o seu cérebro maduro; por um processo conhecido como “poda”, o cérebro, na verdade, perde as ligações neuronais menos usadas e forma outras, fortes, nos circuitos sinápticos mais utilizados. A poda, eliminando sinapses estranhas, melhora a relação sinal-ruído no cérebro, eliminando a causa do “ruído”. O processo é constante e rápido; formam-se ligações sinápticas em questão de horas ou dias. A experiência, sobretudo na infância, esculpe o cérebro. A clássica demonstração do impacto da experiência no desenvolvimento do cérebro foi feita pelos ganhadores do Prêmio Nobel Thorsten Wiesel e David Hubel, ambos neurocientistas.10 Eles mostraram que nos gatos e macacos havia um período crítico, durante os primeiros meses de vida, para o desenvolvimento das sinapses que levam os sinais do olho ao córtex visual, onde são interpretados. Se um olho fosse fechado durante esse período, o número de sinapses desse olho para o córtex visual reduzia-se, e o número das do olho aberto multiplicava-se. Se, depois de encerrado o período crítico, se reabria o olho fechado, o animal estava funcionalmente cego desse olho. Embora não houvesse problema com o olho propriamente dito, os circuitos para o córtex visual eram muito reduzidos para que os sinais desse olho fossem interpretados. Nos seres humanos, o período crítico correspondente para a visão são os seis primeiros anos de vida. Durante esse tempo, a visão normal estimula a formação de circuitos neurais cada vez mais complexos para a visão que começa no olho e termina no córtex visual. Caso se tape o olho da criança, ainda que por umas poucas semanas, isso pode produzir um déficit mensurável na acuidade visual desse olho. Se a criança tem um olho fechado durante vários meses nesse período, e depois o restauram, a visão desse olho estará prejudicada para a percepção de detalhes. Uma vívida demonstração do impacto da experiência no cérebro em desenvolvimento está nos estudos de ratos “ricos” e “pobres”.11 Os ratos “ricos” viviam em pequenos grupos em gaiolas com bastantes diversões, como escadas e esteiras rolantes. Os ratos “pobres” viviam em gaiolas semelhantes mas sem nada, nem diversões. Durante meses, os neocórtices dos ratos ricos desenvolveram redes muito mais complexas de circuitos sinápticos interligando os neurônios; os circuitos neuronais dos ratos pobres, em comparação, eram esparsos. A diferença era tão grande que os cérebros dos ratos ricos eram mais pesados, e, o que talvez não surpreenda, eles eram muito


mais espertos na saída de labirintos que os ratos pobres. Experiências semelhantes com macacos mostram essas diferenças entre “ricos” e “pobres”, e com certeza o mesmo efeito se dá nos seres humanos. A psicoterapia — isto é, o reaprendizado emocional sistemático — surge como um exemplo de como a experiência pode, ao mesmo tempo, mudar padrões emocionais e moldar o cérebro. A demonstração mais sensacional vem de um estudo de pessoas que estavam se tratando de perturbações obsessivocompulsivas.12 Uma das compulsões mais comuns é lavar as mãos, o que é feito muitas vezes, até mesmo centenas de vezes por dia, a ponto de a pele da pessoa rachar. Estudos analíticos de varredura PET mostram que os obsessivo-compulsivos têm uma atividade maior que a normal nos lobos pré-frontais.13 Metade dos pacientes sob estudo recebeu o tratamento químico padrão, fluoxetina (mais conhecida pelo nome comercial de Prozac), e metade fez terapia comportamental. Durante a terapia, foram sistematicamente expostos ao objeto de sua obsessão ou compulsão sem satisfazê-la; pacientes com compulsão para lavar as mãos foram postos junto a uma pia, mas sem permissão de lavá-las. Ao mesmo tempo, aprendiam a questionar os temores e medos que os mobilizavam — por exemplo, não lavar as mãos significava que iam pegar uma doença e morrer. Aos poucos, após meses de tais sessões, as compulsões foram acabando, tal como se deu através do uso de medicamentos! A descoberta notável, porém, foi um teste de varredura PET que mostrou que os pacientes em terapia comportamental tinham uma redução tão significativa na atividade de uma partechave do cérebro emocional, o núcleo caudato, quanto os pacientes que foram tratados, com sucesso, com a fluoxetina. A experiência deles mudara a função cerebral — e aliviara os sintomas — tão eficazmente quanto a medicação. MOMENTOS CRUCIAIS De todas as espécies, a nossa — seres humanos — é a que requer mais tempo para o amadurecimento do cérebro. Embora cada área do cérebro se desenvolva em ritmo diferente durante a infância, o início da puberdade assinala um dos períodos mais abrangentes de poda em todo o cérebro. Várias áreas cerebrais críticas para a vida emocional são as de mais lento amadurecimento. Embora as áreas sensoriais amadureçam durante a primeira infância, e os sistemas límbicos, na puberdade, os lobos frontais — sede do autocontrole emocional, compreensão e hábil resposta — continuam a se desenvolver


até o fim da adolescência, num momento qualquer entre os 16 e os 18 anos.14 Os hábitos de controle emocional repetidos muitas vezes durante a infância e na adolescência ajudam, por si, a moldar esses circuitos. Isso faz com que a infância seja um momento crucial para que sejam moldadas, para toda a vida, as tendências emocionais; os hábitos adquiridos na infância tornamse fixos na fiação sináptica básica da arquitetura neural e são mais difíceis de mudar em idade mais avançada. Dada a importância dos lobos pré-frontais no controle da emoção, o amplo espaço de tempo para a escultura sináptica nessa região do cérebro talvez possa significar que, no grande projeto do cérebro, as experiências vividas pela criança, ao longo dos anos, moldam ligações duradouras nos circuitos reguladores do cérebro emocional. Como vimos, dentre as mais importantes experiências que uma criança pode ter, é a constatação de até onde seus pais são confiáveis e atendem às suas necessidades, as oportunidades e orientação que a criança tem no aprendizado de como lidar com sua perturbação e controlar o impulso, e a prática da empatia. Pelo mesmo motivo, o abandono ou os maus-tratos, a falta de sintonia de um pai que gira apenas em torno de si mesmo, ou indiferente ou uma disciplina brutal deixam sua marca nos circuitos emocionais.15 Uma das mais essenciais lições emocionais, aprendida primeiro no início da infância e durante toda ela aprimorada, é como consolar-se quando perturbado. Para os bebês muito novos, o consolo vem de quem cuida deles: a mãe ouve o bebê chorar, pega-o no colo e balança-o até acalmá-lo. Essa sintonia biológica, sugerem alguns teóricos, ajuda a criança a aprender a fazer o mesmo sozinha.16 Durante o período crítico entre dez meses e um ano e meio, a área orbitofrontal do córtex préfrontal está formando rapidamente as ligações com o cérebro límbico que o transformarão numa chave liga-desliga para a perturbação. O bebê que, em incontáveis episódios em que é consolado, recebe ajuda para aprender a acalmar-se, especulase, terá ligações mais fortes nesse circuito para controle da perturbação, e assim, por toda a vida, saberá consolar-se quando perturbado. É evidente que a arte de se consolar requer muitos anos de aprendizagem e com novos meios, já que o amadurecimento do cérebro oferece à criança, progressivamente, ferramentas emocionais mais sofisticadas. Lembrem, os lobos pré-frontais, tão importantes no controle do impulso límbico, amadurecem na adolescência.17 Outro circuito-chave que continua a formar-se na infância centra-se no nervo vago, que, numa ponta, regula o coração e outras partes do corpo e, na outra, envia sinais das


adrenais para a amígdala, levando-a a secretar as catecolaminas, que preparam a resposta lutar-ou-fugir. Uma equipe da Universidade de Washington que avaliou o impacto na criação de filhos descobriu que pais emocionalmente capazes causavam uma melhora na função do nervo vago. Como explicou John Gottmnan, o psicólogo que chefiou a pesquisa: — Os pais modificam o tom vagal dos filhos (uma medida da facilidade com que o nervo vago é disparado), treinando-os emocionalmente: conversando com eles sobre seus sentimentos e como compreendê-los, não sendo críticos nem julgadores, solucionando problemas de sofrimento sentimental, ensinandolhes o que fazer, como outras alternativas em vez de bater ou retirar-se quando se está triste. Quando os pais desempenham bem essa função, as crianças são mais capazes de suprimir a atividade vagal que mantém a amígdala preparando o corpo com hormônios para lutar-oufugir — e assim se comportam melhor. É racional que as aptidões-chave da inteligência emocional tenham, cada uma, períodos críticos que se estendem por vários anos na infância. Cada período oferece espaço para que a criança possa adquirir hábitos emocionais benéficos, ou, se perdida a oportunidade, dificultar a recepção, mais tarde, de lições corretivas. O esculpimento e a poda maciça dos circuitos neurais na infância podem ser um dos motivos subjacentes pelos quais as primeiras dificuldades e traumas emocionais têm efeitos tão duradouros e generalizados na idade adulta. Também podem explicar por que a psicoterapia muitas vezes leva tanto tempo para alterar um desses padrões — e por quê, como vimos, mesmo após a terapia esses padrões tendem a permanecer como tendências subjacentes, embora com uma cobertura de novas intuições e respostas reaprendidas. É claro que o cérebro permanece maleável durante toda a vida, embora não na medida espetacular vista na infância. Todo aprendizado implica alteração cerebral, o fortalecimento de uma ligação sináptica. As mudanças no cérebro dos pacientes com perturbações obsessivo-compulsivas mostram que os hábitos emocionais são maleáveis, em qualquer momento da vida, desde que haja um esforço constante, mesmo no nível neural. O que acontece com o cérebro no PTSD (ou na terapia, aliás) é um análogo dos efeitos trazidos por todas as experiências emocionais repetidas ou intensas, para melhor ou para pior. Algumas das mais reveladoras dessas lições são dos pais para o filho. Há muitos hábitos emocionais diferentes instilados pelos pais cuja sintonia significa que as necessidades emocionais


de uma criança são reconhecidas e satisfeitas, ou cuja disciplina inclui empatia, de um lado, ou pais egocêntricos, que ignoram a aflição da criança ou a disciplinam severamente, gritando e batendo. Grande parte da psicoterapia é, num certo sentido, um remédio mediante orientação e aconselhamento sobre o que, antes, foi distorcido ou completamente perdido. Mas por que não fazermos o possível para prevenir essa necessidade, dando às crianças, de pronto, a proteção e orientação que cultivam as aptidões emocionais essenciais?


PARTE CINCO ALFABETIZAÇÃO EMOCIONAL


15 Quanto Custa o Analfabetismo Emocional Tudo começou com uma briguinha, mas degringolou. Ian Moore, graduando do Ginásio Jefferson, no Brooklyn, e Tyrone Sinkler, do primeiro ano, tinham brigado com um colega, Khalil Sumpter, de 15 anos. Depois passaram a provocá-lo e a ameaçá-lo. Foi aí que a coisa explodiu. Khalil, com medo de que Ian e Tyrone fossem lhe bater, levou uma pistola calibre 38 para a escola e, a uns 3 metros do guarda do ginásio, matou os dois garotos com tiros disparados à queima-roupa no corredor. O fato é muito chocante. Mas é também mais um indicador, à nossa disposição, para que tomemos consciência da necessidade, urgente, de ensinamentos que objetivem o controle das emoções, as resoluções de desentendimentos de forma pacífica e, enfim, a boa convivência entre as pessoas. Os educadores, há muito preocupados com as notas baixas dos alunos em matemática e leitura, começam a constatar que existe um outro tipo de deficiência e que é mais alarmante: o analfabetismo emocional.1 Apesar dos louváveis esforços que visam melhorar o desempenho acadêmico, esse novo tipo de deficiência ainda não ganhou espaço no currículo escolar. Como disse um professor do Brooklyn, a atual ênfase do ensino parece sugerir que “nos preocupamos mais com a qualidade da leitura e escrita dos alunos do que em saber se eles vão estar vivos na semana que vem”. Podemos ver sinais dessa deficiência em incidentes violentos como o que foi relatado anteriormente, e que se tornam cada vez mais freqüentes nas escolas norte-americanas. Esses não são casos isolados. Nos Estados Unidos — país que é arauto da tendência mundial —, as estatísticas mostram um aumento da turbulência entre os adolescentes e de problemas da infância.2 Em 1990, comparativamente com as duas décadas anteriores, os Estados Unidos tiveram um aumento de prisões de jovens que praticaram crimes violentos; as prisões de adolescentes por estupro dobraram; o número de assassinatos cometidos por adolescentes quadruplicaram, em sua maioria devido ao aumento de tiroteios.3 Durante as mesmas duas décadas, o número de suicídios entre adolescentes triplicou, e também triplicou o número de menores de 14 anos vítimas de assassinato.4 Um maior número de adolescentes, e cada vez mais jovens,


engravida. Em 1993, constatou-se que o número de meninas, entre 10 e 14 anos, que se tornaram mães aumentara constantemente durante cinco anos seguidos — elas são os “bebês que têm bebês” —, e a mesma ocorrência se deu com a proporção de gestação indesejada em adolescentes e a pressão de colegas para fazer sexo. As taxas de doenças venéreas triplicaram nas últimas três décadas.5 Embora esses números sejam desencorajadores, se olharmos a juventude afro-americana, sobretudo nos centros urbanos, eles são absolutamente sombrios — todos os percentuais são muito mais altos, às vezes triplicados, ou ainda mais altos. Por exemplo, o uso de heroína e cocaína entre a juventude branca subiu cerca de 300% nas duas décadas antes da de 90; entre os afro-americanos, saltou assombrosas 13 vezes o percentual de vinte anos antes.6 A maior causa de invalidez entre adolescentes é psicológica. Sintomas de depressão, severa ou branda, afetam até um terço dos adolescentes; nas garotas, a incidência de depressão dobra na puberdade. A incidência de problemas caracterizados como desordens de alimentação entre adolescentes atingiu nível estratosférico.7 Finalmente, a menos que algo de novo aconteça, as perspectivas a longo prazo de os jovens casais viverem juntos de forma frutífera e estável tornam-se cada vez mais lúgubres a cada geração. Como vimos no Capítulo 9, enquanto nas décadas de 1970 e 80 o percentual de divórcio era por volta de 50%, quando entramos na década de 1990 a previsão era de que dois em três recém-casados se divorciariam. MAL-ESTAR EMOCIONAL Essas estatísticas alarmantes são como o canário no túnel do trabalhador de mina de carvão, cuja morte avisa que há pouco oxigênio. As estatísticas, porém, não mostram o que ainda não se configurou como crise de fato. As circunstâncias problemáticas em que vivem nossas crianças podem ser vistas em níveis mais sutis, no dia-a-dia de suas vidas. Talvez os mais reveladores de todos os dados — um barômetro direto da queda nos níveis de competência emocional — venham de uma amostragem nacional de crianças americanas de 7 a 16 anos, que comparou sua condição emocional em meados da década de 1970 e no fim da de 80.8 Com base em avaliações de pais e professores, houve uma piora constante. Nenhum problema se destacou; todos os indicadores simplesmente apontaram para o lado negativo. As crianças, em média, não estavam bem nos seguintes pontos específicos:


• Retraimento ou problemas de relacionamento social: preferir ficar só; ser cheio de segredos; amuar-se muito; falta de energia; sentir-se infeliz; ser muito dependente. • Ansioso e deprimido: ser solitário; ter muitos medos e preocupações; auto-exigência exacerbada; não se sentir amado; sentir-se nervoso, triste e deprimido. • Problemas de atenção ou de raciocínio: dificuldade de concentração; devaneio; agir impulsivamente; nervoso demais para concentrar-se; mau desempenho escolar; incapacidade de afastar pensamentos. • Delinqüente ou agressivo: andar com garotos que se metem em encrencas; mentir e trapacear; discutir muito; ser mau com os outros; chamar atenção para si; destruir as coisas dos outros; desobedecer em casa e na escola; ser teimoso e macambúzio; falar demais; provocar demais; ter pavio curto. Ainda que cada um desses problemas, isoladamente, não seja preocupante, como um todo são barômetros de uma mudança de maré, de um novo tipo de toxicidade vazando e envenenando a experiência da infância, significando abrangentes déficits de aptidões emocionais. Esse mal-estar emocional parece ser o preço que a modernidade cobra às crianças. Embora os americanos muitas vezes alardeiem seus problemas como particularmente ruins em comparação com outras culturas, estudos em todo o mundo constatam taxas do mesmo nível ou piores que nos Estados Unidos. Por exemplo, na década de 1980, professores e pais na Holanda, China e Alemanha diziam que as crianças desses países tinham mais ou menos os mesmos tipos de problemas identificados, em 1976, nas crianças americanas. E, em alguns países, o problema infantil era pior que aqueles hoje identificados nas crianças dos Estados Unidos, entre eles a Austrália, França e Tailândia. Mas isso talvez não continue assim por muito tempo. Comparadas às de muitos outros países desenvolvidos, as forças maiores que empurram para baixo a espiral descendente em competência emocional parecem estar ganhando velocidade nos Estados Unidos.9 Nenhuma criança, rica ou pobre, é imune a problemas; isso é universal e ocorre em todos os grupos étnicos, raciais e de renda. Assim, embora as crianças pobres tenham o pior registro em indicadores de aptidões emocionais, a respectiva taxa de deterioração com o correr das décadas não foi pior que aquela das crianças da classe média ou rica: todas mostram uma queda constante. Também houve um triplo aumento correspondente no número de crianças que receberam ajuda psicológica (talvez um bom sinal, que indica a disponibilidade de mais ajuda), além


de uma quase duplicação do número de crianças com problemas emocionais que sugerem a necessidade desse tipo de ajuda, mas que não a recebem (um mau sinal) — de cerca de 9% em 1976 para 18% em 1989. Urie Bronfenbrenner, eminente psicólogo da Universidade de Cornell, que realizou uma pesquisa comparativa sobre o bemestar de crianças, em nível internacional, declara: — Na falta de bons sistemas de apoio, as tensões externas tornaram-se tão grandes que mesmo famílias bem-estruturadas estão desmoronando. A atividade febril, instabilidade e inconsistência da vida diária grassam em todos os segmentos de nossa sociedade, incluindo os bem-educados e ricos. O que está em jogo é a próxima geração, sobretudo a dos homens que, quando adultos, ficam especialmente vulneráveis a forças desintegradoras como os efeitos devastadores do divórcio, da pobreza e do desemprego. O status das crianças e famílias americanas está mais desesperador que nunca... Estamos privando milhões de crianças da competência e caráter moral.10 Esse não é um fenômeno americano, mas global. A competitividade econômica, em nível mundial, que barateia o custo da mão-de-obra, cria forças econômicas que pressionam a família. Vivemos tempos de famílias economicamente acossadas, em que os pais trabalham muitas horas, de modo que os filhos são deixados por sua própria conta e risco ou aos cuidados da televisão, a babá substituta; em que mais crianças do que nunca são criadas na pobreza; em que famílias-de-um-só-pai ou mãe são cada vez mais comuns; em que mais bebês e crianças pequenas são deixados em creches tão mal equipadas que equivalem ao abandono. Tudo isso acarreta, mesmo para pais bem-intencionados, a perda, cada vez maior, de incontáveis oportunidades para pequenos e protetores intercâmbios com seus filhos, fundamentais para o desenvolvimento das aptidões emocionais. Se as famílias não mais têm condições de dar aos seus filhos um embasamento para que pisem em solo firme, o que devemos fazer? Um olhar mais atento sobre o mecanismo dos problemas específicos sugere como determinados dados sobre aptidões emocionais ou sociais colocam as fundações para graves problemas — e como corretivos ou preventivos bem orientados podem manter mais crianças no caminho certo. DOMANDO A AGRESSÃO Em minha escola primária, o valentão era Jimmy, quartanista quando entrei na primeira série. Era ele quem roubava o


dinheiro da nossa merenda, tomava nossa bicicleta, preferia bater a conversar conosco. Era o arruaceiro clássico, partindo para a briga à menor provocação, ou sem que houvesse qualquer provocação. Todos tínhamos medo dele — e nos mantínhamos a distância. Todos o detestavam e temiam; ninguém queria brincar com ele. Era como se houvesse, por onde quer que ele andasse no pátio, um invisível guarda-costas que afastava as crianças da frente dele. Garotos como Jimmy são visivelmente problemáticos. Mas o que talvez não seja tão óbvio é que uma agressividade tão flagrante na infância é sinal de que, no futuro, esses garotos problemáticos sofrerão perturbações emocionais e de outra ordem. Jimmy já estava preso por agressão aos 16 anos. O que a agressividade na infância lega para o resto da vida de garotos como Jimmy consta de muitos estudos.11 Como vimos, a vida em família dessas crianças agressivas inclui, normalmente, pais que alternam abandono com castigos severos e arbitrários, um comportamento que, talvez compreensivelmente, torna a criança meio paranóica ou belicosa. Nem todas as crianças raivosas são brigonas; algumas são marginalizados sociais retraídos, que reagem com exagero às provocações ou ao que consideram ser ofensa ou injustiça. Mas uma falha de percepção comum a essas crianças agressivas é que elas vêem pequenas ofensas onde não há intenção, imaginando que os colegas lhe são mais hostis do que na verdade são. Isso as leva a interpretar atos insignificantes como ameaças — um inocente esbarro é visto como uma provocação — e a contra-atacar. Isso, claro, faz com que as outras crianças as evitem, tornando-as ainda mais isoladas. Essas crianças zangadas, isoladas, são muitíssimo sensíveis a injustiças e a tratamentos que não sejam isentos. Em geral, se sentem como vítimas e podem citar uma série de circunstâncias em que, por exemplo, os professores as culparam por terem feito algo que de fato não fizeram. Outra característica dessas crianças é que, uma vez no calor da raiva, só pensam num modo de reagir: na porrada. Essa percepção distorcida pode ser constatada através de experimentos laboratoriais, em que os brigões são emparelhados com crianças mais pacíficas, numa sessão de vídeos. Num dos vídeos, um garoto deixa cair os livros quando outro esbarra nele, e as crianças em redor riem; o garoto que deixou cair os livros se zanga e tenta bater num dos que riram. No comentário sobre o filme, o brigão acha que o garoto que bateu estava certo. Mais revelador ainda, quando têm de classificar a agressividade dos garotos durante a discussão sobre o filme, os brigões consideram


que o garoto que esbarrou no outro é mais combativo, e que a raiva do menino que bateu é justificada.12 Esse julgamento precipitado denuncia uma profunda distorção perceptiva nas pessoas que em geral são agressivas: agem com base na presunção de hostilidade ou ameaça, dando muito pouca atenção ao que de fato se passa. Assim que presumem ameaça, partem para a ação. Por exemplo, se um garoto agressivo joga xadrez com outro que mexe uma pedra fora de hora, ele acha que houve “trapaça”, sem parar para pensar se foi um engano. Ele sempre supõe a maldade, nunca a inocência; e a reação é de hostilidade automática. Juntamente com a percepção reflexa de um ato hostil, vem uma agressão igualmente automática; em vez de, digamos, chamar a atenção do outro para o engano, ele parte para a acusação, berrando, batendo. E quanto mais essas crianças agridem, mais automática se torna a agressão, e mais o repertório de alternativas — a polidez, o gracejo — fica reduzido. Essas crianças são emocionalmente vulneráveis, pois têm um baixo limiar de perturbação, irritando-se muitas vezes com as mais variadas coisas; uma vez perturbadas, não raciocinam com clareza, de modo que vêem atos benignos como hostis e recaem no superaprendido hábito de bater.13 Essas distorções perceptivas para a hostilidade já estão a postos na primeira série. Enquanto a maioria das crianças, e sobretudo os meninos, é bagunceira no jardim-de-infância e na primeira série, as mais agressivas não aprenderam um mínimo de autocontrole na segunda série. Quando outras crianças já começaram a aprender a negociar e a chegar a um acordo nas desavenças que ocorrem no pátio, os brigões optam cada vez mais pela força e pelo grito. Eles pagam um preço social: após duas ou três horas do primeiro contato no pátio de recreio com um brigão, as outras crianças já declaram que não gostam dele.14 Mas estudos que acompanharam crianças desde os anos do pré-escolar até a adolescência constatam que metade dos alunos que na primeira série eram desordeiros, incapazes de se dar com os outros, desobedientes com os pais e resistentes com os professores se torna delinqüente na adolescência.15 Claro, nem todas essas crianças agressivas seguem o caminho que conduz à violência e à criminalidade na vida posterior. Mas, de todas as crianças, são essas as que tendem a cometer crimes violentos. A tendência para o crime aparece muitíssimo cedo na vida dessas crianças. Quando crianças de um jardim-de-infância de Montreal foram classificadas por grau de hostilidade e criação de caso, aquelas a quem, aos 5 anos, fora atribuído um mais alto grau, já tinham dado muito mais provas de delinqüência apenas


cinco a oito anos depois, no início da adolescência. Comparadas com outras crianças, havia a possibilidade três vezes maior de haverem batido em alguém sem motivo, furtado lojas, usado arma numa briga, arrombado ou roubado peças de carro e se embriagado — tudo isso antes de chegarem aos 14 anos.16 Crianças que, na primeira e segunda séries, são agressivas e difíceis de lidar, já apresentam um protótipo de violência e criminalidade.17 Em geral, desde os primeiros anos de escola elas apresentam dificuldades no controle de impulsos, o que contribui para que sejam más alunas, vistas e vendo-se como “burras” — um julgamento que se confirma ao serem encaminhadas para classes de educação especial (e nem todas elas têm um maior grau de “hiperatividade” e problemas na aprendizagem). As crianças que, ao entrarem na escola, já trazem de casa um estilo “coercitivo” — ou seja, ameaçador — também são descartadas pelos professores, que têm de passar muito tempo mantendo a disciplina. O não-cumprimento das regras da sala de aula que é característico dessas crianças as faz disperdiçar um tempo que poderia ser utilizado para aprenderem; o futuro fracasso acadêmico se torna óbvio por volta da terceira série. Embora os meninos propensos à delinqüência tendam a ter QI mais baixo, o que está mais diretamente em causa é a impulsividade deles: a impulsividade em meninos de 10 anos é um indicador de delinqüência muito mais seguro do que o nível de seus QIs.18 Na quarta ou quinta séries, esses garotos — a essa altura considerados como arruaceiros, ou apenas “difíceis” — são rejeitados pelos colegas e incapazes de fazer amigos com facilidade, quando o fazem, e já se tornaram fracassos acadêmicos. Sentindo-se sem amigos, gravitam para o lado de outros que também são socialmente marginalizados. Entre a quarta série e o segundo grau, ligam-se a esse grupo e passam a praticar atos de desrespeito à lei; aí, quintuplicam as faltas às aulas, o consumo de bebidas e drogas, que aumenta consideravelmente entre a sétima e a oitava séries. No secundário, junta-se a eles outro tipo de “atrasados”, atraídos por seu estilo contestador; esses atrasados muitas vezes são meninos completamente sem supervisão em casa, e que começaram a vagar pelas ruas já no primário. No ginásio, esse grupo marginalizado normalmente abandona a escola, descamba para a delinqüência, dedicando-se a pequenos delitos como furtos em lojas, roubos e tráfico de drogas. (Uma diferença reveladora surge nessa trajetória entre meninos e meninas. Um estudo de meninas “más” na quarta série — que criam caso com os professores e violam regras, mas que não são rejeitadas pelas colegas — constatou que 40%


delas se tornaram mãe já no final do ginásio.19 Isso era três vezes a taxa de gravidez para as garotas de suas escolas. Em outras palavras, as adolescentes anti-sociais não se tornam violentas — ficam grávidas.) Não há, claro, uma única via para a violência e a criminalidade. Há outros fatores, como a criança nascer num bairro de alta criminalidade, onde ficam expostas a mais tentações ao crime e à violência, vir de uma família que vive sob grande tensão, ou viver na pobreza. Mas nenhum desses fatores é determinante para uma vida criminal. Tudo mais sendo igual, as forças psicológicas que atuam em crianças agressivas aumentam muito a probabilidade de virem a ser criminosos violentos. Como diz Gerald Patterson, um psicólogo que seguiu de perto as carreiras de centenas de meninos até a idade adulta: — Os atos anti-sociais de um menino de 5 anos podem ser protótipos dos atos do adolescente delinqüente.20 ESCOLA PARA ARRUACEIROS A distorção mental que as crianças agressivas carregam pela vida afora quase sempre determina que elas vão levar uma vida complicada. Um estudo de criminosos juvenis condenados por crimes violentos e de ginasianos agressivos constatou que havia entre eles um determinado tipo de disposição mental: quando têm problemas com alguém, essa pessoa é vista como um antagonista e concluem que ela é hostil, sem buscar qualquer outra informação nem tentar pensar numa maneira pacífica de acertar suas diferenças. Ao mesmo tempo, nunca lhes passa pela cabeça as conseqüências negativas de uma ação violenta — uma briga, normalmente. Justificam a agressividade com crenças do tipo: “Está certo bater em alguém quando você fica com muita raiva”; “Se você fugir da briga, todo mundo vai achar que você é covarde” e “As pessoas que apanham muito na verdade não sofrem tanto assim”.21 Mas uma ajuda oportuna pode fazer com que esse tipo de predisposição se altere e seja detida a trajetória para a delinqüência: vários programas experimentais têm tido algum sucesso na ajuda a esses garotos agressivos para aprenderem a controlar sua tendência anti-social antes que se metam em problemas mais sérios. Um, na Universidade Duke, trabalhou com garotos raivosos que criam caso na escola primária, em sessões de treinamento de quarenta minutos, duas vezes por semana, durante períodos que foram de um mês e meio a três meses. Ensinou-se aos garotos, por exemplo, a ver que alguns dos sinais sociais que eles interpretavam como hostis eram, na verdade, neutros ou amistosos. Aprenderam a adotar a


perspectiva de outras crianças, a saber como eram vistos pelos outros e a perceber o que outras crianças poderiam estar pensando e sentindo nos embates que os deixavam tão irados. Também receberam treinamento direto de controle da raiva através de encenações de provocações, que podiam levá-los a perder a calma. Uma das aptidões-chave para o controle da raiva consistia em monitorar os próprios sentimentos — tomar consciência das sensações corporais, como o enrubescimento e a tensão muscular quando estavam começando a ficar zangados e considerar essas sensações como um alarme: deviam parar e pensar como reagir, em vez de agir impulsivamente. John Lochman, psicólogo da Universidade Duke que foi um dos idealizadores do programa, disse: — Eles discutem situações que viveram recentemente, como receber no corredor um encontrão que julgam proposital. Os garotos dizem como poderiam ter agido. Um deles disse, por exemplo, que simplesmente encararia o garoto que esbarrasse nele e lhe diria para não fazer mais aquilo, e seguiria em frente. Isso o punha em posição de exercer algum controle e manter a auto-estima, sem iniciar uma briga. Esse programa tem um forte apelo; muitos garotos agressivos ficam infelizes por terem perdido tão facilmente a calma e, portanto, são receptivos ao treinamento que lhes ensine como controlá-la. No calor do momento, claro, respostas sóbrias como afastar-se ou contar até dez, até passar o impulso de agredir, antes de reagir, não são automáticas; os meninos praticam tais alternativas em cenas onde desempenham papéis como entrar num ônibus onde outros garotos o provocam. Assim, podem experimentar respostas amistosas que preservem sua dignidade e lhes dêem, ao mesmo tempo, uma alternativa que não seja bater, chorar ou fugir envergonhado. Três anos depois de os garotos passarem pelo treinamento, Lochman comparou-os com outras crianças agressivas que não haviam participado do programa de controle da raiva. Descobriu que, na adolescência, os garotos que concluíram o programa eram muito menos perturbadores nas salas de aula, se sentiam melhor consigo mesmos e havia uma menor probabilidade de que fossem beber ou usar drogas. E quanto mais tempo tinham participado do programa, menos agressivos eram como adolescentes. PREVENINDO A DEPRESSÃO Dana, de 16 anos, sempre parecera se dar bem. Mas agora, de repente, simplesmente não conseguia se relacionar com outras garotas, e, o que mais a


perturbava, não conseguia segurar os namorados, mesmo indo para a cama com eles. Mal-humorada e constantemente cansada, não queria mais comer nem ter qualquer tipo de diversão; dizia que estava sem perspectivas e que se sentia incapaz de fazer alguma coisa para sair desse estado de espírito, e pensava em suicídio. Ela havia entrado em depressão por ter rompido um namoro. Dizia que não sabia sair com um garoto sem se envolver logo sexualmente — ainda que se sentisse constrangida com isso — nem acabar com um relacionamento, mesmo insatisfatório. Ia para a cama com os rapazes, dizia, quando o que queria mesmo era conhecê-los melhor. Acabara de entrar para uma nova escola e sentia-se tímida quanto a fazer novas amizades com as garotas dali. Por exemplo, não puxava conversa e só falava se os colegas se dirigissem a ela. Não conseguia falar de si própria e não sabia o que dizer depois do “Oi, como vai?”.22 Dana foi fazer terapia num programa experimental para adolescentes deprimidos na Universidade de Colúmbia. O tratamento era centrado em ajudá-la a lidar melhor com seus relacionamentos: fazer amigos, sentir-se mais confiante com outros adolescentes, impor limites de proximidade sexual, se envolver, manifestar seus sentimentos. Em essência, uma orientação remediadora de algumas das mais básicas aptidões emocionais. E deu certo, a depressão dela passou. Sobretudo nos jovens, os problemas de relacionamento são um gatilho para a depressão. A dificuldade, muitas vezes, está tanto nas relações das crianças com os pais quanto com os colegas. As crianças e adolescentes deprimidos muitas vezes não podem ou não querem falar de sua tristeza. Parecem incapazes de definir seus sentimentos com precisão mostrando em vez disso uma mal-humorada irritabilidade, impaciência, instabilidade e raiva — sobretudo em relação aos pais. Isso, por sua vez, torna mais difícil para os pais oferecer o apoio e a orientação emocional que o jovem está precisando, pondo em movimento uma espiral descendente que acaba, normalmente, em constantes discussões e alienação. Um novo exame das causas da depressão nos jovens identifica déficits em duas áreas de competência emocional: dificuldade nos relacionamentos, de um lado, e uma maneira de interpretar reveses que promovem a depressão, do outro.


Embora parte da tendência à depressão quase certamente se deva a predisposições genéticas, outra parte parece dever-se a hábitos de pensamento pessimistas reversíveis, que predispõem os jovens a reagir às pequenas derrotas da vida — uma nota ruim, discussões com os pais, uma rejeição social — ficando deprimidos. E há indícios de que a predisposição à depressão, qualquer que seja a origem, é cada vez mais comum entre os jovens. O PREÇO DA MODERNIDADE: AUMENTO DOS CASOS DE DEPRESSÃO A virada do milênio iniciou uma Era da Melancolia, do mesmo modo como o século XX se tornou a Era da Ansiedade. Dados internacionais mostram uma espécie de epidemia moderna de depressão, que se espalha de mãos dadas com a adoção, em todo o mundo, de modos modernos. Desde o início do século XXI, cada nova geração tem vivido sob maior risco que aquela que a antecedeu de sofrer uma depressão grave — não a mera tristeza, mas uma paralisante apatia, desânimo e autopiedade — no transcorrer da vida.23 E esses episódios estão começando cada vez mais cedo. A depressão na infância, antes praticamente desconhecida (ou, pelo menos, não reconhecida), surge como um dado do panorama moderno. Embora a probabilidade de ficar deprimido aumente com a idade, a maior incidência tem ocorrido entre os jovens. Para os que nasceram após 1955, a probabilidade de sofrerem uma depressão grave em algum momento da vida é, em muitos países, três vezes maior que para seus avós. Entre os americanos nascidos antes de 1905, o percentual dos que tiveram uma depressão grave durante toda a vida foi de apenas 1%; para os nascidos após 1955, aos 24 anos cerca de 6% já tinham ficado deprimidos. Para os nascidos entre 1945 e 1954, a possibilidade de sofrer uma depressão grave antes dos 34 anos seria dez vezes maior que para os nascidos entre 1905 e 1914.24 E para cada geração, o início do primeiro episódio de depressão tem tendido a ocorrer cada vez mais cedo. Um estudo mundial com mais de 39 mil pessoas descobriu a mesma tendência em Porto Rico, Canadá, Itália, Alemanha, França, Taiwan, Líbano e Nova Zelândia. Em Beirute, a incidência de depressão acompanhava de perto os acontecimentos políticos, a tendência ascendente chegando às alturas nos períodos de guerra civil. Na Alemanha, para os nascidos antes de 1914, o percentual de depressão aos 35 anos era de 4%; para os nascidos na década antes de 1944, seria de 14% aos 35 anos. Em todo o mundo, gerações que chegaram à


maioridade em tempos politicamente agitados tinham taxas superiores de depressão, embora a tendência geral ascendente se mantenha independentemente de quaisquer fatos políticos. Na infância, a depressão tem ocorrido numa idade cada vez menor, em qualquer parte do mundo. Quando pedi a especialistas que arriscassem um palpite sobre o motivo, surgiram várias hipóteses. O Dr. Frederick Goodwin, então diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental, especulou: — Houve uma tremenda erosão da família nuclear: o dobro da taxa de divórcios, a redução do tempo que os pais têm para os filhos e o aumento da migração. Não somos mais educados conhecendo outros membros da família, além de pai e mãe. A perda dessas referências para a auto-identidade acarretam uma maior susceptibilidade à depressão. O Dr. David Kupfer, presidente do conselho de psiquiatria da faculdade de medicina da Universidade de Pittsburgh, apontou para outra tendência: — Com a disseminação da industrialização após a Segunda Guerra Mundial, num certo sentido ninguém tem mais um lar. Num número cada vez maior de famílias, vem aumentando a indiferença dos pais pelas necessidades dos filhos enquanto eles crescem. Isso não é uma causa direta da depressão, mas cria uma vulnerabilidade. A tensão no jovem altera o desenvolvimento neurônico, o que leva à depressão quando se está sob grande tensão mesmo décadas depois. Martin Seligman, psicólogo da Universidade da Pensilvânia, sugeriu: — Nos últimos trinta ou quarenta anos, vimos a ascensão do individualismo e o desaparecimento das crenças maiores na religião e nos amparos da comunidade e da família maior. Isso importa numa perda dos recursos que podem nos proteger de reveses e fracassos. Na medida em que encaramos um fracasso qualquer como uma coisa duradoura e o ampliamos de modo a atingir tudo em nossa vida, tendemos a deixar que uma derrota momentânea se torne uma fonte duradoura de desesperança. Mas se temos uma perspectiva maior, como a crença em Deus e numa outra vida, e perdemos o emprego, é apenas uma derrota temporária. Sejam quais forem as causas, a depressão nos jovens é um problema premente. Nos Estados Unidos, as estimativas variam largamente sobre quantas crianças e adolescentes estão deprimidos em um dado ano, em oposição à vulnerabilidade durante toda a vida. Alguns estudos epidemiológicos, usando critérios estritos — os sintomas diagnósticos oficiais da depressão


—, constataram que para meninos e meninas entre 10 e 13 anos o percentual de depressão séria no curso de um ano chega a 8 ou 9%, embora outros estudos apontem para cerca da metade desse percentual (e alguns a rebaixem até 2%). Alguns dados sugerem que, na puberdade, a taxa quase dobra para as meninas; até 16% das meninas entre 14 e 16 anos sofrem uma crise de depressão, enquanto para os meninos não há mudança.25 O PERCURSO DA DEPRESSÃO NOS JOVENS O fato de, nas crianças, a depressão merecer não apenas tratamento, mas também ser prevenida fica evidenciado numa descoberta alarmante: mesmo episódios brandos de depressão numa criança podem antecipar outros mais severos mais tarde.26 Isso vai de encontro à antiga crença de que a depressão na infância não importa a longo prazo, pois as crianças, supostamente, a superam com a idade. Claro, toda criança fica triste de vez em quando; a infância e a adolescência são, como a idade adulta, tempos de ocasionais decepções e grandes e pequenas perdas, com o conseqüente sofrimento. A necessidade de prevenção não é para esses tempos, mas para as crianças nas quais a tristeza se torna uma “fossa” que as deixa desesperadas, irritáveis e retraídas — uma melancolia muito mais séria. Entre as crianças cuja depressão era suficientemente séria para que fossem submetidas a tratamento, três quartos tiveram um episódio posterior de severa depressão, segundo dados coletados por Maria Kovacs, psicóloga do Instituto e Clínica Psiquiátricos Ocidentais em Pittsburgh.27 Ela estudou crianças com diagnóstico de depressão já aos 8 anos, avaliando-as de tempos em tempos, algumas até os 24. As crianças com séria depressão tinham episódios que duravam cerca de 11 meses em média, embora em uma em cada seis delas a depressão persistisse até um ano e meio. As depressões brandas, que começavam já aos 5 anos em algumas crianças, eram menos incapacitantes, mas duravam muito mais — uma média de quatro anos. E, constatou Maria Kovacs, as crianças com uma depressão branda têm mais probabilidade de que ela se transforme em depressão grave — a chamada dupla depressão. Os que desenvolvem dupla depressão são muito mais inclinados a sofrer episódios recorrentes com o passar dos anos. Quando as crianças que já tinham vivido um episódio de depressão chegaram à adolescência e à idade adulta, sofreram de depressão ou problemas maníaco-depressivos, em média um em cada três anos.


O preço para as crianças vai além do sofrimento causado pela própria depressão. Maria Kovacs me disse: — As crianças aprendem aptidões sociais no convívio com os colegas, por exemplo, o que fazer quando querem uma coisa e não a conseguem, vendo como as outras crianças lidam com a situação e depois tentando por si mesmas. Mas as crianças deprimidas provavelmente estão entre as crianças isoladas pelas outras, que não querem brincar com ela.28 O mau humor ou tristeza que essas crianças sentem as leva a não provocar qualquer contato social, ou a desviar o olhar quando as outras tentam entrar em contato com elas — um sinal social que as outras crianças simplesmente consideram como rejeição; o resultado é que as crianças deprimidas acabam rejeitadas ou isoladas no pátio da escola. Essa lacuna em sua experiência interpessoal lhes priva de aprendizagens que ocorreriam nos trancos e barrancos das brincadeiras, e isso as deixa com um retardo social e emocional, com muita coisa a alcançar depois que passa a depressão.29 Na verdade, quando se compararam crianças deprimidas com outras sem depressão, descobriu-se que elas eram mais socialmente ineptas, tinham menos amigos, eram menos preferidas que as outras como companheiras nas brincadeiras, eram menos amadas e tinham relacionamentos mais conturbados com as outras. Outro preço para essas crianças é o desempenho escolar; a depressão interfere na memória e concentração, tornando mais difícil prestar atenção na aula e reter ensinamentos. A criança que não sente alegria com nada achará mais difícil reunir a energia para dominar lições complexas, quanto mais para sentir o fluxo no aprendizado. Compreensivelmente, quanto mais tempo as crianças no estudo de Maria Kovacs passavam deprimidas, mais suas notas caíam e pior se saíam elas nos testes de aproveitamento e, portanto, tinham maior probabilidade de ficarem atrasadas na escola. Na verdade, havia uma correlação direta entre o tempo que a depressão durava e as notas escolares, com uma queda constante no decorrer do episódio. Toda essa dificuldade acadêmica, claro, agrava a depressão. Como observa Maria Kovacs: — Imagine que você já se sente deprimido e começa a darse mal na escola, e fica em casa sozinho em vez de estar brincando com as outras crianças. MODOS DE PENSAR GERADORES DE DEPRESSÃO Do mesmo modo como nos adultos, modos pessimistas de interpretar as derrotas da vida parecem alimentar os sentimentos de impotência e desesperança no fundo da


depressão da criança. Que as pessoas já deprimidas pensam assim, há muito se sabe. O que só recentemente foi descoberto, porém, é que as crianças mais inclinadas à melancolia tendem para essa perspectiva pessimista antes de ficarem deprimidas. Essa intuição mostra que existe um momento em que é possível aplicar uma vacina contra a depressão antes que ela surja. Uma série de indícios vem de estudos acerca das crenças das crianças sobre a capacidade que têm de controlar o que acontece em suas vidas — por exemplo, poder mudar tudo para melhor. Isso é constatável através da auto-avaliação: “Quando eu tenho problemas em casa, sou melhor que as outras crianças na ajuda para a solução desses problemas” e “Quando eu dou duro, tiro notas boas”. As crianças que dizem que nenhuma dessas descrições positivas se adapta a elas têm pouco senso de que podem fazer qualquer coisa para mudar as coisas; essa sensação de impotência é maior nas crianças mais deprimidas.30 Um estudo revelador examinou alunos da quinta e sexta séries poucos dias depois de haverem recebido seus boletins. Como todos lembramos, os boletins escolares são uma das maiores fontes de euforia e desespero na infância. Mas os pesquisadores descobrem uma acentuada conseqüência na maneira como as crianças avaliam seu papel quando tiram uma nota pior do que esperavam. Aquelas que acham que receberam uma nota ruim porque têm algum problema pessoal (“Eu sou idiota”) se sentem mais deprimidas que as que descartam a coisa em termos de algo que podem mudar (“Se eu der mais duro nos deveres de casa de matemática, tiro uma nota melhor”).31 Os pesquisadores identificaram um grupo de alunos da terceira, quarta e quinta séries rejeitados pelos colegas e quais deles continuavam a ser rejeitados nas novas turmas no ano seguinte. A maneira como as crianças explicavam a rejeição parecia crucial para saber se ficavam deprimidas. As que viam sua rejeição como devida a algum defeito pessoal ficavam mais deprimidas. Mas as otimistas, que sentiam que podiam fazer alguma coisa para melhorar, não ficavam especialmente deprimidas mesmo continuando a ser rejeitadas.32 E num estudo de crianças que faziam a transição, notoriamente criadora de tensão, para o ginásio, as que tinham uma atitude pessimista reagiam com maior intensidade a brigas na escola e a qualquer tensão extra em casa ficando deprimidas.33 O indício mais direto de que uma perspectiva pessimista torna as crianças altamente susceptíveis à depressão vem de um estudo de cinco anos com crianças, iniciado quando elas estavam na terceira série.34 Entre as mais novas, o fator mais


forte de previsão da depressão era a perspectiva pessimista combinada com um grande golpe, como pais se divorciando ou uma morte na família, que deixava a criança perturbada, instável e, supõe-se, com pais menos capazes de oferecer um anteparo protetor. Na escola primária, havia uma mudança reveladora na maneira como avaliavam acontecimentos bons e maus, atribuindo-os às suas próprias características: “Eu tiro boas notas porque sou inteligente”; “Eu não tenho muitos amigos porque não tenho graça nenhuma”. Essa mudança parece ir se estabelecendo aos poucos da terceira à quinta séries. Quando isso acontece, as crianças que desenvolvem uma perspectiva pessimista — atribuir os reveses em suas vidas a alguma terrível falha pessoal — começam a ser presas de estados de espírito depressivos como reação aos reveses. E o que é pior, a experiência da própria depressão parece reforçar o pessimismo, de tal forma que, mesmo depois de superada a depressão, a criança fica com uma espécie de cicatriz emocional, um conjunto de convicções alimentadas pela depressão e solidificadas na mente: que não pode se sair bem na escola e nada pode fazer para fugir de seus estados de espírito sorumbáticos. Essas idéias fixas podem deixar as crianças ainda mais vulneráveis a uma posterior depressão. BLOQUEANDO A DEPRESSÃO A boa nova: há todos os indícios de que ensinar às crianças meios mais produtivos de ver suas dificuldades reduz os riscos de depressão.[1] Num estudo em escola ginasial do Oregon, cerca de um em cada quatro alunos tinha o que os psicólogos chamam de “baixo nível de depressão”, não suficientemente séria para dizer-se que ia além da infelicidade comum.35 Alguns se achavam nas primeiras semanas ou meses dos primórdios de uma depressão. Numa classe especial pós-escola, 75 dos alunos com depressão branda aprenderam a contestar os padrões de pensamento associados à depressão, tornando-se mais capazes de fazer amigos, dar-se melhor com os pais e participar de atividades sociais que achavam agradáveis. No fim do programa de dois meses, 55% dos estudantes haviam se recuperado da depressão branda, e apenas um quarto de outros igualmente deprimidos e que não participaram do programa começara a sair dela. Um ano depois, um quarto dos que pertenciam ao grupo de comparação entrara numa grande depressão, contra apenas 14% dos integrantes do programa de prevenção. Embora durassem apenas dois meses, as classes pareceram reduzir pela


metade o risco de depressão.36 Constatações igualmente promissoras vieram de uma classe especial, uma vez por semana, dada a jovens de 10 a 13 anos com problemas com os pais e mostrando alguns sinais de depressão. Na sessão após as aulas, eles aprenderam algumas aptidões emocionais básicas, incluindo como lidar com discordâncias, pensar antes de agir e, talvez mais importante, contestar as crenças pessimistas associadas à depressão — por exemplo, resolvendo estudar mais após sair-se mal numa prova, em vez de pensar: “Eu não sou muito inteligente mesmo.” — O que a criança aprende nessas aulas é que sentimentos como ansiedade, tristeza e raiva simplesmente não se abatem sobre nós sem que tenhamos qualquer controle sobre eles, mas que podemos mudar o que sentimos utilizando o raciocínio — observa o psicólogo Martin Seligman, um dos criadores do programa de três meses. Como a contestação dos pensamentos depressivos vence o estado de melancolia em formação, Seligman acrescenta: “é um reforço instantâneo que se torna um hábito.” Também aqui as sessões especiais reduziram à metade a taxa de depressão — e isso até dois anos depois. Um ano após essas aulas, apenas 8% dos que participaram tinham uma média de pontos de moderada a severa num teste de depressão, contra 29% dos de um grupo de comparação. E, dois anos depois, cerca de 20% dos que participaram do curso mostravam pelo menos alguns sinais de branda depressão, em comparação com 44% dos do grupo-controle. Aprender essas aptidões emocionais no início da adolescência pode ser especialmente proveitoso. Observa Seligman: — Essas crianças parecem lidar melhor com os rotineiros tormentos de rejeição na adolescência. Parecem ter aprendido isso num momento crucial para o risco de depressão, que é a entrada na adolescência. E a lição parece persistir e fortalecerse no decorrer dos anos, o que nos faz supor que estão de fato usando-a na vida diária. Outros especialistas em depressão na infância aplaudem os novos programas: — Se há vontade de fazer alguma coisa importante mesmo em doenças psiquiátricas como a depressão, é preciso agir antes que os jovens adoeçam, em primeiro lugar — comentou Maria Kovacs. — A verdadeira solução é uma vacinação psicológica. DISTÚRBIOS DE ALIMENTAÇÃO


Em meus dias de pós-graduação em psicologia clínica, no fim da década de 1960, conheci duas mulheres que sofriam de distúrbios de alimentação, embora eu só fosse compreender isso muitos anos depois. Uma delas era uma brilhante estudante de pós-graduação em matemática em Harvard, amiga dos tempos de faculdade; a outra, funcionária do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (M.I.T.). A matemática, apesar de esquelética, simplesmente não conseguia comer; dizia ter nojo da comida. A bibliotecária tinha um corpo enorme e era dada a verdadeiras orgias de sorvetes, tortas de cenoura e outras sobremesas; depois — como uma vez confessou com certo embaraço —, ia escondido ao banheiro e provocava vômito. Hoje a matemática receberia o diagnóstico de anorexia; e a bibliotecária, bulimia. Naquele tempo não havia esses rótulos. Os clínicos apenas começavam a comentar o problema. Hilda Bruch, a pioneira desse movimento, publicou seu artigo seminal sobre distúrbios de alimentação em 1969.37 Intrigada com as mulheres que morriam por falta de alimentação, acredita que uma das várias causas desse distúrbio é a incapacidade de identificar e reagir adequadamente a impulsos físicos — notadamente, claro, a fome. Desde então, a literatura clínica sobre distúrbios de alimentação floresceu, com uma série de hipóteses sobre as causas, que vão desde garotas cada vez mais jovens sentindo-se obrigadas a competir com padrões de beleza inatingíveis, a mães enxeridas que envolvem as filhas numa teia controladora de culpa e censura. A maioria dessas hipóteses apresentava uma grande falha: eram extrapolações de observações feitas nas sessões de psicoterapia. Muito mais desejável, do ponto de vista científico, são estudos de grandes grupos de pessoas num período de vários anos, que identifica quais delas vão contrair o problema. Esse tipo de estudo propicia uma nítida comparação que permite identificar, por exemplo, se o fato de ter pais controladores predispõe a garota a distúrbios de alimentação. Além disso, pode identificar o conjunto de condições que levam ao problema e distingui-las de condições que podem parecer causa, mas na verdade se encontram tanto em pessoas sem o problema quanto nas que buscam tratamento. Quando um estudo desse tipo foi feito, de forma minuciosa, com mais de novecentas garotas da sétima série ao segundo grau, descobriu-se que os déficits emocionais — sobretudo a incapacidade de distinguir sentimentos e de não controlá-los — eram os principais fatores que causavam os distúrbios de alimentação.38 Mesmo no segundo grau, já havia 61 garotas nesse ginásio freqüentado por filhos da classe abastada de Minneapolis com sérios sintomas de anorexia e bulimia. Quanto


maior o problema, mais elas reagiam aos reveses, dificuldades e pequenos aborrecimentos com intensos sentimentos negativos que não podiam resolver, e menor a consciência do que exatamente estavam sentindo. Quando essas duas tendências emocionais se juntavam a uma grande insatisfação com o próprio corpo, o resultado era anorexia ou bulimia. Descobriuse que pais que são muito controladores não desempenham um papel causal nos distúrbios de alimentação. (Como advertira a própria Hilda Bruch, não era provável que teorias baseadas numa visão a posteriori fossem exatas; por exemplo, os pais podem facilmente tornar-se muito controladores em reação aos distúrbios de alimentação da filha, no desespero de ajudá-la.) Também julgadas irrelevantes foram algumas explicações como medo da sexualidade, início precoce da puberdade e baixa autoestima. Em vez disso, as correntes causais reveladas por esse estudo começavam com os efeitos sobre as meninas de uma sociedade preocupada com uma magreza antinatural como sinal de beleza feminina. Muito antes da adolescência, as meninas já se preocupam com seu peso. Uma garotinha de 6 anos, por exemplo, rompeu em prantos quando a mãe a convidou para ir nadar, dizendo que ficava gorda de maiô. Na verdade, diz o pediatra dela, que conta a história, o peso da menina era normal para a sua altura.39 Num estudo de 271 jovens adolescentes, metade das garotas se julgava gorda demais, embora a maioria tivesse peso normal. Mas o estudo de Minneapolis mostrou que a obsessão com o excesso de peso não é suficiente, em si, para explicar por que algumas garotas passam a ter distúrbios de alimentação. Algumas pessoas obesas são incapazes de distinguir entre medo, raiva e fome, e assim embolam todos esses sentimentos como significando fome, o que as leva a comer demais sempre que não estão bem.40 Alguma coisa semelhante parece acontecer com essas garotas. Gloria Leon, psicóloga da Universidade de Minneapolis que fez o estudo das meninas e dos distúrbios de alimentação, observou que elas “têm pouca consciência de seus sentimentos e dos sinais de seus corpos; esse era o mais forte fator de previsão de que iam ter um distúrbio de alimentação nos próximos dois anos. A maioria das crianças aprende a distinguir suas sensações, a saber a diferença entre o tédio, a raiva, a depressão ou a fome — é uma parte básica do aprendizado emocional. Mas essas garotas têm dificuldade em distinguir seus sentimentos mais básicos. Podem ter um problema com o namorado e não saber se estão com raiva, ansiosas ou deprimidas — sentem apenas uma difusa tempestade emocional com a qual não sabem lidar


efetivamente. Em vez disso, aprendem a se sentir melhor comendo; isso pode tornar-se um hábito emocional fortemente entranhado”. Mas quando esse hábito para aliviar-se interage com as pressões que as garotas sentem para permanecer magras, está aberto o caminho para o surgimento de distúrbios de alimentação. — A princípio, ela pode começar com orgias de comida — observa Gloria Leon. — Mas para continuar magra tem de recorrer a vômitos ou laxativos, ou intenso exercício físico para perder o peso ganho com o excesso de comida. Outro caminho que essa luta para lidar com a confusão emocional pode tomar é a garota não comer nada; pode ser um meio de sentir que tem pelo menos algum controle sobre esses sentimentos esmagadores. A combinação de pouca consciência interior e fracas aptidões sociais faz com que essas garotas, quando perturbadas por amigos ou parentes, não ajam efetivamente para melhorar o relacionamento ou sua própria aflição. Em vez disso, a perturbação dispara o distúrbio de alimentação, seja bulimia, anorexia ou simplesmente orgias de comida. Gloria Leon acredita que o tratamento eficaz para essas garotas precisa incluir alguma instrução terapêutica sobre as aptidões emocionais que lhes faltam. — Os clínicos constatam — ela me disse — que, se os déficits nas aptidões emocionais forem abordados, a terapia funciona melhor. Essas garotas precisam aprender a identificar seus sentimentos e aprender melhores meios de aliviar-se ou lidar com seus relacionamentos, sem recorrer aos hábitos alimentares mal adequados para resolver o problema. REJEITADO PELOS COLEGAS: EVASÃO ESCOLAR É um drama do primário: Ben, um menino da quarta série com poucos amigos, acabou de saber pelo único companheiro, Jason, que os dois não vão brincar juntos no recreio — Jason quer brincar com outro menino, Chad. Ben, arrasado, deixa pender a cabeça e chora. Depois que passam os soluços, vai à mesa onde comem Jason e Chad. — Odeio você — berra para Jason. — Por quê? — pergunta Jason. — Porque você mentiu — diz Ben, em tom acusador. — Você disse a semana toda que ia brincar comigo e mentiu. E sai danado da vida para uma mesa vazia, chorando baixinho. Jason e Chad aproximam-se dele e tentam conversar, mas Ben tapa os ouvidos com os dedos, decidido a ignorá-los, e


sai correndo do refeitório para esconder-se atrás do depósito de lixo da escola. Um grupo de meninas que assistiu ao diálogo tenta desempenhar um papel pacificador, chegando perto de Ben e dizendo-lhe que Jason quer brincar com ele também. Mas Ben não quer saber de nada e pede que o deixem em paz. Trata de suas feridas, macambúzio e soluçando, desafiadoramente solitário.41 Um momento pungente, sem dúvida; o sentimento de ser rejeitado e de estar sem amigos é um daqueles pelos quais a maioria passa num ou noutro momento da infância ou da adolescência. Mas o que é mais revelador na reação de Ben é que ele não correspondeu à tentativa de Jason de refazer a amizade dos dois, uma atitude que aumentou seu sofrimento, quando devia tê-lo encerrado. Essa incapacidade de aproveitar deixas-chave é típica de crianças impopulares; como vimos no Capítulo 8, crianças socialmente rejeitadas são, normalmente, fracas na interpretação de sinais emocionais e sociais; mesmo quando compreendem esses sinais, podem ter limitados repertórios de respostas. A evasão escolar é um risco particular para as crianças rejeitadas pelos colegas. A taxa é entre duas e oito vezes maior que para as que têm amigos. Um estudo constatou, por exemplo, que cerca de 25% das crianças “isoladas” no primário abandonaram os estudos antes de concluir o ginásio, em comparação com uma taxa geral de 8%.42 Não é de admirar: imaginem passar trinta horas por semana num lugar onde ninguém gosta da gente. Dois tipos de tendências emocionais levam as crianças a se tornarem socialmente marginalizadas. Como vimos, uma é a tendência a explosões de cólera e a sentir hostilidade mesmo onde não há intenção. A segunda é a timidez, a ansiedade e a depressão. Mas, além e acima desses fatores temperamentais, são as crianças “chatas” — cuja canhestrice deixa sempre as pessoas pouco à vontade — que tendem a ser evitadas. Uma maneira de essas crianças serem “chatas” está nos sinais emocionais que enviam. Quando foi pedido a alunos do primário que tinham poucos amigos que combinassem uma emoção como nojo ou raiva com rostos que exibiam uma gama de emoções, elas cometeram muito mais erros que as crianças que são benquistas. Quando se pediu a crianças de jardim-deinfância que descrevessem formas de fazer amigos ou evitar uma briga, foram as chatas — aquelas com as quais as outras evitavam brincar — que apresentaram as respostas erradas (“Dar um pau nele”, em relação à disputa por um brinquedo, por exemplo), ou vagos pedidos de ajuda a um adulto. E quando se pediu a adolescentes que interpretassem tristeza, raiva ou


malícia, os mais “chatos” foram os mais inconvincentes. Talvez não surpreenda o fato de esses jovens se sentirem incapazes de fazer amigos; a incompetência social deles torna-se uma profecia que se autocumpre. Em vez de aprender novas formas de fazer amigos, simplesmente continuam fazendo as mesmas coisas que não deram certo antes, ou apresentam reações ainda mais ineptas.43 Na loteria do gostar ou não gostar, essas crianças ficam aquém em critérios emocionais importantes: não são consideradas como uma companhia divertida e não sabem, como as outras crianças, se sentir à vontade. Observações sobre esse tipo de criança revelam que, por exemplo, são elas que provavelmente vão trapacear, emburrar-se, desistir de jogar quando estão perdendo, ou exibir-se e gabar-se das vitórias. Claro, a maioria das crianças quer ganhar num jogo — mas, ganhando ou perdendo, a maioria pode conter sua reação emocional, para não solapar o relacionamento com o amigo com o qual jogam. Embora as crianças sem sensibilidade social — que continuamente têm dificuldade para interpretar e reagir a emoções — se transformem em párias sociais, isso não se aplica, claro, a crianças que vivem um momento em que se sentem de fora. Mas, para os que são continuamente rejeitados, essa situação dolorosa de estar à margem as estigmatiza durante todo o tempo escolar. E as conseqüências para a vida adulta são potencialmente grandes. É no caldeirão das amizades íntimas e no tumulto das brincadeiras que as crianças aprimoram as aptidões sociais e emocionais que levarão para relacionamentos posteriores na vida. As crianças que não usufruem desse aprendizado ficam, inevitavelmente, em desvantagem. Compreensivelmente, os que são rejeitados apresentam grande ansiedade e muitas preocupações, além de ficarem deprimidos e solitários. Na verdade, mostrou-se que o desempenho emocional na infância é melhor indicador de sua saúde mental aos 18 anos que qualquer outra coisa — classificações de professores e enfermeiros, desempenho escolar e QI e mesmo contagens em testes psicológicos.44 E, como vimos, em estágios posteriores da vida, pessoas com poucos amigos e cronicamente solitárias correm maior risco de contrair doenças e de morrer cedo. Como observou o psicanalista Harry Stack, aprendemos a negociar relações íntimas — resolver divergências e partilhar nossos mais profundos sentimentos — em nossas primeiras amizades com os coleguinhas do mesmo sexo. Mas as crianças socialmente rejeitadas só têm metade das possibilidades que têm seus colegas de fazer um melhor amigo durante os anos cruciais


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